Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
15/06.5TCSNT.L1-7
Relator: MARIA JOÃO AREIAS
Descritores: DOCUMENTO PARTICULAR
RECONHECIMENTO DA DÍVIDA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 01/31/2012
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I - O art. 458º CC, respeitante à promessa ou reconhecimento de uma dívida não consagra um negócio abstracto (sem causa), apenas estabelecendo uma inversão do ónus da prova da relação fundamental.
II - O credor munido de um documento pelo qual o devedor reconhece uma dívida ou promete cumpri-la não se encontra dispensado da alegação do facto constitutivo do seu direito de crédito, cuja existência se presume pela apresentação do documento.
III - Só a alegação do respectivo facto constitutivo permitirá a prova pelo devedor de que tal facto nunca existiu ou de factos extintivos de tal direito, de modo a ilidir a presunção do art. 458º, circunscrevendo-se a prova relativamente à causa que for invocada pelo credor.
(Sumário da Relatora)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa (7ª Secção):

I – RELATÓRIO.
A (…), intentou ou a presente acção declarativa sob a forma de processo ordinário contra,
S (…),
alegando, em síntese:
a Autora casou com o Réu em 2 de Agosto de 2003, vindo a divorciar-se do mesmo por mútuo consentimento na Conservatória do Registo Civil de … a 16 de Junho de 2005;
logo após o divórcio, no mesmo dia, a A. é coagida pelo Réu, sob ameaça, a assinar um documento particular de reconhecimento de obrigação pecuniária, nos termos do qual reconhece ter uma dívida pecuniária para com o Réu no montante de € 51.750,00, a pagar em 69 prestações mensais de € 750,00, a qual não tem qualquer causa justificativa;
com efeito, do casamento não existiam bens comuns, pelo que não havia nada a partilhar;
ambos prescindiram de pensão de alimentos e o acordo sobre o destino de casa de morada de família foi o único a ser homologado pelo Conservador, nada devendo a ré ao autor.
Em consequência, pede a anulação do documento particular de reconhecimento de obrigação pecuniária, por si assinado em 16 de Junho de 2005, nos termos do qual reconheceu ter uma dívida pecuniária para com o Réu no montante de € 51.750,00, a pagar em 69 prestações mensais de € 750,00, e bem assim a condenação do Réu na restituição da quantia de € 5.250,00 já paga pela Autora (correspondente a sete prestações), na sequência do determinado no referido documento, acrescida de juros legais.
O Réu apresentou contestação/reconvenção, alegando em síntese:
a assinatura do documento particular de reconhecimento de obrigação pecuniária foi precedida de uma reunião, na qual ficou acordado que a Autora lhe pagaria uma compensação pelos montantes por si dispendidos, na constância do matrimónio, com obras em casa e compra de electrodomésticos e mobiliário, inexistindo, pois, qualquer coacção.
Conclui pela sua absolvição do pedido, pedindo, em reconvenção, a condenação da A. no pagamento da quantia de € 46.500,00 ainda em dívida, sendo certo que apenas foram pagas sete prestações de € 750,00 €, encontrando-se vencidas as demais, acrescida de juros legais.
A Autora replicou com os fundamentos aí aduzidos.
Proferido despacho saneador, realizou-se a audiência de julgamento, tendo sido proferida decisão sobre a matéria de facto.
Foi proferida sentença a:
a) Julgar a acção procedente, por provada:
-        declarando a nulidade do documento a que se alude em 8. dos factos provados;
-        condenando o Réu no pagamento à Autora da quantia de € 5.250,00, acrescida dos juros de mora à taxa legal, desde a data da citação até integral pagamento.
b) Julgar a reconvenção improcedente, por não provada, dela absolvendo a Autora/Reconvinda do pedido.
Não se conformando com a mesma, veio o Réu, dela interpor recurso de apelação, concluindo a sua motivação com as seguintes conclusões:
A. Entende o ora recorrente de forma diversa do tribunal a quo, visto que o ora recorrente beneficiava da presunção da existência do negócio subjacente “até prova em contrário” - art. 458º nº1, 342º e no 344º nº1 do Código Civil.
B. Prescreve a lei que o mesmo teria apenas que alegar a existência do seu direito (vide art. 344 nº 1 C.C.) e caberia em contrapartida à A. (devedora) alegar e de forma cabal provar a inexistência de relação subjacente à dívida que assumiu e que ora se pretendia eximir ou furtar ao pagamento.
C. O pedido da Recorrida improcederia de forma imediata com a consequência legal de que, caso não se provasse a versão daquela, devedora, a única que deveria ser questionada e aferida nesta fase processual,
D. O R. apresentou em juízo a declaração relativa à dívida existente, garantindo que a mesma tinha sido constituída e aceite o seu pagamento.
E. O Recorrente não tem o ónus da prova, logo nem sequer fazia sentido quesitar afirmações que não têm de ser provadas, maxime estarem a coberto de presunções legais.
F. Por via disso tal não deveria ter tido como consequência o entendimento de que “os factos provados não revelam a relação subjacente” com consequentemente anulação do contrato porquanto não era exigido legalmente ao R. que fizesse prova disso.
G. O Recorrente cumpriu o dever legal de ALEGAR e deixou para a recorrida o dever de PROVAR o contrário, sendo que para isso muniu o tribunal com o documento essencial para a descoberta da verdade, seja a declaração de dívida, juntou ainda extratos bancários, várias faturas e ainda elaborou em sede de contestação todo o historial.
