Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
144/11.3TBPNI.L1-2
Relator: PEDRO MARTINS
Descritores: ALIENAÇÃO DE QUOTA
SOCIEDADE POR QUOTAS
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 03/01/2012
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: Aquele dos cônjuges que, por força do art. 8.º/2 do CSC é considerado como sócio, não tem legitimidade para, sem o consentimento do outro cônjuge, alienar a participação social.
(da responsabilidade do Relator)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa os juízes abaixo assinados:

“A” intentou a presente acção contra “B” e “C”, pedindo a declaração de nulidade da transmissão da quota social que identifica e o consequente cancelamento do respectivo registo.
Para tanto alegou, em síntese, ter casado com o réu em 11/01/1992, sob o regime da comunhão de adquiridos, sendo que em 05/11/1998 o mesmo réu constituiu com o pai da autora uma sociedade por quotas. No dia 16/02/2011, o réu requereu o registo da transmissão da quota de que era titular em tal sociedade em favor da ré, sua irmã, o que fez sem intervenção ou conhecimento da autora e, desse modo, sem o seu consentimento, circunstância que, por estar em causa um bem comum do casal, acarreta, em seu entender, a nulidade de tal transmissão.
Os réus contestaram, dizendo, em síntese, e embora admitindo a generalidade dos factos alegados pela autora, que não era necessário o consentimento da autora para a alienação da quota e, desse modo, concluem pela improcedência da acção.
No despacho saneador, julgou-se a acção procedente, decretando-se a anulação da transmissão, a favor da ré da quota com o valor nominal de 12.469,95€, de que o réu é titular na sociedade identificada em 2 dos factos provados; e determinando-se o cancelamento do registo de tal transmissão, ao qual se reporta a menção de depósito 61/2011-02-16.
Deram-se como provados os seguintes factos (por acordo e por intermédio dos documentos juntos aos autos):
1. Em 11/01/1992, a autora e o réu celebraram casamento católico, sem convenção antenupcial.
2. Por intermédio da ap. 02/1998.11.05, foi registada a constituição da “D”, Lda, pessoa colectiva n.º ..., com sede na Rua ..., n.º ..., em ..., ....
3. Tal sociedade foi constituída com o capital social de 24.939,90€, representado por duas quotas no valor nominal de 12.469,95€, cada uma, tituladas, respectivamente, por “D” e pelo réu.
4. No dia 16/02/2011, por intermédio da menção dep. 61, foi requerido o registo de transmissão da aludida quota titulada pelo réu a favor da ré.
5. Tal transmissão ocorreu sem o consentimento da aqui autora.
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O saneador-sentença disse o seguinte sobre a necessidade do consentimento da autora para a validade da transmissão da quota:
“Mostra-se assente que a autora e o réu casaram em 11/01/1992, sem convenção antenupcial, razão por que, face ao disposto no art. 1717 do Código Civil [= CC], é inequívoco que entre ambos vigora o regime da comunhão de adquiridos.
Para além disso, e uma vez que a constituição da sociedade identificada nos autos se reporta a 05/11/1998, em plena vigência do matrimónio celebrado entre autora e réu, verifica-se, à luz do disposto no art. 1724/b), e na ausência de alegação em contrário por qualquer das partes, que a quota social titulada por este último constitui bem comum do casal.
Como tal, e não estando em causa qualquer dos casos a que aludem os n.ºs 1 e 2 do art. 1678, resulta do n.º 3 do mesmo pre-ceito legal que cada um dos cônjuges apenas tem legitimidade para a prática de actos de administração ordinária relativos ao aludido bem comum do casal, sendo que os restantes actos de adminis-tração só podem ser praticados com o consentimento de ambos os cônjuges.
Ora, é inequívoco que o acto de transmissão de uma quota social não constitui um mero acto de administração ordinária, razão por que, em face da disciplina legal já citada, se impõe concluir que o mesmo apenas poderia ser praticado com o consentimento de ambos os cônjuges, conclusão essa que sai ainda inequivocamente reforçada pelo disposto no artigo 1682/1.
