Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
746/10.5TVLSB.L1-2
Relator: EZAGUY MARTINS
Descritores: ACÇÃO DE REIVINDICAÇÃO
LITISCONSÓRCIO NECESSÁRIO
NULIDADE PROCESSUAL
RECONVENÇÃO
INCONSTITUCIONALIDADE
PRINCÍPIO DA IGUALDADE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 12/15/2011
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I – A omissão do convite à Ré/reconvinte para suprir a preterição do litisconsórcio necessário activo, com os demais herdeiros, na instância reconvencional, apenas integra nulidade se susceptível de influir no exame e decisão da causa.
II – Não é o que ocorre se a sentença recorrida, para além de julgar a reconvenção improcedente na circunstância de tal preterição (…) mais julgou que a mesma também improcederia por redundar o pedido reconvencional em efectivo abuso de direito, não tendo a Recorrente impugnado esta segunda linha de fundamentos da sentença.
III – Nesse caso, transitou a sentença recorrida no tocante ao julgamento da reconvenção. IV - O regime transitório do art.º 57º da Lei nº 6/2006, de 27/02, que aprovou o NRAU, não viola o princípio constitucional da igualdade.
(Sumário do Relator)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na 2ª Secção (cível) deste Tribunal da Relação

I – “A” – Sociedade de Construções, Lda., intentou acção declarativa, com processo comum sob a forma ordinária, contra “B”, pedindo a condenação da Ré :
a) A reconhecer a A como dona e legítima proprietária do rés-do-chão do prédio urbano sito na Rua da..., numero …, a que corresponde a fracção autónoma designada por letra “D”, descrita na 6ª Conservatória do Registo Predial de Lisboa sob o número … e inscrita na matriz predial urbana da freguesia de … sob o artigo matricial n.º …;
b) à imediata restituição à A, da identificada fracção, completamente livre e devoluta de pessoas e bens;
c) no pagamento, a título de indemnização, à A, de um montante equivalente aos juros à taxa legal de 4% sobre o valor do fogo no estado em que o mesmo actualmente se encontra, montante esse, nunca inferior a € 35 000,00, desde a citação até à entrega definitiva da fracção à A.

Alegando, para tanto e em suma, que a A. é dona e legítima proprietária da referida fracção, que fora dada de arrendamento ao pai da Ré.
Falecido este, e, 3-8-2009, a Ré não obstante as interpelações que lhe foram feitas pela A, para que lhe entregasse o locado, decorridos seis meses sobre o óbito de seu pai, não o fez, apesar de não dispor de título válido para ali se manter.
Com o que lhe ocasiona a perda de rendimento que obteria do preço de venda do fogo, que faz corresponder à taxa de juro legal de 4% sobre o montante de tal preço, a saber, € 35.000,00.

Contestou a Ré, invocando a inconstitucionalidade do art.º 57º do NRAU, e assim sustentando a legitimidade da sua ocupação do locado, após a morte do arrendatário, seu pai, na circunstância de ali viver, à data do óbito daquele, e desde Setembro de 1976, integrando o agregado familiar do locatário, e, desde que começou a sua vida profissional, em economia comum.
Tendo procedido “à comunicação legal à R. do óbito de seu pai e da intenção de continuar o arrendamento”, não tendo deixado de pagar renda.
Impugnando ainda o valor da fracção alegado pela A.
E pretendendo gozar do direito de retenção do locado, na circunstância de o agregado familiar da Ré ter procedido a obras necessárias no locado, resultando pelo menos metade do valor deste das benfeitorias assim realizadas, e que não podem ser levantadas.

Remata com a improcedência parcial da acção – em quanto transcenda o pedido do reconhecimento do direito de propriedade da A. – pedindo ainda, em reconvenção:
a) O reconhecimento da Ré pela A. como arrendatária do locado identificado no artº 1º da P.I.;
b) ser a A/Reconvinda condenada a pagar à Reconvinte metade da quantia que se vier a apurar ser o valor do imóvel, o que equivale a, mantendo-se o valor indicado pela A./Reconvinda, à quantia de dezassete mil e quinhentos euros, a título de compensação pelas benfeitorias necessárias realizadas no Locado, insusceptíveis de serem levantadas e sem as quais o imóvel não satisfazia os fins a que se destina.

Houve réplica da A., pugnando pela improcedência da reconvenção e concluindo como na petição inicial.

