Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
84/09.6TCFUN.L1-1
Relator: RIJO FERREIRA
Descritores: OFENSAS AO BOM NOME
OFENSAS À HONRA
PARTIDO POLÍTICO
LIBERDADE DE EXPRESSÃO
INTERESSE PÚBLICO
ILICITUDE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/14/2012
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I- Pela importância fundamental que tem como garante de uma sociedade democrática, tem-se por aceitável que o livre debate de ideias que ela pressupõe se faça com vivacidade e empenho, propiciadoras de imoderação e de alguma fulanização, não ocorrendo, nessas circunstâncias violação do direitos de personalidade dos respectivos actores.
II- De resto, por um lado, sendo a participação nesse jogo voluntária, aceitaram ( os referidos actores ) essa circunstância dado não poderem ignorar, ser da essência da sociedade democrática o escrutínio público dos dirigentes políticos ; e, por outro lado, faz parte das ‘regras do jogo’ a capacidade de lidar com a acutilância do debate político democrático, sendo exemplo de escola da enunciação dessa regra a expressão, atribuída ao presidente dos EUA Harry S. Truman, “if you can´t stand the heat, get out of the kitchen”.
III - Ademais, as afirmações do Réu constituem, fundamentalmente, uma apreciação, negativa embora, da actuação política do Autor enquanto chefe do …. e do Partido.., que é, manifestamente, de relevante interesse público; tanto mais que essa apreciação toca em particular o tema da qualidade da democracia tal como protagonizada pelo partido dominante naquela Região Autónoma, tema esse que estava na agenda política do momento (e que, ainda hoje, continua bem presente no debate político).
IV - Acresce que, não surgindo os juízos de valor formulados como absolutamente desprovidos de base factual, mas antes numa implicação, quanto ao seu conteúdo, à tenaz oposição do partido do Autor a qualquer iniciativa parlamentar destinada a combater a corrupção, e , quanto à sua forma, ao estilo truculento e provocatório utilizado pelo Autor nas situações descritas no elenco factual fixado, conclui-se, pois, pela inexistência de razões que tornem necessária numa sociedade democrática a limitação da liberdade de expressão do Réu relativamente à actuação política do Autor.
V - Pelo contrário, mostrando-se tal exercício concretamente adequado ao escrutínio dos agentes políticos garante de uma sociedade democrática, nada há, pois, a censurar à sentença recorrida quando conclui pela inexistência de ilicitude na conduta do Réu.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: ACORDAM OS JUÍZES DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA:

I – Relatório
A , invocando a sua qualidade de Presidente do ……, intentou acção declarativa de condenação com processo ordinário contra B pedindo a condenação do mesmo a pagar-lhe a quantia de € 35.000 a título de danos não patrimoniais decorrentes da ofensa à sua honra que levou a cabo através das declarações que, enquanto, ao tempo, líder do Partido ……, prestou ao Diário de ….. imputando ao Autor ser “inimigo público nº 1”, que a grande ‘sova’ que tem dado tem sido antes aos madeirenses como o demonstram os problemas ligados à droga, ao desemprego, às empresas, à economia regional e à crescente dívida pública regional, ser “homem que fomenta a corrupção com o único objectivo de ganhar eleições”, ter “horror ao trabalho” e passar “a vida a viajar”.
O Réu contestou alegando que as afirmações em causa foram produzidas no âmbito do debate político que ocorria então na Madeira, designadamente a propósito da inacção e oposição do Governo ….. e do P….. relativamente a qualquer iniciativa de luta contra a corrupção ou investigação das situações denunciadas, tratando-se de uma opinião sobre a actuação política do Autor, proporcional à truculência do registo usado pelo Autor, e no exercício da sua liberdade de expressão e concluindo pela improcedência da acção.
Improcedência essa que veio a ser decretada a final com o fundamento de que se não verifica ilicitude uma vez que, atendendo ao contexto situacional em que foram proferidas e à sua proporcionalidade com a truculência habitualmente utilizada pelo Autor no seu discurso político, as afirmações produzidas correspondem ao exercício legítimo da liberdade de expressão que, na actividade política e relativamente aos titulares de cargos públicos, torna lícita a emissão de juízos de valor, ainda que lesivos do bom nome de terceiros.
Inconformado, apelou o Autor concluindo, em síntese, pela desconsideração de factos e erro de julgamento.
Houve contra-alegação onde se propugnou pela manutenção do decidido e, nos termos do artº 684º-A do CPC, se ampliou o âmbito do recurso no sentido de ser aditado à base instrutória tudo o que alegou no sentido de demonstrar que construiu a sua opinião a partir de factos reais e a evidenciar o registo habitualmente utilizado pelo Autor.

