Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
148/09.6TJLSB.L1-7
Relator: MARIA JOÃO AREIAS
Descritores: REPRESENTAÇÃO VOLUNTÁRIA
ABUSO DE REPRESENTAÇÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 03/06/2012
Votação: MAIORIA COM * DEC VOT E * VOT VENC
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: I - Os poderes de representação voluntária não têm que assentar necessariamente num contrato de mandato, podendo resultar de outros negócios jurídicos, como o contrato de trabalho.
II - Exercendo funções no Departamento Financeiro da Autora, competindo-lhe emitir recibos das quantias pagas pelos clientes e dar quitação de pagamentos efectuados por terceiras pessoas, o funcionário da autora constitui um “representante” desta para efeitos de recebimento da prestação, nos termos do art. 769º do CC.
III - Se tal funcionário, no âmbito das referidas funções e incumbido de tais poderes, recebe um veículo do devedor, comprometendo-se perante este a depositar o respectivo valor na conta da credora, sua representada, e entregando-lhe o respectivo recibo de quitação, tal entrega extingue a prestação, ainda que, posteriormente, o funcionário não proceda ao prometido depósito.
(Sumário da Relatora)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa (7ª Secção):

I – RELATÓRIO.
A… S.A., intentou a presente acção declarativa sob a forma de processo sumário contra,
B (…),
pedindo a condenação do réu a pagar-lhe a quantia de €20.376,08, acrescida de juros vincendos sobre  a quantia de €20.000,00 desde a citação até integral pagamento,
alegando, em síntese:
num leilão realizado nas instalações da A., nos dias 8 e 9 de Maio de 2007, o R. adquiriu três peças, tendo igualmente colocado à venda seis peças, que se venderam, pelo que feito o respectivo acerto de contas, o R. deveria ter liquidado à A. a quantia de 22.716,21 €;
aquando do fecho de contas relativo ao ano de 2007, a A. verificou que, embora estivesse lançado a crédito, na gestão comercial da A. o pagamento de diversos clientes, entre eles o Réu, as quantias liquidadas não haviam sido depositadas na conta da Autora;
após averiguação interna, através do seu departamento financeiro, apurou que um funcionário seu, F. (…), havia desviado valores pagos por diversos clientes;
quanto ao R., apurou que este havia entregue um cheque de 2.716,21 €, o qual não foi depositado na conta da A., tendo o funcionário F (…) desviado o cheque entregue;
assim, a A. interpelou o R. no sentido de pagar a restante quantia de 20.000,00 €, correspondente ao valor da dívida deduzido do montante do cheque entregue ao funcionário da A.;
o R. veio responder, alegando ter entregue, para além do cheque, um veículo no valor de 20.000,00 € e a respectiva declaração de venda;
ora, o R. terá acordado com o funcionário da A., à revelia e com total desconhecimento desta, que lhe adquiria o veículo e posteriormente assumiria a responsabilidade de liquidar, junto da A., o valor devido pelo R.;
o R. tem perfeito conhecimento de que o referido funcionário não exercia funções de administração da Autora.
O Réu contestou, alegando, em síntese, que o saldo devedor a favor da autora, no montante de €22.716,21 foi objecto de negociação com um funcionário da autora, o qual ficou de adquirir a viatura do réu pela quantia de €20.000,00, que assegurou seria depositada na conta da autora, tendo a restante quantia sido paga através de cheque entregue a esse mesmo funcionário.
Conclui pela improcedência total da acção e pela sua absolvição do pedido.
Proferido despacho saneador, realizou-se a audiência de julgamento, tendo sido proferida decisão sobre a matéria de facto.
Foi proferida sentença que, julgando a acção procedente, condenou o réu a pagar à autora a quantia de €20.000,00, acrescida de juros de mora vencidos de €376,00 e vencidos e vincendos desde a citação, à taxa aplicável aos créditos de que são titulares as empresas comerciais, até integral pagamento.
Não se conformando com o teor de tal despacho, veio o Réu dele interpor recurso de apelação, concluindo a sua motivação com as seguintes conclusões, que aqui se reproduzem, em súmula:
 1. Prevê o art. 769º do CC que a prestação deve ser feita ao credor ou ao seu representante, sendo certo, porém, que o conceito de representante vertido no mesmo não deverá ser aquele entendido pelo tribunal a quo – o que leva à errada aplicação do art. 770º - e que considerou que representante é aquele que pertence à administração da autora; deve pois, considerar-se aqui o conceito lato de representante.