O processo seguiu seus termos, com saneamento e condensação, vindo, realizada que foi a audiência final, a ser proferida sentença com o seguinte teor decisório:
“a) Reconhece-se a Autora como proprietária do rés do chão do prédio sito na Rua da..., n.º …, em Lisboa, a que corresponde a fracção autónoma identificada pela letra “D”, do prédio urbano em propriedade horizontal descrito na 6.ª Conservatória do Registo Predial de Lisboa sob o n.º … e inscrito na matriz predial urbana da freguesia de … sob o art. …
b) Condena-se a Ré a reconhecê-lo e a restituir à Autora a dita fracção, livre e devoluta;
c) Condena-se a Ré no pagamento de uma indemnização à Autora, no montante equivalente aos juros à taxa legal, sobre o montante de € 22.500,00, desde a data da citação, até à efectiva entrega do imóvel
Julga-se ainda a reconvenção totalmente improcedente, absolvendo-se a Autora de todo o respectivo pedido.”.

Inconformada, recorreu a Ré, formulando, nas suas alegações, as seguintes conclusões:
“A – A decisão Recorrida enferma de erro, por não ter notificado a R, para que esta pudesse chamar à demanda os irmãos, únicos herdeiros do pai. Somente.
B – Nesta parte a Sentença é nula e como tal deve ser declarada.
C - A MM Juiz a quo, considerou que o regime transitório, constante no artigo 57.º do NRAU, não sofre de inconstitucionalidade, situação que de todo não pode proceder, devendo ser dado outro entendimento segundo o propugnado pela Recorrente.
D – Indeferiu o pedido reconvencional, ao não atribuir indemnização, rectius, compensação por benfeitorias úteis, que foram consideradas provadas e que a lei impõe que seja atribuída a justa compensação segundo as regras de enriquecimento sem causa.
E - Andou mal – a nosso ver, e salvo o devido respeito, que é aliás muito – a decisão recorrida.
F – Nunca esteve em causa a propriedade da fracção mas sim a atribuição à Recorrente do direito a suceder no arrendamento por se ter provado que vivia com o pai (arrendatário) na fracção em economia comum há mais de um ano.
G – Ficou assente que a fracção havia sido dada de arrendamento ao pai da Recorrente em 1976, tendo este falecido em 03-08-2009.
H – Ficou assente que a Recorrente fez a comunicação legal, invocando o direito a ver-lhe ser transmitido o arrendado.
I – Tal situação enquadra-se no artigo 1106.º do CC actual, como se enquadrava em legislação anterior ao NRAU.
J – A MM Juiz a quo aplicou o artigo 57.º do NRAU, não considerando o mesmo inconstitucional.
L – Erradamente, a nosso ver, porque o mesmo traduz uma clara violação do princípio da igualdade de tratamento para iguais situações da vida.
M – O artigo 57.º do NRAU, tem em si uma clara e manifesta violação do princípio da igualdade, com assento constitucional, porquanto impõe um regime abissalmente diferente para pior, para os arrendamentos vigentes à data de entrada em vigor do NRAU, em confronto com os arrendamentos posteriores.
N – Na verdade, o artigo 57.º, do NRAU retira direitos que existiam nos normativos anteriores, no que tange à transmissibilidade do arrendamento por morte do arrendatário, sendo que o artigo 1106.º do CC, dispõe, para a mesma situação de facto, de forma diferente, conferindo direito de transmissão que o artigo 57.º, retira.
O - Não se pode argumentar, que num caso estamos em presença de arrendamentos que se podem perpetuar no tempo – o regime antigo – e noutro caso não – o regime a vigorar pelo artigo 1106.º do CC – .
P - Para arrendamentos antigos o novo regime confere a possibilidade do senhorio estabelecer novas regras, nomeadamente alteração do valor da renda, mediante avaliação feita por comissão, e, considerando que o regime transitório visa contratos antigos, a questão da transmissão do arrendamento, caso fosse feita nos moldes da lei actual, permitia enquadrar limite temporal a tais arrendamentos, caso houvesse transmissão do direito mortis causa, nos termos do artigo 1106.º do CC.
Q - O que a lei fez foi instituir um regime transitório que retira um direito que a nova lei confere, tratando diferente situações perfeitamente iguais.
R – Esta norma, do artigo 57.º do NRAU, tem assim o vício de inconstitucionalidade material, por violação clara do artigo 18.º da Constituição da República.
S – É este o único entendimento e interpretação conforme a constituição. Não existem situações factuais diferentes, mas situações iguais, que a lei (art.º 57.º do NRAU) oferece tratamento diferente, daí a inconstitucionalidade material.
T – Não podendo os Tribunais aplicar normas que estejam feridas de inconstitucionalidade por violação de normas da Constituição ou dos princípios que esta defende, conforme o dispõe o artigo 204.º da CRP.
U – Deve ser declarado inconstitucional o artigo 57.º do NRAU, devendo ser aplicado o artigo 1106.º do CC e considerar ter sido transferido o arrendamento para a Recorrente, por viver em economia comum com o pai há mais de um ano como foi dado por provado.
V - Não o tendo assim declarado, a decisão recorrida violou os artigos 1106.º do CC e o artigo 18.º e 204.º da CRP, bem como violou o artigo 29.º do NRAU e o artigo 1273.º do CC, ao não atribuir compensação pelas benfeitorias úteis feitas pelo arrendatário na constância do arrendamento.
X - Igualmente a sentença é nula, porque não se permitiu à R que esta pudesse chamar à demanda os irmãos, para consigo peticionar tal compensação.
Z – Como errou ao não plasmar o direito a compensação por benfeitorias úteis, aplicando-se as regras do enriquecimento sem causa.
AA -Não o tendo assim declarado, a decisão recorrida violou os artigos 1106.º do CC e o artigo 18.º e 204.º da CRP, bem como violou o artigo 29.º do NRAU e o artigo 1273.º do CC"
Requer a revogação da decisão recorrida a substituir por outra que declare que a Recorrente tem direito à transmissão do arrendamento, por morte do primitivo arrendatário, bem como se declara que o senhorio, deve pagar uma compensação pelas benfeitorias segundo as regras do enriquecimento sem causa.