H. Pelo contrario a recorrida não logrou demonstrar ao tribunal a sua pretensão e ainda assim, alcançou o seu objetivo primacial: não pagar o devido ao R.
I. Aliás, a destrinça (e o seu sentido útil) de um ónus de alegação e de prova nem sequer é estranha ou nova: sempre se entendeu, por exemplo, que quem exige o cumprimento de uma obrigação tem o ónus de alegação da afirmação do não cumprimento, nem que seja implicitamente, sem que daí decorra o ónus da prova do não cumprimento (que, por isso, não deve ser quesitado).
J. Seria suficiente para o Recorrente alegar o negócio subjacente na contestação, mas não tendo de o provar, a prova do inverso é que deveria ter sido realizada pela A, o que não veio a acontecer.
K. Por isso, atendendo a que a versão do credor constante na declaração de dívida não tem de ser quesitada sequer, decidiu, s.m.o., mal o tribunal a quo.
L. Feito o julgamento, ou se prova a inexistência de relações entre o A. e R. ou se prova pelo menos que aquela concreta relação alegada não existiu (conforme a posição que tenha sido seguida sobre o assunto), sendo que nenhum dos pedidos da A. foi provado, tendo ambos decaído por falta de provas, não logrando provar a recorrida nenhum valor concreto ou mesmo determinável que corroborasse a douta sentença proferida.
M. De acordo com as regras do ónus da prova, em suma, opera o preceituado no disposto no artigo 342º do Código Civil: àquele que invoca um direito, cabe fazer a prova dos factos constitutivos do mesmo (nº1) e a prova dos factos extintivos do direito, compete àquele contra quem a invocação é feita (nº2).
N. A regra geral do ónus da prova, supra enunciada, no caso em apreço, teria a seguinte concretização: sobre a A. impenderia a alegação e prova dos factos constitutivos do seu direito.
O. A Recorrida tentou por via da figura da coação e da falta de aposição de fundamento no documento onde reconhece a dívida provar que esta não era devida.
P. A recorrida não fez prova de nada do que alegou em sede do seu articulado, quando deveria ter feito prova de que a dívida que consta da declaração que assinou não é verdadeira ou que nem sequer seria uma dívida sua, o que não se veio a provar de forma alguma.
Q. O Recorrente estava munido de um documento que inclusivamente serviria para título executivo, nos termos do artigo 46º nº 1 al. b) do CPC, o qual foi devidamente junto aos autos e alegou na sua contestação o porquê desse documento existir e em que termos foi realizado o mesmo, juntando faturas de entidades onde se dirigiu para adquirir bens (doc. a fls. 143, a 150 e 158) e prova testemunhal, nomeadamente o Sr. Luis Conceição e Sr.ª Dora Silva que prestaram declarações nesse sentido.
R. Nos termos supra referidos, caberia à A. fazer a prova do contrário e tornar certo perante o julgador não ser verdadeiro um facto (a dívida) já demonstrado formalmente pela declaração de dívida, que é uma presunção legal da existência da dívida, tal qual o regime do cheque.
S. A decisão a quo faz tábua rasa do documento que o R. é portador, relegando para segundo plano o próprio documento assinado pela A. “sem coação e sem causa de anulabilidade”, como que querendo transmitir que o então R. deveria, para além desse documento, ter o ónus de provar a relação material que subjaz ao mesmo.
T. S.m.o. não é esse o espírito da lei em vigor, de onde deriva que há uma presunção legal derivada da declaração apresentada que deveria ter sido rebatida pela Recorrida, como era o seu dever legal.
Conclui pela revogação da sentença proferida em 1.ª Instância, substituindo-a por uma que determine a A. a pagar ao R. a quantia em falta.
Não foram apresentadas contra alegações.
Dispensados que foram os vistos legais, ao abrigo do disposto no nº2 do art. 707º, do CPC, há que decidir.

II – DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO.
Considerando que as conclusões da alegação de recurso delimitam os poderes de cognição deste tribunal, as questões a decidir  são unicamente as seguintes:
1. Declaração de inexistência do direito de crédito reconhecido pelo documento particular em causa – ónus da prova da existência de coacção ou da inexistência de causa debendi.
2. Se tal prova se mostra efectuada nos autos.

III – APRECIAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO.
         A. Matéria de Facto.
São os seguintes os factos dados como provados na decisão recorrida:
1. Em Setembro de 1999, a A. e o R., após um breve namoro, começaram a viver juntos como se de marido e mulher se tratasse, na morada dos pais da A..
2. Em 02 de Agosto de 2003, A. e R. casaram um com o outro.
3. Pelo menos depois do casamento, A. e R. residiam num anexo da casa dos pais da A..
4. Antes de celebrarem casamento e no decurso deste até ao ano de 2004, o R. exercia uma actividade profissional remunerada, auferindo mensalmente um salário.
5. A A. trabalha por conta própria, como cabeleireira, não tendo rendimentos certos.
6. No início do ano de 2005, o R. tentou convencer os pais da A. a “colocarem em seu nome”, uma terra de que são possuidores, alegando que caso acontecesse alguma coisa, “sairia daquela casa com uma mão atrás e outra à frente”.
7. Aqueles ficaram indignados e responderam que ainda estavam vivos e que tinham mais herdeiros, dois filhos para além da A., e se o R. saísse com uma mão atrás e outra à frente, sairia como entrou, sem levar nada.
