Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
286-A/2001.L1-8
Relator: RUI DA PONTE GOMES
Descritores: GRADUAÇÃO DE CRÉDITOS
HIPOTECA
PRIVILÉGIO CREDITÓRIO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/23/2012
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: A graduação de créditos que é elaborada preferindo o crédito reclamado pelo Instituto da Segurança Social, I.P., sobre a hipoteca, por aplicação do art. 11º do Decreto-lei nº103/80 de 9-V e do art. 751º do C. Civil, é inconstitucional ilegal, posto que tal privilégio, constituindo uma derrogação ao princípio geral consagrado no mencionado art. 735º, nº3, de que os privilégios imobiliários são sempre especiais, consubstancia um perigo para o comércio jurídico-económico, já que o mesmo vale relativamente a terceiros independentemente de registo.
(Sumário do Relator)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa:

I – Estado da Causa

Por apenso aos autos de execução para pagamento de quantia certa, com processo sumário, que correm termos no 2ºJuízo Cível do Tribunal da Comarca de Lisboa, e em que são executados, A…, B…e C…, e é exequente, F…, S.A. (anteriormente denominada F– Crédito P.., SA) ____ vieram: - o Banco C…, S.A. reclamar o pagamento de um crédito no valor de 117 820,88 €, correspondente ao capital e juros vencidos até 22 de Setembro de 2006, acrescidos dos juros vincendos desde essa data até integral e efectivo pagamento à taxa de 8.75% ao ano, pedindo que seja considerada verificado e graduada no lugar que lhe competir; e o Instituto da Segurança Social, I.P. reclamar o pagamento de um crédito no valor de 29 016,01 €, e respectivos juros vincendos, pedindo que o mesmo seja verificado e graduado com a preferência que lhe concedem os privilégios que o garantem.

O primeiro, Banco C…, S.A., fundamentou a sua pretensão___ súmula___ nos seguintes factos: - o Banco M…, SA, foi integrado no Banco C…, S.A. por força da operação de cisão-fusão, registada em 22 de Dezembro de 2000; na sequência o Banco C…SA sucedeu em todos os direitos e obrigações do extinto Banco M…, SA; no dia 8 de Setembro de 2000 e no exercício da sua actividade bancária, o Reclamante, então Banco M… Imobiliário, SA, celebrou com o Executados o Contrato de Mútuo da quantia de 17.100.000$00 montante que hoje corresponde a 85 294,44 €, pelo prazo de 30 anos, Contrato de Mútuo da quantia de 4.050.000$00 montante que hoje correspondente a 20.201,31 €, pelo prazo de 20 anos; clausulou-se nos citados contratos que o capital mutuado será liquidado pelos Executados em prestações mensais e sucessivas, acrescido dos juros remuneratórios à taxa prevista naqueles documentos, para os quais se remete, a qual, em caso de mora, seria acrescida da sobretaxa de 4% ao ano; em razão das obrigações emergentes daqueles contratos, o Reclamante entregou aos Executados as quantias acima referidas, nos termos que nos mesmos são previstos; para garantia do capital mutuado, respectivos juros e demais despesas, constituíram os mutuários, ora Executados, a favor do Reclamante, duas hipotecas sobre as seguintes fracções autónomas, fracção autónoma designada pela letra "M", correspondente ao rés-do-chão esquerdo para habitação, do prédio urbano, em regime de propriedade horizontal, sito em …, lote …, freguesia de …, concelho de …, descrito na Conservatória do Registo Predial de … sob o n." …, da dita freguesia, e inscrito na matriz sob o artigo …, ora penhorada, fracção autónoma designada pela letra "…", correspondente à cave lado direito para arrumos, a terceira à esquerda da fracção …, do prédio urbano, em regime de propriedade horizontal, sito em …, lote … freguesia de …, concelho de …, descrito na Conservatória do Registo Predial de … sob o n." …, da dita freguesia, e inscrito na matriz sob o artigo …, e, fracção autónoma designada pela letra "…", correspondente à cave lado direito para arrumos, a quarta à esquerda da fracção …, do prédio urbano, em regime de propriedade horizontal, sito em …, lote …, freguesia de …, concelho de …, descrito na Conservatória do Registo Predial de … sob o n." …, da dita freguesia, e inscrito na matriz sob o artigo …; as referidas hipotecas foram registadas respectiva e provisoriamente pelas Inscrições …, Apresentação …, e C-2, Apresentação …, e convertidas em definitivo, respectivamente, pela Apresentação … e pela Apresentação …, na mencionada Conservatória; os Executados não cumpriram com as obrigações a que se vincularam, não tendo efectuado o pagamento das seguintes prestações, relativamente ao Contrato de Mútuo junto como documento n." 2, da prestação vencida em 5 de Maio de 2005, nem das subsequentes, e relativamente ao Contrato de Mútuo junto como documento nº3, da prestação vencida em 5 de Agosto de 2005, nem das subsequentes; pretende o Reclamante reaver o capital e os juros em dívida dado que o incumprimento por parte dos Executados tomou vencida toda a dívida, respectivamente, em 5 de Maio de 2005 e em 5 de Agosto de 2005; a taxa de juros em vigor à data do vencimento da totalidade da dívida era, em ambos os contratos, de 4.75%, pelo que, acrescida da sobretaxa de 4% prevista nos contratos em apreço para o caso de mora, a taxa de juros devida pelos Executados é de 8.75%; a dívida dos Executados ascende, assim e na presente data, 26 de Dezembro de 2007, ao montante global de € 117.820,88, correspondendo € 78.792,61 ao capital em dívida no âmbito do Contrato de Mútuo junto como documento nº2, € 18.480, 70 aos juros, contados desde a data de vencimento desse empréstimo, 5 de Maio de 2005, até à presente data, 26 de Dezembro de 2007, à taxa de 8.75% ao ano; € 16.950,82 ao capital em dívida no âmbito do Contrato de Mútuo junto como documento nº3, e € 3.569,75 aos juros, contados desde a data de vencimento desse empréstimo, 5 de Agosto de 2005, até à presente data, 26 de Dezembro de 2007, à taxa de 8.75% ao ano; o Reclamante tem o direito de ser pago pelo valor do imóvel hipotecado com preferência sobre todos os demais credores que venham aos presentes autos reclamar o seu crédito e não gozem de privilégio especial ou prioridade de registo. Juntou documentos (fls. 8 a 63 e 91 a 115).

