Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
4433/09.9TBSXL-D.L1-7
Relator: PIMENTEL MARCOS
Descritores: SIGILO BANCÁRIO
DIREITO À PROVA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/28/2012
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: LEVANTAMENTO/QUEBRA DE SIGILO
Decisão: PROCEDÊNCIA/DECRETAMENTO TOTAL
Sumário: I - Todas as pessoas, sejam ou não partes na causa, têm o dever de prestar a sua colaboração para a descoberta da verdade, havendo, contudo, situações em que a recusa de prestar essa colaboração é legítima, o que sucede, designadamente, quando a prática do acto envolver violação de segredo profissional.
II - O direito à prova, constitucionalmente consagrado no artigo 20.º da CRP representa uma componente do direito geral à protecção jurídica e de acesso aos tribunais. Por isso, quando se está perante elementos de prova indispensáveis à descoberta da verdade, o valor do segredo bancário, que tutela o interesse privado duma das partes, deve, em princípio, ceder perante o dever de cooperação na descoberta da verdade material, no âmbito da administração da justiça, mesmo no domínio da jurisdição civil.
III - Mas o tribunal só deve dispensar a confidencialidade desses elementos quando se mostrem indispensáveis à realização dos fins probatórios e com rigorosa observância do princípio da proibição do excesso, o que deve suceder quando, como é o caso, estão em causa informações sobre um processo de pedido de financiamento bancário, e se demonstre que elas são necessárias para o apuramento da verdade.
IV - O direito ao conhecimento dos elementos do processo de concessão do crédito bancário deve limitar-se ao estritamente indispensável à obtenção das provas necessárias aos fins visados pelo interessado, e com observância rigorosa do princípio da proibição do excesso, na sua tripla vertente da necessidade, adequação e proporcionalidade.
(Sumário do Relator)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam em conferência no Tribunal da relação de Lisboa.

I
1. Com data de 25.10.2011, os RR requereram que fosse ordenado ao BANCO, com fundamento no disposto no artigo 519.º do CPC, na alínea d) do artigo 79.º do Decreto-Lei n.º 298/92, de 31 de Dezembro, e no artigo 20.º da CRP, para juntar aos autos fotocópia autenticada do processo referente à proposta de crédito hipotecário apresentado pelos ora autores, devendo constar ainda dessa informação:
a) Quando se iniciou o processo;
b) Qual a agência em que o mesmo se processou;
c) Qual o funcionário bancário responsável pelo processo nessa agência.
Na acta de audiência de julgamento de 27.10.2011 foi dada a palavra ao ilustre mandatário dos autores para se pronunciar, querendo, sobre este requerimento, e por ele foi dito, em síntese:
- para prova do alegado no artigo 5 da PI, os AA juntaram um documento sob o n.º 3, que é uma carta do BANCO;
- No artigo 2 da contestação foi declarada a impugnação da veracidade das declarações contidas nesse documento, mas não foi impugnada a veracidade das declarações nele contidas;
- Não foi arguida a falsidade das declarações constantes desse documento, pelo que deve ser considerada como provada a realidade dos factos dele constantes.
Pela Mª Juíza foi proferido o seguinte despacho:
“A diligência agora requerida pelos réus surge na sequência do requerimento probatório efectuado sob o ponto I da sua Contestação e deferido pelo despacho de 4/07/2011. Face à resposta do BANCO ao que fora solicitado pelo tribunal, que consta de fls. 112, vêm agora os réus formular o requerimento de 25/10/2011.
Entende por isso o tribunal que, face aos factos alegados nos artigos 19º e 20º da contestação, que o requerimento agora feito pelos réus nada tem que ver com o documento nº3 da Petição Inicial, nem a sua admissibilidade depende de incidente de arguição de falsidade do documento.
A resposta do BANCO que consta de fls. 112 consubstancia, no fundo, uma escusa, porquanto faz depender a resposta da invocação de norma legal ou de autorização do titular.
Assim, e antes do mais, dou a palavra ao ilustre mandatário dos autores para informar o tribunal se estes autorizam o BANCO a fornecer os documentos e informações em causa”.
Dada a palavra ao ilustre mandatário dos autores pelo mesmo foi dito, em síntese:
- Os AA entendem autorizar que o BANCO, com prejuízo do segredo bancário, forneça ao tribunal os factos alegados nos artigos 19 e 20 da contestação, ou seja, data de início do processo de financiamento para a compra da fracção;
- Concordam os autores que é esta a questão de facto colocada naqueles artigos a que o Banco pode responder, sem prejuízo de, se for entendido pelo tribunal, puderem os autores autorizar qualquer outra informação com prejuízo do segredo bancário se para tanto lhes for indicado, ou seja, enunciada a questão de facto questionada nos autos, que se reputa de relevante para a boa decisão da causa.
Pela Mª Juíza foi então proferido o seguinte despacho:
“Quanto à parte de informação pretendida que os autores autorizam o BANCO a prestar, os autores aqui presentes e que pessoalmente concedem essa autorização, determino que se oficie ao BANCO, com cópia desta acta e uma cópia de fls. 13 dos autos e indicando os nºs. de BI e NIF dos autores, solicitando o envio no prazo de 10 dias de informação sobre a data de início do processo de proposta de crédito hipotecário que terá sido recusado por carta de 8 de Abril de 2009.
Quanto à remanescente informação pretendida pelos réus, constante do ponto I da sua contestação, ou seja, pedido de fotocópia do processo de proposta de crédito bancário, informação da agência em que tal processo foi tramitado e qual o funcionário responsável pelo mesmo, determino o seguinte:
Tendo o BANCO recusado prestar tal informação, considero a sua escusa legítima por força do disposto no artigo 78º do DL nº 298/92 de 31 de Dezembro e artigo 519º nº3 al. c) do CPC.
Assim, face ao requerido pelos réus, determino, ao abrigo do disposto no artigo 135º nº2 e 3, “ex vi” do art. 182º, nº2 do CPP, “ex-vi” do artigo 519º nº4 do CPC, elabore translado do incidente, instruído com certidão da presente acta, da contestação dos réus, do ofício de fls. 112 e do requerimento de 25/10/2011. Remeta o translado ao Tribunal da Relação de Lisboa, com vista à apreciação da quebra do sigilo bancário requerido”.