8. No dia 16 de Junho de 2005, a A., como “Devedora”, e o R., como “Credor”, assinaram – sem reconhecimento presencial de assinaturas no Cartório Notarial – o documento constante de fls. 36 e 37, denominado “reconhecimento de obrigação pecuniária”, cujo teor, após identificação das partes, é o seguinte:
É reconhecida a presente dívida, cujo pagamento se regerá pelas seguintes cláusulas:
1º A devedora reconhece que tem uma dívida pecuniária para com o credor.
2º Pelo presente declara que o montante em causa é de €51.750,00 (cinquenta e um mil, setecentos e cinquenta Euros).
3º O pagamento desta dívida será realizado nos seguintes termos:
1. A cada dia 25, em 69 (sessenta e nove) prestações mensais, iguais e sucessivas, a quantia de € 750,00 (setecentos e cinquenta Euros),
2. Iniciando-se a primeira Prestação na data de 25 de Junho de 2005;
3. Considera-se efectuado o pagamento mensal acima referido pelo depósito em conta na Instituição bancária Millennium BCP – na conta …, do Balcão de …,
4. O respectivo recibo bancário do depósito faz prova dos pagamentos e serve de quitação.
5. Aquando do final do pagamento, ou seja em 25/01/2011, o Credor entregará em mão à Devedora o original deste documento ou por carta registada, simbolizando com esse facto que a dívida está totalmente saldada e nada mais há receber da Devedora.
4º No caso da Devedora não poder suportar os pagamentos por motivos de força maior, servirá o presente para intentar em tribunal a respectiva acção executiva, nos termos do Código Processo Civil.
5º Ressalva-se sempre a possibilidade da Devedora cumprir antecipadamente a prestação, liquidando um valor superior à definida no art. 3º, caso em que, se aplicam as devidas adaptações no que respeita à data de final de pagamento, que será necessariamente anterior ao estabelecido.
6º Para efeitos de notificações ou citações, judiciais ou extrajudiciais, as partes declaram as moradas indicadas no presente contrato.
Feito aos 16 de Junho de 2005, cabendo um exemplar assinado a cada uma das partes.”
9. O R. contratou Advogado para dar seguimento ao processo de divórcio por mútuo consentimento.
10. No dia 16 de Junho de 2005, A e R. encontraram-se e foram juntos ao escritório do Advogado para seguirem para a Conservatória.
11. Onde acordaram no divórcio por mútuo consentimento, nos termos constantes da acta cuja cópia consta de fls. 35, prescindindo ambos de pensão de alimentos.
12. Tendo sido homologado o acordo sobre o destino de casa de morada de família.
13. Prescindindo ambos do prazo de interposição de recurso e reclamação da decisão da Conservatória.
14. A A. possui apenas o 9.º ano de escolaridade.
15. A A., para cumprir o que ficou estabelecido no documento referido em 8., realizou apenas os seguintes depósitos na conta n.º ... s/ o Banco Millenium BCP de que o R. é titular:
24/06/05 € 750,00
22/07/05 € 750,00
25/08/05 € 750,00
20/09/05 € 750,00
24/10/05 € 750,00
24/11/05 € 750,00,
o que perfaz o total de € 5 250,00 (cinco mil, duzentos e cinquenta euros), entregue ao R.
16. No dia 24/05/05, a A. já tinha depositado, nessa conta, a quantia de € 750,00.
17. Quando A. e R. viveram juntos, este cumpriu o serviço militar durante 6 meses.
18. Na altura em que começaram a viver juntos, A. e R. foram residir num anexo da casa dos pais da Autora.
19. O Réu nunca contribuiu com qualquer quantia para custear as despesas da casa, tais como alimentação, água e luz.
20. A A. tem pago, sozinha, todas as despesas inerentes à casa, apenas com o produto do seu trabalho.
21. Tendo o R. sido sustentado pela A. e pelos pais desta durante o tempo em que cumpriu o serviço militar.
22. Sendo a A. auxiliada pelos seus pais, trabalhadores agrícolas, fazendo a mãe da A. depósitos na conta de que era titular com aquela.
23. Depois do casamento, o Réu passou a sair à noite, regressando na manhã seguinte, sem dar qualquer tipo de explicação.
24. Em 31 de Março de 2005, o Réu perdeu o emprego, sem ter como se sustentar até receber o subsídio de desemprego.
25. Nessa altura foi a Autora quem providenciou o seu sustento.
26. A A. ia permitindo toda essa situação por ser apaixonada pelo R., nutrindo por ele muito amor.
27. Com o referido em 6. pretendia o R. locupletar-se com um bem pertencente à família da A..
28. Em data anterior a Junho de 2005, o Réu comunicou à Autora que queria sair de casa.
29. A Autora ficou triste e perturbada.
30. Em data anterior a Junho de 2005, o Réu saiu de casa definitivamente, levando, sem a permissão da Autora, o carro Toyota Yaris comprado por esta antes de se casar, com os seus rendimentos.
31. Durante semanas, a Autora ficou inconformada e perturbada, por ter sido abandonada pelo Réu.
32. No mês de Maio, o R. pediu à A. que se encontrasse com ele na Agência de … do Millenium BCP, para que retirasse o seu nome da conta bancária de ambos.
33. A A. cedeu e encontrou-se com o R. no parque de estacionamento em frente do Banco.
34. Entretanto, o R. conduziu a A. ao interior da Agência, desistindo esta aí de ser segunda titular da conta do Millenium BCP.