II – Questões a Resolver
Consabidamente, a delimitação objectiva do recurso emerge do teor das conclusões do recorrente, enquanto constituam corolário lógico-jurídico correspectivo da fundamentação expressa na alegação, sem embargo das questões de que o tribunal ad quem possa ou deva conhecer ex officio.
De outra via, como meio impugnatório de decisões judiciais, o recurso visa tão só suscitar a reapreciação do decidido, não comportando, assim, ius novarum, i.e., a criação de decisão sobre matéria nova não submetida à apreciação do tribunal a quo.
Ademais, também o tribunal de recurso não está adstrito à apreciação de todos os argumentos produzidos em alegação, mas apenas – e com liberdade no respeitante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito – de todas as “questões” suscitadas, e que, por respeitarem aos elementos da causa, definidos em função das pretensões e causa de pedir aduzidas, se configurem como relevantes para conhecimento do respectivo objecto, exceptuadas as que resultem prejudicadas pela solução dada a outras.
Assim, em face do que se acaba de expor e das conclusões apresentadas, são as seguintes as questões a resolver por este Tribunal:
- da pertinência da factualidade apurada;
- da verificação de ilicitude.

III – Fundamentos de Facto
Foi a seguinte a matéria de facto fixada na 1ª instância:
2.1.- O A. é Presidente do …….desde Março de 19-- , é membro do Conselho de ….., do Conselho Superior de …. e do Conselho Superior de Segurança …. e é líder do Partido ……. (alínea A. dos factos assentes);
2.2.- O R. é líder do Partido ….., Deputado da Assembleia ….. e Vereador da Câmara Municipal de ….. (alínea B. dos factos assentes);
2.3.- Na edição do ... de ... de 2009, foi publicado no Diário de Notícias da …., na página ..., um artigo da autoria do Jornalista C em que titulava “A  é inimigo público nº1” (alínea C. dos factos assentes);
2.4.-No sub titulo daquele artigo escreveu-se “…… diz que acabou o tempo em que os ... tinham medo” (alínea D. dos factos assentes);
2.5.- O artigo acima referido prossegue com o seguinte texto:
“……insurge-se contra A pela linguagem e conteúdos das suas intervenções, nomeadamente as usadas nos últimos dias nos jantares com os militantes do Porto M…. e de São …..
O facto de dizer que o P….. vai dar uma “sova” aos ... é um indício do “espírito bélico”, do não reconhecimento dos adversários e de que existem inimigos a abater, diz o líder dos ....”É uma linguagem do século passado”.
O grande problema de hoje da ….. é ter em A “o inimigo público nº1”. Alguém que não resolve os problemas que criou ao longo de muitos anos.
Neste fim-de-semana, “em dois concelhos com enormes dificuldades, a palavra de esperança do P….é que vai dar uma sova aos .... Eles têm tanta confiança na sova no Porto M… e em São …., que até têm medo e vergonha de dizer quem são os seus candidatos”.
….. diz que o P….. não vai baixar os braços nem se deixar intimidar. Os ... irão a todos os sítios, a todos os concelhos, a todos os becos, a todas as escolas e empresas e a todos os departamentos do Governo …….
O tempo em que os ... temiam e se refugiavam na Rua do ….., “acabou!”. Agora, “a resposta é pacífica mas determinada”.
A grande “sova” que A tem dado “tem sido aos madeirenses” o que se demonstra nos problemas ligados à droga, ao desemprego, às empresas, à economia regional e à crescente dívida pública regional”.
