Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
114/06.3TCFUN.L1-1
Relator: PEDRO BRIGHTON
Descritores: DANO CAUSADO POR ANIMAL
ANIMAL DE COMPANHIA  
RESPONSABILIDADE CIVIL
PROPRIETÁRIO
DETENÇÃO
MENOR
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/07/2012
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE
Sumário: I- A selecção dos Factos Assentes e da Base Instrutória tem de ser feita de forma criteriosa, não se podendo neles englobar conceitos jurídicos ou conclusões, mas unicamente factos concretos.
II- A Base Instrutória deve constituir um todo coerente, sendo os seus artigos redigidos com precisão e clareza, procurando reproduzir o alegado tal qual, com eventuais acertos terminológicos que melhor evidenciem o núcleo perguntado.
III- Quem tiver o encargo da vigilância de qualquer animal responde pelos danos que ele causar salvo se provar que não teve culpa.
IV- Quem no seu próprio interesse utilizar quaisquer animais responde pelos danos por ele causados, desde que resultem do perigo especial que envolva a sua utilização.
V- A responsabilidade pode coexistir quer fundada no risco ou na culpa
( Da responsabilidade do Relator)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA :

IRelatório
1) A , na qualidade de representante legal do seu filho menor B , instaurou a presente acção declarativa de condenação, com a forma de processo ordinário contra C , pedindo que o R. seja condenado no pagamento da quantia 15.130,20 €, acrescida de juros de mora vencidos, calculados à taxa legal, desde a data da citação e até integral pagamento.
Para fundamentar tal pretensão alega, em resumo :
No dia 18/7/2004, pelas 10 horas e 45 minutos, o menor B caiu dentro de um canil onde se encontravam quatro cães de raça “Pit Bull” pertença do R., vindo a sofrer diversas mordeduras por estes. O terreno onde os animais se encontravam é propriedade do R., não se encontrava vedado, sendo “livre” o acesso até ao canil, sítio onde normalmente o menor brincava. Estes cães são potencialmente perigosos o que obriga o proprietário a manter um alojamento que não permita a sua fuga e que assegure de forma eficaz a segurança das pessoas, o que o R. não fez, não possuindo qualquer seguro.
Em consequência das mordeduras dos cães, o menor sofreu diversas feridas que obrigaram a uma intervenção cirúrgica, com internamento na unidade de cuidados intensivos entre 18/7/2004 e 21/7/2004 e posterior internamento no serviço de pediatria até 29/7/2004, data da alta. A A. teve de pagar 5.130,20 € pela assistência hospitalar, tendo o menor sofrido muitas dores e mal-estar, reclamando uma indemnização por danos morais no valor de 10.000 €.
2) Regularmente citado, veio o R. contestar, alegando, em resumo, que o canil encontrava-se no interior da sua propriedade, afastado da estrada pública a cerca de 60 metros do limite da sua propriedade e a cerca de 90 metros da residência do menor. Encontrava-se vedado com uma rede metálica de 2 metros de altura, fechado a cadeado e com uma placa de 25 cm de altura e 30 cm de largura com as letras “Cuidado com os cães”. O R. avisou a mãe do menor para proibir o filho de ir brincar para o referido terreno, sabendo perfeitamente que ali existia o canil, mas esta deixou-o sair de casa, não cumprindo os seus deveres de vigilância.
Conclui, assim, pela sua absolvição do pedido.
3) Realizou-se audiência preliminar, onde foi proferido despacho saneador e discriminada a matéria de facto assente e a que carecia de prova a produzir.
4) Seguiram, então, os autos para julgamento, ao qual se procedeu com observância do legal formalismo.
5) Posteriormente veio a ser proferida Sentença, a julgar a acção parcialmente procedente, constando da parte decisória da mesma :
“Nestes termos e com tais fundamentos, decide este Tribunal julgar a acção parcialmente procedente e provada, e, em consequência :
a. condenar o réu C a pagar à A., na qualidade de representante legal do filho menor B , a quantia global de € 11.130,20 (onze mil cento e trinta euros e vinte cêntimos), acrescida de juros de mora, vencidos e vincendos, à taxa supletiva legal de 4%, a partir da data de citação e até efectivo e integral pagamento, absolvendo o réu do demais peticionado.
Custas pela A. e pelo réu, na proporção do decaimento.
Registe e notifique”.
6) Desta decisão interpôs o R. recurso de apelação, para tanto apresentando a sua alegação com as seguintes conclusões :
“1. O ora Recorrente não pode concordar com a douta sentença que o condenou a liquidar à Autora a quantia de €11.130,20, a título de ressarcimento de danos morais e patrimoniais alegadamente sofridos, em virtude de o seu representado ter sido mordido pelos cães do Demandado, na sequência da queda no canil onde estes se encontravam, acrescida de juros, por considerar que não elidiu a presunção de culpa que sobre ele impendia, bem como que este sempre seria responsável a título de risco.
2. O Tribunal a quo considerou provado que “Era livre o acesso ao canil” (quesito 3º da base instrutória e ponto 17 da douta sentença recorrida).
3. Dado que resulta dos pontos 16, 26 e 27 da douta sentença recorrida, que o canil encontrava-se instalado dentro de um prédio rústico que constituía propriedade privada do Réu, bem como resulta do ponto 28 da douta sentença recorrida, que o referido canil encontrava-se vedado, com uma rede metálica de, pelo menos, 2 metros de altura e fechado a cadeado, tendo inclusive a testemunha ……, que socorreu o menor, afirmado que o canil tinha uma estrutura sólida, deverá a resposta ao mencionado quesito ser alterada, considerando-a não provada, na medida em que o acesso ao canil não era livre.
4. A matéria constante das alíneas E), F), G) e H) dos factos assentes (“Os cães Pit Bull devido às suas especificidades rácicas, como tamanho e a potência da mandíbula, são classificados legalmente como animais potencialmente perigosos, razão pela qual estão sujeitos a normas específicas de detenção, enquanto animais de companhia (alínea E)); O réu estava obrigado a manter medidas de segurança reforçadas, nomeadamente, ao alojamento, os quais não podem permitir a fuga dos animais e devem acautelar de forma eficaz a segurança das pessoas (alínea F)); No alojamento deve ser afixado, de forma visível, placa de aviso da presença e perigosidade do animal (alínea G)); O réu devia possuir um seguro de responsabilidade civil relativamente aos cães (alínea H)).”) constitui matéria argumentativa, conclusiva ou de direito, devendo ser considerada não escrita.