2. O ofício do BANCO, de 8.04.2009 (referido supra como doc. 3) é do seguinte teor:
Na sequência da Proposta de Crédito Hipotecário apresentada por V. Exas. no montante de financiamento de 135. 000 (cento e trinta e cinco mil euros) e referente ao imóvel sito… no Seixal (descrito na competente Conservatória do Registo Predial de … sob o n.º…. e inscrito na respectiva matriz sob o número …) lamentamos informar que, após análise detalhada, não foi possível considerá-la favoravelmente, uma vez que a mesma não se enquadra nos nossos actuais critérios de concessão de crédito por motivo de reduzida capacidade de endividamento.
Por sua vez, o ofício do mesmo Banco, de 26.09.2011 é do seguinte teor (fls. 112 da acção):
Considerando a legislação sobre o dever de guarda de sigilo bancário, decorrente do disposto nos artigos 78.º e seguintes do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 298/92, de 31 de Dezembro, solicita-se o favor de identificarem o diploma legal que dispensa as Instituições de Crédito do cumprimento de tal dever, ou informarem se o(s) titular(es) da conta autoriza(m) este Banco a fornecer as informações/documentos em causa.

3. Resulta do expediente enviado pelo tribunal de 1ª instância:
- Os RR prometeram vender aos autores uma determinada fracção autónoma;
- Nos termos do n.º 3 da cláusula quinta do contrato-promessa, “no caso de recusa bancária, ficam os primeiros outorgantes [promitentes-vendedores] na obrigação de restituir aos segundos outorgantes o sinal já recebido”;
- Os promitentes-compradores não conseguiram obter o financiamento (como consta do aludido ofício do BANCO, de 8.04.2009) e, por isso, não terão podido efectuar a compra;
- Mas, os promitentes vendedores (RR na acção) recusaram-se a devolver o sinal recebido (e daí a presente acção) e pretendem agora saber por que razão os promitentes-compradores não conseguiram o financiamento, pelo que requereram que se ordenasse ao BANCO que prestasse as referidas informações.

