Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1982/10.0TBSCR.L1-2
Relator: PEDRO MARTINS
Descritores: DOAÇÃO
REVOGAÇÃO
USUCAPIÃO
CONVENÇÃO ANTENUPCIAL
TERCEIROS
VALOR DO BEM
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 01/26/2012
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIAL PROCEDÊNCIA
Sumário: I – Não é possível uma (dupla) aquisição de um direito por quem já é seu titular; o donatário não pode invocar a aquisição por usucapião contra o doador que pretende revogar a doação.
II - A usucapião do direito tem de ter em conta as particularidades do título com base no qual a posse está a ser exercida.
III – É necessária, pelo menos, a presença de ambos os nubentes, como noivos, numa escritura pública de doação para que esta possa ser considerada uma convenção antenupcial, para os efeitos do art. 975/a) do CC.
IV – É impossível restituir um terreno se o donatário alienou parte indeterminada do mesmo ou se nele o donatário fez um edifício.
V – A revogação da doação não afecta terceiros que hajam adquirido, anteriormente à demanda, direitos reais sobre os bens doados, sem prejuízo das regras relativas ao registo (art. 979 do CC), neles se incluindo a hipoteca.
VI – Discute-se, no âmbito do art. 978º/3 do CC, se o valor que o bem tinha ao tempo em que foi alienado é o valor (objectivo) normal de mercado ou se é (se for superior) o valor efectivamente recebido pelo donatário em caso de alienação onerosa (commodum ex negotiatione).
(da responsabilidade do Relator)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa os juízes abaixo assinados:

“A” e mulher “B” (= autores), intentaram, em 23/12/2010, a presente acção contra “C” (= réu) e mulher “D” (= ré), e o Banco “E” SA (= “E”), pedindo que se declare revogada a doação feita pelos autores ao réu titulada na escritura notarial exarada a 28/11/1996, de fls. 14 a 15v do Livro ... do 1º Cartório Notarial (= CN) do ..., do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial (= CRP) de ... sob o nº ...-... (hoje ...-..., por extractação daquela descrição), cancelando-se a inscrição G-2 - ap. 09/... e todas e quaisquer outras inscrições consequentes na dita CRP, que derivem do cancelamento da inscrição da doação inicial e se condenem os réus a entregar imediatamente aos autores o imóvel doado.
Invocaram, para tanto, que em 1996 fizeram ao réu, seu filho e à data solteiro, doação de um prédio com 4550 m2; este destacou deste prédio um outro, com 600 m2 e vendeu metade deste à ré “D”; em 1999, já casados um com o outro, o réu e a mulher doaram aos autores o remanescente do prédio de 4550 m2; em 02/10/2005 o réu ofendeu a inte-gridade física do autor, tendo sido condenado com trânsito a 23/09/2010; com fundamento neste facto e no disposto nos arts. 970, 974, 976 e 2166 do Código Civil (= CC) e 143 do Código Penal (= CP), os autores querem revogar a doação feita em 1996. A acção é dirigida também contra o “E” porque sobre o prédio de 600 m2 está constituída uma hipoteca a favor do “E” e, segundo os autores, a anulação (sic) da doação arrasta, necessaria-mente, a revogação dos actos subsequentes: a venda, hipoteca e doação feita pelos réus.
Os réus “C” e “D” contestaram, impugnando parte dos factos alegados pelos autores, e excepcionando (embora sem tal qualificação) com (a) o facto de a doação em causa ser uma doação para casamento, pelo que seria insusceptível de revogação (art. 975º do CC); (b) com os antecedentes da agressão, dizendo que desde 2001/2002 são vítimas dos “maus fígados” do autor; e (c) com a impossibilidade física da restituição do bem doado, por nele ter sido construída a casa dos réus e acessos para a mesma. Concluem pela improcedência da acção.
O “E” também contestou, impugnando, quer contradizendo par-te dos factos – por desconhecimento – quer afirmando que os factos articu-lados não podiam produzir o efeito pretendido pelos autores: a revogação é um acto livre, discricionário e não retroactivo de extinção das situações jurídicas, a qual opera apenas para o futuro (a partir da data da proposição da acção (art. 978º/1 do CC), não afectando terceiros que hajam adquirido, anteriormente à demanda, direitos reais sobre os bens doados, sem prejuízo das regras relativas ao registo (art. 979º do CC), o que significa que os direitos reais que tenham sido constituídos por terceiro anteriormente à propositura da acção de revogação da doação e que se mostrem devidamente registados antes do registo da acção, como é o caso da referida hipoteca a favor do “E”, têm que ser respeitados pelo doador. Assim, no caso de ser declarada a revogação da doação, os doadores, para reaverem o bem doado sobre o qual incide a referida hipoteca, têm que proceder previamente à expurgação desta, por tal regime lhes ser legalmente aplicável (cfr. arts. 721 e 722º do CC). Assim, o peticionado pelos autores é contraditório e improcedente em face da respectiva causa de pedir, posto que, em face desta, a doação não é anulada, mas sim objecto de revogação, nem esta arrasta a revogação dos actos subsequentes validamente registados, e concretamente a hipoteca em causa, nem o cancelamento da todas e quaisquer inscrições e muito menos ainda implica a imediata entrega do imóvel doado; e excepcionando com a usucapião (art. 1294/1 do CC) do prédio dos 600 m2 pelos outros réus, por estes o virem possuindo como donos, com título registado e de boa fé, pelo menos desde 02/12/1997 (há, por isso, mais de 10 anos), bem como com a acessão industrial imobiliária (art. 1340 do CC), pois que a moradia que os outros réus construíram nesse prédio vale muito mais que este e os réus a construíram de boa fé, porque autorizados pelos autores, e com ela modificaram, quase totalmente, o destino económico do conjunto em causa, tornando inclusivamente, na prática, impossível o cumprimento do princípio de que a coisa doada deve ser restituída no estado em que se encontrava ao tempo da aceitação, excepções que entende poder invocar em defesa dos seus legítimos interesses, nos termos do disposto nos art. 1287º e seguintes e 1316º e seguintes do CC, e ao abrigo do disposto no art. 26º, nºs 1 e 2, segundas partes, do CPC; conclui pela improcedência da acção, por inviabilidade ou devido à procedência das excepções deduzidas.