A questão que se coloca, e que vem enfatizada pelos réus nas respectivas contestações, é a de saber se se imporá conclusão diversa daquela face ao disposto no art. 8.º/2 do Código das Socie-dades Comerciais, do seguinte teor: «Quando uma participação social for, por força do regime matrimonial de bens, comum aos dois cônjuges, será considerado como sócio, nas relações com a sociedade, aquele que tenha celebrado o contrato de sociedade ou, no caso de aquisição posterior ao contrato, aquele por quem a participação tenha vindo ao casal».
Tal como se faz notar no ac. da Relação de Évora de 17/03/2011 (in Colectânea de Jurisprudência, Tomo II/2011, pp. 261 a 264), a citada disposição legal «consagra o princípio da pessoalidade do direito do sócio, de onde decorre que, nas relações com a sociedade, é o sócio, que não o cônjuge, quem exerce os poderes inerentes à respectiva quota – até que nada impede que os cônjuges sejam titulares de quotas próprias e distintas (situação, aliás, bem frequente nas chamadas sociedades familiares).
Assim (…), nas relações com a sociedade, só é verdadeiramente sócio o cônjuge que levou a participação ao casal, não passando o outro, nesse aspecto da vida da participação social, de uma espécie de associado à quota».
Ora, em nosso entendimento, e salvo o devido respeito pela posição contrária, tal princípio da pessoalidade da participação social apenas respeita às aludidas relações do sócio com a sociedade, e já não à titularidade da participação social, crendo-se, com Maria Rita Lobo Xavier, citada pelo ac. do STJ de 19/06/2008 (08B871 da base de dados do ITIJ), «que o preceito ora em apreço, procurando, embora, imunizar o ente societário das dissensões familiares, apenas veio trazer alterações (seja ele inovador ou interpretativo) em relação aos actos sociais, nada se modificando no que diz respeito às relações externas da sociedade (aí vigorando, em pleno, as regras imperativas do regime matrimonial de bens).
Estando, assim, o cônjuge sócio carecido de legitimidade para alienar ou onerar a participação social comum, sem o consen-timento do seu consorte (art. 1682/1 já mencionado), sendo esta, aliás, a prática notarial que vem exigindo o consentimento de ambos os cônjuges nas escrituras de cessão de quotas sociais comuns».
No mesmo sentido se pronuncia, neste caso citando a lição de Pinto Furtado, o ac. do STJ de 29/06/2006 (06B1447), onde se realça que o «art. 8.º/2 do CSC só veio trazer alterações em relação aos actos sociais, nada tendo alterado no atinente às relações exter-nas à sociedade. Não estando em causa, quando se trata de actos extra-sociais, como os de alienação ou oneração dos bens comuns do casal citados, o interesse da sociedade em que só os que como sócios figurem intervenham no seu funcionamento, não se antolha como, com valimento, justificar a desnecessidade de consentimen-to do cônjuge [a quem não se comunica, por lei, a vertente "associ-ativa, política ou corporativa de sócio", ao contrário do que aconte-ce com a patrimonial (…)] que não é considerado sócio, insiste-se, para a supracitada oneração ou alienação».
Como assim, e sendo este o entendimento que, pelas razões enunciadas, se nos afigura mais conforme à disciplina legal vinda de expor, importa reforçar a já antecipada conclusão da necessida-de do consentimento do consorte do cônjuge sócio para a transmis-são da quota social em apreço, consentimento esse que, não tendo in casu existido por parte da autora, implica a anulabilidade do acto em causa, conforme resulta do disposto no art. 1687/1.”