II
Estes os factos.
Cumpre apreciar e decidir.
1. O segredo bancário pretende salvaguardar uma dupla ordem de interesses.
Por um lado, de ordem pública: o regular funcionamento da actividade bancária, baseada num clima generalizado de confiança, sendo o segredo um elemento decisivo para a criação desse clima de confiança, e indirectamente para o bom funcionamento da economia, já que o sistema de crédito, na dupla função de captação de aforro e financiamento do investimento, constitui, segundo o modelo económico adoptado, um pilar do desenvolvimento e do crescimento dos recursos. Por outro lado, o segredo visa também a protecção dos interesses dos clientes da banca, para quem o segredo constitui a defesa da discrição da sua vida privada, de forma que o direito ao sigilo bancário se pode ancorar no direito à reserva da intimidade da vida privada, previsto no art. 26º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa.
O segredo bancário encontra-se regulado no Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras (RGICSF), aprovado pelo DL nº 298/92, de 31-12.
Determina o artigo 78.º:
«Artigo 78°
Dever de segredo

1 - Os membros dos órgãos de administração ou de fiscalização das instituições de crédito, os seus empregados, mandatários, comitidos e outras pessoas que lhes prestem serviços a título permanente ou ocasional não podem revelar ou utilizar informações sobre factos ou elementos respeitantes à vida da instituição ou às relações desta com os seus clientes cujo conhecimento lhes advenha exclusivamente do exercício das suas funções ou da prestação dos seus serviços.
2 - Estão, designadamente, sujeitos a segredo os nomes dos clientes, as contas de depósito e seus movimentos e outras operações bancárias.
3 - O dever de segredo não cessa com o termo das funções ou serviços.

E estatui o artigo 79.º:

«Artigo 79°
Excepções ao dever de segredo

1 - Os factos ou elementos das relações do cliente com a instituição podem ser relevados mediante autorização do cliente, transmitida à instituição.
2 - Fora do caso previsto no número anterior, os factos e elementos cobertos pelo dever de segredo só podem ser revelados:
a) Ao Banco de Portugal, no âmbito das suas atribuições;
b) À Comissão do Mercado de Valores Mobiliários, no âmbito das suas atribuições;
c) Ao Fundo de Garantia de Depósitos, no âmbito das suas atribuições;
d) Nos termos previstos na lei penal e de processo penal;
e) Quando exista outra disposição legal que expressamente limite o dever de segredo».
O segredo bancário é, assim, tratado como segredo profissional, vinculando todos aqueles que, por via do exercício da profissão, têm acesso a informações confidenciais, tal como, os nomes dos clientes, as contas de depósito e seus movimentos e outras operações bancárias.
Mas, «o segredo bancário não é um direito absoluto, antes pode sofrer restrições impostas pela necessidade de salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos. Na verdade, a tutela de certos valores constitucionalmente protegidos pode tornar necessário, em certos casos, o acesso aos dados e informações que os bancos possuem relativamente às suas relações com os clientes. Assim sucede com os artigos 135º, 181º e 182º do actual Código de Processo Penal, os quais procuram consagrar uma articulação ponderada e harmoniosa do sigilo bancário com o interesse constitucionalmente protegido da investigação criminal, reservando ao juiz a competência para ordenar apreensões e exames em estabelecimentos bancários, determinando que deve ser ele a presidir ao exame de correspondência e de qualquer documentação bancária e impondo aos órgãos de polícia criminal e aos técnicos qualificados que tiverem coadjuvado o juiz o dever de segredo relativamente a tudo aquilo de que tiverem tomado conhecimento e não tiver interesse para a prova»[1].
O dever de segredo cessa, designadamente, quando exista autorização do cliente, tratando-se, pois, de um direito disponível, o que revela que o legislador concebe o segredo bancário essencialmente como protecção do direito fundamental à reserva da vida privada.
Mas cessa ainda noutras situações, em que interesses relevantes de ordem pública impõem essa cessação, por força do princípio constitucional da concordância entre valores constitucionais conflituantes (nº 2 do art. 18º da Constituição da República Portuguesa).
E cessa, nomeadamente, nos termos da alínea e) do nº 2 do citado artigo 79º: quando exista disposição legal que expressamente limite o dever de segredo.
Nestes casos, o segredo bancário cede por disposição de lei expressa, e, portanto, sem necessidade de invocação doutros interesses. Não se torna, pois, necessário averiguar qual o interesse que deve prevalecer, porque o próprio legislador o determinou, ponderando os interesses em jogo.