Os autores replicaram, impugnando; quanto à primeira excepção deduzida pelos réus, lembram que as doações para casamento só podem ser feitas na convenção antenupcial, nos termos do art. 1756º/1 do CC e que a inobservância deste requisito de forma leva à inaplicabilidade do regime especial das doações para casamento (n.º 2 do mesmo art.) Ora, a doação em causa não foi feita em convenção antenupcial; quanto à impossibilidade da restituição, os autores dizem que os donatários (sic) não alienaram (sic) o prédio doado, nem há nada que impeça a restituição em espécie do prédio, que ainda se encontra na titularidade do donatário (sic); o prédio doado pode ser restituído no estado em que se encontra, até porque a construção não está paga e os autores, quando receberem o prédio terão de proceder à expurgação da hipoteca que sobre ele existe; sendo certo que a hipoteca está registada pelo valor de 67.686,87€; o que quer dizer que, na hipótese de se considerar que a restituição não é possível, então os réus donatários (sic) terão de entregar aos autores o valor do prédio na data em que procederam à construção da casa e o hipotecaram; ora, entendem os autores que a parcela de 600 m2 do prédio doado, tinha à data dessa construção, finais de 1998, o valor de 70.000€; pelo que, formulam um pedido subsidiário: não sendo possível aos réus “C” e “D” a entrega em espécie do imóvel doado, então que sejam os mesmos condenados a pagar aos autores 70.000€; excepcionam, depois, a ilegitimidade do “E” para invocar a usucapião: a hipoteca não seria um direito real; a expurgação seria um direito dos doadores e não um dever dos mesmos; o “E” não se poderia sub-rogar aos donatários porque tal sub-rogação não seria essencial à satisfação do seu direito e de resto o direito de crédito do “E” ainda não se tinha vencido; a faculdade de invocar a usucapião – como de resto também a acessão industrial imobiliária - pertence aos possuidores e não a um credor; excepciona, ainda, a interrupção do prazo de usucapião: a queixa-crime – que ocorreu a 18/10/2005 (segundo documento que junta) - pelo facto que deu origem à condenação do réu serviria de causa de interrupção do prazo de usucapião (arts. 323 e 1292, ambos do CC), pois que exprime, indirectamente, a intenção do autor exercer o direito de revogação; ora, o réu foi constituído arguido em Outubro de 2005, “termos em que tomou conhecimento da intenção dos autores” (sic); e impugna a possibilidade da usucapião, no caso, pois que tal equivaleria a estabelecer uma limitação temporal ao exercício do direito da revogação, o que não pode ser pois que esta apenas está sujeita à caducidade prevista no art. 976º/1 do CC; acresce que o título da aquisição foi uma doação, pelo que a revogação teria que estar sujeita ao regime das doações; conclui pela improcedência das excepções.
Os réus “C” e “D” treplicaram, para impugnar o valor atribuído ao terreno (no pedido subsidiário) e que ele devesse ser calculado reportado à data de 1998, devendo ser antes reportado à data da doação: 1996.
No despacho saneador considerou-se possível conhecer desde logo do pedido formulado pelos autores, pelo que foi proferida sentença, onde, depois de se darem como assentes alguns factos (que serão referidos abaixo), se julgou a acção improcedente e se absolveram os réus do pedido.
A fundamentação para tal foi a seguinte [a numeração dos §§ foi coloca-da agora, para referenciação posterior mais simples]:
§1 “A matéria da usucapião invocada pelo “E” não foi impugnada pelos autores na sua réplica, daí ter sido dada como assente. Ao invés de impugnarem tal matéria, aqueles limitaram-se a invocar a ilegitimidade desta instituição financeira para invocar tal excepção peremptória.
§2 Mas, sem razão, no nosso entender. Com efeito, detendo o “E” uma garantia sobre a parcela de terreno objecto destes autos - consubstanciada numa hipoteca - para pagamento de um empréstimo concedido aos réus, que pode ser afectada com a declaração de nulidade da doação feita a favor dos réus, e necessitando de preservar tal garantia, teremos necessariamente de reconhecer à referida instituição legitimidade para invocar a usucapião a favor dos réus, que […] não o fizeram. Na verdade, o art. 1292º do CC manda aplicar a este modo de aquisição dos direitos reais de gozo a regra do art. 305º do CC, sobre o instituto prescricional, onde se estabelece que a prescrição é invocável por terceiros com legítimo interesse na sua declaração (cfr. ac. do STJ de 09/12/2008 (08A3580 [da base de dados do ITIJ]). E, como já dissemos, o “E” é um terceiro e tem interesse em manter a propriedade da parcela de terreno na titularidade dos réus, sob pena de perder a sua garantia pelo pagamento do empréstimo que concedeu a estes.
§3 Ora, assente a legitimidade do “E” invocar a usucapião a favor dos réus, importa agora conhecer de tal instituto e as suas consequências no pedido formulado pelos autores.