2. A interpretação do conceito lato de representante que ora se defende conduz à conclusão de que a prestação do Réu/Recorrente não foi efectuada a um terceiro, mas à própria autora/recorrida, por intermédio de um seu representante, o F (…), que em seu nome realizava, de forma autorizada pela própria, operações financeiras e contabilísticas, sem necessidade de ratificação para conferir eficácia às mesmas.
3. Atenta a aparente dificuldade interpretativa do art. 769º CC e do seu conceito de representante, a questão deverá também ser analisada à luz à luz do art. 23º do DL 178/86, de 3 de Julho, que regulamenta o contrato de agência.
4. Nos termos do art. 23º, sob a epígrafe, “representação aparente”, o negócio celebrado por um agente sem poderes de representação é eficaz perante o principal se tiverem ocorrido razões ponderosas, objectivamente apreciadas, tendo em conta as circunstâncias do caso, que justifiquem a confiança do terceiro de boa-fé na legitimidade do agente, desde que o principal tenha igualmente contribuído para fundar a confiança do terceiro (1). “À cobrança de créditos por agente não autorizado aplica-se, com as necessárias adaptações, o disposto no nº anterior (2).
5. A intenção do legislador, ao regulamentar outras situações não enquadráveis numa relação jurídica de agência e apenas na aparência de tal contrato, para além de corresponder àquelas relações específicas que o regime regulamenta, era ainda a de determinar um regime geral a responder a situações de representação.
6. E, nesta regulamentação, o legislador quis proteger a justificada confiança do terceiro de boa-fé, na validade da representação que o F (…) exercia através das suas funções, desde que a A. tenha também contribuído para firmar a confiança do réu.
7. Os factos que resultaram provados nos presentes autos permitem demonstrar a boa-fé do ora R. e justificar a sua legítima convicção da validade da representação pelo F, designadamente o facto deste funcionário da A./Recorrida no Departamento Financeiro, o que resultou que o 1º pagamento do réu à A., por cheque, tenha sido feito através do F (…), que, no exercício das suas funções, emitiu o recibo de quitação pelo valor total que resultou do acerto de contas, com o timbre da A./recorrida.
8. Emergem, do complexo fáctico dos autos, as conclusões que o R/Recorrente efectuou a prestação a quem se revelava ser a pessoa adequada e idónea a, em nome da A./recorrida, receber o pagamento e emitir o respectivo recibo de quitação, em boa-fé, nos termos e para os efeitos o ar. 762/2 CC, e de que criou a profunda e legítima convicção de que estaria a agir de forma correcta e atinente ao cumprimento a que estava obrigado.
9. A prestação controvertida deve considera-se eficaz perante a A./recorrida, porquanto foi realizada ao abrigo dos arts. 169º CC e 23º/1 do DL 178/86, o que conduz à prova do cumprimento integral da obrigação, conduzindo à absolvição do recorrente.
A Autora apresentou contra alegações.
Dispensados que foram os vistos legais, ao abrigo do disposto no nº4 do art. 707º, do CPC, há que decidir.

II – DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO.
Considerando que as conclusões da alegação de recurso delimitam os poderes de cognição deste tribunal, as questões a decidir  são unicamente as seguintes:
1. Se a prestação efectuada ao funcionário da Autora é susceptível de extinguir a obrigação:
a. Se a prestação foi efectuada mediante a entrega de um automóvel – dação em cumprimento.
b. Se o funcionário tinha poderes de representação e se agiu dentro dos respectivos poderes.

III – APRECIAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO.
A. Matéria de Facto.
            São os seguintes os factos dados como provados na decisão recorrida:
1. A autora é uma sociedade que se dedica à promoção de leilões de peças de arte e à avaliação de peças de arte.
2. No leilão organizado e realizado nas instalações da A nos dias 8 de 9 de Maio de 2007 e identificado com o número ..., o réu adquiriu três peças (esculturas e quadros), no montante de €39.185,00;
3. Na sequência de tais aquisições foi emitida a factura nº... no valor referido em b) que consta de fls.15 destes autos;
4. Por outro lado, o réu havia colocado à venda, por intermédio da A, seis peças de sua propriedade, as quais foram vendidas também no mesmo leilão nº....
