Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1139/09.2YXLSB.L1-2
Relator: PEDRO MARTINS
Descritores: VIOLAÇÃO DOS DIREITOS DE PERSONALIDADE
DIREITO À VOZ
DIREITOS DE AUTOR
INTERPRETAÇÃO DO NEGÓCIO JURÍDICO
ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 03/21/2012
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: Findo um contrato que continha o consentimento da autora para a utilização comercial das gravações da sua voz – bem de personalidade patrimonial – que tinha feito para a ré, esta não pode continuar a fazer o aproveitamento económico dessas gravações, sob pena de enriquecimento injustificado no valor igual do da retribuição habitual.
(da responsabilidade do Relator)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa os juízes abaixo assinados:

“A” intentou em 16/04/2009 a presente acção contra a “B” Portugal – Comunicações Pessoais, SA, pedindo que esta seja condenada a retirar do voice mail da rede “BBB” quaisquer gravações e locuções contendo registos de voz da autora, bem como a não utilizar, reproduzir ou divulgar as gravações e locuções contendo os registos de voz da autora sem prévio consentimento escrito desta, seja qual for o suporte, meio ou fim em causa; e ainda a pagar-lhe uma compensação em dinheiro, contabilizada à data da propositura da acção em 29.074,45€, a que devem acrescer as quantias proporcionais vincendas à razão anual de 8.113,80€, até que efectivamente sejam retiradas do voice mail da rede “BBB” quaisquer gravações ou locuções contendo registos de voz da autora, e respectivos juros legais; por fim, a condenação da ré a pagar uma sanção pecuniária compulsória, a ser fixada pelo tribunal, em termos significativos, por cada dia de atraso no cumprimento da sentença condenatória que vier a ser proferida, quando aos dois primeiros pedidos.
Alega para o efeito que no exercício da sua profissão de actriz celebrou com a ré, em 25/09/2000, um contrato de prestação de serviços nos termos do qual se comprometeu a prestar serviços de locução e gravação em acções de informação sobre os produtos/serviços “BB”/”B”; o contrato tinha a duração de um ano e foi estipulada uma retribuição anual de 800.000$, acrescida de oferta de chamadas telefónicas; o contrato foi renovado por iguais períodos de 1 ano, por quatro vezes consecutivas, até 2005, tendo cessado a relação contratual, por mútuo acordo, em 05/09/2005; sucede que a ré, após a data da cessação do contrato, continuou a utilizar e a divulgar publicamente as locuções e gravações de voz efectuadas pela autora, mas sem lhe pagar qualquer contrapartida; a autora, em 22/08/2007, enviou uma carta registada com aviso de recepção, em que considerava abusiva essa utilização e pretendia que a ré, num prazo máximo de 30 dias, retirasse os registos da sua voz do voice mail da rede “BBB”; a ré recusou, invocando que as cláusulas 3ª e 4ª do contrato legitimavam-na a utilizar e a reutilizar as locuções e gravações feitas nesse âmbito; a autora entende que, de acordo com os usos da profissão, todas as locuções têm um prazo de validade de um ano a partir da data da 1ª exibição ou 15 dias após a gravação e que uma vez terminado tal prazo de validade há lugar ao pagamento integral das peças (renovação dos direitos), sendo obrigatória a autorização antecipada do locutor em causa; entende, por isso, que a ré tem feito, com fins comerciais, uma utilização abusiva da sua voz, por não ter o seu consentimento para o efeito, tendo enriquecido à sua custa uma vez que não lhe paga qualquer contrapartida monetária.
A ré, citada a 20/04/2009, contestou alegando, em síntese, que efectivamente foi celebrado com a autora o referido contrato que foi renovado por forma expressa por 3 vezes e que o mesmo não foi de novo renovado porque a autora rejeitou a proposta de aumento da remuneração; pagou à autora todos os serviços contratados; as renovações do contrato foram realizadas para permitir novas locuções e gravações e não para garantir a vigência de um consentimento; nos termos do contrato resulta claramente que o resultado das prestações da autora é da exclusiva titularidade da ré pelo que a utilização das gravações efectuadas é absolutamente legítima, não havendo lugar a qualquer enriquecimento ilícito, nem ao pagamento de qualquer indemnização; no que respeita à declaração junta pela autora relativa aos pagamentos dos serviços de locução, refere que o mesmo não é parte integrante do contrato, além de ser uma declaração unilateral subscrita por várias pessoas, em que a autora não é uma delas, não podendo sequer ser considerado um indicio de existência de usos ou da existência de uma profissão de locução, sendo certo que a autora afirma que a sua profissão é actriz; entende assim que a acção deve ser julgada improcedente.
Depois do julgamento foi proferida sentença, julgando a acção improcedente e absolvendo a ré do pedido.
A autora recorre desta sentença – para que seja revogada e substituída por outra que condene a ré no pedido – terminando as suas alegações com as seguintes conclusões (que são sintetizadas neste acórdão):
i) O contrato dos autos não respeita a uma prestação de serviços qualquer, porque envolve a limitação voluntária de direito de personalidade, designadamente a autorização para uso da voz, que integra o núcleo do direito geral de personalidade, previsto no art. 70 do CC, constituindo manifestação do direito à palavra, constitucionalmente consagrados no art. 26/1 da Constituição da República (= CRP);
ii) tal limitação pode ser revogada a todo o momento (art. 81/2 do CC), pelo que é errado e inconstitucional o juízo da sentença recorrida de que as gravações efectuadas no âmbito do contrato são “propriedade” da ré, “conforme resulta do contrato”.
iii) Todos os contratos dos autos têm a duração de apenas um ano e por isso a limitação ao direito de personalidade não podia ultrapassar este prazo de duração:
iv) os contratos e os factos provados nada dizem sobre o prazo de validade da utilização da voz;
v) a renovação de direitos – 100% por cada ano de utilização - é uma componente da retribuição que não foi prevista nem afastada no contrato;
vi) os contratos não estipulam, nem se provou, qualquer cláusula ou acordo prévio que afastasse ou derrogasse os “usos da profissão” (facto 18 do probatório), segundo os quais a validade da utilização da voz é de 1 ano, e findo esse prazo há lugar ao pagamento integral das peças em causa, de 100% por cada ano, sendo obrigatória a autorização antecipada do locutor em causa; daí que os contratos tenham sido renovados anualmente;
vii) Estando comprovado que a ré continuou a utilizar e a reutilizar as locuções e gravações efectuadas pela autora além da vigência do contrato, apesar de ter conhecimento da expressa oposição da autora, é evidente que a ré agiu ilicitamente, pelo que impende sobre a ré o dever de indemnizar a autora.
viii) A controvérsia da lide nada tem a ver com direitos autorais, desde logo porque a autora não se arroga “autora”, não invoca “criação intelectual” nem está em causa qualquer “obra”, na acepção dos arts 1 e seguintes do Código do Direito de Autor e dos Direitos Conexos, pelo que a sentença não tem razão em relevar o facto de que “quando a autora assinou o contrato com a ré acordou que a propriedade do direito de autor das obras criadas ao abrigo desse contrato ficasse propriedade da ré”.
ix) A indemnização não decorre das regras da responsabilidade civil extracontratual, mas do enriquecimento sem causa por intervenção (art. 473 do CC): verifica-se locupletamento indevido obtido pela ré, à custa do aproveitamento comercial das vantagens económicas decorrentes da utilização e exposição pública da voz da autora, no voice mail da rede “BBB”, sem qualquer contrapartida ou título legítimo, a partir de 05/09/2005 (data da cessação do contrato por mútuo acordo) ou pelo menos desde de 22/08/207 (data da oposição da autora), o que se traduz numa ingerência ilícita e injustificada nos direitos de personalidade da autora.
x) A ré deve ser condenada a pagar à autora o valor correspondente à utilização e reutilização da voz da autora de que ilegitimamente beneficiou. Para efeitos do cálculo do enriquecimento e correspectiva indemnização, deverá ter-se em conta a matéria provada sobre os usos da profissão, de acordo com o art. 1158/2 do CC, bem como o valor da soma da retribuição anual acordada, em dinheiro e em espécie, perfazendo 8.113,80€/ano.