35. De seguida, a Autora assinou a Declaração de Compra e Venda do seu veículo Toyota, por exigência do Réu[1].
36. Após, a Autora foi para casa e contou o sucedido à sua mãe.
37. O Réu vendeu o veículo Toyota.
38. O documento referido em 8. foi assinado logo após o divórcio na Conservatória do Registo Civil de …, no mesmo dia, no escritório do Advogado.
39. Quando esteve desempregado, o R. auferiu subsídio de desemprego.
40. O Toyota Yaris foi adquirido quando A. e R. já viviam juntos há dois 2 anos.
41. O R. possui apenas o 10.º ano de escolaridade.
 B. O Direito.
1. Reconhecimento de dívida constante do documento particular – ónus da prova da existência de coacção ou da inexistência de causa debendi.
A autora intentou a presente acção, pela qual pretende que se declare a nulidade do documento particular no qual reconheceu a existência de uma dívida perante o seu ex-marido, com fundamento em coacção e na inexistência de causa debendi.
O juiz a quo, considerando encontrarmo-nos perante uma promessa unilateral de cumprimento nos termos do art. 458º do CC, e que esta, embora deslocando o ónus da prova do credor para o devedor, não dispensa a existência de uma causa, tirou a seguinte conclusão:
“No caso dos autos, os factos não revelam a relação subjacente causal do negócio jurídico unilateral de reconhecimento de obrigação pecuniária aqui em causa, ou seja, a dívida pecuniária que a Autora reconhece ter para com o réu no montante de 51.750,00 € não tem causa real, pelo que o mesmo é nulo, nos termos do art. 280º, nº1, do CC”.
Insurge-se o apelante quanto a tal entendimento, com fundamento em que, encontrando-se o réu munido de um documento com manifesta força executiva era à autora que incumbia a alegação e prova da inexistência da relação subjacente à divida que assumiu.
Apreciemos a questão em apreço.
Encontra-se em causa um documento, denominado “reconhecimento de obrigação pecuniária”, assinado pela autora, pelo qual esta declara reconhecer ter uma dívida perante o ora réu, no montante de 51.750,00 €, a pagar em 69 prestações mensais.
Dispõe o nº 1 do art. 458º do CC:
“Se alguém, por simples declaração unilateral, prometer uma prestação ou reconhecer uma dívida, sem indicação da respectiva causa, fica o credor dispensado de provar a relação fundamental, cuja existência se presume até prova em contrário”.
O reconhecimento de dívida e promessa de pagamento a que se refere o art. 485º do CC, configura um título em que alguém, unilateralmente, se confessa devedor de uma prestação, sem indicação da respectiva causa, isto é, do negócio que está na origem do crédito, ou ainda, da obrigação anteriormente constituída.
Ora, como afirmam Pires de Lima e Antunes Varela, “não se consagra neste artigo o princípio do negócio abstracto. O que se estabelece é apenas a inversão do ónus da prova da existência da relação fundamental[2]”, sendo que negócios puramente abstractos existem apenas no domínio dos títulos de crédito, no campo do direito comercial.
Nenhum dos actos a que nele se alude (promessa de uma prestação ou reconhecimento de uma dívida), constituiu, com efeito, fonte autónoma de uma obrigação. Criam apenas a presunção da existência de uma relação negocial ou extra-negocial (a relação fundamental a que aquele preceito se refere), sendo esta a verdadeira fonte da obrigação. Por isso se inverte o ónus da prova, mediante uma verdadeira relevatio ab onere probandi. Se o declarante ou os seus sucessores alegarem e provarem que semelhante relação não existe (porque o negócio que a promessa de prestação ou o reconhecimento de dívida pressupõem não chegou a constituir-se, porque é nulo ou foi anulado, porque caducou ou os seus efeitos se extinguiram entretanto, etc.), a obrigação cai, não lhe servindo de suporte bastante nem a promessa de cumprimento nem o reconhecimento da dívida[3].
Explicitando o teor de tal norma, afirma Pessoa Jorge:
“Significa este preceito que o credor que disponha de um documento escrito do devedor em que este unilateralmente declara prometer uma prestação ou reconhecer uma dívida, não precisa de provar a causa da obrigação, cuja validade e existência se presume.
Não se está, portanto, em face de um negócio abstracto, mas sim de um acto causal, embora com presunção de causa, presunção que, sendo ilidível, determina a inversão do ónus da prova: não será o credor quem terá de demonstrar a existência e a licitude da causa, mas será sim ao devedor que caberá provar que a prestação que prometeu ou reconheceu não tem causa ou esta é ilícita[4]”.
Segundo Pedro Pais de Vasconcelos[5], do regime deste artigo se retira, desde logo, que, sempre que alguém, por uma declaração unilateral nua, isto é, sem invocação da respectiva causa, reconheça uma dívida ou prometa pagá-la, a procedência da pretensão do respectivo credor não fica prejudicada pela falta de demonstração da sua causa, ficando o devedor onerado com o encargo de demonstrar o contrário, isto é, que a causa não existe, ou cessou, ou é ilícita.
“A um nível mais profundo, pode concluir-se do art. 458º que não são a promessa de cumprimento ou o reconhecimento da dívida, unilaterais e nus, que constituem a fonte ou o fundamento jurídico, isto é, a causa das obrigações a que se referem. As obrigações cujo cumprimento é unilateralmente prometido e as dívidas que são unilateralmente reconhecidas ad nutum foram geradas ou constituídas por uma outra causa, que constituiu o seu fundamento jurídico originário[6]”.