A segunda, Instituto da Segurança Social, I.P., fundamentou a sua pretensão, em síntese, nos seguintes factos: - o executado é contribuinte do reclamante; é obrigado a entregar, ao reclamante, no prazo legal, as declarações de remunerações pagas aos trabalhadores ao seu serviço e a efectuar o depósito das contribuições correspondentes; embora tenha feito a entrega das respectivas declarações de remunerações, não pagou ao reclamante as correspondentes contribuições no valor de 20 942,37 €, que se encontram devidamente certificadas; deve também os juros demora à taxa legal de – 1% a partir de Abril de 1999, que até Janeiro de 2008 estão vencidos no valor de 8 073,64 €; o crédito do reclamante encontra-se garantido pelo privilégio mobiliário geral e por privilégio imobiliário.

Notificados do despacho que admitiu, in limine, a reclamação, tanto os Executados como a Exequente não deduziram qualquer oposição.

Foi, então, proferida a douta sentença de verificação e graduação de créditos de 24 de Fevereiro de 2011 (fls.126/132), que decidiu graduar os créditos reclamados pela ordem seguinte: - 1º) - O crédito do Credor Reclamante ISS, IP proveniente de contribuições para a Segurança Social e que perfaz a quantia global de 20 942,37 € (vinte mil novecentos e quarenta e dois euros e trinta e sete cêntimos) acrescida dos respectivos juros de mora vencidos até 09/01/2008 no valor de 8 073,64 € (oito mil e setenta e três euros e sessenta e quatro cêntimos), e dos juros de mora vencidos e vincendos desde 10/01/2008 até integral e efectivo pagamento; 2º) - O crédito do Credor Reclamante BANCO C…, SA no montante de 95 743,43 € (noventa e cinco mil setecentos e quarenta e três euros e quarenta e três cêntimos), acrescido de juros vencidos até 26/12/2007 no valor de 22.050,45 € (vinte e dois mil e cinquenta euros e quarenta e cinco cêntimos) e juros vencidos e vincendos desde 27/12/2007 a 05/05/2008, à taxa de 8,75%; 3º) - O crédito exequendo.