A ré contra-alegou, defendendo a improcedência do recurso, dizendo, em síntese, o seguinte:
a) não existe qualquer ofensa a um direito de personalidade da autora já que o que esta pretende é o reconhecimento de um direito com natureza patrimonial (regular e perpétuo);
b) a autora consentiu a fixação da voz pelo que não há violação do seu direito de personalidade;
c) aliás, ninguém sabe que é a voz da autora nas gravações em causa;
d) o contrato celebrado pela autora não limita a sua capacidade de utilizar a sua voz, pelo que não é aplicável a possibilidade de revogação do art. 81/2 do CC;
e) se estivesse em questão um filme publicitário onde a autora tivesse consentido na utilização da sua voz e imagem, a autora poderia interromper a sua utilização pela ré?;
f) o contrato encerra um consentimento vinculante, irrevogável unilateralmente (cita neste sentido Capelo de Sousa, O direito geral de personalidade, Coimbra, 1995, págs. 244, 410 e 220, nota 446), sob pena de incumprimento contratual (com direito de indemnização);
g) as gravações de voz, que se distinguem da voz da autora, são propriedade da ré;
h) a voz da autora não é objecto do contrato, o que é objecto é a gravação da voz;
i) as gravações da voz não são obras, mas a protecção que a autora pretende é superior à que as obras teriam, pois que pretende uma remuneração adicional à remuneração prevista no contrato;
j) não é aplicável o regime dos publicity rights porque os serviços prestados pela autora em momento algum tiveram como pressuposto a sua (hipotética) celebridade;
k) as sucessivas renovações do contrato foram realizadas para permitir novas locuções e gravações;
l) nada no contrato indicia que a utilização pela ré está limitada pela vigência do contrato; a clª 4ª indicia que a utilização não está sujeita a qualquer prazo;
m) a referência aos usos não é relevante para o caso concreto porque existe contrato;
n) não existe enriquecimento sem causa porque existe uma causa que é o contrato e porque o serviço prestado pela autora já foi remunerado.
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Questões que importa resolver: se depois de findo o contrato celebrado entre ambas, a ré podia ter continuado a utilizar para os seus fins lucrativos as gravações de voz feitas no decurso do mesmo; e se se concluir que não o podia fazer, fica por saber quais as consequências desse aproveitamento.
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Factos provados:
1. A autora é actriz de teatro, cinema e televisão.
2. No exercício da sua profissão, a autora tem participado em diversos trabalhos de interpretação, representando, recitando e fazendo locuções de textos.
3. A ré é uma operadora de telefonia móvel, incluindo as redes de telemóvel “B” e “BBB”.
4. No dia 25/09/2000, por contrato escrito, a autora e a ré celebraram reciprocamente, pelo prazo de um ano, um contrato de prestação de serviços, pelo qual aquela se comprometia a prestar serviços de locução e gravação em acções de informação sobre os produtos/serviços “BB”/”B”.
5. Na cláusula 8º desse contrato foi estipulado que “o presente contrato tem a duração de um ano”.
6. Em execução do contrato, a autora fez diversas locuções e gravações que integram o acervo de voz difundido no voice mail da rede “BBB”.
7. Tais locuções e gravações consistiam na fixação em suporte áudio da leitura de algarismos e de diversas frases padronizadas, tais como frases para telemóvel, atendimento telefónico, spots para telefone e gravações de voice mail em geral.
8. Em contrapartida dos serviços previstos no contrato, foi estipulada uma retribuição anual em dinheiro no valor de 800.000$, pagável em três prestações, acrescida da oferta de chamadas ilimitadas para a rede “B” e de 100 minutos por mês para outras redes.
9. A componente da retribuição em oferta de chamadas tem, actualmente, o valor mensal de 51,15€, a que corresponde uma retribuição anual em espécie, no valor de 613,80€.
10. O mesmo contrato foi renovado por iguais períodos de 1 ano, de Outubro de 2001 a Setembro de 2002, mediante o pagamento da remuneração anual de 1.500.000$; de Outubro de 2002 a Setembro de 2003, mediante o pagamento da remuneração anual de 7.500€; de Outubro de 2003 a Setembro de 2004, mediante o pagamento da remuneração anual de 7.500€; de Outubro de 2004 a Setembro de 2005, mediante o pagamento da remuneração anual de 7.500€.
11. As renovações do contrato foram realizadas para permitir novas locuções e gravações.
12. No início de Setembro de 2005, foi comunicado pela ré à autora que deixara de existir interesse na renovação do contrato e neste contexto as partes decidiram reciprocamente cessar o contrato.
13. A relação contratual entre as partes extinguiu-se por mútuo acordo em 05/09/2005, data do último recibo verde passado pela autora, o qual foi enviado à ré por carta registada com aviso de recepção.
14. Para além da cessação do contrato, a ré continuou a utilizar e a divulgar as locuções e gravações de voz efectuadas pela autora, constantes do acervo de voz do voice mail da rede “BBB”, o que fez e continua a fazer no âmbito da sua actividade comercial, com fins lucrativos, não pagando à autora qualquer contrapartida por essa utilização e divulgação.
15. Inconformada com esta situação, a autora enviou à ré carta registada, com aviso de recepção de 22/08/2007 em que lhe comunicou que considerava aquela utilização abusiva e para no prazo máximo de 30 dias retirar os registos da sua voz do voice mail da rede “BBB”.
16. Por carta de 29/11/2007, a ré recusou o pedido da autora, com o fundamento que “procedemos à análise cuidada de ambos os contratos de prestação de serviços acima referidos, tendo concluído que os mesmos, nomeadamente nas suas cláusulas terceira e quarta, legitimam a “B” a utilizar as locuções e gravações efectuadas nesse âmbito”.
17. Apesar de ter conhecimento da expressa oposição da autora, a ré, até à presente data, continua a utilizar e a reutilizar as locuções e as gravações efectuadas por aquela.
18. De acordo com os usos da profissões, as locuções em que não exista uma negociação/contrato prévios têm o prazo de validade de um ano a partir da data da primeira exibição ou 15 dias após a gravação e findo esse prazo há lugar ao pagamento integral das peças em causa, de 100% por cada ano, de acordo com a tabela de locuções, sendo obrigatória a autorização antecipada do locutor em causa.
Ao abrigo dos arts. 659/3 e 713/2, ambos do CPC, transcrevem-se ainda algumas das cláusulas do contrato em causa nos autos (a 1ª por ter interesse para a decisão das questões postas, as duas últimas por lhe serem referidas nos factos e nas alegações):
Clª 2ª (Exclusividade temporária e parcial)
A autora desde já se obriga a não prestar, a entidades directa [ou indirectamente] concorrentes da (telecomunicações e afins/móveis), e pelo período de duração do presente contrato (um ano), serviços de locução e gravação em acções de publicidade ou informação sobre [de] produtos/serviços [concorrentes] que envolvam a audição da sua voz e/ou visualização da sua imagem pelo público em geral.”
Clª 3ª (Locuções e gravações)
1. A forma e respectivo conteúdo, a dar às acções em que intervenha a autora ao abrigo do presente contrato, serão da exclusiva escolha e responsabilidade da .