5. O quesito 7º da base instrutória (“O Réu não acautelou nem assegurou as obrigações e condutas constantes das alíneas E) a H)?”), constitui igualmente matéria conclusiva ou de direito, devendo ser considerado não escrito, e, em consequência, a resposta dada ao referido quesito conclusivo (“O réu não vedou o acesso ao terraço sobranceiro ao canil nem colocou qualquer protecção que impedisse possíveis quedas desse terraço para o interior do canil e não colocou no local onde os cães estavam alojados qualquer placa de aviso da presença e perigosidade dos animais (pontos 7.)”, deverá igualmente ser considerada não escrita.
6. A Autora meramente alegou na p.i., a qual se dá por integralmente reproduzida, quais as obrigações legais que impendia sobre o Recorrente relativamente ao alojamento dos cães, as quais foram levadas à matéria assente sob as alíneas E) e F), não tendo alegado factos materiais concretos que permitissem concluir que o canil, no estado em que encontrava, permitia a fuga dos animais e não acautelava de forma eficaz a segurança das pessoas, e jamais fez qualquer referência ao terraço sobranceiro ao canil e, principalmente, se o seu acesso se encontrava ou não vedado em baixo, ou se possuía ou não protecção no topo, os quais foram considerados essenciais pelo Tribunal a quo para considerar provado que as condições em que o canil se encontrava não acautelava de forma eficaz a segurança das pessoas.
7. O Tribunal a quo ao dar como provado, em resposta ao quesito 7º, que: “O réu não vedou o acesso ao terraço sobranceiro ao canil nem colocou qualquer protecção que impedisse possíveis quedas desse terraço para o interior do canil (…)”, quando a Autora jamais falou em terraço e se o mesmo se encontrava ou não vedado ou sem protecção, violou o princípio do dispositivo ínsito no art. 264º, nºs 1, 2 e 3 do C.P.C., bem como o disposto no art. 664º do C.P.C., sendo certo que os citados factos considerados provados não se trataram de factos instrumentais, nem factos essenciais à procedência das pretensões formuladas que sejam complemento ou concretização de outros oportunamente alegados, nem a Autora manifestou vontade de deles se aproveitar, e ao Réu, ora Recorrente, não foi facultado o exercício do contraditório, pelo que, caso se considerasse que a matéria vertida na alínea F) dos factos assentes e no quesito 7º da base instrutória poderia configurar matéria factual, sempre deveria, pelo menos, essa parte da resposta ao quesito 7º da base instrutória (desde “O réu” até “interior do canil”) ser considerada não escrita.
8. Na eventualidade de se considerar que da conjugação da alínea G) dos factos assentes e do quesito 7º da base instrutória seria legítimo formular o quesito “o Réu não fixou no alojamento, de forma visível, placa de aviso da presença e perigosidade do animal”, sempre se dirá que as testemunhas … e ……(cujos depoimentos encontram-se gravados através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso no Tribunal, conforme Acta de Audiência de Discussão e Julgamento de 03-02-2009), afirmaram na audiência de julgamento que se encontrava afixado no canil uma folha de papel com os dizeres “Cuidado com os cães”, tendo a testemunha ……afirmado que a referida folha encontrava-se afixada na porta do canil, “era uma folha feita a computador”, “era uma folha dentro de uma mica” do tamanho A4.
9. Pelo que deveria a segunda parte da resposta ao quesito 7º da base instrutória (“e não colocou no local onde os cães estavam alojados qualquer placa de aviso da presença e perigosidade dos animais”) ser considerada não provada.
10. O Mmo Juiz a quo considerou provado o quesito 12 da base instrutória (ponto 25 da douta sentença recorrida) “Em consequência do acidente a A. pagou a quantia de €5 130,20 de assistência médica hospitalar”, com base exclusivamente no documento junto a fls. 13 dos autos, conforme fundamentação do douto despacho proferido a fls… que decidiu a matéria de facto controvertida.
11. Sucede que, do documento junto a fls. 13 dos autos consta apenas “Proc. Nº …………… Com vista à regularização do processo de internamento solicita-se a comparência de V. Ex.ª nos serviços de contabilidade deste Hospital Central do Funchal, com a maior brevidade possível, das 10 às 12 ou das 14 às 16 horas, excepto aos fins de semana e feriados. Int. 18/07/2004 (Mordedura de cão) 5.130,20€ O funcionário rubrica ilegível.”
12. Atendendo que o documento junto a fls. 13 dos autos não constitui uma factura, nem um recibo de quitação, mas uma mera convocatória, emitida em papel não oficial, para comparência do destinatário (não identificado) nos serviços de contabilidade do Hospital Central do Funchal, num tempo necessariamente futuro, constando manuscritas as referências “de internamento”, “Int. 18/07/204 (Mordedura de cão)” “5.130,20€”, e inclusive nem constando do mesmo qualquer referência a que a quantia tivesse sido paga, considera o Recorrente que existiu erro na apreciação da prova, na medida em que o referido documento não é apto ou idóneo a provar o custo da assistência hospitalar, bem como que a Autora liquidou a aludida quantia, devendo ser alterada a resposta ao quesito 12º da base instrutória, considerando-o não provado.
13. Acresce que, no dia 26 de Junho de 2009, o Serviço de Saúde da Região Autónoma da Madeira, E.P.E. intentou contra o ora Recorrente uma acção, que corre os seus termos no 2º Juízo Cível do Tribunal Judicial do Funchal sob o nº2926/09.7TBFUN, para pagamento da aludida quantia, conforme documento junto às presentes alegações sob o nº1, o qual comprova que o custo da assistência e internamento do menor ainda se encontra por liquidar, pretendendo a Autora um locupletamento indevido à custa do Recorrente.
14. Em relação ao quesito 15 da base instrutória “Encontrava-se igualmente devidamente vedado com uma rede metálica de 2 metros de altura, bem como fechado a cadeado e com uma placa de 25 cm de altura e 30 cm de largura afixada na dita vedação alertando com letras bem visíveis “Cuidado com os cães” e outra placa de igual medida e conteúdo no muro do terraço de dois metros de altura junto ao dito canil”, o Tribunal a quo apenas considerou provado que “O referido canil se encontrava vedado, com uma rede metálica de, pelo menos, 2 metros de altura e fechado a cadeado.” (ponto 28 dos factos provados)
15. Face ao depoimento das testemunhas … e …., já referido no ponto 8 das presentes conclusões, deverá ser alterada a resposta dada ao quesito 15 da base instrutória, considerando como provado que “O referido canil se encontrava vedado, com uma rede metálica de, pelo menos, 2 metros de altura e fechado a cadeado, e com uma folha de papel com os dizeres “Cuidado com os cães” afixada na dita vedação ”
16. O Tribunal a quo considerou não provado que “No dia em questão, o menor saiu a sua residência dizendo à sua mãe que já regressava, sendo que esta não deu importância ao facto por ser habitual o menor brincar das redondezas.” (quesito 17 da base instrutória).