2. Mas, o segredo bancário cessa ainda nos termos da lei penal e processual penal [alínea d) do n.º 2 do citado artigo 79.º].
Estabelece o art. 135º do C.P. Penal:
«Artigo 135.º
Segredo profissional

1. Os ministros de religião ou confissão religiosa, os advogados, os médicos, os jornalistas, os membros de instituições de crédito e as demais pessoas a quem a lei permitir ou impuser que guardem segredo profissional podem escusar-se a depor sobre os factos abrangidos por aquele segredo.
2. Havendo dúvidas fundadas sobre a legitimidade da escusa, a autoridade judiciária perante a qual o incidente se tiver suscitado procede às averiguações necessárias. Se, após estas, concluir pela ilegitimidade da escusa, ordena, ou requer ao tribunal que ordene, a prestação do depoimento.
3. O tribunal imediatamente superior àquele onde o incidente se tiver suscitado ou, no caso de o incidente se ter suscitado perante o Supremo Tribunal de Justiça, o plenário das secções criminais, pode decidir da prestação de testemunho com quebra do segredo profissional sempre que esta se mostre justificada face às normas e princípios aplicáveis da lei penal, nomeadamente face ao princípio da prevalência do interesse preponderante. A intervenção é suscitada pelo juiz, oficiosamente ou a requerimento.
Prevê-se neste preceito a existência de situações de legitimidade e de ilegitimidade de escusa de prestação de depoimentos ou de informações, designadamente por parte das entidades bancárias às autoridades judiciárias.
Quando for invocada a escusa com fundamento no sigilo profissional, a autoridade judiciária[2] perante a qual o incidente se tiver suscitado procede às averiguações que repute necessárias. Se, feitas essas diligências, concluir pela manifesta inviabilidade da escusa, ordena, ou requer ao tribunal que ordene, a prestação do depoimento, ou que sejam prestadas as informações pelas instituições bancárias.
Neste caso, não impõe a lei que se faça qualquer juízo de ponderação de interesses em ordem a determinar o que deverá prevalecer, nem tal se justificaria, porque se concluiu não existir segredo. Por isso, a lei autoriza o tribunal (depois de se averiguar sumariamente que a escusa é ilegítima) a ordenar a prestação do depoimento, não podendo a instituição bancária subtrair-se ao cumprimento do que lhe for ordenado.
Não estamos, neste caso, perante quebra de segredo, pela simples razão de que o facto em causa não está legalmente coberto pelo sigilo bancário.