Não houve contra-alegações.

II - Corridos os determinados vistos, cumpre decidir.
Face às conclusões de recurso, que como é sabido, e no seu reporte à fundamentação da decisão recorrida, definem o objecto daquele – vd. art.ºs 684º, n.º 3, 291º, n.º 2, 660º, n.º 2 e 713º, n.º 2, do Cód. Proc. Civil – e atento ainda o disposto no art.º 670º, n.º 3, daquele Código, são questões propostas à resolução deste Tribunal:
- se a sentença recorrida enferma de nulidade nos termos pretendidos pela Recorrente.
- se a aplicada norma, do artigo 57.º do NRAU, é materialmente inconstitucional.
- se era caso de atribuição à Recorrente de compensação pelas benfeitorias efectuadas no locado.
*
 Considerou-se assente, na 1ª instância, sem impugnação a propósito, e nada impondo diversamente, a fatualidade seguinte:
“1) A A. tem registada a seu favor a aquisição do direito de propriedade sobre o rés-do-chão do prédio sito na Rua da..., n.º …, em Lisboa, a que corresponde a fracção autónoma identificada pela letra “D”, do prédio urbano em propriedade horizontal descrito na 6.ª Conservatória do Registo Predial de Lisboa sob o n.º … e inscrito na matriz predial urbana da freguesia de … sob o art. … (cfr. os documentos de fls. 18 a 21, que se reproduzem).
2) Por documento escrito de 20/09/1976, junto por cópia a fls. 24 e 25, os anteriores proprietários deram de arrendamento para habitação a “C”o identificado rés-do-chão.
3) Em 3/08/2009 faleceu “C”, no estado civil de viúvo (cfr. o documento de fls. 27).
4) Em 11/08/2009, a R. remeteu à A. uma carta na qual, para além do mais, refere o seguinte: «venho por este meio comunicar a V.Exa. o óbito do meu pai, arrendatário do supra referido locado, “C”, o qual ocorreu no passado dia 03 de Agosto de 2009.
«Mais informo que desde 1976 que resido no supra referido locado juntamente com o meu pai, ou seja, há mais de 30 anos, não possuo qualquer outra residência na zona de Lisboa ou em qualquer outro lugar do país.
«Pelo exposto, pretendo suceder ao meu falecido pai na posição de arrendatária do supra referido locado, ficando a aguardar resposta favorável da parte de V. Exa.» (cfr. o documento de fls. 26, que se reproduz).
5) Com a dita carta, anexou a R. a certidão de óbito, junta por cópia a fls. 27.
6) A A. respondeu à R. através de carta subscrita pelo seu mandatário forense, de 31/08/2009, onde para além do mais se diz: «… Ora e antes de tomar posição definitiva sobre o seu pedido, solicito-lhe que faça prova documental sobre a invocada qualidade de filha do falecido arrendatário e da residência no locado. Quanto a esta poderá obter atestado de residência na Junta de Freguesia e fornecer-nos cópia do BI, cartão de eleitor e de contribuinte.
«Mas desde já lhe adiantamos que, nos termos dos artigos 26º, 28º e 57º do NRAU…, não obstante possa ser filha do falecido arrendatário e possa ter vivido no locado há mais de um ano, o que terá que comprovar documentalmente, a Lei apenas lhe confere o direito à transmissão da posição de arrendatária se:
«a) tendo idade inferior a 26 anos, frequentar o 11º ou 12º ano de escolaridade ou curso médio ou superior;
«b) sendo maior tiver convivido com o falecido locatário, no locado, há mais de um ano e for portadora de deficiência em grau superior a 60%;