17. Atendendo o teor do douto despacho de arquivamento proferido no processo n.º 478/04.3PDFUN-E, que correu os seus termos na 3ª Secção do Ministério Público do Funchal, junto à contestação a fls…, como documento 1, o qual refere que a mãe do menor, ouvida na qualidade de queixosa, em declarações complementares afirmou que “ (…) nessa data, o menor seu filho saiu de casa dizendo à depoente que já voltava, circunstâncias a que a mesma não deu importância uma vez que era habitual a criança brincar nas redondezas. Mas disse que se encontrava nas lides domésticas, quando ali compareceu um seu vizinho alertando-a de que o seu filho tinha caído no interior da “jaula”, onde o denunciado fazia a criação de cães.”, o qual não foi impugnado pela Autora, designadamente no que se refere à exactidão das declarações por si prestadas no âmbito do processo, deverá ser alterada a resposta “não provado” dada ao quesito 17º da base instrutória, considerando-se provado que “No dia e questão, o menor saiu a sua residência dizendo à sua mãe que já regressava, sendo que esta não deu importância ao facto por ser habitual o menor brincar das redondezas”.
18. O Tribunal a quo deu uma resposta restritiva ao quesito 19 da base instrutória (ponto 30 dos factos provados), considerando provado apenas que “O menor entrou no terreno do réu, percorreu cerca de 20 a 30 metros até ao canil, subiu ao terraço aí existente junto ao canil e a ele sobranceiro, tendo caído para dentro do canil.”
19. Nenhuma testemunha ouvida em audiência de julgamento assistiu aos momentos que antecederam à queda, bem como não assistiram ao momento da queda do menor no canil, tendo as testemunhas ouvidas, designadamente ….. afirmado que a queda poderia ter-se devido à subida da vedação por parte do menor ou à queda do terraço do barracão.
20. Ainda que tenha ficado provado que o menor caiu no canil, considera o Recorrente que não se provou como o menor caiu no canil, ou seja, se efectivamente subiu ao barracão/terraço existente ao lado do canil, ou se eventualmente “trepou” a vedação, diga-se, rede metálica de, pelo menos 2 metros de altura, fechada a cadeado, que albergava os cães do Demandado, vindo o menor a cair no canil.
21. Pelo que deverá ser considerado provado que: “O menor entrou no terreno do réu, percorreu cerca de 20 a 30 metros até ao canil, e de forma não concretamente apurada, mas que terá sido resultante ou da subida da vedação do canil por parte do menor ou da sua queda do terraço do barracão sobranceiro ao canil, veio a cair para dentro do canil.”
22. Considera o Recorrente que ainda que se mantivessem inalteradas as respostas dadas aos quesitos, sempre deveria ser absolvido do pedido.
23. Não obstante se encontrar provado que o Recorrente, à data do acidente, não era portador de um seguro de responsabilidade civil relativamente aos cães, inexiste nexo causal entre a não celebração do seguro e o acidente, na medida em que a celebração do contrato de seguro apenas transferiria a obrigação de pagamento de eventuais indemnizações para uma Seguradora.
24. Encontra-se provado nos pontos 16, 26, 27, 28, 29 da douta sentença recorrida que os cães, no momento do incidente, encontravam-se guardados a cadeado dentro de um canil, localizado dentro da propriedade do Recorrente, afastado da estrada pública, e o canil encontrava-se vedado, com uma rede metálica de, pelo menos, 2 metros de altura, pelo que a estrutura do canil não permitia a fuga dos animais, bem como acautelava de forma eficaz a segurança das pessoas, na medida em que a porta encontrava-se fechada a cadeado, e a separar eventuais observadores dos cães existia uma rede metálica de altura superior à altura de um homem médio.
25. O facto de constar ou não constar aposto no canil uma placa de aviso da presença e perigosidade dos animais seria irrelevante para evitar o acidente em apreço, atenta a idade do menor (7 anos), com o acréscimo de que o menor tinha prévio conhecimento da existência e localização do canil e dos cães, conforme resulta do ponto 18 dos factos provados, do depoimento da testemunha …., bem como do artigo publicado no Diário de Notícias da Madeira, junto a fls. 151.
26. O Recorrente, não obstante ter exercido o direito de não vedar o terreno, mantinha os cães num canil, situado dentro da sua referida propriedade e afastado da estrada pública, alojamento este que impedia a fuga dos animais e garantia a segurança das pessoas, cumprindo os seus deveres de diligência na vigilância e guarda dos canídeos, não se tendo provado que o Recorrente sabia que no dia e hora em questão o menor se encontrava no terreno, sendo certo que legalmente o Recorrente encontra-se obrigado à guarda e vigilância dos cães e não do menor.
27. Da análise dos factos provados resulta que o acidente não ocorreu porque os cães encontravam-se indevidamente vigiados nem por insuficiência das condições de alojamento dos cães, que permitissem que estes se soltassem, que pessoas entrassem facilmente, pelo que não se encontram preenchidos os pressupostos da responsabilidade pelos factos ilícitos, tendo sido igualmente elidida a presunção de culpa in vigilando que impendia sobre o Recorrente.
28. Os danos sofridos pelo menor não decorreram igualmente do perigo especial resultante da utilização dos canídeos em causa, na medida em que as mordeduras desferidas pelos canídeos não ocorreram porque estes se soltaram do canil ou porque colocaram as suas bocas nos orifícios da vedação mordendo o menor que se encontrava no exterior; nem o acidente ocorreu pelo facto de o Recorrente ter utilizado no seu próprio interesse os animais, não se encontrando preenchidos os pressupostos da responsabilidade pelo risco.
29. O infeliz acidente ocorreu por motivos extraordinários imputáveis ao menor, decorrentes da entrada deste no terreno do Recorrente, ter percorrido parte do mesmo, subido ao terraço do barracão existente ao lado do canil, e da subsequente queda do menor no canil, a qual foi causada por distracção ou imperícia do lesado, bem como por se ter posicionado a uma distância não segura da berma, e não devido a insuficientes condições de alojamento, vigilância e guarda dos animais ou decorrentes da especial utilização dos referidos canídeos, pelo que deverá o Recorrente ser absolvido do pedido.