3. Diferente é o caso quando o tribunal concluir pela viabilidade da recusa.
No acórdão do STJ de 13.02.2008[3] (para uniformização de jurisprudência) foram extraídas as seguintes conclusões:
1. Requisitada a instituição bancária, no âmbito de inquérito criminal, informação referente a conta de depósito, a instituição interpelada só poderá legitimamente escusar-se a prestá-la com fundamento em segredo bancário.
2. Sendo ilegítima a escusa, por a informação não estar abrangida pelo segredo, ou por existir consentimento do titular da conta, o próprio tribunal em que a escusa for invocada, depois de ultrapassadas eventuais dúvidas sobre a ilegitimidade da escusa, ordena a prestação da informação, nos termos do nº 2 do art. 135º do Código de Processo Penal.
3. Caso a escusa seja legítima, cabe ao tribunal imediatamente superior àquele em que o incidente se tiver suscitado ou, no caso de o incidente se suscitar perante o Supremo Tribunal de Justiça, ao pleno das secções criminais, decidir sobre a quebra do segredo, nos termos do nº 3 do mesmo artigo.
Portanto, se concluir que a escusa é legítima, a autoridade judiciária tem um de dois caminhos a seguir: ou se conforma com a invocação do segredo, não podendo insistir na obtenção do depoimento, ou suscita o incidente de quebra de segredo junto do tribunal competente (conforme determinado pelo n.º 3 do artigo 135.º), usando para o efeito este incidente.
Constata-se, assim, que têm tratamento muito diferenciado as situações de legitimidade e de ilegitimidade da escusa de prestação de depoimento ou informações pelas instituições bancárias, sendo evidentemente mais simples o caso de ilegitimidade, que é da competência do próprio tribunal em que a escusa tenha sido invocada, precisamente porque aí se trata apenas de constatar a inexistência de sigilo bancário e a consequente falta de legitimidade da escusa em prestar depoimento e/ou as informações solicitadas.
Estando, porém, o facto coberto pelo segredo, e sendo portanto legítima a escusa, só a quebra do segredo pode obrigar a entidade bancária a prestar a informação solicitada.
Como bem refere MAIA GONÇALVES[4], “o tribunal superior decidirá, e, evidentemente, na decisão a tomar terá que usar de muito critério e moderação, atentos os interesses muito poderosos que nestes casos estão em jogo, de um lado e de outro (exigências da administração da justiça e segredo…”.