«Não preenchendo tais requisitos deverá proceder à entrega da casa no prazo de seis meses…» (cfr. o documento de fls. 28, que se reproduz).
7) Em 09 de Setembro de 2009, o Mandatário da A. remeteu à R., nova carta registada com A/R, na qual, para além do mais se refere o seguinte: «(…) não obstante ser filha do falecido arrendatário, e possa ter vivido com ele no locado há mais de um ano, a Lei apenas lhe conferiria o direito à transmissão da posição de arrendatário se: a) tendo idade inferior a 26 anos, frequentasse o 11.º ou 12.º ano de escolaridade ou curso médio ou superior; b) sendo maior, tivesse convivido com o falecido locatário, no locado, há mais de um ano e fosse portadora de deficiência em grau superior a 60%.
«Não preenchendo tais requisitos não lhe assiste o direito à transmissão da posição de arrendatária.
«Assim sendo, deve proceder à entrega da casa livre e devoluta, no prazo de seis meses, sob pena de, não o fazendo, responder pelas perdas e danos que tal omissão possa acarretar à senhoria» (cfr. o documento de fls. 29, que se reproduz).
8) Decorrido o prazo a que se alude nas referidas cartas da A., a R. não procedeu à entrega do rés-do-chão.
9) Após a comunicação mencionada em D), a R. não deixou de depositar a renda.
10) Por óbito de “C” foram habilitados como seus herdeiros os seus filhos: a R., … e “D” (cfr. o documento de fls. 46 a 48)
11) A A., uma vez desocupada a fracção identificada em 1), pretende vendê-la e obter o respectivo preço.
12) No estado em que se encontra, a carecer de algumas obras de reabilitação, a dita casa tem o valor de mercado mínimo de € 22.500,00.
13) A R. mudou-se com os seus pais para a Rua da..., nº …, …, em Setembro de 1976 e não mais deixou de lá viver.
14) Após a morte da sua mãe, a R. continuou a viver no mesmo local com o seu pai.
15) Nos tempos livres não se deslocavam a lado nenhum, sem ser na companhia um do outro, fazendo os passeios e excursões, sempre um na companhia do outro, passando as férias em conjunto.
16) À data mencionada em 2), a fracção não tinha água canalizada nem casa de banho, que não foram proporcionadas pelo senhorio.
17) O agregado familiar da R. procedeu à instalação de água canalizada, ligação à rede, instalação de sanita, lava mãos e chuveiro na varanda, fechada para esse efeito.
18) Para levar a cabo essa instalação, foi necessário partir o chão da fracção, o qual teve que ser recolocado.
19) Com todos estes trabalhos, teve o agregado familiar da R. despesas de montante não concretamente apurado.”.
*
Vejamos:

II – 1 – Da pretendida “nulidade da sentença” recorrida.
Não está em causa, como é bom de ver, uma qualquer das nulidades de sentença “próprio sensu”, tal como previstas no art.º 668º, n.º 1, do Código de Processo Civil.
Pois que se tratará, e seguindo a argumentação da Recorrente, da omissão de um acto que a lei prescreveria, qual seja o de proporcionar à R. o ensejo de chamar à demanda os irmãos – todos herdeiros habilitados do falecido arrendatário – “para consigo peticionarem” a compensação “devida” pelas benfeitorias realizadas no locado por aquele.
Sendo aquela apenas susceptível de integrar, e assim diversamente do sugerido pela Recorrente, uma nulidade processual, que se concede estabelecida na conjugação dos art.ºs 201º, n.º 1, e 265º, n.º 2, do Código de Processo Civil.