Para explicitar o regime contido no art. 458º CC, José Lebre de Freitas socorre-se da figura da abstracção processual[7], traduzida numa inversão do ónus da prova, baseada no conceito de causa eficiente, isto é, de causa de efeitos jurídicos, a qual coincide com o próprio facto que a dívida resulta:
“Libertar o credor do ónus de provar a relação fundamental significa libertá-lo da prova, que de outro modo lhe competia (C.C., art. 342º-1), do facto constitutivo do seu direito. (…).
Sendo que a inversão do ónus da prova não dispensa o ónus da alegação e que o autor tem de alegar, na petição inicial, a causa de pedir (art. 467º-1-c), o credor que, tendo embora em seu poder um documento em que o devedor reconhece uma dívida ou promete cumpri-la sem indicar o facto que a constituiu, contra ele propuser uma acção, deverá alegar o facto constitutivo do direito de crédito – o que é confirmado pela exigência da forma do art. 458º-2 do C.C., que pressupõe o conhecimento da relação fundamental. Este facto ficará provado por apresentação do documento, isto é, por ilação tirada, nos termos do art. 458º-1 do CC, da declaração representada nesse documento conjugada com a alegação do credor, a qual, ao mesmo tempo que satisfaz uma exigência processual com mera relevância substantiva. Não se verifica, pois, o perigo de a prova se fazer relativamente a qualquer possível causa constitutiva do direito, pois se faz apenas relativamente àquela que for invocada pelo credor[8], e configurando-se assim uma prova por presunção[9]”.
Em conformidade com a referida norma do CC, se deve entender a al. c), do art. 46º do CPC, ao reconhecer como título executivo os documentos particulares assinados pelo devedor que importem a constituição ou o reconhecimento de obrigações pecuniárias cujo montante seja determinado ou determinável por simples cálculo aritmético.
A situação aí prevista em último, de título executivo que incorpore o reconhecimento de uma dívida pré-existente, reporta-se precisamente à promessa de cumprimento ou de reconhecimento de dívida prevista no art. 458º do CC.
Como refere Lopes do Rego estabelece-se expressamente que a força executiva tanto é conferida aos documentos “que incorporem o acto ou negócio constitutivo do débito exequendo, como aos de carácter puramente recognitivo, que envolvam mero reconhecimento pelo devedor de uma obrigação pré-existente[10]”.
E, desde que preencha os requisitos externos de exequibilidade previstos por lei, presume-se a existência do direito que o título corporiza, só susceptível de ser afastada pela prova da inexigibilidade ou inexistência do direito, a alegar e a provar pelo executado em oposição à execução[11].
Contudo, como defende Lebre de Freitas, quando do documento particular não conste a causa da obrigação, “há que distinguir consoante a obrigação a que se reportam emirja ou não dum negócio jurídico formal. No primeiro caso, uma vez que a causa do negócio jurídico é um elemento essencial deste, o documento não constitui título executivo (arts. 221º-1 CC e 223º-1 CC). No segundo caso, porém, a autonomia do título executivo em face da obrigação exequenda e a consideração do regime do reconhecimento da dívida (art. 458º nº1 CC) leva a admiti-lo como título executivo, sem prejuízo da causa da obrigação dever ser invocada no requerimento inicial da execução e poder ser impugnada pelo executado[12]”.
 “Assim, quando a acção executiva se não reconduza a uma relação abstracta – v.g. execução fundada em letra de câmbio ou cheque, títulos que incorporam e definem o próprio direito formal, independentemente e que se destaca da “causa debendi” – mas a uma relação causal, não chega juntar o documento sem indicação da origem da obrigação de pagamento, carecendo o exequente de alegar a causa da obrigação, a fim de o tribunal ficar habilitado a ajuizar da validade da declaração unilateral documentada ou da própria existência do direito em face dos respectivos factos constitutivos, ou, porventura, impeditivos ou extintivos de que lhe seja lícito conhecer[13]”.
Ou seja, tem-se concluído não ser necessário que do título executivo, enquanto documento particular, conste a razão da ordem de pagamento que enuncia, para se poder afirmar que constituiu ou reconhece uma obrigação pecuniária, desde que a causa debendi seja alegada no requerimento inicial da execução[14].
Como se afirma no Acórdão do TRL de 17.12.2009, “o credor, por força do art. 458º do CCivil, apenas está dispensado de provar a relação subjacente, que se presume, mas não de a alegar. Por força dessa presunção deixa de ser necessário que do título executivo conste a causa da obrigação. Desde que, como dissemos, o exequente, no requerimento executivo alegue os factos integrantes da relação subjacente, Continua a caber ao credor a invocação da relação subjacente, cabendo ao devedor, por força da inversão do ónus da prova, provar que a relação nunca existiu ou deixou de existir. Mas para isso tem que saber qual a relação pressuposta pelo credor, sob pena de poder estar perante uma infinidade de causas possíveis[15]”.
Regressando à situação em apreço, e de acordo com os princípios expostos, encontrando-se em causa um documento pelo qual a autora reconheceu dever ao Réu a quantia de 51.750,00, sem indicação do negócio jurídico que lhe deu origem, era à autora que incumbia a demonstração da inexistência de causa debendi.
Contudo, para que a autora se encontrasse habilitada a fazer tal prova, impunha-se, em primeiro lugar, ao réu, a alegação dos factos constitutivos do seu direito de crédito.
Comecemos pelos factos alegados pelo réu como constitutivos do direito de crédito.