2. A autora manter-se-á à disposição da, nos locais e datas por esta indicados, mediante planeamento prévio para efectuar as locuções / gravações que lhe forem solicitadas no âmbito do presente contrato.
3. A autora desde já se obriga a prestar, por um preço fixo mencionado na clª 5ª infra, até 10 horas de gravação por mês.
4. As horas de gravação mensais que, por qualquer motivo não sejam utilizadas, poderão sê-lo no(s) mês(es) seguinte(s), a critério da , nunca excedendo o termo do presente contrato.
Clª. 4ª (Direitos de Autor)
A titularidade do direito de autor relativo às obras eventualmente criadas ao abrigo do presente contrato pertence exclusivamente à .
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A construção da sentença é a seguinte:
“Dúvidas não existem, quer na doutrina, quer na jurisprudência, que o direito à voz integra o núcleo do direito geral da personalidade que tem acolhimento no art. 70 do CC e art. 26/1 da CRP. Tal como é referido no ac. do TRP de 12/11/2008, com o nº convencional JTRP00041859, in www.dgsi.pt ‘(…) Os direitos de personalidade são direitos absolutos, prevalecendo, por serem de espécie dominante, sobre os demais direitos, em caso de conflito, nomeadamente sobre o direito de propriedade e o direito ao exercício de uma actividade comercial. Aqueles direitos (de personalidade) pela sua própria natureza, sobrelevam os direitos de conteúdo económico, social e cultural (P. Lima – A. Varela, CC Anot, 4ª ed, pág. 104, Jorge Miranda, Manual de Direito Constitucional, IV, págs. 145-146, J. Gomes Canotilho, RLJ, 125, 538, acs. do STJ, BMJ, 406/623, 435/816, 450/403, CJ, Ano II, II/54, Ano III, I/55, Ano VI, II/76 e III/77)(…).
Por outro lado, à responsabilidade por ofensas à personalida-de é aplicáveis, em termos gerais o disposto nos arts 483 e seguintes do CC (nesse sentido vide ac. do TRL de 01/06/2006, [10554/2005-6] in www.dgsi.pt e ac do TRP de 15/10/2007, com o nº convencional JTRP00040694, in www.dgsi.pt).
[…] a conduta da ré ao utilizar as gravações já efectuadas não constituem qualquer conduta ilícita, pois está a utilizar as grava-ções efectuadas no âmbito do contrato e que são sua propriedade, conforme resulta desse mesmo contrato.
Por outro lado, ao celebrar este contrato, a própria autora comprometeu-se a prestar um serviço em que utilizou a sua voz, dispondo assim desse seu direito.
Estamos no âmbito contratual em que há coincidência entre a prestação a que a autora se obrigou e um seu direito de personali-dade, neste caso, a utilização da sua voz. E como contrapartida dessa prestação, a autora foi remunerada.
Também quando a autora assinou o contrato com a ré e acordou que a propriedade do direito de autor das obras que criadas ao abrigo desse mesmo contrato ficasse propriedade da ré, aceitou que o respectivo direito de personalidade fosse limitado, mediante uma contrapartida em dinheiro.
Questão diferente seria a utilização da voz da autora em gravações que tivessem sido efectuadas fora do âmbito deste contrato, pois aí não haveria qualquer dúvida que [a ré] não poderia utilizar as mesmas sem que a tal utilização correspondesse uma remuneração e desde que obtivesse o consentimento da autora. Aí sim, serviria de referência a tabela de preços elaborada para este sector da comunicação e nos termos aí descritos.
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I
Do objecto do contrato – da voz…
Sugere a ré que a questão se reduz ao facto de a autora querer mais dinheiro, querer receber uma remuneração perpétua… ou ad eternum.
Poderia dizer-se que, pelo contrário, a questão se reduz ao facto de a ré querer utilizar perpetuamente a voz da autora sem pagar mais nada…
A fundamentação da ré, seguida pela sentença, resume-se, no essencial, à afirmação de que, pagando por elas, ficou proprietária das gravações efectuadas pela autora durante a duração do contrato. Tal como se se tratasse de uma das modalidades dos contratos de prestação de serviço, a empreitada: aquilo que foi produzido pela autora passou a ser da ré, que poderia fazer do bem o que quisesse (arts. 1207 e 1212, ambos do Código Civil).
A autora chama a atenção para a particularidade do objecto do contrato: a sua voz, um bem da sua personalidade. Não é uma coisa que possa ser transmitida.
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… não só a voz
De resto, em relação a algumas das objecções postas pela ré, diga-se que não era só a voz da autora que estava em causa nos contratos.
Note-se o teor da cláusula 2ª dos contratos: dela resulta que não está só em causa a voz da autora, porque, para além disso, a autora se obrigou a não prestar, a entidades directa [ou indirectamente] concorrentes da e pelo período de duração do presente contrato (um ano), serviços de locução e gravação em acções de publicidade ou informação sobre produtos/serviços concorrentes que envolvessem a audição da sua voz e/ou visualização da sua imagem pelo público em geral.
Perante isto não pode deixar de se entender que a voz da autora não foi contratada só como voz e como uma qualquer voz, mas por ser uma voz que seria reconhecível como a voz de uma concreta pessoa, pessoa de cuja imagem a ré também pretendia ter o exclusivo.
Dito de outro modo: no caso bem se pode admitir a ideia da “imagem sonora” de que fala Maria Dolores Palacios González, La cesión de derechos de imagem, AC (2004), págs. 469-482 (471), citada por David de Oliveira Festas (Do conteúdo patrimonial do direito à imagem. Contributo para um estudo do seu aproveitamento consentido e inter vivos, Coimbra Editora, 2009, pág. 50, nota 129, embora em discordância com a ideia da autora, que também será da jurisprudência do Tribunal Constitucional Espanhol, de ampliar o conceito de imagem de modo a abranger todos os atributos que permitam a identificação da pessoa).
Como diz Francisco de P. Blasco Gascó, Catedrático de Derecho Civil Universitat de València: “De hecho, alguna sentencia y el propio art. 7-6 LO 1/1982, enumera, junto con la imagen […], la voz y el nombre. Esto es así porque, al final, lo que se protege es la individualidad de cada una de las personas y dicha individualidad normalmente se corresponde con la imagen, pero también con la voz (como sucedía con el famoso y fallecido actor y cantante italo-americano, conocido precisamente como “the voice”) Algunas cuestiones del derecho a la propia imagen (pág. 27, consultado em http://www.derechocivil.net/esp/ALGUNAS%20CUESTIONES%20DEL%20DERECHO%20A%20LA%20PROPIA%20IMAGEN.pdf, a 27/02/2012).
O que, diga-se, permitiria a aplicação do art. 79/1 do CC (referido abaixo) de forma directa e já não apenas por analogia.
III
Da pretensão da autora
Não está em causa, nestes autos, a utilização que a ré fez, durante o período do contrato, das gravações efectuadas pela autora durante esse período. A autora não põe em causa a licitude dessa utilização, nem quer mais dinheiro por essa utilização, nem diz que se verificou qualquer violação dos seus direitos durante esse período.
O que está em causa é saber se a ré, depois de findo o contrato, pode continuar a utilizar – aproveitando-se para os seus fins lucrativos (facto 14) - as gravações da voz da autora, efectuadas durante o período do contrato.
IV
Da propriedade das gravações
A ré, para concluir por essa possibilidade, defende que com o contrato adquiriu a propriedade dessas gravações e por isso pode fazer delas o que bem entender. E o mesmo defende a sentença recorrida.
Com esta argumentação, por um lado, confunde-se o direito de propriedade das coisas que incorporaram a voz da autora – os registos dessas voz eventualmente em CD -, com o direito ao aproveitamento económico da voz da autora.