III
1. Os RR pretendem, como se viu, que o BANCO forneça os seguintes elementos: fotocópia do processo de proposta de crédito bancário e qual a data em que teve início; informação da agência em que esse processo foi tramitado; identidade do funcionário responsável pela sua tramitação.
Conforme preceituado no n.º 1 do artigo 519.º do CPC, todas as pessoas, sejam ou não partes na causa, têm o dever de prestar a sua colaboração para a descoberta da verdade. Há, porém, casos em que o cumprimento desse dever pode ser recusado.
Essa recusa é legítima, nomeadamente, quando a colaboração importar violação do sigilo profissional, sem prejuízo, contudo, do disposto no n.º 4 do mesmo diploma legal, o qual determina: «deduzida escusa com fundamento na alínea c) do número anterior, é aplicável, com as adaptações impostas pela natureza dos interesses em causa, o disposto no processo penal acerca da verificação da legitimidade da escusa e da dispensa do dever de sigilo».
Remete-se assim para as pertinentes normas do C.P. Penal, muito especialmente para o já citado artigo 135.º. Todavia, essa remissão deve ser feita “com as adaptações impostas pela natureza dos interesses em causa”. Há, pois, que ponderar, em cada caso, a natureza dos interesses em confronto.
Portanto, todas as pessoas, sejam ou não partes na causa, têm o dever de prestar a sua colaboração para a descoberta da verdade, mas há casos em que a recusa em prestar essa colaboração é legítima, o que sucede, designadamente, quando a prática do acto envolver violação de segredo profissional.
Foi decidido no acórdão do STJ de 28.06.2006 (processo n.º 2178/06-3):
«1 — O dever de sigilo bancário é uma manifestação da tutela do direito ao bom nome e reputação e reserva da vida privada, reconhecido pelo art. 26.º, n.º 1, da CRP, e visa proteger as relações de confiança entre as instituições bancárias e os seus clientes, tidas como indispensáveis ao normal desenvolvimento do modelo económico adoptado.
2 — Como qualquer direito constitucionalmente consagrado, só pode ser restringido para salvaguarda de outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos, conforme o disposto no art. 18.º, n.º 2, também da Lei Fundamental.
3 — O dever de sigilo por parte de entidade bancária e seus funcionários só pode ser postergado, para além dos casos em que o próprio cliente consente na sua dispensa, quando um tribunal superior — tribunal da Relação ou STJ — decida pela sua quebra, verificada que seja a indispensabilidade da medida para salvaguarda de outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos axiologicamente mais valiosos e, em contraponto, o direito ao bom nome e à liberdade e segurança por parte dos ofendidos e o correspondente dever de colaboração com a realização da justiça, com vista ao cumprimento do dever de punir.»
Assim, por um lado, destinando-se o dever de sigilo a proteger os direitos pessoais, tal como o direito ao bom nome e reputação e o direito à reserva da vida privada (Cfr. art.ºs 26º, da CRP, e 80º, do CC), bem como o interesse da protecção das relações de confiança entre as instituições bancárias e os seus clientes, e tendo-se em consideração, por outro, que o dever de cooperação para a descoberta da verdade visa a satisfação do interesse público da realização da justiça, o confronto entre os dois interesses deve ser dirimida com prevalência do princípio do interesse preponderante, segundo um critério de proporcionalidade na restrição de direitos e interesses, constitucionalmente protegidos, em conformidade com o disposto no artigo 18º, nº 2, da CRP.
No acórdão do TC de 31.05.1995 (278/95) foi salientado que «a situação económica do cidadão, espelhada na sua conta bancária, incluindo as operações activas e passivas nela registadas, faz parte do âmbito de protecção do direito à reserva da intimidade da vida privada, condensado no artigo 26º, nº 1, da Constituição, surgindo o segredo bancário como um instrumento de garantia deste direito». E ainda: «[d]e facto, numa época histórica caracterizada pela generalização das relações bancárias, em que grande parte dos cidadãos adquire o estatuto de cliente bancário, os elementos em poder dos estabelecimentos bancários, respeitantes designadamente às contas de depósito e seus movimentos e às operações bancárias, cambiais e financeiras, constituem uma dimensão essencial do direito à reserva da intimidade da vida privada constitucionalmente garantido».
A Constituição não estabelece o conteúdo e alcance do direito à reserva da intimidade, nem define o que deva entender-se por intimidade como bem jurídico constitucionalmente protegido. Mas, em anotação ao artigo 26º da Constituição da República Portuguesa[5], J.J. Gomes Canotilho/Vital Moreira consideram que o direito à reserva da intimidade da vida privada e familiar se analisa em dois direitos menores: "(a) o direito a impedir o acesso de estranhos a informações sobre a vida privada e familiar e (b) o direito a que ninguém divulgue as informações que tenha sobre a vida privada e familiar de outrem (cfr. Código Civil, artigo 80º). Ainda segundo os memos autores, alguns outros direitos fundamentais funcionam como garantias deste: “é o caso do direito à inviolabilidade do domicílio e da correspondência (artigo 34º), da proibição de tratamento informático de dados referentes à vida privada (artigo 35º, nº 3)". E ainda: "instrumentos jurídicos privilegiados de garantia deste direito são igualmente o sigilo profissional e o dever de reserva das cartas confidenciais e demais papéis pessoais (cfr. Código Civil, artigos 75º a 78º)".
O direito à prova, constitucionalmente consagrado no artigo 20.º da CRP representa uma componente do direito geral à protecção jurídica e de acesso aos tribunais. Por isso, quando se está perante elementos de prova indispensáveis para a descoberta da verdade, o valor do segredo bancário, que tutela o interesse privado duma das partes, deve, em princípio, ceder perante o dever de cooperação na descoberta da verdade material, no âmbito da administração da justiça, mesmo no domínio da jurisdição civil.
Mas o tribunal só deve dispensar a confidencialidade desses elementos quando se mostrem indispensáveis à realização dos fins probatórios e com rigorosa observância do princípio da proibição do excesso.
Destinando-se, por um lado, o sigilo bancário a proteger direitos pessoais (tal como a reserva da vida privada) e, por outro, destinando-se o dever de cooperação para a descoberta da verdade a satisfazer o interesse público na administração da justiça, quando, como é o caso, estão em causa informações sobre um processo de pedido de financiamento bancário, deve ser dada prevalência a este último.