Porém – e para além de se poder questionar a tempestividade da correspondente arguição, atenta a data da notificação da sentença à Ré, e visto o disposto nos art.ºs 153º, n.º 1 e 205º, n.º 3, do Código de Processo Civil – ponto é que uma tal omissão do convite à Ré para suprir a preterição do litisconsórcio necessário com os demais herdeiros tendo em vista assegurar a sua legitimidade na instância reconvencional, só produzirá nulidade “quando a lei o declare ou quando a irregularidade cometida possa influir no exame ou na decisão da causa”.

Ora, nada dizendo a lei, também se não verifica uma tal determinante.

E por isso que outros fundamentos encontrou a sentença recorrida para julgar improcedente a reconvenção…
Assim sendo que considerou ainda não conferirem as benfeitorias úteis ”o direito a indemnização, mas apenas ao seu levantamento, desde que o mesmo possa ser feito sem detrimento do imóvel”, e, bem assim, “poder considerar-se abusiva a pretensão de uma indemnização correspondente a metade do valor comercial do imóvel, pela realização de melhoramentos pelo inquilino, que apenas contribuíram para o conforto dos ocupantes da fracção, ao longo dos anos em que a fruíram por um valor quase simbólico, sem que exista a prova do conhecimento e autorização do senhorio ou de qualquer valorização para o imóvel (art.º 334º do Código Civil)”.

Ora, se a recorrente suscitou, nas suas alegações, a questão da ilegalidade da decisão, enquanto nela assim se julga não conferirem as benfeitorias úteis direito a indemnização, ponto é que já assim o não fez enquanto tal decisão se funda, sucessivamente, no abuso de direito em que se traduzirá a pretensão ressarcitória da Ré.

Posto o que – delimitado como está o objecto do recurso – sempre teria transitado a sentença recorrida no tocante à matéria da reconvenção, acabando a verificada omissão por nenhuma influência ter na decisão da causa.

Com improcedência, nesta parte, das conclusões da Recorrente.

II – 2 – Da “inconstitucionalidade material” da norma do art.º 57.º, do NRAU.
1. A esta questão deu já a sentença recorrida resposta bastante, com citação de jurisprudência do Tribunal Constitucional para o caso pertinente, mais concretamente, do Acórdão do TC n.º 196/2010, de 12705/2010, in D.R., 2ª Série, n.º 11, de 16/06/2010.
O qual expressamente recusou uma tal inconstitucionalidade da norma transitória em causa.
Sem que agora, nas suas alegações de recurso, produza a Recorrente novos argumentos, não abrangidos pela fundamentação daquele aresto, e que por isso carecessem de análise.
2. Dir-se-á, ainda assim, que a actividade legislativa na área do arrendamento urbano nunca foi alheia à tensão resultante do contraponto de interesses tendencialmente antagónicos, como são os dos senhorios – interessados, por via de regra, em não perpetuar contratos de locação antigos e com rendas reduzidas, por haverem sofrido, entretanto, a erosão da moeda e ficado desactualizadas – e os dos arrendatários, interessados, por sua vez, em manter a sua habitação ao menor custo, amiúde em situação de escassa oferta no mercado (sobretudo nos grandes centros urbanos) implicando encargos incomportáveis pelo respectivo agregado familiar.
Da evolução legislativa verificada após a implantação da república se dando conta no preâmbulo do Dec.-Lei n.º 321-B/90, de 15 de Outubro, que aprovou o RAU.
Também o legislador do NRAU, aprovado pela Lei nº 6/2006, de 27/02, não tendo optado, desta feita, pela elaboração de um texto preambular, não deixou de referir, no "cabeçalho do diploma" que "...estabelece um regime especial de actualização das rendas antigas...", assim insinuando a sensibilidade do legislador à problemática das rendas antigas, naturalmente estabelecidas no âmbito de anteriores contratos de arrendamento, porventura em muitos casos perpetuados por efeito da transmissão do contrato por morte dos respectivos arrendatários.
Nesta perspectiva melhor se compreendendo o regime transitório dos art.ºs 57º e 58º, para os contratos celebrados durante ou antes da vigência do RAU.