5. O valor da venda dos lotes referidos em d), deduzido o valor da comissão da A e o dos custos de transporte e ilustrações, importou a quantia de €16.468,79, conforme nota de venda emitida e que consta de fls.16 dos autos.
6. Feito o encontro de contas, o Réu obrigou-se a pagar à autora a quantia de €22.716,21.
7. O réu entregou um cheque no valor de €2.716,21.
8. A autora, por carta de 3 de Novembro de 2008, interpelou o réu para proceder ao pagamento do restante em falta: €20.000,00.
9. O réu havia acordado com o funcionário da A, F (…), a venda do seu veículo automóvel àquele pelo valor de €20.000,00, que aquele entregaria directamente à A para pagamento do que a esta era devido.
10. O funcionário da A, que exercia funções no Departamento Financeiro desta, emitiu um recibo do qual resultava que a quantia devida pelo réu se encontrava totalmente liquidada;
11. A autora não teve conhecimento do acordo referido em i);
12. O réu sabia que o funcionário referido em i) não pertencia à Administração da A e não tinha poderes de representação desta.
13. O funcionário da A, F (…), entregou o recibo ao réu;
14. Competia a este funcionário emitir recibo das quantias pagas pelos clientes e dar quitação de pagamentos efectuados por terceiras pessoas.
B. O Direito.
            1. Se a prestação efectuada pelo Réu extinguiu a obrigação de pagamento do preço em falta.
Na sentença recorrida assentou-se em que “ficou provado que o réu havia acordado com o funcionário da A., F (…), a venda do seu veículo àquele pelo preço de 20.000,00 € e que este entregaria esta quantia à A. para pagamento do que lhe era devido pelo autor. Acontece que não logrou provar que a A. tivesse tido conhecimento desse acordo, nem que a A. aceitou o pagamento nos moldes acordados”,
A partir de tal factualidade, o juiz a quo considerou tratar-se de prestação “em espécie” “feita a terceiro”, prestação que, de acordo com as disposições dos arts. 770º e 838º do CC, sempre necessitaria do acordo ou posterior ratificação do credor, o que não se verificou.
Analisemos, assim, o enquadramento ou qualificação jurídica a dar à prestação efectuada pelo réu.
1.a. Se o acordo celebrado entre o R. e o funcionário da Autora consubstancia uma dação em cumprimento.
A prestação de coisa diversa da que for devida, embora de valor superior, só exonera o devedor que o credor der o seu assentimento – art. 837º do CC.
Mas, estaremos nós perante uma prestação de coisa diversa, como dá por assente o tribunal a quo?
O réu acordou com o funcionário da autora que o pagamento da quantia em dívida pelo R. após o acerto de contas – 22.716, 21 € –, seria feito pela seguinte forma:
- pela entrega de um cheque no valor de 2.716,21 €;
- quanto ao remanescente, o Réu vendia a tal funcionário o seu veículo automóvel pelo valor de 20.000,00 €, e este entregaria directamente tal quantia à autora para pagamento do que a esta era devido.
Ou seja, segundo tal acordo, a autora não receberia qualquer prestação em espécie: segundo o acordado, a autora recebia os 22.716,21 €, parte através de um cheque emitido pelo réu, e a quantia de 20.000,00 € em dinheiro, que o seu funcionário entregaria directamente à autora.
Ou seja, o veículo seria entregue e vendido ao funcionário da autora, não fazendo parte de tal acordo que o mesmo fosse entregue à autora para pagamento da dívida em questão.
Não nos encontramos, assim, perante qualquer prestação de coisa diversa do é devida, a carecer do assentimento da credora, ora autora, nos termos do art. 837º do Código Civil.
A questão é outra – ou seja, o problema, como resulta da leitura dos articulados, é que o funcionário da autora, tendo recebido do réu o cheque e o referido veículo (e respectiva declaração de venda), nunca entregou qualquer prestação à autora: não procedeu ao depósito do valor de 20.000,00 € na conta da Autora, nem ao depósito do referido cheque (como é alegado expressamente no art. 11º da p.i.)[1].
1.b. Se o funcionário da autora tinha poderes de representação e se agiu dentro dos respectivos poderes.
Segundo o art. 769º do Código Civil, a prestação deve ser feita ao credor ou ao seu representante.