O réu recorre deste saneador-sentença – para que seja revogado e substituído por outro que considere que não é necessário a autorização do cônjuge para a alienação da quota - terminando as suas alegações com as seguintes conclusões (relevantes):
B) O tribunal a quo deu como provado o facto sob 5 (“tal transmissão ocorreu sem o consentimento da aqui autora”), quando não existe nenhum documento […] que leve a essa conclusão e, por outro lado, no art. 5 da contestação da ré esta diz: “Face à intervenção de todos os sócios, reforçada pelos seu laços familiares, a ré nunca duvidou que a autora não soubesse de tal venda, tanto mais que o réu sempre lhe informou que a autora estava a par de tal cessão de quota”.
F) Para o apuramento da necessidade ou não do consentimento do cônjuge consorte importa enquadrar os arts 1678, 1682 e 1724b) todos do CC e 8.º/2 do CSC.
G) Antes de mais, importa saber quem é administrador das quotas transmitidas ou se administração era conjunta, sabendo-se que, quanto à administração dos bens comuns, a regra é a da co-direcção (art. 1678/3 do CC). A regra da administração conjunta instituída pela reforma do CC de 1977 dando cumprimento ao princípio da igualdade dos cônjuges (art. 36 da CRP) só é excepcionada em casos em que existe uma especial ligação do bem a um dos cônjuges (nos casos mencionados no artigo 1678º, nº 2).
H) A norma do art. 1678/2, não obsta que outra lei regule, pontualmente, de modo diverso a administração e a alienação de certos bens do casal, em situações concretas e em atenção interesses particulares (aditando-os à lista de bens comuns, submetidos à administração de apenas um dos cônjuges).
I) Qualquer dos cônjuges, quanto aos bens comuns, pode administrá-los, praticar isolada e validamente, actos de administração ordinária (como aqueles que se destinam à normal conservação e frutificação dos bens), independentemente da vontade do outro cônjuge. Há uma administração concorrencial de ambos os cônjuges na administração ordinária dos bens comuns.
J) Já quanto à administração extraordinária, a regra é a da administração conjunta desses bens; à validade desses actos de administração exige-se o consentimento de ambos os cônjuges. Sem ele nenhum dos cônjuges tem legitimidade para deles dispor, nomeadamente para os alienar ou onerar.
K) Segundo o art. 1682 do CC, qualquer dos cônjuges tem legitimidade para alienar ou onerar bens móveis comuns de que tenha a administração (exclusiva). Cabendo a administração a ambos os cônjuges, tais actos carecem do consentimento de ambos.
L) Como regra, pode alienar ou onerar os bens móveis comuns o cônjuge que deles tiver a administração, salvo os compreendidos no nº 3 do art. 1682. De acordo com o n.º 2 do art. 8.º do CSC, será considerado sócio o agora recorrente, não tendo relevância se, de facto, apenas o réu administrava, em exclusivo, as quotas e se sempre o fez (as regras legais sobre a administração dos bens do casal não consentem excepções pactuadas entre os cônjuges, de forma expressa ou tácita). Só releva essa administração (exclusiva) se a mesma lhe for atribuída por lei, nomeadamente por aplicação do art. 8.º/2, do CSC, norma que, pela sua inserção no código, é aplicável aos vários tipos de sociedades.
M) A norma visa o interesse social. Pragmaticamente estabelece a incomunicabilidade da qualidade de sócio e apenas é considerado sócio, nas relações com a sociedade, o cônjuge que tomou parte no acto aquisitivo da participação social (bem comum).
N) Fora da norma ficam as relações do sócio com terceiro, estranhas à sociedade e o cônjuge do sócio, para esse efeito, é um terceiro.
O) Aquele que está identificado como sócio no acto aquisitivo da participação social é que tem legitimidade para agir perante a sociedade.
P) Apesar dos bens (quotas ou acções) serem bens comuns do casal, dos cônjuges participarem do valor económico da participação social, só o sócio, nos termos dessa norma, exerce os inerentes direitos e tem legitimidade para agir nas relações com a sociedade.