§4 Da matéria dada como provada resulta que os réus “C” […] e mulher […] são proprietários do prédio objecto desta acção, pois além do mais, adquiriram-no, por usucapião. Com efeito, apurou-se que aqueles, desde o registo da aquisição desse prédio em 1998 até à data da entrada em juízo desta acção (Dezembro de 2010), logo, durante mais de 10 anos, estiveram na posse desse mesmo prédio, que habitam, à vista de toda a gente, sem oposição de quem quer que seja, como se fossem seus proprietários, tendo-o adquirido, consequentemente, por usucapião, conforme disposto nos artigos 1287º e 1294º/a), ambos do CC.
§5 A procedência desta excepção peremptória implica neces-sariamente a improcedência dos pedidos deduzidos pelos autores, incluindo o pedido subsidiário deduzido na réplica.
§6 Importa por fim referir que a presente acção estava desti-nada ao insucesso desde o seu início relativamente à ré mulher, porque, em primeiro lugar, esta não foi beneficiária de qualquer doação por parte dos autores, como os mesmos afirmam, não po-dendo por isso os pedidos procederem quanto a si com o funda-mento de revogação de doação invocada pelos autores, e em segun-do lugar, porque a referida ré adquiriu metade do prédio objecto desta acção por compra, tendo registado tal aquisição em 1998, pelo que sempre seria considerada terceira para efeitos de boa fé, nos termos do art. 291º do CC, sendo certo ainda que a presunção de titularidade propriedade desta ré, proveniente do disposto no art. 7º, do Código de Registo Predial, não foi posta em causa de qual-quer forma pelos autores.”
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Os autores interpuseram recurso deste saneador-sentença – para que seja revogado e substituído por outro que determine a procedência da acção ou ordene o prosseguimento dos autos -, terminando as suas alegações com as conclusões que aqui se sintetizam assim:
1ª A decisão recorrida desconsiderou o alegado pelos autores na réplica quanto à impossibilidade de usucapião por força do regime da revogação das doações e quanto à interrupção do prazo da usucapião, padecendo assim do vício de nulidade em conformidade com o disposto no art. 668º/1d) do CPC.
2ª Deveriam ter sido dados como factos assentes a propositura da queixa-crime em 18/10/2005 e o conhecimento judicial da mesma pelo réu “C” ainda no decurso de Outubro de 2005 (= 5 dias após a data da apresentação da queixa-crime em juízo). A não se entender assim, tais facto deviam ter sido levados à base instrutória, pelo que a decisão recorrida violou o disposto nos arts 511º, 510º/1b) e 508º-B, todos do CPC.
3ª O prazo da usucapião interrompeu-se [arts. 323º/2, 1292 e 1294c), todos do CC], porquanto o exercício do direito necessário ao accionamento da revogação da doação foi levado ao conhecimento do obrigado por via judicial, citado (sic) que foi o réu “C” da queixa-crime em Outubro de 2005, portanto, antes de perfeitos os 10 anos contados do título de aquisição (escritura pública de 28/11/96) e do registo deste (13/01/97), tanto mais que, em conformidade com o disposto no art. 2166º ex vi do art. 974º ambos do CC, a propositura de procedimento criminal e condenação pela prática do crime doloso referenciado – sendo que esta não existe sem a outra – é condição sine qua non para o exercício do direito à revogação da doação, é uma manifestação da intenção do lesado de exercer esse direito. Acresce que tal citação, atento o prescrito na alínea a) do art. 481º do CPC, fez cessar a boa-fé do possuidor, o réu “C”.
4ª A possibilidade de usucapião, nestes casos, implicaria impor um limite temporal à revogação da doação por ingratidão diverso do previsto no art. 976º do CC, entendimento que, além de chocante para a consciência jurídica e justiça material, a lei não acolhe nem permite.
5ª Tendo os réus adquirido o prédio objecto dos presentes autos em consequência da doação feita pelo autor, a respectiva revogação ter-se-á que sujeitar ao regime das doações que, assim, impõe que, uma vez respeitados os prazos constantes do art. 976º, o doador possa interromper o prazo da usucapião pelo exercício do direito de queixa, condição ao início do procedimento criminal e posterior condenação do donatário, imposto pelas disposições conjugadas dos arts 2166º e 974º, ambos do CC.
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Não foram apresentadas contra-alegações.
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Questões que cumpre solucionar: se o saneador-sentença enferma da nulidade que lhe é imputada; se o saneador-sentença podia ter decidido que os réus tinham adquirido o prédio por usucapião e que a acção, no que respeita à ré mulher, não podia proceder.
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Factos dados como assentes no saneador-sentença:
A) Os autores tinham adquirido nos anos 60 uma porção de terreno com uma casa de habitação com a área de 4550 m2, no Sítio ..., freguesia e concelho de ....
B) Como, apesar dos esforços feitos, não encontraram o título de compra deste prédio, outorgaram escritura de justificação notarial da sua propriedade exarada a 28/11/1996 de fls. 14 a 15V. do Livro ... do 1º CN do ..., dando origem ao prédio descrito na CRP sob o n.º ... – ... (hoje descrito sob o n.º ... por extractação daquela descrição).
C) Através dessa mesma escritura, os autores doaram ao seu filho, réu “C”, a totalidade daquele prédio, que assim ficou inscrito em seu nome na CRP pela inscrição G-2 – Ap.09/....
D) Já proprietário do prédio A), o réu “C” vendeu, através de escritura exarada no dia 02/12/1997 de fls.15 a 17 do Livro 276-B do 2º CN do ..., metade de uma porção de terreno com a área de 600 m2, a destacar do prédio, à ré “D”, hoje sua mulher, e constituíram hipoteca sobre a referida porção de terreno a favor do “E”, a qual ficou registada na mesma CRP pela inscrição C-1 – Ap. 01/....
E) [= ex-J)] Esta porção de terreno com 600 m2, foi efectivamente destacada do prédio A) e deu origem ao prédio descrito na CRP sob o n.º 1647 – ... – e aí inscrito a favor dos réus “C” e “D”, pela inscrição G-1 – Ap. 8 de 1998/09/30.