E, como afirma Antunes Varela, afirmando o anterior 748º do Código de 1867, que a prestação devia ser feita ao próprio credor ou ao seu legítimo representante, “eliminando o qualificativo legítimo, o novo Código (art. 769º) teve principalmente em vista permitir que a prestação fosse efectuada também ao representante voluntário[2]”.
Encontra-se provado que o referido F (…), a quem foi entregue o cheque e a viatura, emitindo ao R. o recibo correspondente à quantia em dívida pelo R. à autora:
· era “funcionário da A. e exercia funções no Departamento Financeiro desta” (ponto 10 da matéria de facto),
· e que “competia a tal funcionário emitir recibo das quantias pagas pelos clientes e dar quitação de pagamentos efectuados por terceiras pessoas” (ponto 14 da matéria de facto).
O referido F (…) não é, assim, um terceiro, em relação à autora, mas um seu “funcionário”, deduzindo-se tratar-se de um trabalhador subordinado[3].
Tal funcionário não é um “representante” da autora no sentido de participar da sua representação orgânica – não faz parte dos órgãos externos da própria pessoa colectiva[4].
Contudo, sendo o mesmo trabalhador da autora, o exercício das suas funções implicará uma actuação em nome da autora e por conta desta, ou seja, uma representação voluntária, representação esta que não envolve necessariamente, ou tão só, a prática de actos jurídicos.
No instituto da representação voluntária, os autores vêm distinguindo a relação representativa da “relação gestatória”, correspondendo esta à relação jurídica subjacente ou relação jurídica de base que une o representante e o representado[5].
Como afirma Coutinho de Abreu, os poderes de representação voluntária não tem necessariamente de assentar num contrato de mandato, podendo resultar de outros negócios jurídicos, como por exemplo, o contrato de trabalho[6].
Também Pedro de Albuquerque[7] se pronuncia no sentido de que a relação jurídica que serve de base à procuração não se circunscreve ao contrato de mandato, podendo ser estipulados poderes de representação na generalidade dos negócios jurídicos privados: o vínculo de gestão ou gestatório pode também resultar, entre outros, de um contrato de trabalho subordinado, contrato de agência, de um contrato de prestação de serviços, da atribuição a outrem de uma posição à qual se encontra tipicamente ligada à concessão de poderes representativos, etc.:
“De todos estes contratos, resulta que um dos sujeitos desenvolve uma actividade a favor de outro vinculando-se este às consequências e efeitos da actividade do primeiro[8]”.
Quanto ao contrato de trabalho, dispõe o nº3 do art. 111º do Código do Trabalho, aprovado pela Lei nº 99/2003, de 27 de Agosto[9]:
“Quando a natureza da actividade para que o trabalhador é contratado envolver a prática de negócios jurídicos, o contrato de trabalho implica a concessão àquele dos necessários poderes, salvo nos caso em a lei expressamente exigir instrumento especial”.
“O contrato de trabalho envolve a atribuição de poderes de representação do empregador ao trabalhador no exercício da sua actividade. Trata-se de uma solução que visa evitar que o trabalhador tenha de invocar que age em nome do empregador ou, em alternativa, a necessidade de ratificação dos actos do trabalhador que se imporia – não fosse a existência da norma em anotação – por aplicação do artigo 1180º do Código Civil[10]”.
E, segundo Pedro Romano Martinez[11], o poder de representação resulta directamente do contrato de trabalho, sem necessidade da emissão de qualquer procuração para o efeito.
“Por isso o nº3 manteve a regra que confere automaticamente ao trabalhador os necessários poderes para representar a entidade empregadora, salvo quando regras de forma exijam outra solução. Neste caso, é necessário um instrumento que confira os correspondentes poderes que não têm que ser necessariamente uma procuração especial[12]”.
Haverá assim que determinar se o referido F (…) agiu enquanto trabalhador subordinado da autora e dentro das funções que desempenhava enquanto tal.
Ao acordar com o Réu a compra do carro deste pelo valor de 20.000,00 €, estava a agir em nome próprio, e não como representante, ou sequer, como funcionário da autora – do teor dos articulados, e da matéria de facto dada como provada, resulta que ele terá adquirido o veículo para si.
Ou seja, para a celebração do referido contrato de compra e venda, em nome próprio, não precisava tal funcionário de qualquer autorização ou assentimento da autora ou de quaisquer podres representativos para o efeito.