Se é verdade que a ré é proprietária daqueles suportes e pode fazer deles o que quer, já não é assim quanto ao aproveitamento económico do que neles foi fixado: a voz da gravação.
Se alguém compra um CD com uma gravação sonora, pode-o ouvir quando quiser, ou pode-o deitar fora. Mas ninguém se lembraria de dizer que esse alguém pode (licitamente) reproduzir esse CD e vender os CD que obtiver com essa reprodução.
Como lembra Paulo Mota Pinto, A limitação voluntária do direito à reserva sobre a intimidade da vida privada, em Estudos em Homenagem a Cunha Rodrigues, Coimbra Editora, vol. II, 2001, pág. 555, nota 60: “[…] não se deve confundir o direito (de personalidade) à imagem com os direitos incidentes sobre a sua corporização num determinado suporte (filme, negativo fotográfico, impressão ou suporte informático) […]”.
No mesmo sentido, veja-se David de Oliveira Festas, obra citada, nota 1258, pág. 359. Parafraseando esta nota, dir-se-ia que uma coisa é a voz, outra é a gravação da voz e ainda outra o suporte dessa gravação; objecto do direito à voz é a voz e a gravação da voz e não o suporte em si; o negócio que incida sobre o suporte não é um negócio sobre a voz nem sobre a gravação da voz.
Tal como “se um desportista celebra um contrato com uma sociedade nos termos do qual esta é autorizada a utilizar um seu retrato em cromos que serão colocados em cadernetas alusivas a determinados eventos desportivos (v. g. campeonatos), não se exige o consentimento do atleta para todo e qualquer acto de disposição sobre os cromos em que venha retratado” (David de Oliveira Festas, obra citada, nota 994, pág. 276).
A verdade, no entanto, é que os factos provados não permitem, seja de que modo for, concluir que a ré tenha adquirido a propriedade das gravações da voz da autora.
Designadamente que o tenha feito por força da cláusula 4ª do contrato.
V
Da cláusula 4ª do contrato
Diz a ré que “a ‘construção’ da autora baralha direitos de personalidade, direitos de autor / conexos e publicity rights para sustentar um pedido que não tem qualquer sustentação legal.”
A verdade é que é a ré que, ao invocar a cláusula 4ª dos contratos, trás à liça a questão dos direitos de autor e da propriedade das gravações sem qualquer razão.
A cláusula 4ª do contrato não tem nada a ver com as questões que os autos colocam, pois que apenas se reporta à eventualidade de virem a ser criadas, ao abrigo dos contratos, “obras” (no sentido de obras de direito de autor) e, para essa eventualidade, consigna-se que a titularidade do direito de autor relativo a essas obras pertencerá exclusivamente à ré.
Como não está em causa a criação de qualquer “obra”, ou a titularidade de qualquer “obra”, a questão não se coloca.
Mas a invocação desta cláusula serviu à ré para estabelecer a confusão com a questão da propriedade das gravações, levando a que a própria sentença se sirva do teor desta cláusula para falar, tal como a ré, na propriedade das gravações.
Sem qualquer razão como se vê.
Aliás, esta cláusula pode ser invocada em sentido contrário: A eventualidade da criação de obra, também revela a especialidade do objecto deste contrato de prestação de serviços. Dada o particular objecto deste contrato – a “imagem sonora” da autora – era possível que da actividade da autora pudesse resultar uma “obra”…
VI
Do contrato não podia ter resultado a transmissão da propriedade da voz ou das gravações da voz:
Dada a especial natureza do objecto do contrato, “do consentimento para o aproveitamento económico da voz decorre [apenas] uma situação creditícia, independentemente de a autorização concedida ser exclusiva […]” (David de Oliveira Festas, obra citada, pág. 364, ou conclusão 49, na pág. 431).
A voz é um atributo ou bem de personalidade, como o disse a sentença e a ré o reconhece. Bem de personalidade que, desde logo, não é uma coisa (David de Oliveira Festas, obra citada, pág. 66: “A literatura portuguesa viria, salvo raras excepções, a excluir os bens de personalidade do universo das coisas”; ver ainda págs. seguintes e especialmente pág. 72).
Sendo um bem de personalidade e por isso também objecto de um direito fundamental (art. 26/1 da CRP) não pode ser transmitido, nem renunciado. Apenas pode ser limitado no seu exercício (art. 81/1 do CC) (neste sentido, Paulo Mota Pinto, A limitação…, págs. 527 e segs, espec. pág. 527 e 554/555: “não existindo uma verdadeira transmissão do direito, ou de faculdades jurídicas que o integram, para o beneficiário da autorização – pois o consentimento não tem eficácia real translativa desse direito, o qual é, aliás, como começamos por referir, intransmissível”).
Como diz David de Oliveira Festas, obra citada, págs. 69, 71, 290 a 298, 352 a 364 e 411 (: “devem considerar-se nulos os actos de renúncia ou de transmissão do direito à imagem por contrariedade à dignidade humana e aos princípios da ordem pública [art. 26 da CRP e 81/1]).
Aliás, é esta intransmissibilidade do direito que levou a que o STJ, no famoso caso dos cromos “da” Panini considerasse que esta não tinha qualquer direito à imagem dos jogadores, ou melhor, na lógica da argumentação do STJ, ao retrato deles (págs. 343 a 350, da obra de David Oliveira Festas; o acórdão é de 08/11/2001 e está publicado na CJ.STJ.2001.III, págs. 113 a 115 e na base de dados do ITIJ sob o nº. 01B2853; o ac. do TRL de 18/12/2007 (7379/2007-2) discute, com um voto de vencido não publicado, a questão da aplicação da fundamentação deste acórdão, mas no caso deste último acórdão [da relação de Lisboa] os autores eram os próprios jogadores/titulares do direito à imagem).
VII
Do conteúdo patrimonial do direito à voz
Para além de um bem de personalidade, a voz, tal como a imagem, é objecto de um direito de personalidade que tem conteúdo patrimonial {David de Oliveira Festas, obra citada, págs. 55, 60/61, nota 167, págs. 71, 74, 75, nota 215, págs 85 a 139 e 416 a 421; embora este autor se esteja a referir ao direito à imagem, logo adverte (nota 10, pág. 20) que as reflexões expostas relativamente ao direito à imagem podem ser, em determinados aspectos, transpostas para outros direitos de personalidade (nome e voz) e antes tinha reconhecido a natureza semelhante destes bens de personalidade (vejam-se também as págs. 116, 203 e 204). Este mesmo autor, mais à frente, pág. 62, refere que não é possível separar o aproveitamento económico da imagem dos valores pessoais associados à imagem, e em nota, 170, completa: trata-se de um aspecto central e que tem sido defendido por diversos autores relativamente ao direito à imagem, mas também a outros direitos de personalidade patrimoniais [sendo que estes são sempre exemplificados apenas com a imagem, voz e nome, que são os direitos de personalidade que dizem respeito à identificação da pessoa na comunidade, tendo um conteúdo patrimonial elevado: págs. 77 e 116]}.
Reconhecendo o conteúdo patrimonial de alguns direitos de personalidade, veja-se:
Paulo Mota Pinto, A limitação…, págs. 551 e segs; e também Interesse contratual negativo e interesse contratual positivo, Coimbra Editora, Dez2008, págs. 1594 a 1603, especialmente pág. 1595, nota 4584: “Cumpre notar, aliás, que se verifica um crescente reconhecimento de uma dimensão patrimonial em muitos destes direitos de personalidade […] em correspondência com uma prática social corrente. E não cabe, a nosso ver, argumentar contra esta “comercialização” com a natureza pessoal dos interesses protegidos pelos direitos de personalidade, pois tal não exclui uma concomitante vertente patrimonial. Antes pelo contrário […]”.).