Muitos deles – certamente de antanho – caducarão se a morte dos respectivos arrendatários ocorrer já na vigência do actual NRAU e os potenciais transmissários – como a ora Apelante – se não encontrarem nas situações concretas previstas nas alíneas d) e e) do n.º 1, do citado art.º 57º.
Na sequência de tal caducidade, os novos contratos de arrendamento que sobre o mesmo espaço forem celebrados, terão as respectivas rendas actualizadas – a contento dos senhorios – ainda que sacrificando expectativas que alguns dos ditos potenciais transmissários pudessem acalentar até ao estabelecimento deste novo quadro normativo do arrendamento urbano.
Por isso, não surpreenderá que relativamente aos “futuros” contratos de arrendamento, celebrados na vigência do NRAU, se volte a aplicar o disposto no art.º 1106º do Código Civil, retomando-se a disciplina que anteriormente se seguia quanto à transmissão do arrendamento por morte do arrendatário, quando lhe sobrevivesse “Pessoa que com aquele residisse em economia comum e há mais de um ano.”.
Sem a “transitória” exigência, e pelo que aos filhos do locatário falecido respeita, da idade e frequência escolar, ou da deficiência superior a 60%.

Por outro lado – e como também se dá nota no citado Acórdão do T.C., aliás, nesse segmento, transcrito na sentença recorrida – nos novos contratos de arrendamento habitacional, celebrados no âmbito de vigência do NRAU, já não vigora o sistema de prorrogação forçada para o senhorio do vínculo contratual, que assiste à maioria dos contratos celebrados anteriormente à entrada em vigor daquele diploma.

Sem que colha a observação da Recorrente – enquanto aponta a distracção da jurisprudência constitucional – de que “para arrendamentos antigos o novo regime confere a possibilidade do senhorio estabelecer novas regras, nomeadamente alteração do valor da renda, mediante avaliação feita por comissão, e, considerando que o regime transitório visa contratos antigos, a questão da transmissão do arrendamento, caso fosse feita nos moldes da lei actual, permitia enquadrar limite temporal a tais arrendamentos, caso houvesse transmissão do direito mortis causa, nos termos do artigo 1106.º do CC.”.

Uma coisa é a celebração de contratos no domínio de vigência do NRAU, com rendas livremente estabelecidas pelos senhorios, para um prazo que, em princípio, será o mínimo, de cinco anos.
Outra coisa é a possibilidade, estabelecida nos art.ºs 30º e 31º do NRAU – normas igualmente transitórias – de as rendas dos contratos habitacionais celebrados antes da vigência do RAU e dos contratos não habitacionais celebrados antes do Dec.-Lei n.º 257/95, de 30 de Setembro, poderem ser actualizadas até ao limite máximo do valor anual correspondente a 4% do valor do locado.
Valor do locado esse que “é o produto do valor da avaliação realizada nos termos dos art.ºs 38 e seguintes do Código do Imposto Municipal sobre Imóveis (CIMI) (…) multiplicado pelo coeficiente de conservação previsto (…)”, cfr. art.º 32º.
Alcançando-se valores que não têm, como é óbvio, qualquer comparação.

Para além disso, e deveras, não se alcança como caso a transmissão do arrendamento, fosse feita nos moldes da “lei actual” tal permitiria “enquadrar limite temporal” aos arrendamentos “antigos” assim transmitidos.
Pois que nada na lei permitiria “transformar” tais arrendamentos de renovação obrigatória, em arrendamentos de duração limitada…com início na data da transmissão???
 
3. Ora, como salientou já o Tribunal Constitucional no seu Acórdão n.º 352/99,[1] o princípio da igualdade – consagrado no art.º 13º da Constituição da República Portuguesa – não opera diacronicamente. O legislador não está, por regra, obrigado a manter as soluções positivas que alguma vez haja adoptado, porque goza de “liberdade constitutiva” e de “auto revisibilidade”.
E “A essência da aplicação do princípio da igualdade encontra o seu ponto de apoio na determinação dos fundamentos fácticos e valorativos da diferenciação jurídica consagrada no ordenamento. O que significa que a prevalência da igualdade como valor supremo do ordenamento tem de ser caso a caso compaginada com a liberdade que assiste ao legislador de ponderar os interesses em jogo e diferenciar o seu tratamento no caso de entender que tal se justifica”, vd. Acórdão do mesmo Tribunal, n.º 231/94.[2]
Sendo ainda que “O princípio da igualdade postula, na sua formulação mais sintética, que se dê tratamento igual a situações de facto essencialmente iguais e tratamento diferente para as situações de facto desiguais (…). Como é geralmente afirmado o mesmo não proíbe, em absoluto, as distinções, mas apenas aquelas que se afigurem destituídas de um fundamento racional (…). Como se escreveu, por exemplo, no Acórdão n.º 187/01: como princípio de proibição do arbítrio no estabelecimento da distinção, tolera, pois, o princípio da igualdade a previsão de diferenciações no tratamento jurídico de situações que se afigurem, sob um ou mais pontos de vista, idênticas, desde que, por outro lado, apoiadas numa justificação ou fundamento razoável, sob um ponto de vista que possa ser considerado relevante.”, vd. Acórdão do T.C. n.º 254/2007.[3]
Anotando J. J. Gomes Canotilho[4] – com citação de jurisprudência do T.C. – que o princípio da igualdade não impede “a diferenciação de tratamento, mas apenas as discriminações arbitrárias, irrazoáveis, ou seja, as distinções que não tenham justificação e fundamento material bastante”.