È desta douta sentença de verificação e graduação de créditos de 24 de Fevereiro de 2011 (fls.126/132) que apela o Banco C…, S.A. ____ Concluindo:

1º) – A douta sentença, ora impugnada, graduou o crédito reclamado pelo Instituto da Segurança Social, I.P., com preferência sobre o crédito do ora apelante, por aplicação do art. 11º do Decreto-lei nº103/80 de 9-V e do art. 751º do C. Civil. Acontece que o Tribunal Constitucional declarou a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, de tal preceito, na interpretação segundo a qual o privilégio imobiliário geral nele conferido à Segurança Social prefere à hipoteca, nos termos do art. 751º do C. Civil; 2º) – O Código Civil apenas prevê, no nº3 do art. 735º, privilégios imobiliários especiais. Assim. O privilégio imobiliário geral para garantia dos créditos da Segurança Social previstos no art. 11º do Decreto-lei nº103/80 de 9-V, constitui uma derrogação ao princípio geral consagrado no mencionado art. 735º, nº3, de que os privilégios imobiliários são sempre especiais.

II – Os Factos

São os seguintes:

1 - Nos autos de execução para pagamento de quantia certa, com processo sumário, que constituem o processo nº2… da …ªSecção, do …ºJuízo do Tribunal Cível da Comarca de …, em que é Exequente F ….., SA (anteriormente denominada F. CP, SA, e Executados A…, B… e C…, para garantia do crédito exequendo, na data de 14/07/2003, foi efectuada a penhora sobre o bem imóvel correspondente à «…fracção autónoma designada pela letra "…", correspondente ao rés-do-chão esquerdo do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de … sob o nº… da freguesia de … e inscrita na matriz predial da mesma freguesia, do o art. …º…» (cf. termo de penhora de fls. 84 dos autos que constituem o apenso A). 2) - A aquisição do direito de propriedade sobre a fracção autónoma referida em 1) encontra-se registada a favor dos Executados B… e C…, sendo que provisoriamente desde 09/06/2000 e definitivamente desde 27/11/2000 (cf. certidão de fls. 94 a 99 do autos que constituem o apenso A). 3) – Sobre a fracção autónoma referida em 1) encontram-se registadas sendo que provisoriamente desde 09/06/2000 e definitivamente desde 27/11/2000, a favor do Credor Reclamante Banco C…, SA (que incorporou, por fusão, o Banco M…Imobiliário, SA), duas hipotecas, sendo uma para garantia de empréstimo com capital no valor de Esc. 17.100.000$00/€, juro à taxa anual de 6,552%, acrescido de 4% em caso de mora, a título de cláusula penal, despesas de Esc. 684.000$00/€ 3411,78, tudo até ao montante máximo de capital e acessórios de Esc. 23.197.176$00/€ 115.707,03.370,77, e uma outra para garantia de empréstimo com capital no valor de Esc. 4.050.000$00/€ 20.201,31, juro à taxa anual de 6,266%, acrescido de 4% em caso de mora, a título de cláusula penal, despesas de Esc. 162.000$00/€ 808,05, tudo até ao montante máximo de capital e acessórios de Esc. 5.459.319$00/€ 27.230,97 (cf. certidão de fls. 94 a 99 dos autos que constituem o apenso A). 4) – A penhora referida em 1) encontra-se registada desde 16/09/2003 (cf. certidão de fls. 94 a 99 do autos que constituem o apenso A).

Aceitamos os factos fixados (art. 712º do C. P. Civil).

III – O Direito

Estatui o art. 604º do C. Civil que “…1 – Não existindo causas legítimas de preferência, os credores têm o direito de ser pagos proporcionalmente pelo preço dos bens do devedor, quando ele não chegue para integral satisfação dos débitos. 2 - São causas legítimas de preferência, além de outras admitidas na lei, a consignação de rendimentos, o penhor, a hipoteca, o privilégio e o direito de retenção…”.

Cabe, pois, in casu, de modo específico, ocuparmo-nos da hipoteca e do privilégio creditório.

De harmonia com o preceituado no art. 733º do C. Civil “…Privilégio creditório é a faculdade que a lei, em atenção à causa do crédito, concede a certos credores, independentemente do registo, de serem pagos com preferência a outros…”.