Q) À estabilidade da vida social interessa que só o titular da participação seja considerado sócio, até para evitar os potenciais conflitos entre os cônjuges, que podiam dificultar ou entravar a administração social [Ac. STJ, de 30/10/2001, CJ/IX, 3º, 98]. Ao cônjuge não se transmite nem a qualidade de sócio nem os direitos corporativos ou associativos a este atribuídos.
R) Esse preceito estabelece como regime a regra da “da contitularidade a meia haste ou a meio pau, por força do qual, nas relações com a sociedade, só é verdadeiramente sócio o cônjuge que levou a participação ao casal, não passando o outro, nesse aspecto da vida da participação social, de uma espécie de associado à quota"[cfr. Antunes Varela, Direito de Família, I, 5ª/Ed., pág. 441].
S) A norma está a atribuir ao cônjuge adquirente a administração da participação social em causa, sem por em causa a propriedade comum do bem. Fora da situação prevista no nº 3 do preceito, o “cônjuge não sócio não pode praticar a administração da participação, precisamente porque os poderes administrativos estão confiados ao consorte designado sócio”[João Labareda, ob. cit., 213].
T) O n.º 3 do art. 8.º do CSC é similar ao art. 1678/2f), do CC, pelo que não é excessivo afirmar-se que, atribuindo a lei poderes ilimitados ao cônjuge não sócio, fora dessa situação, também este beneficia de idênticos poderes, incluindo os de onerar e alienar a participação social. E assim, viria esse art. 8.º/2, aditar ao rol de bens da administração de um só dos cônjuges (nos termos do art. 1678/2 do CC) as participações sociais adquiridas por um só dos cônjuges.
U) Cada um dos cônjuges tem legitimidade para onerar ou alienar os bens móveis comuns de que tenha a administração, nos termos do art. 1678/2, do CC, conforme dispõe o art.1682/2, do CC. O facto de as participações sociais não estarem mencionadas nos bens de administração exclusiva nos termos do art. 1678/2, poder-se-ia entender como excluídas e em consequência ser exigido o consentimento de ambos os cônjuges no caso de oneração e alienação das quotas (art. 1682/1), caso o n.º 2 do art. 8.º do CSC não viesse plasmar que a administração das participações sociais cabe apenas ao cônjuge sócio.
V) Assim, se bem que especialmente não previstas as participações sociais como bens sob administração de apenas de um dos cônjuges nos termos do art. 1678/2 do CC, estando as participações sociais na exclusiva administração do cônjuge sócio, por analogia, deve aplicar-se essa disposição do art. 1682/2, do CC, por procederem as razões justificativas da regulamentação no caso previsto (art. 1678/2).
W) Atento tudo o supra exposto, se conclui […] que o réu tinha legitimidade para vender as quotas de que era titular, sem o consentimento da autora […].
A ré não recorreu. A autora não contra-alegou.
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Do recurso quanto aos factos [conclusão b)]:
Embora tenha dito recorrer apenas quanto à matéria de direito, o réu, logo na primeira conclusão relevante, põe em causa o facto sob 5, por não estar provado nem por acordo nem por documento, meios de prova de que o juiz se serviu para o dar como provado.
O réu não tem qualquer razão, já que, tal como resulta da própria conclusão, o que a ré dizia na contestação é que estava convencida que a autora tinha conhecimento da venda. Ora a alegação desse facto não significa a impugnação da afirmação da falta de intervenção e consentimento da autora em tal transmissão. Assim, o facto em causa estava, tal como se entendeu na decisão recorrida, admitido por acordo por falta de impugnação (art. 490/2 do CPC).