Menezes leitão, O enriquecimento sem causa no direito civil, Cadernos de Ciência e Técnica Fiscal, Lisboa, 1996, págs. 748/749: “não pode deixar de se considerar que se verificou uma evolução das concepções da sociedade no sentido da função económica dos direitos de personalidade e do valor representado pela sua comercialização [...] Não parece […] que se justifique negar a aplicação do enriquecimento sem causa nestes domínios, uma vez que esta pode aparecer como o único meio adequado de reagir contra a intervenção nesses direitos de personalidade, que se reconduza a um seu aproveitamento económico por parte do seu interventor”.
Júlio Gomes, O conceito de enriquecimento, o enriquecimento forçado e os vários paradigmas do enriquecimento sem causa, Porto, 1998, pág. 220: “Na sociedade moderna, parece evidente que certos direitos de personalidade, por exemplo, o direito à imagem, têm conteúdo económico”.
Para além destes autores, David de Oliveira Festas refere ainda (obra citada, págs. 125 a 127, notas 410 a 412 e págs. 416 a 421): Morais de Carvalho, Merchandising de marcas, págs. 57 e segs e 66 segs; Cláudia Trabuco, Dos contratos relativos ao direito à imagem, págs. 458: “aspectos patrimoniais e não patrimoniais que o compõem”; Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil português, I, tomo III, págs. 97/98 [também 106], de quem terá sido tirada a expressão “direito de personalidade patrimonial”; e Carlos Olavo, Propriedade industrial, vol. I, pág. 235: a relevância patrimonial não é […] incompatível com os direitos de personalidade”.
VIII
Do exclusividade do conteúdo patrimonial
Conteúdo patrimonial que pertence em exclusivo ao seu titular. É o que decorre do art. 79/1 do CC (David de Oliveira Festas, obra citada, págs. 54, 61, 115, 124 a 137 e 289 a 291), norma que, embora se refira apenas a um dos direitos de personalidade patrimoniais (imagem), é aplicável, por analogia, a todos eles (ou seja, também à voz e nome). Assim, David de Oliveira Festas, obra citada, nota 223 da pág. 78, admite expressamente a aplicação analógica do art. 79 (ver também págs. 85 e 128).
O artigo 79 só fala do direito à imagem porque à data da sua elaboração os problemas do tipo que estão em causa nestes autos, só se colocavam quanto ao direito à imagem e não porque entre a voz e a imagem exista uma diferença substancial que justificasse que a solução normativa em causa não se aplicasse àquela. David de Oliveira Festas (obra citada, pág. 204) lembra que mesmo nos EUA, o âmbito de protecção do right of publicity – referido pela ré – apenas será estendido à voz por um acórdão de 1988.
Veja-se também Rabindranath V. A. Capelo de Sousa, O direito geral de personalidade, Coimbra Editora, 1995, nota 562 da pág. 247, que diz: “A voz é não apenas um dos atributos extrínsecos de qualquer pessoa, que a identifica e individualiza, mas também um elemento intrínseco da personalidade, uma qualidade físico-espiritual, dotada de criatividade e de originalidade”. E logo a seguir acrescenta, num evidente paralelo com o que consta do art. 79/1 do CC: “Assim, ninguém pode, sem motivo justificado, fixar, difundir ou dispor da voz de outrem, cantada ou falada” (ver também nota 818, págs. 324/325).
No mesmo sentido, veja-se Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português, I, tomo III, 2007, 2ª edição, pág. 236: “a palavra humana também pode ser gravada e reproduzida. Ela tem características que permitem reportá-la a uma determinada pessoa e, apenas, a ela […] A utilização da gravação pode […] afrontar direitos patrimoniais legítimos. […] Nenhuma dificuldade existe em extrapolar, com base no art. 70 ou, se necessário, do art. 79, por analogia, um direito à palavra”
E ainda Maria do Rosário Palma Ramalho, O direito à imagem do desportista, notas breves, publicado nos Estudos em homenagem no centenário do nascimento do Prof. Doutor Paulo Cunha, Almedina, 2012, pág. 792, nota 3, cita esta passagem da obra de Menezes Cordeiro, numa clara aceitação da ideia [da aplicação, pelo menos por analogia, das regras do art. 79].
No Código Civil de Macau, que tem sido objecto de tratamento frequente pela doutrina portuguesa (veja-se por exemplo Paulo Mota Pinto, Os Direitos de Personalidade no Código Civil de Macau, BFDUC 2000, págs. 205 a 250, especialmente págs. 246 a 248), o art. 80/5 diz que o disposto relativamente ao direito à imagem “é aplicável, com as necessárias adaptações, à captação, reprodução e divulgação da palavra de uma pessoa” (citado através da nota 223 da obra de Pedro de Oliveira Festas).
Por sua vez, o art. 7/2e) do Código da Publicidade, aprovado pelo Dec. Lei 330/90, de 23/10 (já com 13 alterações, de que o sítio da PGD de Lisboa dá conta), proíbe, nomeadamente, a publicidade que “utilize, sem autorização da própria, a imagem ou as palavras de alguma pessoa”
IX
Da situação creditícia resultante do contrato
Assim, dada a natureza de bem de personalidade intransmissível, com um conteúdo patrimonial pertença exclusiva do seu titular, do contrato em causa não pode ter resultado a transmissão do direito à voz, mas apenas um consentimento para o aproveitamento económico, pela ré, do direito à voz da autora.
Esse consentimento, através do contrato, traduz-se na limitação do exercício do direito à voz, limitação prevista no art. 81/1 do CC.
Ou seja, “a limitação ao exercício do direito à imagem [no caso, à voz] e o seu aproveitamento económico são efectuados através de um instrumento jusprivatista vocacionado para a negociação relativa a bens intransmissíveis e irrenunciáveis: o consentimento” (David de Oliveira Festas, obra citada, pág. 411).
Dito de outra perspectiva, tendo em vista o que é dito na 1ª parte da conclusão d) das contra-alegações da ré, “qualquer disposição relativa ao retrato [no caso: à voz] de uma pessoa surge, efectivamente, como uma limitação ao direito à imagem [no caso: à voz]. O art. 81 será, assim, aplicável” (Menezes Cordeiro, obra citada, pág. 238]
X
Necessidade de o consentimento ter um âmbito estritamente delimitado
Por isso, num contrato que o tenha por objecto, a concessão de poderes (através do consentimento vinculante, que a ré refere através de Capelo de Sousa, mas que virá de Orlando de Carvalho, Teoria Geral de Direito Civil, Sumários desenvolvidos, Coimbra 1981, pág. 183, Paulo Mota Pinto, A limitação…, págs. 537/539, nota 52, e págs. 551/553, ou em Interesse contratual negativo e interesse contratual positivo, Coimbra Editora, Dez2008, págs. 1594 a 1603, em que já discute a crítica desta classificação na obra de David de Oliveira Festas, págs. 323 a 325 e nota 1312, págs. 374/375, e nota 1346, págs. 385/386) para o aproveitamento económico da voz tem de ser delimitada rigorosamente, designadamente através de limites temporais e do fim para que a concessão foi feita
Como diz David de Oliveira Festas, obra citada, págs. 289 a 298 e 318 a 328, especialmente págs. 326/327: “Como princípio geral, pode dar-se por assente que o objecto do consentimento, considerado nas suas diferentes perspectivas, deve ser determinado ou ser, pelo menos, determinável (art. 280/1). Parece-nos inadmissível um consentimento ilimitado, equivalente, em termos práticos, a uma renúncia ao direito à imagem.”.