F) A 19/05/1999, através de escritura pública lavrada a fls. 7 a 8 do Livro 300-C do 3º CN do ..., o réu “C”, com a autorização da sua então já cônjuge, a ré “D”, doou aos seus pais, o remanescente do prédio A), agora com menos 600 m2, doação que ficou registada naquela CRP pela inscrição G-3 – Ap. 01/....
G) Em 02/10/2005, o réu “C” desferiu no autor, seu pai, 2 socos na face do lado direito e um pontapé no braço esquerdo e outro na perna direita, tendo sido condenado pela prática de um crime de ofensa à integridade física simples quanto ao autor, em sentença proferida no processo n.º 494/05.8PBSCR que correu os seus termos no 2º juízo do Tribunal Judicial de ....
H) Esta sentença transitou em julgado a 23/09/2010.
I) O prédio E) há mais de 10 anos que se encontra na posse dos réus, que o vêm habitando e fruindo em todas as suas utilidades, em nome próprio, exclusivo de forma efectiva, de forma ininterrupta e sem oposição de ninguém, à vista de toda a gente e sobretudo dos autores que residem apenas a 50 m da casa daqueles e partilham o caminho de acesso às respectivas casas.
A estes factos acrescenta-se – ao abrigo do disposto nos arts. 659º/3 e 713º/2, ambos do CPC - o seguinte por estar também admitido por acordo (como resulta, entre o mais, da réplica dos autores à contestação do “E”) e interessar às questões colocadas que cumpre conhecer:
J) Sobre o prédio E) está construída uma moradia pelos réus “C” e “D”.
I
Da nulidade (conclusão 1ª do recurso)
É nula a sentença quando, entre outros casos, o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar [art. 668/1d) do CPC].
As questões são os pedidos, as causas de pedir e as excepções deduzidas, não os fundamentos ou argumentos utilizados para os demonstrar (Lebre de Freitas, Montalvão Machado e Rui Pinto, CPC anotado, vol. 2º, Coimbra Editora, 2ª edição, 2008, págs. 679/680 e 704).
Assim, o saneador-sentença não tinha que decidir nada quanto à impossibilidade da usucapião (fundamentação que será apreciada mais à frente), pois que se trata de um fundamento de impugnação, não de uma questão decorrente de uma excepção.
Mas já se tinha que pronunciar sobre a excepção da interrupção da usucapião. Não o fazendo, incorreu na nulidade que lhe é imputada [art. 668/1d) do CPC], nulidade que terá de ser suprida aqui (art. 715º/1 do CPC - Lebre de Freitas e Ribeiro Mendes, CPC anotado, vol. 3º, tomo I, Coimbra Editora, 2ª edição, 2008, pág. 131) se for de manter a decisão quanto à questão da usucapião.
II
A improcedência com base na usucapião
(conclusões 4ª e 5ª do recurso)
Da impossibilidade lógica da dupla aquisição
Depois de nos três primeiros parágrafos o saneador-sentença ter afastado a excepção da ilegitimidade do “E” para invocar a usucapião, com o que os autores terão concordado, já que não recorrem dessa parte da decisão, o saneador-sentença trata, no §4, a questão da usucapião, dizendo, com o “E”, que os réus adquiriram o prédio, além do mais, por usucapião, pois que, desde o registo da aquisição, estiveram na sua posse durante os 10 anos exigidos, no caso, para tal.
Com este fundamento da improcedência da acção, a sentença está a admitir aquilo que é comummente recusado. Ou seja, que alguém possa adquirir uma coisa de que já é proprietário. Segundo José Alberto C. Vieira, Direitos Reais, Coimbra Editora, 2008, pág. 432: “Afigura-se evidente que a usucapião não tem, nestes casos, o efeito de um facto constitutivo, o que implicaria uma aquisição dupla do mesmo direito por quem já é seu titular, uma redundância lógica e substancial exprimida pela máxima “neque enim amplius quan semel res mea esse potest”.
Neste mesmo sentido, dizem Pires de Lima, Antunes Varela e Henrique Mesquita,, CC anotado, vol. III, 2ª ed., Coimbra Editora, 1984, em anotação ao art. 1294, pág. 75: “O registo a que o artigo se refere, uma vez que está em causa a usucapião de imóveis, é o previsto no art. 2 do CRP; é o registo do facto jurídico que titula a aquisição do direito. Se do título resulta a aquisição do direito, a usucapião é naturalmente irrelevante. No caso em que o título é inválido, entra em actuação a eficácia da posse”.
Quando se admite que um possuidor causal (“aquele que é simultaneamente titular do direito real a que a posse se reporta” – José Alberto Vieira, obra citada, pág. 565) invoque a usucapião, tem-se em vista ou a função consolidativa da usucapião, nas situações em que ela é invocada contra um terceiro de boa fé que beneficia de um registo, ou a função probatória da usucapião, destinada a facilitar a prova – dita diabólica – da propriedade. Ou seja, não se pretende dizer que aquele que pode invocar (cumular) dois títulos de aquisição (no caso, o contrato de doação e a usucapião), adquire a coisa por duas vezes: primeiro por doação, depois por usucapião.
Como diz José Alberto Vieira, obra citada, págs. 430/431: “A usucapião desempenha, em primeiro lugar, uma importante função consolidativa da situação fáctica em que as coisas se encontram sempre que o possuidor usucapiente não é o titular do direito a que a posse se reporta.