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Do recurso quanto ao direito [conclusões F) a W)]
A posição adoptada na sentença corresponde à doutrina e jurisprudência praticamente unânime sobre a questão em causa nos autos. A posição do réu corresponde à posição assumida por João Labareda (no estudo inserido na obra Direito Societário Português – Algumas Questões, Quid Juris, 1998, estando aquele estudo nas págs. 197 a 230), tal como veio a ser acolhida por um acórdão, citado pelo réu, do TRP de 07/12/2005 (0535980) que o réu segue quase ipsis verbis (anota-se entretanto que este acórdão do TRP foi revogado pelo ac. do STJ de 2006 citado no saneador-sentença recorrido).
Aderiu também à posição de João Labareda o parecer do Conselho Técnico do IRN de 29/04/2008, processo R.CO 35/2007DSJ-CT publicado em http://www.irn. mj.pt/IRN/sections/irn/doutrina/pareceres/comercial/2007/p-r-co-35-2007dsj-ct/download File/file/prco035-2007.pdf?nocache=1319036820.96, consultado em 02/02/2012, sem argumentos adicionais.
Para melhor compreensão daquela posição que as conclusões do recurso tentam reproduzir, anote-se que a conclusão T) deveria ser acres-centada das seguintes partes em parêntesis rectos: “O n.º 3 do art. 8.º do CSC é similar ao art. 1678/2f), do CC, pelo que não é excessivo afirmar-se que, atribuindo a lei [na situação nele prevista] poderes ilimitados ao cônjuge não sócio, fora dessa situação, também [o “sócio”] beneficia[ria] de idênticos poderes, incluindo os de onerar e alienar a participação social.”
Seja como for, a construção de João Labareda, seguida no recurso é, para além do que já resulta das respectivas conclusões, em síntese (naturalmente também incompleta… , até porque cada passo do que se segue é amplamente fundamentado naquele estudo) no que importa para a solução do caso, esta:
O art. 1678 do CC abrange, em três regras, todo o universo de situações possíveis quanto à administração dos bens, nada deixando por tratar: 1ª - a administração de bens próprios é confiada, normalmente, ao cônjuge titular; 2ª - a administração de bens comuns pertence, normalmente, a ambos os cônjuges, o que tem por efeito poder qualquer deles praticar actos de administração ordinária mas ser necessário o consentimento dos dois para a prática de actos de administração extraordinária; 3ª - há, porém, certos bens que, apesar de serem comuns ou próprios do outro, são confiados à administração de um só dos cônjuges.
Por sua vez, o art. 1682 do CC, concatenado com o art. 1678, também nada deixou de fora, relativamente aos poderes para alienar ou onerar: tem um princípio fundamental que é o de que tem legitimidade para alienar e onerar quem tem legitimidade para administrar [no sentido, de que se são os dois que administram, a alienação tem de ser pelos dois; se é só um que administra, a alienação pode ser feita só por esse – o que está neste parêntesis é deste acórdão], princípio com três ressalvas: as duas contempladas no nº. 3 do art. 1682 e ainda o caso da al. g) do nº. 2 do art. 1678.
Ora, a administração da participação social, neste caso, caberia na 3ª regra do art. 1678, por força do art. 8.º/2 do CSC, e por isso, como não se subsume em nenhuma das ressalvas do art. 1682 do CC, cairia no princípio fundamental do art. 1682. Assim, como era ao réu que cabia a administração, ele tinha poderes para alienar sozinho.
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Esta posição de João Labareda foi discutida uns anos depois, num estudo publicado na Revista da Ordem dos Advogados, em 2005, II, págs. 487 a 503 (especialmente págs. 495/497), de José Miguel Duarte, que segue a posição de Maria Rita Lobo Xavier, na sua tese de mestrado, Reflexão sobre a posição do cônjuge meeiro em sociedades por quotas, BFDUC, separata vol. XXXVIII, 1993).