30. Não é legítimo impor ao Recorrente, que tinha os cães fechados a cadeado, dentro da sua propriedade, no interior de um canil com uma vedação de, pelo menos, 2 metros de altura, impedindo a saída dos cães e a entrada de pessoas, um ónus de vigilância superior ao dos Pais do menor, e que previsse condutas imprudentes de terceiros, designadamente a possibilidade de o menor ou alguém trepar a vedação ou subir ao terraço do barracão existente ao lado do canil e caísse dentro deste, quando inclusive nenhuma justificação teria para subir ao terraço.
31. Ainda que porventura fosse devida uma indemnização ao menor a título de danos não patrimoniais, considera o Recorrente que a quantia em que foi condenado (€6000,00) é excessiva atento aos factos provados, dado que, independentemente da violação ou não do dever de vigilância por parte da mãe do menor, dos factos provados na sentença resulta manifesta a culpa do menor no acidente.
32. Resulta provados nos pontos 26, 27, 28, 29 e 30 da douta sentença recorrida que o canil onde se encontravam os cães encontrava-se dentro da propriedade do réu, fechado, afastado da estrada pública, a cerca de 20 a 30 metros do limite da sua propriedade e a cerca de 90 a 100 metros da residência do menor.
33. Caso o menor não tivesse saído da sua residência, percorrido cerca de 90 a 100 metros até ao prédio rústico do Recorrente onde se encontravam os cães, o qual constitui propriedade privada, entrado no referido terreno, percorrido 20 a 30 metros já dentro a propriedade do Recorrente, e subido ao terraço do barracão existente a lado do canil e a ele sobranceiro, não teria caído no canil e não teria sido mordido pelos cães do Demandado, os quais encontravam-se presos no espaço a eles exclusivamente reservado.
34. Pelo que, caso se considerasse existir alguma responsabilidade do Recorrente no sucedido, o que jamais se concede, atenta a manifesta culpa do lesado no sinistro, a indemnização arbitrada a título de ressarcimento dos danos patrimoniais e não patrimoniais deveria ser excluída, nos termos do art. 570º, nº1 do C.C., ou caso assim não se entendesse substancialmente reduzida.
35. Decidindo como decidiu, a douta sentença recorrida violou o disposto nos Arts. 264º, nºs 1, 2 e 3, e 664º do C.P.C., bem como os arts. 483º, 493º, nº1, 495º, 502º, 562º, 563º, 564º, 566º, 570º, 571º e 572º do Código Civil.
Termos em que, deverá julgar-se procedente o presente recurso e, em consequência, deverá ser alterada a resposta aos quesitos 3º e 12º da base instrutória, considerando-os não provados, deverá ser considerado provado o quesito 17º da base instrutória, deverão ser consideradas não escritas as matérias constantes das alíneas E), F), G), H) da matéria assente e do quesito 7º da base instrutória, ou caso assim não se considere, deverá o quesito 7º ser considerado não provado, bem como deverão ser alteradas as respostas aos quesitos 15º e 19º da base instrutória, nos termos supra expostos, bem como deverá ser revogada integralmente a douta sentença recorrida, e consequentemente absolver-se o Demandado do pedido, porquanto só assim será feita, Justiça”,
7) Não foram apresentadas contra-alegações.
* * *
II – Fundamentação
a) A matéria de facto dada como provada em 1ª instância foi a seguinte :
1- B , nascido em 31/1/1997, é filho da A..
2- Em 18/7/2004, pelas 10 horas e 45 minutos, o menor B , caiu dentro de um canil onde se encontravam cães de raça “Pit Bull”.
3- O detentor dos cães é o R..
4- O terreno onde estava o canil não se encontrava vedado.
5- Os cães “Pit Bull” devido às suas especificidades rácicas, como tamanho e a potência da mandíbula, são classificados legalmente como animais potencialmente perigosos, razão pela qual estão sujeitos a normas específicas de detenção, enquanto animais de companhia.
6- O R. estava obrigado a manter medidas de segurança reforçadas, nomeadamente, ao alojamento, os quais não podem permitir a fuga dos animais e devem acautelar de forma eficaz a segurança das pessoas.
7- No alojamento deve ser afixado, de forma visível, placa de aviso da presença e perigosidade do animal.
8- O R. devia possuir um seguro de responsabilidade civil relativamente aos cães.
9- O menor foi assistido no Hospital.
10- O menor sofreu feridas múltiplas na face, região cervical, pavilhão auricular direito, nádega esquerda, feridas extensas no hemitórax, axila e virilha esquerdos, com enfisema subcutânea em redor das feridas da axila e hemitórax e no RX do tórax apresentava pneumomediatismo.
11- Tendo sido sujeito a uma intervenção cirúrgica.
12- Originando o internamento do menor na unidade de cuidados intensivos do Hospital Central do Funchal, do dia 18/7/2004 a 21/7/2004.
13- E posteriormente, internamento no serviço de pediatria do referido estabelecimento hospitalar, até ao dia da alta, em 29/7/2004.
14- A mãe do menor participou criminalmente contra o R. pelos factos constantes da petição inicial tendo sido aberto inquerido sob o nº 478/04.3PDFUN-E, na 3ª Secção do Ministério Público do Funchal, o qual foi posteriormente arquivado por despacho transitado em julgado porquanto “(…) o menor ofendido encontrava-se no interior de uma propriedade privada ; sem conhecimento ou consentimento do respectivo proprietário, local onde os referidos canídeos se encontravam guardados dentro de um espaço delimitado em todo o seu perímetro por uma vedação em arame, de altura não inferior à estatura de um homem médio. Mais se mostra indiciado que, na data em que correu o acidente, só era possível aceder a esse espaço (canil) através de uma porta, que, na ocasião, se encontrava trancada à chave. Conforme resulta dos autos, o menor terá caído dentro do canil – por razões não concretamente apuradas mas se intuem tratarem-se de imprudência e curiosidade de uma criança de tenra idade não supervisionada por um adulto – depois de ter acedido, por sua iniciativa, ao terreno do barracão que se encontrava junto (parede-meia) à vedação em causa. Mostra-se indiciado que a mãe do menor sabia que a criança não se encontrava em casa e que se encontrava a brincar nas redondezas. Como é sabido incumbe aos pais, em relação ao filho, os poderes-deveres de guarda e vigilância, mais concretamente, de velarem pela sua segurança e saúde (cfr. art. 1878º, n.º 1 do Cód. Civil). (…) Houve, no caso dos autos, atendendo à idade do menor, uma violação, por banda dos seus progenitores, do poder-dever de vigilância sobre a pessoa do filho que sobre aqueles impendia. Indicia-se que não foram tomadas pelos legais representantes do menor as necessárias cautelas para evitar o acidente ocorrido”), conforme despacho de arquivamento proferido nesses autos de inquérito.