Contudo, é já enquanto funcionário da autora, e dentro das funções de que se encontrava incumbido – receber o preço e emitir o correspondente recibo – que o referido funcionário acorda com o réu que o cumprimento da prestação em dívida à autora será feito através da entrega de um cheque no valor 2.716,21 €, e da quantia de 20.000,00 €, (correspondente ao valor do carro que havia recebido do réu) que ele próprio se comprometeu a entregar directamente à autora.
Note-se que, nas palavras da própria autora, “o réu terá acordado com o funcionário da autora que ele lhe adquiria o veículo e, posteriormente, assumiria a responsabilidade de liquidar, junto da autora, o valor devido pelo réu”.
O referido F (…), ao receber o cheque (e o veículo), comprometendo-se ainda a depositar o respectivo valor e a quantia de 20.000,00 € na conta da Autora, emitindo o respectivo recibo de quitação que entregou ao Réu, agiu nitidamente na qualidade trabalhador da autora[13] (e foi igualmente nesta qualidade que o réu lhe entregou o cheque e o veículo, sem exigir a entrega efectiva dos 20.000,00 €).
Não se encontra aqui em causa a celebração de algum negócio jurídico por parte do réu em nome da autora, mas tão só o recebimento de uma prestação em nome desta.
E, da matéria dada como provada e trazida aos autos pela própria autora, o referido funcionário tinha poderes para tal, no âmbito das funções que lhe competiam enquanto trabalhador da autora: tal funcionário exercia funções no Departamento Financeiro, competindo-lhe emitir recibos das quantias pagas pelos clientes e dar quitação de pagamentos efectuados por terceiros.
E, da leitura do art. 8º da p.i., resultará ainda que, no âmbito de tais funções, lançou ainda a crédito, na “Gestão Comercial”, o referido pagamento, apesar de nunca ter procedido ao depósito de tais quantias na conta da autora.
Tal prestação foi efectuada ao funcionário da autora, dentro dos poderes de representação voluntária que lhe foram conferidos pelo contrato de trabalho: ao aceitar o cheque e o veículo, comprometendo-se a entregar o respectivo valor à autora, o funcionário da autora agiu no exercício dos poderes que lhe foram conferidos pela autora e no cumprimento das funções que lhe foram confiadas – receber importâncias para cumprimento de uma obrigação para com a autora.
O que já lhe não era permitido, era apropriar-se do resultado de tal actuação – não depositando na conta da autora, quer o cheque, quer os 20.000,00 €, acordados como forma de pagamento à autora.
Não se tratando de um pagamento a terceiro, não lhe era, assim, aplicável o nº1 do art. 770º, do CC, que exige a ratificação por parte do credor.
E, embora o Réu não tenha exigido ao funcionário da autora que este lhe entregasse, em mão, a quantia 20.000,00 € em pagamento do preço pela venda da viatura, para a entregar novamente a tal funcionário, a fim de este os depositar na conta da autora[14], em cumprimento da obrigação aqui em causa, não podemos deixar de concluir que o referido F (…) se apropriou de tal quantia, tal como fez seu o valor do cheque que o R. lhe entregou[15].
Na representação, temos de distinguir entre o relacionamento interno que se estabelece entre o representante e o representado – um relacionamento que emerge da relação fundamental e que pode ser complementado por pactos ou convenções de vária natureza, por instruções dadas e outros actos de autonomia da vida privada – e o relacionamento externo que se dá entre o representado e o terceiro e o representante e o terceiro.
Ora, a “ilicitude” do comportamento do funcionário da autora, ocorre já no âmbito das relações internas entre ele e a sua entidade patronal, ora autora.
Como afirma Pedro Pais Vasconcelos “o abuso de representação só tem relevância, em princípio, no relacionamento interno, entre representante e representado, e é irrelevante no relacionamento externo, entre o representado e terceiros. Quer isto dizer que, havendo abuso de representação ou actuação representativa em desarmonia com os fins ou interesses que a regem, esta questão é interna e não ultrapassa o âmbito do relacionamento entre representante e representado. O abuso só pode ser oposto a terceiro, ou à outra parte quando este reconheça ou não deva desconhecer o abuso[16]”.
Segundo o entendimento dominante, haverá abuso de representação quando o representante, actuando embora dentro dos limites dos poderes de representação, utilize conscientemente esses poderes em sentido contrário ao seu fim ou às indicações do representado[17]”.