[…]
Este papel regulador da usucapião, resultante da sua função consolidativa, confere-lhe uma eficácia que se sobrepõe mesmo à protecção registal de terceiro de boa fé. A consolidação pela usucapião é definitiva e prevalece mesmo contra tabulas, quer dizer, contra quem quer que seja. Neste caso, a função consolidativa não beneficia apenas o possuidor formal; também o possuidor causal tira proveito dela.
[…] A outra função da usucapião é probatória. Como vimos, a usucapião pode ser invocada mesmo por um possuidor causal, isto é, por alguém que já é titular do direito real por força de outro qualquer facto aquisitivo.
Neste caso, a usucapião tem uma função probatória, permitindo ao possuidor titular do direito real de gozo provar este por um facto jurídico diverso daquele através do qual adquiriu”.
Assim, não tem razão de ser a invocação pelo donatário, da usucapião, contra o doador, quando este vem pedir a revogação da doação, não discutindo este que, com a doação, a propriedade se transferiu para o donatário. Sendo válida a doação, o donatário não adquire nada pela usucapião (sendo esta, nesta hipótese, irrelevante, como se diz na passagem citada acima).
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Do titulo da propriedade
Mas se se aceitasse a força constitutiva da usucapião, nestes casos, ter-se-ia que ter em conta o seguinte:
O réu era proprietário do prédio com base num título: a doação que lhe foi feita pelos pais. É este título que justifica o âmbito do direito que ele tem.
Como diz Oliveira Ascensão, Reais, 5ª edição, Coimbra Editora, 1993, pág. 320/321: “Título de uma situação jurídica é o facto simples ou complexo que molda o direito na sua realidade concreta. […] Este é o título do direito, no seu sentido técnico (muito diverso do sentido do documento, que também se usa com frequência). A diversidade de título explica que direitos do mesmo tipo tenham em concreto âmbito e solidez distintos. […] Também o direito real se rege pelo título, como não pode deixar de ser, e é aliás genericamente reconhecido”
Ora, a usucapião do direito não poderia deixar de ter em conta as particularidades do título com base no qual a posse está a ser exercida, a não ser que o possuidor o tivesse passado a exercer de outro modo, “invertendo” o título da posse. Pelo que, sem esta “inversão”, a usucapião do prédio não poderia deixar de ter sido a usucapião da titularidade de um direito sujeito ao exercício da revogação por parte do doador.
Parafraseando Carvalho Fernandes (Lições de Direitos Reais, Quid Juris, 1996, pág. 207), embora a outro propósito, dir-se-ia que aqui “o possuidor actuava como um proprietário onerado” e não “como um proprietário livre”. Ou, com Menezes Cordeiro, Direitos Reais, Reprint, Lex, 1993, pág. 477, dir-se-ia que a posse era exercida com a aludida restrição, pelo que o direito se constituía com a oneração em causa.
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Da extensão da posse
Ainda de outro modo, poderá ver-se a possibilidade da revogação da doação, que é uma das particularidades do regime das doações, como um direito que onera a propriedade. E a posse exercida pelo réu como uma posse de uma propriedade onerada por essa faculdade. Pelo que aquilo que ele adquiriria pela usucapião seria uma propriedade onerada pela possibilidade de revogação. Com as devidas adaptações, dir-se-ia, com José Alberto Vieira, obra citada, pág. 408: “Porquanto a usucapião tem a extensão da posse exercida, apenas permitindo a aquisição do direito a que ela se refere, a sua eficácia ocorre nos precisos termos da posse. Se esta se exterioriza como uma propriedade onerada, o direito é usucapido nos termos da posse exercida”.
Pelo que o réu só poderia usucapir uma propriedade não susceptível de revogação se tivesse passado a exercer a posse como se fosse a posse de um direito sem possibilidade de revogação. E o prazo da duração da posse, para efeitos da usucapião, só se iniciaria a partir do momento em que a posse passasse a ser exercida desse modo, momento que teria de ter sido alegado.
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A usucapião não é causa de extinção do direito de revogação
Para que o direito de revogação da doação deixasse de existir, pela usucapião do direito de propriedade sobre a coisa doada teria que existir uma norma jurídica que dissesse que a doação deixava se ser revogável por ingratidão a partir do momento em que tivesse decorrido o prazo de usucapião da coisa seu objecto, ou uma norma que dissesse que o prazo de usucapião corria mesmo contra um título sujeito a revogação.
Mas essa norma não existe.
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Aliás, se não fosse assim, a possibilidade de revogação das doa-ções, ou o regime do ónus da colação – arts. 2103 e seguintes do CC: a res-tituição à massa da herança, para igualação da partilha, dos bens ou valores que foram doados - ou o da redução das liberalidades por inoficiosidade: arts. 2168 e segs do CC - , que também funcionam como causas de extinção da doações, não tinham quase eficácia prática, pois que só funcionavam enquanto não tivesse decorrido o prazo de usucapião (que pode ser muito curto), prazo que normalmente já teria decorrido quando fosse de fazer funcionar estes “ónus” dada a natureza das situações em causa.
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Quanto à redução por inoficiosidade, um lugar paralelo invocável (art. 8º/3 do CC), existe um argumento de autoridade.
Diz Menezes Leitão, Dtº das Obrigações, Almedina, 3ª edição, vol. III; 2005, pág. 237: “a acção de redução de liberalidade [in]oficiosas caduca no prazo de dois anos a contar da aceitação da herança pelo herdeiro legitimário (art. 2178º do CC). Uma vez que o direito de redução só pode ser exercido a partir da data da aceitação da herança, é irrelevante que o donatário tenha possuído as coisas doadas pelo tempo necessário à usucapião antes desse momento, dado que tal não constitui causa de extinção desse direito.”
Ou seja, a usucapião não constitui causa de extinção do direito de redução das doações, nem… do “ónus” da colação, nem… da revogação das doações.