15- Eram quatro os cães que estavam o canil.
16- O canil fora instalado em terreno pertença do R..
17- Era livre o acesso ao canil.
18- O menor brincava nesse sítio, algumas vezes, com o conhecimento e na companhia do R..
19- O menor foi atacado por dois dos cães que estavam no canil, com diversas mordeduras no seu corpo.
20- O R. não vedou o acesso ao terraço sobranceiro ao canil nem colocou qualquer protecção que impedisse possíveis quedas desse terraço para o interior do canil e não colocou no local onde os cães estavam alojados qualquer placa de aviso da presença e perigosidade dos animais.
21- Em consequência directa e necessária das mordeduras desferidas pelos ditos canídeos, sobrevieram para o menor ferimentos em diversas partes do corpo, alguns deles graves.
22- Toda esta situação causou um sofrimento imenso, com muitas dores e mal-estar ao menor B .
23- Situação, embora atenuada, continuou por mais algum tempo, com os tratamentos ambulatórios, bem como com a fisioterapia.
24- Ficando agora com cicatrizes no corpo.
25- Em consequência do acidente a A. pagou a quantia de 5.130,20 € de assistência médica hospitalar.
26- O R., à data dos factos, era proprietário de dois cães de raça “Pit Bull”, os quais se encontravam detidos, num canil dentro de um prédio rústico do R. sito à Rua ……, no Estreito de …..
27- O referido canil encontrava-se dentro da propriedade do R., afastado da estrada pública, a cerca de 20 a 30 metros do limite da sua propriedade e a cerca de 90 a 100 metros da residência do menor.
28- O referido canil encontrava-se vedado, com uma rede metálica de, pelo menos, 2 metros de altura e fechado a cadeado.
29- Os cães em questão encontravam-se fechados a cadeado dentro do referido canil.
30- O menor entrou no terreno do R., percorreu cerca de 20 a 30 metros até ao canil, subiu ao terraço aí existente junto ao canil e a ele sobranceiro, tendo caído para dentro do canil.
b) Como resulta do disposto nos artºs. 684º nº 3 e 685º-A nº 1 do Código de Processo Civil, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, as conclusões da alegação do recorrente servem para colocar as questões que devem ser conhecidas no recurso e assim delimitam o seu âmbito.
Perante as conclusões da alegação do recorrente, as questões sob recurso consistem em determinar :
-Se existem motivos para alterar a matéria de facto dada como provada na 1ª instância.
-Se existe fundamento para a condenação do recorrente.
c) Pretende o recorrente que se alterem as respostas dadas aos artigos 3º e 12º da Base Instrutória (considerando-os não provados), 17º (que deverá ser considerado provado).
Por outro lado, entende que devem ser consideradas não escritas as matérias constantes das alíneas E), F), G), H) dos Factos Assentes e do quesito 7º.
Em alternativa, devem ser alteradas as respostas aos artigo 7º (considerando-o não provado) 15º e 19º da Base Instrutória (que deverão ter uma redacção diferente).
Ora, de acordo com o disposto no artº 690º-A nº 1 do Código de Processo Civil (na versão anterior ao Decreto-Lei nº 303/2007, de 24/8, aplicável aos autos), quando impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente, sob pena de rejeição do recurso, especificar :
-Os pontos de facto que considera incorrectamente julgados.
-Quais os concretos meios de probatórios, constantes do processo ou do registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida.
Há que realçar que as alterações introduzidas no Código de Processo Civil com o Decreto-Lei nº 39/95, de 15/2, com o aditamento do artº 690º-A (cuja redacção foi posteriormente alterada pelo Decreto-Lei nº 183/2000, de 10/8) quiseram garantir no sistema processual civil português, um duplo grau de jurisdição.
De qualquer modo, há que não esquecer que continua a vigorar entre nós o sistema da livre apreciação da prova conforme resulta do artº 655º, do Código de Processo Civil, o qual dispõe que “o tribunal colectivo aprecia livremente as provas, decidindo os juízes segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto”, pelo que a convicção do Tribunal não é, em princípio, sindicável. Este princípio não pode, nem deve, ser subvertido pelo exercício de duplo grau de jurisdição.
Para que decisão da 1ª instância seja alterada é necessário que algo de “anormal” se tenha passado na formação dessa apontada “prudente convicção”, ou seja, ter-se-á que demonstrar que na formação da convicção, retratada nas respostas que se deram aos factos, foram violadas regras que lhe deviam ter estado subjacentes.
Procedemos à audição da gravação da prova produzida em audiência de julgamento (sendo que o depoimento da primeira testemunha, …., embora perceptível, ouve-se com muita dificuldade), pelo que passaremos a analisar as questões suscitadas.
d) Quanto ao quesito 3º.
A sua redacção é : “Era livre o acesso ao canil ?”.
A resposta ao mesmo foi de “Provado”.
(…)
Deste modo, não vemos razões para alterar a resposta dada ao quesito 3º.
e) Quanto ao quesito 12º.
Perguntava-se no mesmo : “Em consequência do acidente a A. pagou a quantia de 5.130,20 €, de assistência médica hospitalar ?”.
Mereceu o mesmo a resposta de “Provado”.
Entende o recorrente que o documento junto a fls. 13 não faz prova do aludido pagamento.
O pagamento da verba em causa ao Hospital Central do Funchal é um facto constitutivo do direito do recorrido (A. no processo), logo, a ele incumbia o ónus da respectiva prova (artº 342º nº 1 do Código Civil).
O documento em causa é uma mera fotocópia com os dizeres : “Com vista à regularização do processo de internamento solicita-se a comparência de V. Exª nos serviços de contabilidade deste Hospital Central do Funchal, com a maior brevidade possível, das 10 às 12 ou das 14 às 16 horas, excepto aos fins de semana e feriados”. Consta ainda uma referência manuscrita : “Int. 18/07/2004 (Mordedura de cão)”. Mais abaixo, também manuscrita, encontra-se inscrita a quantia de 5.130,20 €”. Tem, finalmente, a assinatura ilegível de um funcionário.