Segundo este autor, o art. 8.º/2 do CSC é apenas uma norma especial relativamente à norma do art. 1678/3 do CC segundo a qual qualquer dos cônjuges detém legitimidade para a prática de actos de administração ordinária dos bens comuns, não pretendendo regular mais do que isto. Quanto à legitimidade para a alienação de bens móveis comuns, a regra é a da necessidade do consentimento de bens os cônjuges (art. 1682/1 do CC). Como excepções a esta regra estão os actos de disposição que se reconduzem à administração ordinária dos bens e os relativos a bens cuja administração caiba apenas a um dos cônjuges, nos termos do nº. 1 do art. 1678 do CC e das als a) a f) do nº. 2 do mesmo artigo (art. 1682/2 do CC). Ora, entre esses bens não se encontram as participações sociais, em si mesmo consideradas. Por outro lado, diz, surpreende-se uma relativa coincidência entre os poderes de administração e os poderes de disposição de bens comuns, que são atribuídos a apenas um dos cônjuges, em virtude de uma especial e forte ligação entre determinadas categorias de bens e um dos membros do casal; ora, a razão de ser do art. 8.º/2 do CSC não repousa tanto nessa especial ligação, como na necessidade de prover o regular funcionamento de uma pessoa colectiva em que os cônjuges participam.
Também Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira, Curso de Direito da Família, Vol I, 2ª edição, Coimbra Editora, 2001, págs. 372/373, dizem que parece desviar-se deste regra de administração ordinária disjunta o caso da administração de uma quota que seja bem comum do casal por força do regime de bens do casamento, e citam Rita Xavier quando esta autora refere que o art. 8.º/2 do CSC implica que só tem legitimidade para a prática de actos de administração ordinária [– repare-se: administração ordinária – o parêntesis é deste acórdão], relativamente a uma quota comum, aquele dos cônjuges que […].
Cristina M. Araújo Dias, na sua tese sobre O regime da responsabilidade por dívidas dos cônjuges, Problemas, críticas e sugestões, Coimbra Editora, Junho de 2009, págs. 537 a 540, também segue a posição de Maria Rita Lobo Xavier: A atribuição a qualquer dos cônjuges de legitimidade para a prática de actos de administração ordinária em relação a uma participação social seria prejudicial e inconveniente ao normal desenvolvimento da vida societária. Procurou-se evitar esta situação perturbadora do ponto de vista da sociedade [com as normas do] art. 8.º/2 do CSC […]. Mas repare-se que se trata apenas das relações com a sociedade, nada se modificando nas relações externas. Por isso, e apesar de o cônjuge administrador da quota social comum, ter, em princípio, poderes que vão além da simples administração, abrangendo mesmo poderes de disposição, tal não será exactamente assim, carecendo o cônjuge sócio do consentimento do outro cônjuge para alienar ou onerar a participação social (art. 1682/1). Segundo as indicações desta autora, em texto e em notas, também assim seria no direito francês (quanto às quotas, já não quanto às acções – e aqui haveria que chamar a atenção para que o caso do TRP seguido pelo réu diz respeito a uma sociedade anónima…), italiano e alemão.
Rita Lobo Xavier, no seu artigo sobre Participação social em sociedade por quotas integrada na comunhão conjugal e tutela dos direitos do cônjuge e do ex-cônjuge do "sócio", publicado em Nos 20 anos do Código das Sociedades Comerciais Homenagem aos Profs. Doutores A. F. Correia, O. Carvalho e V. L. Xavier Vol. III, Coimbra Editora, Dez2007, págs. 993 e segs (especialmente págs. 997 a 1006, volta a defender a mesma posição, embora a outros propósitos, referindo, apenas de passagem, a posição contrária de João Labareda, na nota 29 e em texto da pág. 1001 em que critica a construção deste autor da atribuição de poderes de administração exclusiva, incluindo poderes de administração extraordinária; esta autora lembra a compatibilidade das posições de Oliveira Ascensão, João Espírito Santo e Coutinho de Abreu com as suas.