Como exemplos, veja-se o que este autor escreve mais à frente (nota 1092, pág. 307): “qualquer negócio jurídico que tenha por objecto o aproveitamento económico da imagem de um recém-nascido que contenha uma obrigação que o vincule depois da maioridade (e mesmo durante um largo período de tempo), deve ter-se por nulo por ofensa à ordem pública ou aos bons costumes (arts. 81/1 e 280/2). Pense-se nomeadamente num negócio jurídico nos termos do qual os pais acordem que a imagem do seu filho de um ano estará pelo período de 16 anos associada à comercialização de uma determinada marca de equipamento desportivo”.
Um contrato em que essa determinação temporal não constasse, ou não pudesse ser feita, seria nulo (arts. 81/1 e 280/1, ambos do CC). Assim, Paulo Mota Pinto, A limitação… pág. 546, julga que “o acordo ou o consentimento deve ter um âmbito estritamente delimitado, isto é, referido apenas a certos factos, delimitáveis material, temporalmente e espacialmente”).
Ou, dito de outro modo, um contrato que se traduzisse no direito de a ré utilizar economicamente a voz da autora, perpetuamente, seria o equivalente à renúncia, parcial, da autora, ao mesmo direito, e por isso nulo (David de Oliveira Festas, obra citada, págs. 320/321 e 326; este autor admite um negócio sem termo, desde que esteja salvaguardada a possibilidade de denúncia a todo o tempo, para qualquer uma das partes [nos termos gerais que valem para qualquer negócio jurídico de duração indeterminada] nota 1146, pág. 326 – note-se que não é o caso dos autos, em que o contrato tinha termo e de qualquer modo foi entretanto revogado por mútuo acordo).
XI
A determinação resulta ainda da finalidade da utilização.
David de Oliveira Festas (obra citada, pág. 327, nota 1151), referindo-se à finalidade da utilização, diz: “trata-se de um aspecto particularmente importante. O consentimento está associado a um determinado fim, e a utilização económica do retrato para um fim diverso daquele que (expressa ou tacitamente) resulta do consentimento do titular configura um acto ilícito e inadmissível. Neste contexto são diversos os autores germânicos que defendem, com bons resultados, uma aplicação analógica da teoria oriunda do direito de autor da ‘Zweckübertragung’, no sentido de que o titular do direito só dispõe da sua imagem na medida em que tal seja exigido pela finalidade do contrato que lhe subjaz ou no qual se enquadra”.
No caso paralelo das fotografias, tem-se entendido, correctamente, que o consentimento prestado para um dado fim, não pode ser utilizado para outros fins. Se A consente em posar numa sessão fotográfica para a ilustração da capa de um álbum, esse consentimento não pode ser utilizado para a divulgação da imagem do A em cartazes com outros fins. É o caso tratado no ac. do TRL de 28/09/2004 (1086/2003-7 da base de dados do ITIJ), citado por David de Oliveira Festas, obra citada, nota 1152 da pág. 328.
O mesmo vale para o consentimento contido num contrato. Vale para os fins desse contrato e não para nenhuns outros e enquanto o mesmo vigorar.
XII
Aquilo que a ré não pode ter adquirido pelo contrato
Serviu isto tudo para estabelecer o seguinte: o consentimento constante do contrato em causa nos autos, nunca poderia ser um consentimento para a utilização perpétua ou ad eternum de que fala a ré.
Assim, conclui-se que, por um lado, a ré não pode ter adquirido a propriedade da gravação da voz da autora, e, por outro, também não poderia ter adquirido um direito creditício ao aproveitamento económico da gravação da voz da autora para todo o sempre.
Aliás, estas duas argumentações da ré – tenho a propriedade da gravação e tenho autorização para a utilizar perpetuamente – , que não são apresentadas como subsidiárias, são contraditórias: quem tem a propriedade de uma coisa, não precisa de autorização para a usar. Um proprietário não diz que pode utilizar as suas coisas porque tem consentimento de alguém…
XIII
O right of publicity e o direito à imagem ou à voz
É aqui relevante a diferença entre o right of publicity – invocado pela ré - e o direito à imagem ou voz. Enquanto no direito americano, o right of publicity pode ser transmitido e por isso se adquire um property right, no direito de matriz continental o direito à imagem ou à voz não pode ser transmitido e por isso não se adquire qualquer direito de propriedade sobre a imagem ou voz. Assim, se nos EUA se pode dizer que o adquirente do retrato da Broke Shields pode aproveitá-lo como e quando quiser (como se decidiu no caso Shields v. Gross), em Portugal a retratada poderia revogar o consentimento prestado, para além de que a concessão de poderes sobre o retrato teria de ter sido delimitada e só vigoraria no período de duração do contrato (veja-se sobre isto, as págs 217 a 234 da obra citada de David de Oliveira Festas, de onde foi retirada a ideia da construção, sem que com isto se queira dizer que este autor concorde com esta construção).
XIV
Da cessação do contrato
E, por tudo isto, os poderes que a ré recebeu da autora através do contrato, que se traduzem numa situação creditícia, não podem ter subsistido à cessação do contrato (factos 12 e 13). Um consentimento vinculante prestado num contrato que subsistisse depois deste ter sido revogado por mútuo acordo, corresponderia afinal à transmissão do direito ao aproveitamento da voz, o que já se viu não ser possível. E que, aliás, por ser perpétuo ou ad eternum, como é caracterizado pela ré, seria nulo ainda por indeterminação temporal.
XV
Do que a ré obteve com o contrato
De qualquer modo, os factos provados apontam no sentido de que o aproveitamento económico das gravações da autora apenas poderia ocorrer durante o período de validade do contrato.
O contrato dos autos deve ser interpretado nos termos das regras gerais de qualquer outro contrato (arts. 236 a 238 do CC; David de Oliveira Festas, obra citada, págs. 325/326: “a extensão do consentimento para o aproveitamento económico da imagem (designadamente os poderes dele resultantes) deve ser aferida interpretando-se, nos termos gerais (arts. 236 e segs), a declaração de consentimento” e pág. 296: “o consentimento para o aproveitamento da imagem (arts. 79 e 81) surge, em regra, como um verdadeiro e próprio negócio jurídico”). No mesmo sentido, Paulo Mota Pinto, A limitação…, pág. 537: “julgamos que a autorização para a limitação voluntária do direito à reserva, emitida no confronto de outrem, deve ser considerada um negócio jurídico, seja quando integrada num verdadeiro “contrato de autorização” […], seja como negócio jurídico unilateral (previsto justamente no art. 81)” (ver também pág. 539).
Ora, estamos perante um contrato, oneroso, que concedeu à ré poderes para se aproveitar economicamente de um direito cujo exclusivo de aproveitamento está destinado ao seu titular e que não pode ser transmitido para outrem.
Por isso, se nesse contrato se diz que o presente contrato tem a duração de um ano, não há qualquer razão para entender que esse prazo vale só para a obrigação de uma das partes, em vez de se entender que vale para todo o contrato, como o diz expressamente, ou seja, para todas as obrigações.
É esse o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, tiraria das declarações negociais emitidas (art. 236/1 do CC).
E se houvesse alguma dúvida, era esse o sentido que conduziria ao maior equilíbrio das prestações (art. 237 do CC), pois que de outro modo a ré teria adquirido, para todo o sempre, um direito de aproveitamento económico de que só tinha pago o aproveitamento inicial.

XVI
Do ónus da prova
Para além disso, o ónus da prova dos factos constitutivos do direito da ré continuar a aproveitar economicamente a voz da autora, cabia à ré (art. 342/1 do CC).
Como diz Paulo Mota Pinto, A Limitação…, pág. 539, nota 28: “[…] O ónus da prova da existência de um consentimento ou acordo, quer este seja concebido como causa de justificação ou como limitação voluntária do direito, compete ao respectivo beneficiário e não ao titular do direito […]”.