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Conclui-se assim, que a usucapião não podia ser invocada como causa de aquisição do direito de propriedade dos réus e por isso a excepção peremptória invocada devia ter improcedido.
E com isto fica prejudicada a apreciação da questão da interrupção do prazo da usucapião (3ª conclusão sintetizada do recurso dos autores), bem como, adiante-se desde já, os argumentos constantes da 2ª conclusão relativa aos factos necessários à apreciação desta questão.
III
Da improcedência da acção contra a mulher
Quanto ao outro fundamento da improcedência, este relativo só à ré mulher, ele baseia-se em três argumentos (constantes do 6º§ do saneador-sentença): a ré não ser donatária; a ré ter comprado metade do prédio e ter direito à protecção prevista para os terceiros; a presunção de que a ré é proprietária decorrente do registo da compra não foi impugnada.
Contra este fundamento do saneador-sentença nada foi dito no recurso dos autores.
E no essencial parece evidente a procedência do mesmo:
1º Como o donatário é o réu e não a ré, os autores não podem pedir a condenação dela a restituir o prédio apenas com base na revogação da doação. A petição, quanto a ela, era manifestamente inepta, por falta de causa de pedir [art. 193/2b) do CPC].
2º Como a ré comprou metade do prédio que é, objectivamente, o que se pretende obter de volta, ela é terceiro em relação ao contrato que liga os autores aos réus e merece a protecção respectiva. Essa protecção está prevista no art. 979º do CC (e não no art. 291º do CC, como já decorria da contestação do “E”), que diz que “a revogação da doação não afecta terceiros que hajam adquirido, anteriormente à demanda, direitos reais sobre os bens doados, sem prejuízo das regras do registo […].”
3º Como a ré tem o registo de tal compra e tal registo faz presumir que ela é proprietária (art. 7º do CRP), presunção que não foi impugnada, ela não pode ser condenada a restituir o prédio.
Assim, como diz o saneador-sentença a acção estava destinada ao insucesso desde o seu início relativamente à ré mulher, justificando-se, por isso, a sua absolvição do pedido.
E contra esta conclusão não pode ser invocado o facto de os autores terem, entretanto, formulado um pedido subsidiário, já que este se traduz em pedir a restituição do valor do prédio em vez do prédio, nada se alterando quanto aos fundamentos da absolvição da ré mulher.
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IV
Da substituição do tribunal recorrido por este tribunal de recurso
Chegados aqui, pode-se concluir que o saneador-sentença não teve razão em julgar a acção improcedente contra o réu “C” e contra o “E”, mas teve razão em a julgar improcedente relativamente à ré “D”.
A consequência disto é a de que o recurso deve em parte ser julgado procedente e o processo deve prosseguir para apreciação da acção contra os réus “C” e “E”.
Prosseguimento que cabe a este tribunal de recurso enquanto tiver os elementos necessários para o efeito (art. 715º/2 do CPC - veja-se sobre estes poderes, apenas por exemplo e por último, Rui Pinto, As proibições de reformationes in melius e in peius: sentido e limites. Algumas questões, em As recentes reformas na acção executiva e nos recursos, Coimbra Editora, 2010, págs. 111/142, espec. págs. 121/122 e 126, e Abrantes Geraldes, Cassação ou Substituição, na mesma obra, págs.163 a 181; para além de Lebre de Freitas e Ribeiro Mendes, obra citada, em anotação ao art. 715 do CPC) sem, no caso, necessidade de ouvir as partes sobre as questões levantadas, porque todas já se pronunciaram expressamente sobre elas e não há qualquer risco de decisões-surpresa (e é a evitar este risco que destina o contraditório).
Posto isto:
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Da revogação das doações por ingratidão
A doação pode ser revogada?
É o artigo 970 do CC que regula qual o fundamento possível da revogação das doações: por ingratidão do donatário.
O art. 974 do CC concretiza os casos de ingratidão.
O único caso que está em causa nos autos é o previsto no art. 2166/a) do CC, uma das ocorrências que justificam a deserdação: a condenação por um crime doloso contra a pessoa do doador punível em abstracto com pena superior a 6 anos.
Verificados estes pressupostos, como se verificam, o doador pode pedir a revogação da doação, vontade que assim não é discricionária e que no caso dos autos os doadores manifestaram (sobre tudo isto, veja-se o estudo de Nuno Manuel Pinto de Oliveira, citado, págs. 154 a 162)
Verificados estes pressupostos a doação é revogável, não interessando os antecedentes do facto que levou à condenação do donatário, pelo que é irrelevante o que os réus dizem a este propósito.
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Revogável mas através de uma acção judicial (art. 978º do CC) – é pois a sentença que revoga a doação, não o doador. Trata-se de uma acção constitutiva [art. 4/2c) do CPC]. Visto que as acções constitutivas são uma espécie das acções declarativas, a fórmula do pedido empregue pelos autores – que o tribunal declare a resolução – corresponde a um pedido de revogação pelo tribunal, tanto mais que os autores na petição não dizem ter revogado a doação, mas que querem que ela seja revogada.
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Doações para casamento
Os réus excepcionaram a irrevogabilidade desta doação, por ser uma doação para casamento [art. 975º/a) do CC], mas os autores replicaram, bem, que para que fosse aplicável essa causa de exclusão da revogação, a doação teria de constar de convenção antenupcial (art. 1756º/1 do CC), o que não é o caso, tanto mais que, acrescenta-se, com Antunes Varela, CC anotado, vol. IV, 2ª ed, Coimbra Editora, 1992, pág. 469, seria necessária a intervenção de ambos os réus “C” e “D” na escritura de doação e a expressa referência a casamento como causa da doação (Menezes Leitão, Dtº das Obrigações, 3ª ed, Almedina, 2005, pág. 216, parece bastar-se com que os nubentes figurem na escritura de doação como noivos, o que também não acontece no caso, pois que a ré nem sequer interveio na escritura). Assim, aplica-se o regime geral das doações, o que excluía a sua irrevogabilidade (Menezes Leitão, obra citada, pág. 229).