Ora, no caso em apreço, entendemos que nem sequer há um abuso de representação – o F (…) tinha poderes para receber a prestação[18] e para emitir o respectivo recibo de quitação –, ocorrendo, tão só, uma posterior actuação ilícita pela sua parte ao se apropriar indevidamente dos valores que lhe foram entregues pelo devedor para cumprimento da prestação em causa.
O réu terá cumprido a obrigação que lhe competia, tendo-a efectuado a um representante da autora com poderes para tal e que a aceitou, emitindo o correspondente recibo.
A declaração de recebimento do preço ou de quitação pressupõe a concessão dos necessários poderes, e como já vimos, o funcionário da autora era detentor de tais poderes – e não se diga que tais poderes não incluiriam nunca a emissão de recibo de quitação sem efectivo recebimento do preço, porquanto, no caso em apreço, ocorreu a entrega da prestação: com a entrega do veículo ao funcionário este ficou incumbido de proceder ao depósito do respectivo valor na conta da autora.
Quem terá faltado aos seus deveres, enquanto funcionário da autora (e já fora de qualquer relação externa de representação da autora perante terceiros), não procedendo ao depósito do cheque que lhe fora entregue pelo Réu nem da acordada quantia de 20.000,00 €, na conta da autora, foi o referido F (…)[19].
E tal comportamento não seria minimamente expectável para o réu, que entregou o cheque e o seu veículo a tal funcionário, confiando na declaração de quitação por este emitida.
De qualquer modo, ainda que considerássemos existir abuso de representação, há que atentar em que, em regra, este só existe na relação interna entre o representante e o representado, ficando este vinculado na relação externa face àqueles perante quem a representação foi invocada. No relacionamento, o representado pode exigir do representante infiel a indemnização dos danos sofridos. Mas no relacionamento externo não pode opor aos terceiros o abuso, salvo quando consiga demonstrar que estes conheciam ou deviam conhece-lo (art. 269º CC). Tendo sido concedidos poderes de representação, o risco do abuso cai sobre o representado, que escolheu o representante e não controlou eficazmente a sua actuação[20].
Como refere Helena Mota[21], toda a concepção da autonomia e abstracção dos poderes representativos obedece a duas ordens de princípios, absolutamente defensáveis: por um lado, a segurança do tráfego jurídico e a protecção dos terceiros contraentes; por outro lado, o velho princípio ubi commodum ibi incommodum.
A utilização de um intermediário na conclusão dos negócios jurídicos não deixa de constituir um risco, e foi este intermediário que, no plano das relações internas se apropriou dos valores em causa, sem que tal possa por em causa o efeito representativo e a subsistência dos poderes que lhe foram conferidos pela autora.
O pagamento efectuado pelo Réu deverá ter-se por eficaz, extinguindo a respectiva obrigação.
A apelação terá, assim, de proceder.


IV – DECISÃO.
 Pelo exposto, os juízes deste tribunal da Relação acordam em julgar procedente a apelação, revogando-se a decisão recorrida e julgando-se a acção procedente, absolve-se o réu do pedido.
Custas a suportar pela Apelada.

Lisboa, 6 de Março de 2012          
 
Maria João Areias
Luís Lameiras
Roque Nogueira (Vencido. Manteria a decisão, embora com fundamentos não coincidentes com os invocados na sentença recorrida. Teria em conta, sobretudo, o disposto no artº 444º nº 3 do Código Civil).
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[1] Note-se que, em relação ao montante do cheque, e apesar de não ter recebido o respectivo montante, a autora entendeu que “ao valor a liquidar por este último teria sempre de deduzir o montante do cheque, visto não ser da sua responsabilidade o desvio de valores praticados por funcionários da autora” (art. 12º da p.i.).
[2] “Das Obrigações Em Geral”, Vol. II, 4ª ed., Almedina, pag. 30, nota (2).
[3] O contrato de trabalho é aquele pelo qual uma pessoa se obriga, mediante retribuição, a prestar a sua actividade intelectual ou manual a outra pessoa, sob a autoridade ou direcção desta – art. 1152º do CC e art. 10º do CT, aprovado pela Lei nº 99/2003.