Remédio Marques, em Comentário [ao art. 8] ao CSC, Vol. I, Almedina, 2010, IDET, págs. 151 a 153, escreve, entre o mais, que “da administração exclusiva da vertente patrimonial deste bem comum – aí onde o estatuto ou a qualidade de sócio não é comunicável – não resulta que o cônjuge sócio ou o cônjuge accionista possa exercer os seus direitos sociais em regime de completa autonomia e imunidade relativamente à interferência do outro cônjuge. E não se diga que deve ser aplicada, por analogia, o disposto no art. 1682/2 do CC, concluindo-se que o cônjuge sócio tem legitimidade para alienar ou onerar as participações sociais que são bens comuns, de que tenha a administração, independentemente do consentimento do outro cônjuge (em nota lembra que esta é a posição de João Labareda e do ac, do TRP), visto que estas situações não seriam atingidas pelo sector normativo do nº 3 do art. 1682 do CC.
Objecta-se a esta solução afirmando que o facto de, nos termos do art. 205/1 do CC, as participações sociais serem equiparadas aos bens móveis (cuja administração pertence exclusivamente a um dos cônjuges – precisamente o cônjuge sócio ou accionista) não significa que procedam as razões subjacentes à solução do art. 1682/2 do CC. Não significa que devamos aplicar, sic et simpliciter, o regime jurídico dos bens móveis, especialmente em matéria de ilegitimidades conjugais.
Embora possa entender-se que o art. 1678/2 do CC, logra comportar mais este outro exemplo de bens comuns cuja prática cabe, em exclusivo, a um dos cônjuges, a verdade é que as situações do nº. 3 do art. 1682 visam apenas defender o cônjuge não administrador contra actos de alienação ou onerações respeitantes a coisas corpóreas – aquelas cuja afectação empírica é mais ostensiva na pessoa dos cônjuges. O facto de nesse nº. 3 não acharem mencionadas as participações sociais (cuja alienação ou oneração careceria de consentimento do cônjuge não administrador de tais bens comuns) não impede que esse consentimento deva ser exigido (ou objecto de suprimento), ao abrigo da norma geral do nº. 3 do art. 1678 do CC, se e quando essa alienação ou oneração forem qualificadas como actos de administração extraordinárias.”
Quer isto dizer que este autor, embora parta de concepções muito diferentes das de Rita Lobo Xavier e admita a atribuição, pelo art. 8.º/2 do CSC, de administração exclusiva ao “sócio”, defendida por João Labareda, entende, mesmo assim, por outra via, a necessidade do consentimento do outro cônjuge e a impossibilidade de aplicação, por analogia, da regra do nº. 2 do art. 1682 do CC.
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Posto isto, entende-se que a posição seguida pelo saneador-sentença, apoiada pelos vários elementos que invocou, e corroborada pelos elementos agora introduzidos, é a correcta, pois que, por um lado, a regra do art. 8.º/2 do CSC limita-se a atribuir poderes de administração ordinária ao cônjuge considerado “sócio”, não todos os poderes de administração e, por outro, a situação não cabe na previsão da excepção do nº. 2 do art. 1682 do CC e a mesma não é aplicável por analogia, por as razões da dispensa de consentimento que lhe estão subjacentes não se verificarem.
Note-se, por fim, que não estão em causa, neste processo, situações de facto que pudessem levar a considerar a alienação da quota como um acto administração ordinária…
Assim, conclui-se que era necessário o consentimento da autora para alienação da quota que era bem comum do casal.
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Por fim, a consequência da alienação de bem móvel comum sem o necessário consentimento do outro cônjuge é a tirada pelo saneador-sentença recorrido (anulabilidade – arts. 1682/1 e 1687/1, ambos do CC) e, assim sendo, tudo visto, deve o mesmo ser confirmado.
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(…)
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Pelo exposto, julga-se improcedente o recurso.
Custas pelo réu.

Lisboa, 1 de Março de 2012

Pedro Martins
Sérgio Silva Almeida
Lúcia Sousa