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Dos efeitos da revogação
Os réus excepcionaram com a impossibilidade física da restituição do bem doado, por nele ter sido construída a casa dos réus e acessos para a mesma. O “E” invocou o regime da revogação das doações na contestação e as normas que protegem os terceiros. Os autores responderam a todas estas questões.
O regime dos efeitos da revogação das doações consta dos arts. 978 e 979 do CC e destas normas resultam algumas normas com relevo para o caso dos autos:
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Da impossibilidade de restituição
Desde logo, uma dessas regras é a de que se os bens doados tiverem sido alienados ou não poderem ser restituídos em espécie por outra causa imputável ao donatário, o donatário [se a doação for revogada] entregará ao doador, não os bens, mas os valores que estes tinham ao tempo em que foram alienados ou se verificou a impossibilidade de restituição, acrescido dos juros legais a contar da proposição da acção (art. 978º/3 do CC).
Ora, tendo o réu, depois da doação de 28/11/1996 destacado do prédio doado um outro com 600 m2, vendido metade deste à sua futura mulher, constituído e registado sobre ele uma hipoteca a favor do “E”, construído uma casa sobre esse novo prédio e doado a parte sobrante do prédio antigo aos autores, é evidente que o mesmo já não pode ser restituído em espécie, por causa imputável ao réu, pelo que os autores nunca teriam direito à restituição do prédio, mas a apenas ao valor do mesmo.
Assim, quer pela venda de uma parte indeterminada do prédio, quer pela construção de uma casa no prédio, a restituição tornou-se impossível (quanto à impossibilidade decorrente da construção, veja-se Nuno Manuel Pinto Oliveira, Revogação das Doações, Scientia ivridica, Nº 290 - Maio-Agosto de 2001, tomo L, págs. 172 a 173, que refere a posição de “Helmut Kollhosser – raciocinando no contexto do nº. 2 do § 531 do BGB, em termos todavia susceptíveis de transposição para o sistema jurídico português – equipara dois tipos de casos à impossibilidade de restituição em espécie: em primeiro lugar, os casos em que o donatário construiu um edifício no imóvel doado ou alterou um edifício construído tão substancialmente que este se tornou, em termos económicos, um objecto diferente (alteração de função) […]”).
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Dos efeitos da revogação em relação a terceiros
Quanto aos efeitos em relação a terceiros, diz o art. 979 do CC que a revogação da doação não afecta terceiros que hajam adquirido, anteriormente à demanda, direitos reais sobre os bens doados, sem prejuízo das regras relativas ao registo; neste caso, porém, o donatário indemnizará o doador”.
Quer isto dizer que a revogação da doação feita em 28/11/1996, não afecta a venda feita pelo réu à ré mulher, nem a constituição a favor do “E” de uma hipoteca, nem mesmo a doação feita pelo réu aos próprios autores, já que todos estes actos estão registados (e muito antes da propositura da acção) e a acção nunca chegou a ser registada (e se fosse agora, tal registo seria necessariamente posterior ao registo daqueles actos) – neste sentido, principalmente quanto à ressalva das regras do registo, veja-se de novo o estudo de Nuno Manuel Pinto de Oliveira, págs. 173 a 177, tendo ainda em conta as regras do art. 6 do CRP e 271º/3 do CPC; no mesmo sentido, veja-se ainda Maria Clara Sottomayor, Invalidade e Registo A Protecção do Terceiro Adquirente de Boa Fé, Almedina, Teses de Doutoramento, Junho de 2010, pág. 308, dizendo que os terceiros que adquirem, antes da propositura da acção, estão sempre protegidos dos efeitos da revogação – adquirem um direito inatacável -, excepto se, tratando-se de bem sujeito a registo, registaram a sua aquisição apenas após o registo da acção; e Pedro Romano Martinez, Da cessação do contrato, 2ª edição, Almedina, 2006, págs. 297/299).
E os autores não têm qualquer razão quando negam à hipoteca o carácter de direito real. De resto, é exactamente por ela ser um direito real de garantia (Pires de Lima e Antunes Varela, CC anotado, vol. II, 4ª edição, Coimbra Editora, 1997, pág. 283; Oliveira Ascensão, obra citada, 545/546; José Alberto Vieira, obra citada, págs. 324 e 325; L. Miguel Pestana de Vasconcelos, Direito das Garantias, Almedina, 2011, pág. 187) e ficar salvaguardada por aquela norma, que depois o art. 722º do CC vem dar aos doadores (se tiver havido restituição da coisa) o poder de expurgar a hipoteca: “O direito de expurgação é extensivo ao doador ou aos seus herdeiros, relativamente aos bens hipotecados pelo donatário que venham ao poder daqueles em consequência da revogação da liberalidade por ingratidão do donatário, ou da sua redução por inoficiosidade.”.
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Quer isto tudo dizer que os autores não têm o direito de restituição do prédio quanto a nenhum dos réus, mas apenas, em consequência da revogação da doação, o direito de exigir do réu “C” – e apenas deste – a entrega do valor que o prédio de 600 m2 tinha ao tempo em que foi alienado ou se começou a construir no mesmo, acrescido dos juros legais a contar da proposição da acção.
Assim, pode-se desde já concluir pela improcedência do pedido de restituição quanto a todos os réus e do pedido subsidiário quanto a todos os réus menos quanto ao réu “C”.
E tudo isto afasta a questão da acessão industrial imobiliária levantada pelo “E”, pois que o terreno e a construção continuam a ser dos réus “C” e “D”.