[4] Sendo a autora uma sociedade anónima, a sua representação orgânica competiria ao conselho de administração ou à direcção, no caso de a esta ser cometido o dever de representar a sociedade (art. 278º e 408º, do CSC). Sobre a distinção entre representação legal, orgânica e voluntária, cfr., Pedro Pais de Vasconcelos, “Teoria Geral do Direito Civil”, 6ª ed., 2010, Almedina, pags. 327 e ss.
[5] Segundo Helena Mota, a originalidade da representação está em que a relação jurídica de base, quando existe, é sempre de gestão dos interesses do representado, seja ela um mandato, uma prestação de serviços, um contrato de sociedade, um contrato de trabalho” – “”Do Abuso de Representação, uma análise da problemática subjacente ao artigo 269º do CC de 1966”, Teses e Monografias 2, Coimbra Editora, pag. 11, nota (1).
[6] “Curso de Direito Comercial”, Vol. I, 6ª ed., 2006, pag. 129; cfr., ainda, Maria Helena Brito, no sentido de que, subjacente à representação, pode estar um contrato de trabalho, quando a entidade patronal atribui a alguns dos seus trabalhadores poderes para a representar em operações do quotidiano empresarial – “A Representação Sem Poderes – Um caso de efeito reflexo das obrigações”, Revista Jurídica, AAFLD, ns. 9 e 10, pag. 20.
[7] “A Representação Voluntária em Direito Civil”, Colecção Teses, Almedina, pag. 513, e “Teoria Geral do Direito Civil”, 2010, 6ª ed., Almedina, pag. 329.
[8] Pedro de Albuquerque, “A Representação Voluntária (…), pag. 515.
[9] Corresponde ao nº3 do art. 115º, do CT aprovado pela Lei nº 7/2009, de 12 de Fevereiro.
[10] Cfr., Luís Menezes Leitão, “Código do Trabalho Anotado”, Coimbra 2004, pag. 102.
[11] “Direito do Trabalho”, Vol. II, T1, pag. 49 e 50.
[12] Cfr., “Código do Trabalho Anotado, 5ª edição, 2007, de Pedro Romano Martinez, Luís Miguel Monteiro e outros, pag. 272. No sentido de que a procuração faz parte do contrato de trabalho, estando implícita neste, tornando-se por vezes necessária a outorga de uma procuração específica quando a forma do negócio a celebrar o exija, cfr., Pedro Leitão Pais de Vasconcelos, “A Procuração Irrevogável”, Almedina, 2012, pag. 68.
[13] Caso não fosse trabalhador da autora, e não tivesse poderes para receber a prestação em nome desta, encontrar-nos-íamos, quanto muito, perante uma mera promessa de liberação, numa convenção entre o devedor e um terceiro, mediante a qual este se obriga, para com aquele a pagar a dívida, convenção que não produz, em princípio, senão efeitos nas relações entre o devedor e o terceiro, sendo a elas estranho o credor (cfr., neste sentido, Vaz Serra, “Promessa de Liberação e Contrato a Favor do Credor”, in BMJ, nº72, pag. 83.
[14] Caso em que, face à posição por si assumida na p.i., a autora não teria dúvidas de que o “pagamento” fora feito, aceitando ser o prejuízo da sua responsabilidade.
[15] Embora não tenha sido depositado na conta da Autora, o respectivo valor foi levantado, como resulta do extracto bancário junto pelo R. com a sua contestação.
[16] “Teoria Geral do Direito Civil”, pag. 326.
[17] cfr., neste sentido, entre outros, Pires de Lima e Antunes Varela, “Código Civil Anotado, I Vol., Coimbra 1967, pag. 173 e 174, e  Helena Mota, “Do Abuso de Representação (…)”, pags. 135 e 161.
[18] Bem como para acordar em que o cumprimento da obrigação em causa fosse feito, parte em cheque e o restante a depositar na conta da autora.
[19] Segundo a própria autora, muito embora aquele funcionário tivesse lançado a crédito, na “Gestão comercial” da autora, os pagamentos de diversos clientes, entre eles o réu, as quantias liquidadas não haviam sido depositadas na conta bancária da autora, tendo a autora após averiguação interna, apurado que o mesmo havia desviado valores pagos por diversos clientes.
[20] Cfr., neste sentido, Pedro Pais de Vasconcelos, “Teoria Geral do Direito Civil”, 2010 6ª ed., Almedina, pag. 341.
[21] Obra citada, pags. 106 e 107.