Assim, não era à autora que cabia provar os factos tendentes a demonstrar que o consentimento só vigorava – aliás, natural e logicamente, como já se disse – durante o período de vigência do contrato, mas era à ré que cabia demonstrar o contrário, isto é, que a titular do exclusivo lhe tinha concedido os poderes para sempre, ad eternum, perpetuamente e que apesar de o contrato ter sido revogado por mútuo acordo, tais poderes subsistiam….
Ou seja, teria que ser a ré a alegar e a provar que do contrato resultava o direito de, findo o mesmo, a ré continuar a aproveitar economicamente as gravações feitas pela autora.
O que a ré não fez, como aliás resulta do teor das suas próprias contra-alegações: dizer-se que nada indicia que a utilização estivesse limitada pela vigência do contrato, é o mesmo reconhecer que não se provou que a utilização não estava limitada pelo contrato, pois que, caso contrário, se diria que estava provado e não se falaria em indícios.
Não o tendo feito, teria que invocar um outro título para poder continuar a aproveitar a voz da autora – o outro tinha cessado – o que a ré não fez.
XVII
Em suma, poder-se-ia desde já concluir que a ré não provou ter poderes para, findo o contrato que lhos dava, continuar a aproveitar economicamente as gravações da voz da autora.
No entanto, vejam-se ainda outras objecções da ré:
Dos publicity rights
É também a ré, e não a autora, a trazer à liça a questão dos publicity rights.
O right of publicity é um modo de ver as questões do direito ao aproveitamento económico dos bens de personalidade no Direito dos Estados Unidos da América: “[…] configura um tort autónomo destinado a proteger uma pessoa do aproveitamento económico não consentido de ‘indícios” da sua ‘identidade’ (personalidade)” (David de Oliveira Festas, obra citada, pág. 150). Note-se que estes “indícios de identidade” englobam todas as formas de identificação da pessoa, nomeadamente coisas, e não apenas bens de personalidade de matriz continental, como a imagem, nome ou voz – nota 547 da pág. 166)
Ou seja, o right of publicity não é uma figura do Direito dos EUA que se possa dizer, como o faz a ré, que só existe no nosso país no regime do contrato de trabalho do praticante desportivo (art. 10 da Lei 28/98, de 26/07)…, mas sim um modelo (aliás considerado insatisfatório) de tutela dos valores patrimoniais dos direitos de personalidade (David de Oliveira Festas, obra citada, pág. 427, conclusões 23 e 24), que tem um modelo alternativo no direito de matriz continental, baseado nos direitos à imagem, voz e nome, com lugar próprios nos arts. 79 a 81 do CC.
Seja como for…
Diz a ré que não é aplicável o regime dos publicity rights porque os serviços prestados pela autora em momento algum tiveram como pressuposto a sua (hipotética) celebridade.
Diga-se desde logo que a transcrição da cláusula 2ª dos contratos e o que já se disse acima quanto a ela (parte II), de algum modo logo sugere que não é assim (isto é, quanto à alegada inexistência deste pressuposto).
De qualquer modo, está muito longo de ser verdade que os publicity rights tenham como pressuposto a celebridade do seu titular. David de Oliveira Festas, obra citada, págs. 86, nota 256, 89, nota 263, demonstra que é o contrário o que se entende nos EUA quanto a tal questão: o aproveitamento económico de direitos de personalidade não se limita a pessoas com notoriedade pública – ou figuras públicas ou celebridades - ou a um determinado grupo de pessoas ou classe social; e especialmente nas págs. 190 a 195, que termina referindo que o § 46, comment b, do Restatement (Third) of Unfair Competition, considera que tanto as figuras públicas como as pessoas sem notoriedade pública podem intentar uma acção com base em lesão do seu right of publicity).
Por outro lado, relativamente ao direito civil português, não há ninguém – ou não se conhece ninguém – que defenda que o conteúdo patrimonial dos direitos de personalidade dependa da celebridade do seu titular (vejam-se, por exemplo, os dois autores citados na nota 256 da pág. 86).
XVIII
Da recognoscibilidade
Diz a ré que ninguém sabe que é a voz da autora nas gravações em causa. Trata-se, desde logo, de um facto que não consta dos factos provados…
De qualquer modo e parafraseando David de Oliveira Festas, obra citada, pág. 242, poderia dizer-se que a recognoscibilidade é um dos componentes da fixação da voz enquanto objecto da protecção patrimonial. E esse elemento tem sido exigido para que seja concedida protecção do direito à imagem (ou da voz, no caso) (também no right of publicity – págs. 197/198). Mas essa recognosciblidade tem apenas a ver com a susceptibilidade de identificação da pessoa através da imagem (no caso, da voz) por pessoas que conheçam o titular, nomeadamente por familiares (págs. 246 a 250: “O possível reconhecimento pelas pessoas do círculo íntimo é quanto basta para que a personalidade da pessoa e a sua identidade estejam em causa).
Para além disso, e quanto ainda a esta objecção, vale ainda o que se disse acima na parte II.
XIX
Da (ir)revogablidade do consentimento
A posição de Capelo de Sousa quanto à irrevogabilidade do consentimento não tem, no caso, interesse, pois que acaba por não estar em causa a revogação unilateral de qualquer consentimento. A posição assumida neste acórdão é que o consentimento deixou de existir com a revogação, por mútuo acordo, do contrato.
XX
Outras objecções da ré
A pergunta formulada pela ré em e) esquece duas coisas: primeiro, que o alcance do consentimento depende do seu conteúdo e, segundo, que no caso dos autos não se trata de interromper um contrato em vigor ou um consentimento que se tenha provado vigorar para além do contrato.
*
O que consta em f) esquece, de novo, que não se trata de a autora estar a revogar um consentimento prestado, mas sim de a ré estar a fazer um aproveitamento económico da voz da autora, depois de findo o contrato, sem provar ter consentimento para o efeito.
*
O que consta do facto 11 (“as sucessivas renovações do contrato foram realizadas para permitir novas locuções e gravações”), referido pela ré em k), não pode implicar o contrário das soluções encontradas, desde logo porque nele não se diz que tenha sido esse o único fim (note-se que a ré alegava ainda: “e não para garantir a vigência de um consentimento”, sendo que esta parte não foi dada como provada, nem se acrescentou “apenas” ou “só” ao dado como provado, sem que a ré tenha interposto recurso da decisão de facto), nem, por outro lado, se sabe se as gravações utilizadas dizem respeito a gravações dos anteriores contratos e não do último (e tendo sido do último, a questão já não se punha porque este contrato já não foi renovado).
De resto, mesmo que se tivesse provado tudo o que a ré alegava, o facto não passaria de uma interpretação subjectiva dos fins das partes, que não se poderia sobrepôr à correcta aplicação da lei aos restantes factos provados. Com as duas afirmações feitas (no art. 40 da contestação), a ré tentava resumir a posição das partes nos autos e pretendia que se optasse por uma delas. Ou seja, aquelas duas afirmações representavam uma conclusão que se pretendia obter logo na decisão da matéria de facto. Ora, como matéria conclusiva, a mesma teria de se ter por não escrita (“o questionário não pode incluir um quesito que a priori contenha a resolução da questão concreta do direito que é objecto da acção, limitando-lhe ou traçando-lhe o destino. Formulado ele, a respectiva resposta não pode deixar de ser tida por não escrita – art. 646/3 do CPC, aplicado por analogia.” (ac. RL, de 28/05/1987, CJ, 1987, III, pág. 99, citado por Abílio Neto em CPC Anotado, Ediforum, 16ª ed, pág. 819). Acrescenta o acórdão: “[…A]través da resposta directa ao quesito em causa estava achada a solução definitiva do problema que opõe autor e réu […] Porque é um juízo que há-de fluir de um somatório de factos, constituindo, assim, matéria conclusiva, não pode ser levado ao questionário […]”.