Este documento mais não é do que uma convocatória para comparência no Hospital, com vista ao pagamento de um internamento. Não se vislumbra qualquer nome, nomeadamente do menor ou da sua mãe, tendo uma única referência ao caso dos autos (“mordedura de cão”).
Não está aposto, por exemplo, qualquer dizer ou carimbo a indicar que a verba em causa foi paga pela mãe do menor.
Ora, de acordo com o disposto no artº 787º nº 1 do Código Civil, “quem cumpre a obrigação tem o direito de exigir quitação daquele a quem a prestação é feita, devendo a quitação constar de documento autêntico ou autenticado ou ser provida de reconhecimento notarial, se aquele que cumpriu tiver nisso interesse legítimo”.
Ou seja, se a mãe do recorrido cumpriu aquele pagamento ao Hospital, certamente ficou com uma quitação comprovativa de tal. Se não a juntou aos autos, terá de sofrer as consequências legais daí decorrentes.
Refira-se ainda que as testemunhas nada disseram de concreto sobre esta questão. A única que aludiu a tal foi a testemunha …. que referiu saber que o menor foi sujeito a tratamentos, nada sabendo sobre o custo dos mesmos.
Deste modo, o artigo 12º da Base Instrutória devia ter sido considerado como não provado, razão pela qual se considera como não escrito o facto acima descrito sob o nº 25.
f) Quanto ao quesito 17º.
A sua redacção é : “No dia em questão, o menor saiu da sua residência dizendo à sua mãe que já regressava, sendo que esta não deu importância ao facto por ser habitual o menor brincar nas redondezas ?”
A resposta ao mesmo foi de “Não Provado”.
Defende o Recorrente que o referido facto deveria ter sido considerado provado.
(…)
Deste modo, inexistem motivos para alterar a resposta dada ao quesito 17º.
g) Quanto às alíneas E), F), G), H) dos Factos Assentes e quesito 7º.
As suas redacções são as seguintes :
“E) Os cães “Pit Bull” devido às suas especificidades rácicas, como tamanho e a potência da mandíbula, são classificados legalmente como animais potencialmente perigosos, razão pela qual estão sujeitos a normas específicas de detenção, enquanto animais de companhia”.
“F) O R. estava obrigado a manter medidas de segurança reforçadas, nomeadamente, ao alojamento, os quais não podem permitir a fuga dos animais e devem acautelar de forma eficaz a segurança das pessoas”.
“G) No alojamento deve ser afixado, de forma visível, placa de aviso da presença e perigosidade do animal”.
“H) O R. devia possuir um seguro de responsabilidade civil relativamente aos cães”.
“7º- O R. não acautelou nem assegurou as obrigações e condutas constantes das alíneas E) a H) ?”.
(…)
Finalmente, vejamos o quesito 7º.
Uma vez que entendemos ser de aceitar a inclusão das alíneas E) a H), fica prejudicado o primeiro argumento do recorrente com vista à alteração da resposta dada àquele artigo da Base Instrutória, ou seja, sendo aquelas eliminadas este, dada a sua formulação remissiva, também deveria ser eliminado.
Mas o recorrente, em alternativa, pretende que a resposta ao quesito seja alterada na parte final (“O R. (…) não colocou no local onde os cães estavam alojados qualquer placa de aviso da presença e perigosidade dos animais”), pois duas das testemunhas inquiridas referiram estar as mesmas colocadas.
A verdade é que foram inquiridas cinco testemunhas.
(…)
Assim sendo, entendemos que bem andou o Tribunal “a quo” ao dar como provado que o apelante não colocou no local onde os cães estavam alojados qualquer placa de aviso da presença e perigosidade dos animais.
Inexistem, pois, razões para alterar a resposta dada ao quesito 7º.
h) Quanto ao quesito 15º.
A sua redacção é : “Encontrava-se igualmente devidamente vedado com uma rede metálica de 2 metros de altura, bem como fechado a cadeado e com uma placa de 25 cm de altura e 30 cm de largura afixada na dita vedação alertando em letras bem visíveis “Cuidado com os cães” e outra placa de igual medida e conteúdo no muro do terraço de dois metros de altura junto ao canil ?”.
A resposta ao mesmo foi de “Provado apenas que o referido canil se encontrava vedado, com uma rede metálica de, pelo menos, 2 metros de altura e fechado a cadeado”.
Defende o Recorrente que o Tribunal devia ter dado como provado que no local existia uma folha de papel com os dizeres “Cuidado com os cães” afixada na vedação.
Como acima referimos (aquando da análise da resposta dada ao quesito 7º) entendemos não ter sido provada a existência de qualquer aviso no local, aqui se dando por reproduzida a argumentação acima expendida.
Deste modo não há motivos para alterar a resposta dada ao quesito 15º.
i) Quanto ao quesito 19º.
A sua redacção é : “O menor, apesar de saber que não o podia fazer, e sem o conhecimento e autorização do demandado, entrou no terreno deste, percorreu cerca de 60 metros até ao canil, subiu o terraço com a altura de dois metros, junto ao mesmo, sem atender às placas colocadas no muro e na vedação do canil, tendo-se desequilibrado e caído dentro do canil ?”.
A resposta ao mesmo foi de “Provado apenas que o menor entrou no terreno do réu, percorreu cerca de 20 a 30 metros até ao canil, subiu ao terraço aí existente junto ao canil e a ele sobranceiro, tendo caído para dentro do canil”.
O apelante entende que deve ser considerado provado que o menor entrou no terreno do réu, percorreu cerca de 20 a 30 metros até ao canil, e de forma não concretamente apurada, mas que terá sido resultante ou da subida da vedação do canil por parte do menor ou da sua queda do terraço do barracão sobranceiro ao canil, veio a cair para dentro do canil”.
Defende o recorrente que nenhuma testemunha assistiu aos momentos que antecederam a queda do menor, pelo que subsiste a dúvida sobre o modo como tal ocorreu.
(…)
E, assim sendo, inexistem razões para alterar a resposta dada ao quesito 19º.
j) Há, agora, que determinar se existem fundamentos para a condenação do recorrente.
Desde já se diga que a condenação no pagamento das despesas hospitalares (5.130,20 €) é de revogar, uma vez que não se provou, como acima referimos, que a mãe do menor tenha despendido tal verba.