Os privilégios creditórios são de duas espécies: - mobiliários e imobiliários. Os privilégios mobiliários são gerais, se abrangem o valor de todos os bens móveis existentes no património do devedor à data da penhora ou de acto equivalente; são especiais, quando compreendem só o valor de determinados bens móveis.

Os privilégios imobiliários estabelecidos no Código Civil são sempre especiais. Para além dos privilégios previstos nos artigos 737º da Lei civil seguintes, foram criados, posteriormente, outros em leis avulsas. São, disso, exemplo os privilégios referentes aos créditos para a Segurança Social, a que se alude nos Decretos-lei nº 103/80 de 9-V e 512/76 de 3-VII.

O art. 11º do mencionado Decreto-lei nº103/80, estatuía que “…os créditos pelas contribuições, independentemente da data da sua constituição e os respectivos juros de mora gozam de privilégio imobiliário sobre os bens imóveis existentes no património das entidades patronais à data da instauração do processo executivo, graduando-se logo após os créditos referidos no artigo 748º do Código Civil…”. Já no concernente à hipoteca, a que alude o art. 686º do C. Civil, a mesma “…confere ao credor o direito de ser pago pelo valor de certas coisas imóveis, ou equiparadas, pertencentes ao devedor ou a terceiro, com preferência sobre os demais credores que não gozem de privilégio especial ou de prioridade de registo…”.

Sucede, porém, que o privilégio creditório foi considerado como constituindo um perigo para o comércio jurídico-económico, já que o mesmo vale relativamente a terceiros independentemente de registo (Antunes Varela, “Das Obrigações em Geral”, II, Almedina, 4ª Edição, pp. 554 e Isabel Meneres Campos, “Da Hipoteca” 2003, pp. 214). Por esse motivo culminando uma segura evolução jurisprudencial, veio o douto Acórdão nº 363/2002, do Tribunal Constitucional, de 16 de Outubro de 2002, declarar com força obrigatória geral, por violação do princípio da confiança, a inconstitucionalidade do artigo 11º do DL 103/80 de 9-V e do art. 2º do Decreto-lei nº512/76, de 3-VII, na interpretação segundo a qual o privilégio imobiliário geral neles conferido à Segurança Social prefere à hipoteca, nos termos do art. 751º do C. Civil.

Nesta conformidade e prescindindo, porque desnecessárias, de outras considerações, já se vê que não poderá ser mantida a douta sentença que graduou os créditos da Segurança Social com prevalência em relação ao crédito hipotecário. Assim sendo. A graduação de créditos terá que se fazer colocando em primeiro lugar o crédito garantido por hipoteca.


IV Em Consequência – Decidimos:

a) – Julgar procedente a apelação do Banco C…, S.A., revogar, excepto quanto ao domínio das custas, a douta sentença de verificação e graduação de créditos de 24 de Fevereiro de 2011 (fls.126/132), e determinar a seguinte graduação de créditos: - “…1º) – O crédito do Credor Reclamante BANCO C…, SA no montante de 95 743,43 € (noventa e cinco mil setecentos e quarenta e três euros e quarenta e três cêntimos), acrescido de juros vencidos até 26/12/2007 no valor de 22.050,45 € (vinte e dois mil e cinquenta euros e quarenta e cinco cêntimos) e juros vencidos e vincendos desde 27/12/2007 a 05/05/2008, à taxa de 8,75%; 2º) - O crédito do Credor Reclamante ISS, IP proveniente de contribuições para a Segurança Social e que perfaz a quantia global de 20 942,37 € (vinte mil novecentos e quarenta e dois euros e trinta e sete cêntimos) acrescida dos respectivos juros de mora vencidos até 09/01/2008 no valor de 8 073,64 € (oito mil e setenta e três euros e sessenta e quatro cêntimos), e dos juros de mora vencidos e vincendos desde 10/01/2008 até integral e efectivo pagamento; 3º) - O crédito exequendo…”.
b) – Não condenar em custas por não serem devidas.

Lisboa, 23 de Fevereiro de 2012

Rui da PONTE GOMES
LUIS Correia de MENDONÇA
Maria AMÉLIA AMEIXOEIRA