Tendo o documento em apreço sido emitido no dia 16 de Junho de 2005, após o divórcio na Conservatória, alega a autora ter assinado o mesmo sob ameaça e que o reconhecimento de dívida nele aposto carece de causa justificativa, alegando em síntese:
· do casamento não existiam bens comuns, pelo que nada havia a partilhar;
· ambos prescindiram de pensão de alimentos;
· o acordo sobre o destino de casa de morada de família, foi o único acordo a ser homologado pelo Conservador (arts. 46º, 47º e 48º, da p.i.).
Ora, vejamos qual a posição assumida pelo R. na sua contestação quanto a tais factos.
O Réu não impugna nenhum dos referidos factos, limitando-se, no art. 64º da sua contestação, a alegar o seguinte:
“No respeitante aos arts. 46º a 49º da p.i., entende o réu com toda a certeza que não correspondem à verdade, pois ambos celebraram o divórcio com a certeza de que alguns pontos da sua vida em comum haviam de ser regulados por instrumento autónomo, como era a vontade dos dois e como acabou por ser feito”.
Ou seja, o réu aceita a inexistência de património comum, que ambos prescindiram da pensão de alimentos e que o acordo sobre a casa de morada de família foi o único a ser homologado pelo conservador. Os únicos pontos que o réu impugna, são as conclusões daí retiradas pela autora, ou seja, “que nada havia a partilhar” e que “a Autora nada deve ao réu”, constantes dos arts. 46º e 49º da p.i.
Aliás, tendo a autora alegado a inexistência de património comum, tratando-se de facto pessoal do R. formulado na negativa, não lhe bastaria afirmar que tal facto não era verdadeiro – impunha-se-lhe que afirmasse que existiam bens e quais.
Por outro lado, da leitura dos articulados da A. e do R., é clara a inexistência de bens comuns – viviam num anexo da casa dos pais da autora e o veículo automóvel, cuja pertença ao património próprio da A. ou do casal é discutida nos autos, e que se provou tratar-se de um bem próprio desta, foi vendido pelo réu quando saiu de casa, em data anterior a Junho de 2005.
Ter-se-á de ter como provada, por acordo, a inexistência de património comum, matéria esta que se aditará à base instrutória, ao abrigo das disposições conjugadas dos arts. 659º, nº3 e 712º, nº1, al. b), do CPC.
         De qualquer modo, a autora não tinha que fazer a prova a inexistência de toda e qualquer possível causa constitutiva do direito do réu, mas tão só, da inexistência da causa alegada pelo réu.
Vejamos, assim, como este fundamenta a existência da dívida reconhecida no documento em causa.
         Segundo a alegação do Réu, e de acordo com as arts. 64º e 65º da sua oposição, “tratava-se do pagamento pela A. dos montantes despendidos pelo réu em diversas situações que a A. é conhecedora e que, por concordar no pagamento, aceitou assinar o documento
Esses montantes referem-se ao articulado nos artigos precedentes”.
Sendo tal alegação essencialmente conclusiva, da leitura dos “artigos precedentes”, apenas se descortina a alegação de dois tipos de despesas.
O primeiro tipo de despesas por si referidas constam dos arts. 13 e 14 da sua contestação, e surgem em resposta a anterior facto alegado pela autora de que “o R. nunca se importou de ser sustentado pela A. e os pais desta, nunca tendo contribuído para o sustento e despesas da casa”, e não propriamente como despesas das quais tivesse de vir a ser compensado em caso de dissolução do casamento.
Em tal contexto, alega o réu ter vendido um veículo Fiat Punto, do qual era proprietário para auxiliar nas despesas inerentes ao período em que a A. esteve sem rendimentos, pelo valor de 6.250,00 €, que teriam sido utilizados da seguinte forma:
1. na compra de um veículo Toyota pelo valor de 2.500,00 €;
2. despesas de  2.500,00 € para construção de um cabeleireiro na casa dos pais da A., recorrendo a mão de obra de amigos e do próprio;
3. o remanescente foi para utilizar durante o período de serviço militar obrigatório.
Contudo, não só o réu não logrou provar nenhum dos factos por si alegados (os pontos 38 a 43, respeitantes a tal matéria obtiveram resposta negativa), como a autora provou que o referido veículo Toyota foi por si comprado, antes de se casar, com os seus rendimentos, e ainda que o R. nunca contribuiu com qualquer quantia para custear as despesas da casa, e que a A. tem pago, sozinha todas as despesas inerentes à casa.
O segundo tipo de despesas consistem nas por si referidas no art. 37º da sua contestação, no qual o réu se refere ao dever da A. “de ressarcir o R. na sua quota parte das despesas e dos investimentos levados a cabo na reconstrução do anexo onde ambos viviam”, enunciando valores que terão sido gastos, em materiais, serviços e electrodomésticos, num total de 62,752,07 €, sem referir, sequer, se foram pagos por si e com os seus rendimentos, na totalidade ou em que parte.
Desde logo, de tal alegação não resulta como se chegaria ao valor de 51.750,00 €, que supostamente a autora ficara a dever ao réu.
De qualquer modo, tendo os referidos factos sido levados à base instrutória, os mesmos obtiveram resposta negativa, na sua totalidade – os pontos 46º a 75º, respeitantes a tal matéria, pura e simplesmente, obtiveram resposta negativa.
Ou seja, o Réu, não só não provou os valores por si alegados, como não provou, sequer, ter contribuído para as alegadas obras, ou que tenha procedido ao pagamento de qualquer um dos trabalhos ou bens por si alegados[16].