2. Aqui está em causa uma operação bancária (pedido de financiamento). Por isso, ponderando-se, por um lado, o direito ao sigilo bancário e, por outro, o interesse de uma das partes em conhecer dados cobertos pelo sigilo bancário, e tendo em atenção a doutrina e a jurisprudência expostas, só devem ser fornecidos os elementos do processo que se julguem indispensáveis à satisfação do interesse dos requerentes.
Como disse, os promitentes-compradores não conseguiram obter o financiamento e, por isso, não terão podido efectuar a compra, e os promitentes-vendedores (que receberam o sinal) pretendem saber por que razão aqueles não conseguiram esse financiamento, uma vez que, no termos do n.º 3 da cláusula quinta do contrato-promessa, “no caso de recusa bancária, ficam os primeiros outorgantes [promitentes-vendedores] na obrigação de restituir aos segundos outorgantes o sinal já recebido”.
No ofício de 8.04.2009 (referido como doc. 3) o Banco já informava que o cliente solicitou um empréstimo hipotecário no montante de 135.000 (cento e trinta e cinco mil euros) referente ao imóvel que identifica, e que, após análise detalhada, chegou à conclusão de que não foi possível aceitar a proposta “uma vez que a mesma não se enquadra nos nossos actuais critérios de concessão de crédito por motivo de reduzida capacidade de endividamento”.
Portanto, o BANCO já forneceu ao tribunal elementos relevantes constantes do processo da proposta de crédito e com interesse para os requerentes.
Mas não vemos qualquer razão para que não seja dado a conhecer ao tribunal e às partes interessadas o nome da agência em que o processo foi tramitado e a identificação do funcionário responsável pela sua tramitação.
O respectivo funcionário, conforme requerido, deveria responder aos artigos 19, 20, 21 e 24 da contestação.
Os dois primeiros artigos referem-se à data em que foi iniciado o processo de financiamento, pelo que não se vê qualquer razão para não ser inquirido sobre esse facto. E o mesmo sucede em relação ao artigo 24, pois aí está apenas em causa saber se antes de pagarem o sinal, os réus se informaram sobre se poderiam receber o financiamento para a compra da fracção em causa.
No artigo 21 faz-se referência ao conteúdo duma carta, pelo que não se vê qual a utilidade na inquirição sobre essa matéria. Com efeito, aí informa-se que o pedido de financiamento não se enquadra nos critérios de concessão de crédito “por motivo de reduzida capacidade de endividamento”. Explicitam-se, assim, embora de forma vaga, as razões pelas quais não foi concedido o crédito.
O funcionário poderá esclarecer esta situação, mas já poderá recusar-se a pronunciar-se sobre as razões da “capacidade de endividamento”, pois é questão que apenas diz respeito ao cliente e nada justifica o seu conhecimento por terceiros quando está somente em causa o modo como o processo foi conduzido, designadamente quando foi iniciado e se o requerente fez as diligências necessárias para que o crédito pudesse ser concedido.
Portanto, o direito ao conhecimento dos elementos do processo de concessão de crédito por terceiros deve limitar-se ao estritamente indispensável à realização dos fins probatórios visados (neste caso pelos RR) e com observância rigorosa do princípio da proibição do excesso, na sua tripla vertente da necessidade, adequação e proporcionalidade.
Assim, não vemos qualquer justificação para se dar a conhecer aos ora interessados “fotocópia do processo de proposta de crédito bancário”, até porque o banco já foi notificado para prestar “informação sobre a data de início do processo de proposta de crédito hipotecário que terá sido recusado por carta de 8 de Abril de 2009”.
IV
(…)
**

Por todo o exposto, acorda-se, com quebra do sigilo bancário, em que o “BANCO” deve fornecer ao tribunal os seguintes elementos do processo:
- Data em que teve início e em que terminou;
- Informação da agência em que esse processo foi tramitado;
- Identidade do funcionário responsável pela sua tramitação.
 
Custas pela parte vencida a final.

Lisboa, 28 de Fevereiro de 2012.

José David Pimentel Marcos.
Tomé Gomes.
Maria do Rosário Morgado.
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[1]  Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 278/95, de 31.05.1995, disponível na Internet.
[2]  Nos termos da alínea b) do artigo 1.º do CPP, são autoridades judiciárias: o Juiz, o Juiz de Instrução e o Ministério Público, cada um relativamente aos actos processuais que cabem na sua competência.
[3]  Que acompanharemos de perto, por vezes textualmente.
[4]  Código de Processo Penal Anotado, 17ª Edição, 2009, em anotação ao artigo 135.º.
[5]  Constituição da República Portuguesa Anotada, 4ª Edição, Coimbra Editora, 2007, págs. 467/468/.