4. Não se concedendo, feito este viaticum, que aquelas normas transitórias sejam destituídas de fundamento justificativo e racional, que as torne incompreensivelmente desiguais para com determinados destinatários.
E assim tendo embora presente que algum tempo antes o regime da transmissão do arrendamento por morte do arrendatário era outro e, no seu âmbito – quando o óbito da mãe da Apelante tivesse ocorrido na sua vigência – já à Recorrente assistiria o direito a suceder no arrendamento.
Mas certo ser essa contingência própria do fenómeno da sucessão de leis no tempo, sem que se possa, in casu, falar de restrição ou extinção retroactiva de direitos, proibida pelo art.º 18º, n.º 3, da Constituição da República Portuguesa.
E por isso que, aquando da entrada em vigor das sobreditas normas, ainda a ora Recorrente não tinha qualquer direito a suceder no arrendamento, que só poderia constituir-se com o decesso do então arrendatário.

Não se verificando pois a violação do princípio constitucional da igualdade, tendo o legislador ordinário, ao criar tais normas transitórias, arbitrado interesses e valores sócio-económicos, relacionados com a protecção da habitação e do direito de propriedade – vd. art.ºs 62º e 65º da Constituição – que são próprios de uma comunidade organizada e de um Estado de Direito.

Com improcedência, por igual aqui, das conclusões da Recorrente.

II – 3 - Da indemnização por benfeitorias.
De quanto se deixou já dito supra, em sede de “nulidade da sentença” recorrida, decorre o necessário improcedente das conclusões nesta sede formuladas pela Recorrente.


III – Nestes termos, acordam em julgar o recurso improcedente, confirmando a sentença recorrida.

Custas pela Recorrente.
Taxa de justiça nos termos da Tabela I-B anexa ao Regulamento das Custas Processuais.

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Em observância do disposto no n.º 7 do art.º 713º, do Código de Processo Civil, passa a elaborar-se sumário, como segue:
I – A omissão do convite à Ré/reconvinte para suprir a preterição do litisconsórcio necessário activo, com os demais herdeiros, na instância reconvencional, apenas integra nulidade se susceptível de influir no exame e decisão da causa. II – Não é o que ocorre se a sentença recorrida, para além de julgar a reconvenção improcedente na circunstância de tal preterição (…) mais julgou que a mesma também improcederia por redundar o pedido reconvencional em efectivo abuso de direito, não tendo a Recorrente impugnado esta segunda linha de fundamentos da sentença. III – Nesse caso, transitou a sentença recorrida no tocante ao julgamento da reconvenção. IV - O regime transitório do art.º 57º da Lei nº 6/2006, de 27/02, que aprovou o NRAU, não viola o princípio constitucional da igualdade.
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Lisboa, 15 de Dezembro de 2011
 
Ezagüy Martins
Maria José Mouro
Maria Teresa Albuquerque
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[1] Proc. N.º755/98, Relator: Vítor Nunes de Almeida, in www.tribunalconstitucional.pt/tc.
[2] Proc. nº 232/93, Relator: António Vitorino, in www.tribunalconstitucional.pt/tc/.
[3] Proc. n.º 158/07, Secção, Relator: Conselheiro Gil Galvão, , in www.tribunalconstitucional.pt/tc/.
[4] In “Constituição da República Portuguesa, Anotada”, Vol. I, 4ª Ed., Coimbra Editora, 2007, pág. 341.