E, não só o réu não logrou provar minimamente que tenha dado qualquer contributo para tais obras, como a autora alegou e logrou provar que o R. nunca contribuiu para o sustento do lar[17].
Com efeito, ficou provada a seguinte factualidade:
Na altura em que começaram a viver juntos, A. e R. foram residir num anexo da casa dos pais da Autora.
O Réu nunca contribuiu com qualquer quantia para custear as despesas da casa, tais como alimentação, água e luz.
A A. tem pago, sozinha, todas as despesas inerentes à casa, apenas com o produto do seu trabalho.
Tendo o R. sido sustentado pela A. e pelos pais desta durante o tempo em que cumpriu o serviço militar.
Sendo a A. auxiliada pelos seus pais, trabalhadores agrícolas, fazendo a mãe da A. depósitos na conta de que era titular com aquela.
Em 31 de Março de 2005, o Réu perdeu o emprego, sem ter como se sustentar até receber o subsídio de desemprego.
Nessa altura foi a Autora quem providenciou o seu sustento.
O R. foi igualmente sustentado pela A. e pelos pais desta durante os seis meses em que cumpriu serviço militar.
E, provou-se ainda que, quando saiu de casa, o réu levou consigo o veículo que havia sido comprado pela autora, antes de se casar e com os rendimentos desta (tratando-se, assim, de um bem próprio da autora), e vendeu-o[18], pelo que, da matéria de facto dada como provada ressalta que, se algum crédito houvesse seria a favor da autora e não do réu…
E mais se provou que, aproveitando o seu grande poder de persuasão sobre a autora, o R. “pediu à A. que se encontrasse com ele na Agência de … do Millenium BCP, para que retirasse o seu nome da conta bancária de ambos, a A. acedeu e encontrou-se com o R. no parque de estacionamento em frente ao banco (…) o réu conduziu a A. ao interior da Agência, desistindo esta de ser segunda titular da conta[19]”.
Voltando à questão em apreço, e concluindo, se é certo que a autora não logrou fazer a prova de que assinou o documento sob ameaça do réu, terá logrado demonstrar que a declaração negocial constante do documento denominado de “reconhecimento de dívida” carece de causa debendi.
Com efeito, tendo tal declaração sido assinada na sequência do divórcio entre ambos, a Ré logrou demonstrar a inexistência de qualquer fundamento para a verificação de qualquer “compensação do contributo económico-financeiro que fez durante a sua vivência em conjunto”, a favor do réu, e muito menos, no valor de aí referido, de 51,700 €, o que se retira dos factos dados como provados:
- não havia património comum a partilhar;
- ambos prescindiram de pensão de alimentos;
- o réu nunca contribuiu com qualquer quantia para custear as despesas da casa, tais como alimentação, água e luz, tendo a A. pago sozinha todas as despesas inerentes à casa, apenas com o produto do seu trabalho.
Concluindo:
A existência de um documento pelo qual a autora reconhece ser devedora de um determinado montante ao réu, não o dispensa da alegação dos factos constitutivos de tal crédito, mas tão só do ónus da respectiva prova. 
Os factos alegados pelo réu, sempre seriam insuficientes para justificar o direito de crédito reconhecido a seu favor pelo documento particular em causa.
A autora logrou demonstrar a inexistência da causa debendi, ou seja, de qualquer fundamento para a verificação de qualquer “compensação do contributo económico-financeiro que fez durante a sua vivência em conjunto”, a favor do réu.
A apelação interposta pela Réu será de improceder.


IV – DECISÃO.
 Pelo exposto, os juízes deste tribunal da Relação acordam em julgar a apelação improcedente, confirmando-se a decisão recorrida.
Custas da apelação, a suportar pelo Réu/Apelante.

Lisboa, 31 de Janeiro de 2012

Maria João Areias
Luís Lameiras
Roque Nogueira
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[1] A resposta ao ponto 28 da Base instrutória, ao referir-se “por exigência do autor”, em vez de “por exigência do réu”, contém um manifesto lapso de escrita, que aqui se corrige.
[2] “Código Civil Anotado”, Vol. I, 4ª ed., Coimbra Editora, pag. 440.
[3] Cfr., Antunes Varela, “Das Obrigações em Geral”, Vol. I, 6º ed., Almedina, Pag. 409.
[4] “Direito de Direito das Obrigações”, 1975/76, pags. 219 e 220.
[5] “Teoria Geral do Direito Civil”, 2010 6ª ed., Almedina, pag. 503.
[6] Pedro Pais Vasconcelos, obra e local citados.
[7] Segundo tal autor, a disposição do art. 458º do C.C. nada tem a ver com a figura substantiva do negócio abstracto, nem o conceito de causa nele utilizado se confunde com o de causa do negócio jurídico – na previsão do art. art. 485º do CC, não é apenas a causa do negócio jurídico que não é indicada no acto do reconhecimento, mas todo o negócio de que a obrigação resulte – cfr., “A Confissão no Direito Probatório”, Coimbra Editora, 1991, pag. 390, nota 24.