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Quanto ao valor a entregar
Já se viu que por força do art. 978º/3 do CC, o donatário vai ter que entregar ao doador o valor do bem ao tempo da alienação ou da impossibilidade da restituição.
No caso, a primeira situação que se verifica que tornou impossível a restituição do prédio – de 600 m2, já que a parte sobrante já há muito que foi “restituída” aos autores – foi a venda de metade dele à futura mulher do réu. A partir daí o réu já não era proprietário de um prédio que pudesse restituir, mas apenas de uma metade indivisa de um prédio.
Essa venda ocorreu em 02/12/1997 e é portanto a essa data que se tem de reportar o valor.
Menezes Leitão (O enriquecimento sem causa no direito civil, Cadernos de ciência e técnica fiscal, Lisboa, 1996, págs. 782/83) entende que o valor do bem não inclui o ganhos resultantes da alienação da coisa doada (o lucro obtido com a alienação).
Nuno Miguel Pinto de Oliveira (estudo citado, págs. 177 a 179) entende que esse valor é (se for superior) o valor efectivamente recebido pelo donatário em caso de alienação onerosa (commodum ex negotiatione). Esta alternativa destina-se a favorecer o doador (atribuindo-lhe todos os ganhos resultantes da alienação), pelo que era ele que tinha que ter alegado o valor dessa venda (art. 342º/1 do CC). Como não o fez (e aliás se tratava apenas da venda de uma metade e provavelmente feita para possibilitar a hipoteca do prédio ao “E”), o valor que terá de ser considerado é o valor (objectivo) normal de mercado em 02/12/1997 (não importando, por isso, neste caso, tomar posição nesta disputa doutrinária).
Sendo este o valor, por força da lei, carece de fundamento a pretensão dos réus de que o valor da entrega seja apurado reportada à data da escritura de doação (28/11/1996).
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Os autores dizem que o valor em causa é de 70.000€, mas a justificação que apresentam para tal valor demonstra a total falta de correspondência do mesmo com a realidade.
Dizem eles: o prédio pode ser restituído; a casa ainda não está paga; a hipoteca subsiste; os autores quando receberem o prédio terão de proceder à expurgação da hipoteca que sobre ele existe; a hipoteca está registada pelo valor de 67.686,87€.
Ora, já se demonstrou que o prédio não pode ser restituído e como tal a questão da expurgação não se põe.
É certo que, depois, os autores invocam, autonomamente, o valor do prédio como sendo de 70.000€, mas tendo em vista aquilo que antes ti-nham dito, é evidente que este valor não tem qualquer justificação material nem qualquer correspondência com a realidade, pois que tinha em vista cobrir a obrigação de expurgação da hipoteca (que está garantida também com a construção…).
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Liquidação
Assim, deverão os autos prosseguir agora para apuramento do valor a entregar pelo réu “C” aos autores em consequência da revogação da doação, o que implicará o convite aos autores para virem aperfeiçoar o pedido subsidiário formulado na tréplica [art. 508º, nºs. 1b), 2, do CPC], alegando os factos necessários ao apuramento desse valor, com o consequente direito de o réu “C” vir treplicar em relação a esses novos factos (art. 508º/4 do CPC).
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Sumário (da responsabilidade do relator):
I – Não é possível uma (dupla) aquisição de um direito por quem já é seu titular; o donatário não pode invocar a aquisição por usucapião contra o doador que pretende revogar a doação.
II - A usucapião do direito tem de ter em conta as particularidades do título com base no qual a posse está a ser exercida.
III – É necessária, pelo menos, a presença de ambos os nubentes, como noivos, numa escritura pública de doação para que esta possa ser considerada uma convenção antenupcial, para os efeitos do art. 975/a) do CC.
IV – É impossível restituir um terreno se o donatário alienou parte indeterminada do mesmo ou se nele o donatário fez um edifício.
V – A revogação da doação não afecta terceiros que hajam adquirido, anteriormente à demanda, direitos reais sobre os bens doados, sem prejuízo das regras relativas ao registo (art. 979 do CC), neles se incluindo a hipoteca.
VI – Discute-se, no âmbito do art. 978º/3 do CC, se o valor que o bem tinha ao tempo em que foi alienado é o valor (objectivo) normal de mercado ou se é (se for superior) o valor efectivamente recebido pelo donatário em caso de alienação onerosa (commodum ex negotiatione).
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Pelo exposto, julga-se parcialmente procedente o recurso interposto pelos autores, revogando o saneador-sentença que se substitui por este que julga a acção improcedente quanto aos réus “D” e “E”, absolvendo-os de todos os pedidos, mas procedente parcialmente quanto ao réu “C”, pelo que, revogando-se, com efeitos reportados a 23/12/2010, a doação que os autores lhe fizeram [identificada em C) dos factos assentes], vai condenado a entregar aos autores o valor que se liquidar como sendo o valor, em 02/12/1997, do prédio identificado em E) dos factos assentes (antes de nele terem sido feita a casa dos réus e o acesso à mesma: isto é, sem o valor da casa e acesso) e absolvido dos demais pedidos.
O processo terá de prosseguir para apuramento daquele valor, para o que, ao abrigo do art. 508º/1b) e 2 do CPC, se convida os autores a, em 10 dias a contar do trânsito deste acórdão, aperfeiçoar a réplica em que formularam o pedido subsidiário, alegando os valores necessários àquele apuramento, com direito de resposta do réu “C”, no mesmo prazo.
Custas da acção e do recurso pelos autores e pelo réu “C”, na proporção que vier a ser fixada a final.

Lisboa, 26 de Janeiro de 2012

Pedro Martins
Sérgio Almeida
Lúcia Sousa