XXI
Do enriquecimento sem causa
Tendo-se concluído que a ré não demonstrou que tivesse, depois de findo o contrato, o direito de aproveitar economicamente as gravações efectuadas pela autora durante a vigência do contrato, fica por decidir quais as consequências de tal aproveitamento.
Se estivesse em causa a ofensa ilícita, culposa e danosa dos direitos de personalidade da autora, e principalmente dos valores pessoais de tais direitos, tal daria lugar à responsabilidade aquiliana (arts. 483 do CC).
Mas no caso não é isso que está em causa.
O que se discute é antes, como se disse, as consequências do aproveitamento económico pela ré, depois de findo o contrato, das gravações efectuadas pela autora durante a vigência do contrato.
Já se viu que, por força do art. 79/1 do CC, o direito ao aproveitamento económico das gravações da voz da autora é um direito exclusivo do seu titular.
Pode-se ver nisto a destinação do conteúdo patrimonial desse direito à autora (David de Oliveira Festas, obra citada, pág. 117 e notas 374 a 376 e págs. 118-119; Menezes Leitão, obra citada, págs. 741 e segs, especialmente págs. 743 e 749: “protecção da personalidade contra intervenções não autorizadas no direito à imagem, que redundam em lucro para o interventor”, incluindo a expressão oral; Paulo Mota Pinto, O direito à reserva, BFDUC 1993, pág. 582: “restará ao titular do direito, nestes casos, a via da pretensão restitutória fundada no enriquecimento sem causa, nos termos do art. 473 do CC, já que o locupletamento não deixará nestes casos de ser “à custa de outrem”; Menezes Cordeiro, obra citada, pág. 235: “Tais lucros deveriam reverter para o próprio retratado: seja para evitar o enriquecimento alheio, seja porque o Direito positivo em jogo reconhece tal faculdade lucrativa ao “dono” originário da imagem”; Leite Campos, A subsidiariedade da Obrigação de restituir o enriquecimento, págs. 470-471, nota 2, reconhecendo a existência de um conteúdo de destinação”, citado através de David de Oliveira Festas, nota 412 da pág. 126).
A apropriação desse conteúdo por outrem traduz-se num enriquecimento sem causa por parte desse outrem à custa do titular do direito.
Assim, a autora tem o direito à restituição desse enriquecimento por parte da ré, ao abrigo da cláusula geral do nº. 1 do art. 473/1 do CC.
XXII
Qual a medida dessa indemnização/restituição?
David de Oliveira Festas lembra que na jurisprudência francesa é atribuída uma indemnização em função da remuneração habitual para aquelas situações (obra citada, nota, 350 da pág. 110).
Menezes Leitão, obra citada, pág. 744, diz que no caso Paul Dahlke o tribunal alemão considerou que o enriquecimento seria determinado pela remuneração habitual da utilização da imagem no caso e mais à frente (750/751) diz que “face ao art. 479/1 do CC a não restituição não pode abranger mais do que o valor que representa o aproveitamento do direito da personalidade, não havendo lugar à restituição de todos os ganhos obtidos pelo interventor.” A boa ou má fé do interventor é valorada depois para outras questões que no caso não têm importância.
Em termos mais genéricos, Júlio Gomes, obra citada, pág. 227, diz que “quem, como nós, entenda que o objecto da obrigação de restituir consiste antes no enriquecimento real (sendo o enriquecimento patrimonial apenas um limite que se destina a proteger o enriquecido de boa fé) hesitará em trilhar esta via [a de eliminar todo o enriquecimento patrimonial que se regista na esfera do enriquecido e, portanto, também todo o lucro causalmente resultante de uma sua ingerência na esfera jurídica alheia]. O objecto da obrigação de restituir fundado no enriquecimento sem causa, é, para nós, sempre o valor da coisa, do bem, do serviço, da competência alheia, indevidamente recebido ou apropriado e não as consequências, os reflexos do que se obteve no património do enriquecido.”
No casos destes autos, ficou provado que (facto 18) de acordo com os usos da profissões, as locuções em que não exista uma negociação/contrato prévios têm o prazo de validade de um ano a partir da data da primeira exibição ou 15 dias após a gravação e findo esse prazo há lugar ao pagamento integral das peças em causa, de 100% por cada ano, de acordo com a tabela de locuções, sendo obrigatória a autorização antecipada do locutor em causa.
Tudo isto conduz à restituição nos termos pedidos pela autora – a remuneração habitual. Note-se que a autora não pediu – correctamente - qualquer lucro que a ré tivesse obtido com as gravações da sua voz.
Aquilo que a autora vinha recebendo em cada ano era (factos 8 a 9) a retribuição de 7.500€, acrescida da oferta de chamadas ilimitadas para a rede “B” e de 100 minutos por mês para outras redes, com o valor anual de 613,80€.
O contrato – e com ele os poderes concedidos à ré - cessou em 05/09/2005 (facto 13)
XXIII
Da sanção pecuniária compulsória
Por força do art. 829-A do CPC, “1. Nas obrigações de prestação de facto infungível, positivo ou negativo, […], o tribunal deve, a requerimento do credor, condenar o devedor ao pagamento de uma quantia pecuniária por cada dia de atraso no cumprimento ou por cada infracção, conforme for mais conveniente às circunstâncias do caso. 2. A sanção pecuniária compulsória prevista no número anterior será fixada segundo critérios de razoabilidade, sem prejuízo da indemnização a que houver lugar. 3. O montante da sanção pecuniária compulsória destina-se, em parte iguais, ao credor e ao Estado.
O valor anual da “licença” da autora era de 8.113,80€, o que corresponde ao valor diário de 22,23€, a que a autora continuará a ter direito enquanto a ré se continuar a aproveitar das gravações da sua voz. Assim, julga-se suficiente que, para além disso, a ré seja condenada a pagar, por cada dia em que se mantiver tal aproveitamento ou a possibilidade dele, metade desse valor, destinado em partes iguais à autora e ao Estado.
Isto sem prejuízo dos juros de 5% previstos automaticamente no nº. 4 do art. 829-A.
XXIV
Juros
Como a obrigação de restituição decorre de um aproveitamento ilícito do direito da autora, mas a obrigação da ré só se liquida com este acórdão, a mora só existe a partir da citação da ré para a acção (arts. 804 e 805/3 do CC). Desde tal data são devidos juros de mora legais (arts. 806 e 559 do CC), de 4% ao ano até eventual alteração legal (Portaria 291/2003, de 8/4).
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(…)
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Pelo exposto, julga-se procedente o recurso e condena-se a ré a:
a) a retirar do voice mail da rede “BBB” quaisquer gravações e locuções contendo registos de voz da autora, bem como a não utilizar, reproduzir ou divulgar as gravações e locuções contendo os registos de voz da autora, seja qual for o suporte, meio ou fim em causa;
b) a pagar-lhe 8.113,80€ por cada ano a contar de 05/09/2005 e o proporcional por ano incompleto, até que seja feita a retirada referida em a), acrescidos dos juros anuais de 4% vencidos a partir de 21/04/2009 e vincendos a partir deste acórdão;
c) e a pagar-lhe uma sanção pecuniária compulsória, de 11€ por dia, por cada dia de atraso no cumprimento da condenação referida em a), destinados em partes iguais à autora e ao Estado.

Custas pela ré quer na acção quer no recurso.

Lisboa, 21 de Março de 2012.

Pedro Martins
Sérgio Silva Almeida
Lúcia Sousa