Assim, nessa parcela procede o recurso.
k) Quanto ao mais :
A responsabilidade extracontratual abrange os casos de ilícito civil. Deriva, mormente, da violação por acção ou omissão, de um dever ou vínculo jurídico geral, de um daqueles deveres de conduta impostos a todas as pessoas e que correspondem aos direitos absolutos, ou até da prática de certos actos que, embora lícitos produzem dano a outrem (cf. Antunes Varela in “Das Obrigações em Geral”, Vol. I, pgs. 398 e ss.).
E porque a responsabilidade contratual resulta da violação de um direito de crédito ou obrigação em sentido técnico, o caso em apreço preenche a responsabilidade extracontratual. Assim, a via que se percorre quando se analisa a alegada responsabilidade do recorrente, pela conduta assumida é a responsabilidade civil extracontratual, pois o que está em causa é a violação por acção ou omissão, de um dever ou vinculo jurídico geral um daqueles deveres de conduta impostos a todas as pessoas e que correspondem aos direitos absolutos.
“Aquele que com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação” (artº 483º nº 1 do Código Civil).
São, assim, pressupostos do dever indemnizatório (cf. Antunes Varela in “Das Obrigações em Geral”, Vol. I, pg. 356) :
-violação de um direito ou interesse alheio ;
-ilicitude ;
-vínculo de imputação do facto ao agente ;
-dano ;
-nexo de causalidade entre o facto e o dano.
Prescreve o artº 499º do Código Civil que à responsabilidade pelo risco, na parte aplicável e na falta de preceitos legais em contrário, são extensíveis as disposições que regulam a responsabilidade por factos ilícitos.
No tocante à responsabilidade civil por danos causados por animais regem os artigos 493º e 502º do Código Civil.
No âmbito da responsabilidade por factos ilícitos, para os danos causados por coisas, animais e actividades, dispõe o artº 493º do Código Civil que quem tiver o encargo de vigilância de qualquer animal responde pelos danos que os animais causarem, salvo se provar que nenhuma culpa houve da sua parte ou que os danos se teriam igualmente produzido ainda que não houvesse culpa da sua parte.
Existe, assim, uma presunção de culpa para aqueles que tem a seu cargo a vigilância de animais, cabendo ao vigilante fazer a prova de ausência de culpa sua na produção do evento.
Já no âmbito da responsabilidade pelo risco, o artº 502º do Código Civil preceitua que “quem no seu próprio interesse utilizar quaisquer animais responde pelos danos que eles causarem, desde que os danos resultem do perigo especial que envolve a sua utilização”.
Quanto à razão da diferença de regime diz Antunes Varela (in “Das Obrigações em Geral”, Vol. I, pg. 651) :
“A diferença de regime explica-se pela diversidade de situações a que as duas disposições se aplicam : o artigo 493º refere-se às pessoas que assumiram o encargo da vigilância dos animais (o depositário, o mandatário, o guardador, o tratador, o interessado na compra que experimenta o animal, etc.), enquanto o disposto no artigo 502º é aplicável aos que utilizam os animais no seu próprio interesse (o proprietário, o usufrutuário, o possuidor, o locatário, o comodatário, etc.).
É quanto a estas pessoas que tem inteiro cabimento a ideia do risco : quem utiliza em seu proveito os animais, que, como seres irracionais, são quase sempre uma fonte de perigos, mais ou menos graves, deve suportar as consequências do risco especial que acarreta a sua utilização”.
E, mais adiante, refere :
“No caso do utente haver incumbido alguém da vigilância dos animais, poderão cumular-se as duas responsabilidades (a prevista no artº 493º e a fixada no artº 502º) perante o terceiro lesado, caso o facto danosos provenha da presuntiva culpa do vigilante ; não havendo culpa deste, a obrigação de indemnizar recairá apenas, com fundamento no risco, sobre a pessoa do utente, casos e verifiquem os pressupostos de que ela depende.
O achador do animal perdido também não responderá objectivamente pelos danos que ele causar, enquanto não se decidir a utilizá-lo como seu”.
Por seu turno, Almeida Costa (in “Direito das Obrigações”, 4ª ed., pg. 409) salienta que, perante o lesado e face ao mesmo evento, podem concorrer os pressupostos dos dois apontados tipos de responsabilidade, apontando o caso do “utilizador do animal”que confia a outrem a sua vigilância. O utilizador responderá pelo risco e o vigilante por facto ilícito, caso não prove a sua falta de culpa.
Ou seja, o artº 493º nº 1 do Código Civil prevê uma presunção de culpa que incide sobre qualquer pessoa que tenha assumido o encargo de vigilância de um animal : Em regra, aquele encargo recai sobre o proprietário do animal, mas também pode recair sobre outras pessoas, nomeadamente, sobre o depositário, o guardador ou o tratador. Para o efeito do disposto naquele preceito, o responsável é aquele que tem, não o poder jurídico sobre o animal, mas o poder de facto, aquele que, possuindo-o, por si ou em nome de outrem, pode sobre ele exercer um controlo físico e tenha a obrigação de o guardar, aquele que se encontra em condições de o vigiar e tomar as medidas convenientes para esse efeito. A presunção de culpa ali prevista pode ser afastada mediante a prova da inexistência de culpa, ou de que os danos se teriam igualmente verificado, mesmo sem culpa.
Já o artº 502º do Código Civil prevê uma situação de responsabilidade objectiva ou pelo risco, que, portanto, não ressalva a falta de culpa como faz o artº 493º do Código Civil.
Será casuisticamente que se determinará se o preceito a aplicar é um ou outro.
Feito este enquadramento abstracto, e partindo para o caso concreto.
Provou-se que o apelante é o detentor e proprietário de, pelo menos, dois cães de raça “Pit Bull”, os quais, de acordo com a lei (cf. artº 2º al. b) do Decreto-Lei nº 312/2003, de 17/12 e Portaria nº 422/2004, de 24/4, Anexo III) são classificados como potencialmente perigosos.
O apelado tinha-os instalado num terreno rústico de sua pertença. Esse terreno não estava vedado e o acesso ao canil (casa de abrigo e vedação envolvente) era livre.
O canil estava afastado da estrada pública cerca de 20 a 30 metros e situava-se a cerca de 90 a 100 metros da residência do menor.
O canil estava vedado com uma rede metálica de, pelo menos, dois metros de altura e fechado a cadeado.
Sobranceiro ao canil existia um terraço, sendo certo que o apelante não vedou o acesso ao terraço sobranceiro ao canil nem colocou qualquer protecção que impedisse eventuais quedas desse terraço para o interior do canil.