[8] Como refere tal autor, a assim não ser, ou se entendia a dispensa prevista no art. 485º no sentido de o próprio reconhecimento ou promessa constituir a causa de pedir da acção, o que levaria a configurá-lo como um negócio abstracto de direito substantivo, ou se entendia que a causa de pedir, sendo facto constitutivo da relação fundamental, não teria de ser invocada, em derrogação do art. 467º-1-c do CPC, mas então, sendo elemento do caso julgado que se formasse, tal não impediria o credor de propor nova acção em que pretendesse fazer valer o reconhecimento ou promessa como acro relativo da relação fundamental, sem que lhe pudesse ser oposta a excepção do caso julgado (CPC, art. 498º-1). Nunca ficando o acto de reconhecimento abrangido pelo caso julgado, o único meio de obstar a essa consequência consistirá em entender que, completada a fatispécie negativa com a alegação do credor, este não poderá vir futuramente a alegar outra causa (obra citada, pag. 391, nota 26).
[9] Lebre de Freitas, “A Confissão no Direito Probatório”, pag. 389 a 391.
[10] “Comentários ao Código de Processo Civil”, Vol. I, 2ª ed. – 2004, Almedina, pag. 82.
[11] Como afirma Lebre de Freitas, encontramo-nos perante a figura da presunção de direito: “para além da eficácia própria do documento que o consubstancia, o título executivo constitui base da presunção da existência (e titularidade) da obrigação exequenda e não apenas da existência do facto que a constituiu” – cfr., “A Acção Executiva depois da Reforma da Reforma”, 5ª ed., pag. 74, nota 89.
[12] Cfr., “A Acção Executiva, depois da Reforma da Reforma”, 5ª ed., pag. 62 e 63, e, no mesmo sentido, Ac. STJ de 18.01.2002 e 310.01.2002, in CJ-STJ Ano IX, T1, pag. 71 e 85, e Ac. STJ de 29.01.2002 in CJ-STJ Ano X, T1, pag. 64.
[13] Cfr. Ac. do STJ de 03.07.2002 (nº convencional: JSTJ000) disponível em http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f.
[14] Cfr., neste sentido, entre outros, Ac. STJ de 31.01.20002, in CJ-STJ Ano X, T1, pag. 66 ; Acs. do T. Rel. Porto de 03.07.2003 e 20.02.2003, (ns. convencionais JTRP00036249 e JTRP00034673, respectivamente), Ac. do STJ de 15.09.2001, relatado por Granja da Fonseca, disponíveis em http://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/c3f. Em sentido contrário à tese maioritária na doutrina e na jurisprudência, se pronuncia, porém, Abrantes Geraldes: “Atento o regime prescrito pelo art. 485º do CC e a conexão existente entre o ónus de alegação e o ónus da prova, não descortinamos fundamento para impor ao credor, tanto numa acção declarativa como numa acção executiva, o ónus de invocar a causa da dívida reconhecida, pois só faz sentido impor o ónus de alegação àquele sobre quem recai simultaneamente o ónus da prova. Considerando que a lei, face a uma promessa de cumprimento ou a uma declaração de reconhecimento de dívida, presume a existência da respectiva causa, o credor está desonerado do respectivo ónus de prova (art. 344º, nº1 do CC), logo não faz qualquer sentido impor-lhe o ónus de alegação que, no contexto processual, parece totalmente despiciendo” – “Títulos Executivos”, estudo publicado na THEMIS, Revista da FDUNL, Ano IV-nº7-2003, pag. 63.
[15] Acórdão relatado por Fátima Galante, disponível in http://www.dgsi.pt/jtrl.
[16] Da leitura das respostas à base instrutória ressalta mesmo que, segundo o depoimento da generalidade das testemunhas ouvidas quanto a tal matéria (com excepção da testemunha N... que afirmou que o R. lhe disse que teriam sido custadas por ele próprio), tais obras e o respectivo recheio foram pagas, na íntegra, pelos pais da autora.
[17] Depreende-se das suas alegações de recurso que, na tese do réu, só ficaria provada a inexistência de causa debendi se tivesse ficado a constar expressamente da matéria dada como provada que o R. não contribuiu para a reconstrução do anexo, e não despendeu cada uma das quantias enumeradas uma a uma nos pontos 48 a 75, o que pressuporia que tais pontos tivessem sido levados à base instrutória sob a forma negativa e não o foram. De qualquer modo, da matéria de facto dada como provada e do teor do despacho de fundamentação das respostas à matéria de facto, resulta que os factos dados como provados sob os pontos 19 e 20 – “o réu nunca contribuiu com qualquer quantia para custear as despesas de casa, tais como alimentação, água e luz”, e A A. tem pago, sozinha, todas as despesas inerentes à casa, apenas com o produto do seu trabalho” – abarcam a prova da negação de que o réu tenha contribuído para as obras de reconstrução do anexo ou para a compra de electrodomésticos. Com efeito, e quanto a tal matéria, a autora só não logrou provar que o R. tenha vivido “sempre” a expensas suas – nesta parte, apenas logrou provar que este foi por si sustentado e pelos seus pais durante os seis meses que cumpriu serviço militar e ainda que providenciou pelo seu sustento quando o réu perdeu o emprego e até receber o subsídio de desemprego (o quesito 2º obteve resposta restritiva e o quesito 5º obteve resposta positiva).
[18] Mais uma vez “conseguiu” obter a assinatura da autora para o efeito, assinatura que apôs na declaração de venda “por exigência do réu”.
[19] E, note-se que igualmente se encontra provado que a A. era auxiliada pelos seus pais, fazendo a mãe da A. depósitos na conta de que era titular com aquela (ponto 22 da matéria de facto), pelo que mais se “estranha”, o modo como o réu conseguiu convencer a A. a desistir da titularidade de tal conta.