Era normal o menor brincar nesse sítio, algumas vezes, com o conhecimento e na companhia do recorrente.
No dia em causa o menor entrou no aludido terreno, percorreu cerca de 20 a 30 metros até ao canil, subiu ao referido terraço, tendo caído para dentro do canil.
Ora, sendo o recorrente detentor e proprietário dos cães, ou seja, enquanto pessoa que exercia o poder de facto sobre estes, incumbia-lhe, como acima referimos, um dever específico de vigilância.
E, de acordo com o citado artº 493º nº 1 do Código Civil, presume-se que o guarda do animal, “in casu” o apelante, tem culpa no facto causador do dano, ou seja, ao lesado cabia apenas demonstrar o facto ilícito e a produção do dano consequente àquele.
Ao responsável pelos animais, querendo afastar a sua responsabilidade, cabia demonstrar que nenhuma culpa houve da sua parte, isto é, que agiu sem dolo e sem negligência, ou que a culpa na produção do facto é de imputar a outrem.
Ora, o apelante defende que cumpriu com a obrigação que legalmente lhe era imposta de guardar os animais e vigiá-los, tendo diligenciado pela sua instalação em alojamento devidamente vedado e fechado a cadeado, em terreno de sua propriedade e que o acidente só terá ocorrido devido à falta de vigilância dos pais do menor.
A obrigação de vigilância, no caso de filhos menores, incumbe aos pais, desde que não inibidos do poder parental, porquanto, competindo-lhes o dever de educar, a sua responsabilidade radica em acto próprio.
O poder paternal (ou responsabilidades parentais, para utilizarmos a actual terminologia legal) deve ser exercido no interesse dos filhos, competindo aos pais o poder-dever de velar pela segurança e saúde e prover ao seu sustento e dirigir a sua educação.
Cabe, assim aos pais, nos termos dos arts. 122º, 123º, 124º, 1878º nº 1, 1881º nº 1 e 1885º nº 1 do Código Civil, a promoção do desenvolvimento físico e psíquico, intelectual e moral dos filhos menores e velar pela sua segurança, educação, saúde, assim como representá-los.
Ou seja, devem os pais vigiar os seus filhos, a fim de prevenir perigos resultantes de e para os menores.
Mas o dever de vigilância, cuja violação implica responsabilidade presumida, culpa “in vigilando”, não deve ser entendido como uma obrigação quase policial dos pais, em relação aos filhos porque, doutro modo, o não deixar, sobretudo, no que ao poder paternal respeita, alguma margem de liberdade e crescimento do menor, seria contraproducente para a aquisição de regras de comportamento e vivências compatíveis com uma sã formação do carácter e contenderia com a desejável inserção social.
Daí que importe ajuizar, casuisticamente, se tal dever foi ou não cumprido, até porque os pais, que têm o dever de vigilância, não podem ser obrigados a exercer sobre os seus filhos, em todo o tempo, vinte e quatro horas sobre vinte e quatro horas, uma vigilância directa e à vista, pois as suas obrigações profissionais não o permitem.
Assim, o que o Tribunal deve procurar em cada caso é o que teria feito, nas mesmas circunstâncias, um bom pai de família, consciente dos seus deveres, e comparar-lhe a conduta do interessado.
No caso dos autos provou-se que o terreno onde se encontrava o canil era propriedade do apelado, não se encontrava vedado, o que permitia o livre acesso ao canil.
Era normal o menor ir para ali brincar.
O aludido canil distava da estrada pública cerca de vinte a trinta metros e da residência do menor cerca de noventa a cem metros.
O menor entrou no terreno em causa, percorreu aqueles vinte a trinta metros até ao canil, subir ao terraço junto a este e a ele sobranceiro, acabando por cair para o seu interior onde foi atacado pelos dois cães.
Ora, estando o menor a cerca de cem metros de casa, numa zona rural, dentro de um terreno onde costumava ir brincar é evidente que a mãe estaria tranquila, não lhe sendo exigível que estivesse junto à criança, a exercer uma vigilância “policial”, directa e à vista.
Ou seja, não vislumbramos ter havido qualquer violação culposa do dever de vigilância por parte da mãe do menor.
Temos, assim, de concluir pela verificação de culpa (presumida) do apelante no facto causador do dano, pois ao não ter colocado no terraço sobranceiro ao canil uma protecção ou vedação que impedisse eventuais quedas desse terraço para o interior do canil, violou um dever específico de vigilância, não tendo ele logrado demonstrar que agiu sem dolo e sem negligência, ou que a culpa na produção do facto é de imputar à mãe do menor.
Assim sendo, nesta parte improcede o recurso, sendo de manter a condenação do apelante no pagamento da indemnização a título de danos não patrimoniais.
l) Sumariando :
I- A selecção dos Factos Assentes e da Base Instrutória tem de ser feita de forma criteriosa, não se podendo neles englobar conceitos jurídicos ou conclusões, mas unicamente factos concretos.
II- A Base Instrutória deve constituir um todo coerente, sendo os seus artigos redigidos com precisão e clareza, procurando reproduzir o alegado tal qual, com eventuais acertos terminológicos que melhor evidenciem o núcleo perguntado.
III- Quem tiver o encargo da vigilância de qualquer animal responde pelos danos que ele causar salvo se provar que não teve culpa.
IV- Quem no seu próprio interesse utilizar quaisquer animais responde pelos danos por ele causados, desde que resultem do perigo especial que envolva a sua utilização.
V- A responsabilidade pode coexistir quer fundada no risco ou na culpa.
* * *

III – Decisão
Pelo exposto acordam os Juízes do Tribunal da Relação de Lisboa em julgar parcialmente procedente a apelação e, em consequência :
1º- Altera-se a matéria de facto conforme acima fica dito, considerando como não provado o facto descrito sob o nº 25 (correspondente ao artigo 12º da Base Instrutória).
2º- Condena-se o apelante a pagar ao apelado a quantia de 6.000 €, a título de danos não patrimoniais, acrescida de juros de mora à taxa legal, vencidos desde a data da citação e vincendos até integral pagamento.
3º- Revoga-se a condenação do apelante no pagamento da quantia de 5.130,20 €, absolvendo-se o mesmo desse pedido.
4º- No mais condenatório e absolutório mantém-se a decisão recorrida.
Custas na proporção do decaimento (artº 446º do Código de Processo Civil).
Processado em computador e revisto pelo relator

Lisboa, 7 de Fevereiro de 2012

Pedro Brighton
Teresa Sousa Henriques
António Santos