A é “um homem que fomenta a corrupção com o objectivo único de ganhar eleições (…). Tem horror ao trabalho e passa a vida a viajar”. ….. lembra que depois de ganhar as eleições, o presidente foi fazer um cruzeiro e que a seguir foi de férias. “O que seria do turismo se o Governo tivesse no privado a mesma força que tem no público?”, pergunta em tom de retórica …...” (alínea E. dos factos assentes);
2.6.- As declarações são todas imputadas ao R., que surge na fotografia que acompanha o artigo, e que nunca as desmentiu (alínea F. dos factos assentes);
2.7.- O R. sabia que as suas declarações viriam a ser publicadas na comunicação social (alínea G. dos factos assentes);
2.8.- A mulher e filhos do Autor ficaram muito incomodados e perturbados com as declarações do Réu, tendo pressionado o Autor para de imediato reagir às mesmas (resposta ao art.º 2º da Base Instrutória);
2.9.- O Autor era constantemente abordado por membros do Governo e Deputados e pelas pessoas que lhe são mais próximas politicamente, à procura da sua reacção àquelas afirmações do Réu (resposta ao art.º 3º da Base Instrutória);
2.10.- Foram muitas as conversas em torno do que foi dito pelo R. e escrito no artigo referido em 2.3 a 2.5, que se prolongaram por vários dias, causando ao A. angústia, mal-estar e pressão psicológica (resposta ao art.º 4º da Base Instrutória);
2.11.- O Autor não gostou de ler o artigo acima referido em 2.3 a 3.5 (resposta ao art.º 5º da Base Instrutória);
2.12.- O A. sentiu-se enxovalhado na praça pública da forma como o foi, e com o impacto que tiveram as afirmações do R, uma vez que foram publicadas num matutino de grande tiragem na Região ….. (resposta ao art.º 6º da Base Instrutória);
2.13.-Em Fevereiro de 2006, o R. fez uma intervenção parlamentar na Assembleia ….., a propósito da relação promíscua entre o coordenador do Ministério Público na região e o poder político regional, face ao ambiente de impunidade dos fenómenos de corrupção (resposta ao art.º 7º da Base Instrutória);
2.14.- O grupo parlamentar do P…., em resposta a esta intervenção, aprovou um requerimento que pedia um exame às faculdades mentais do ora R. (resposta ao art.º 8º da Base Instrutória);
2.15.-Todas as tentativas na Assembleia …. de criar comissões para investigar casos de corrupção, têm sido derrotados pelo P…. (resposta ao art.º 9º da Base Instrutória);
2.16.-Todas as tentativas de criar um regime de impedimentos e incompatibilidades semelhante ao existente na Assembleia da República, com vista a dificultar as situações de corrupção, tem sido inviabilizadas pelo P…. (resposta ao art.º 10º da Base Instrutória);
2.17.- Em reacção ao tratamento jornalístico do “caso” da sua reforma o A. disse publicamente: “Há aqui uns bastardos na comunicação social do Continente. Digo bastardos para não ter que lhes chamar filhos da puta (…)” (resposta ao art.º 11º da Base Instrutória);
2.18.- O A. declarou publicamente que é um “insulto” aos portugueses serem governados pelo actual Primeiro …. que acusou de “roubar”dinheiro à Madeira (resposta ao art.º 12º da Base Instrutória);
2.19.- O A. apelidou publicamente os deputados da oposição na Assembleia …., como um “bando de loucos” (resposta ao art.º 13º da Base Instrutória);
2.20.- No início do ano de 2009, pouco antes da publicação do artigo acima referido em 2.3 a 2.5, o A. iniciou uma ronda por todos os concelhos da região, iniciando a pré-campanha eleitoral, com comícios-festa, o que fez em dois concelhos do norte da Ilha, Porto M…e São …, onde afirmou que o Primeiro-….. “rouba a Madeira” (resposta ao art.º 14º da Base Instrutória);
2.21.- Naqueles comícios o A. também afirmou que devemos dar uma sova aos ... neste ano eleitoral. (resposta ao art.º 15º da Base Instrutória).

IV – Fundamentos de Direito
A Constituição da República determina, no seu artº 26º, nº 1, que a todos é reconhecido o direito ao bom nome e reputação; mas igualmente assegura, no seu artº 37º, nº 1, que todos têm o direito de exprimir e divulgar livremente o seu pensamento e informação.
O reconhecimento de tais direitos não é exclusivo da ordem jurídica portuguesa, mas corresponde antes a uma matriz civilizacional, com expressão em diversos instrumentos jurídicos internacionais.
Desde logo nos artigos 12º (“Ninguém sofrerá […] ataques à sua honra e reputação […]. Contra tais […] ataques toda a pessoa tem direito à protecção da lei.”) e 19º (“Todo o individuo tem direito à liberdade de opinião e de expressão, o que implica o direito de não ser inquietado pelas suas opiniões e o de procurar, receber e difundir, sem considerações de fronteiras, informações e ideias por qualquer meio de expressão.”) da Declaração Universal dos Direitos do Homem proclamada pela Assembleia Geral da ONU em 10DEZ1948[1]; e em harmonia com a qual devem ser interpretados e integrados os preceitos constitucionais enunciados, conforme determinado no artº 16º da Constituição da República.
Também nos artigos 17º ( “Ninguém será objecto […] de atentados ilegais à sua honra e à sua reputação. Toda e qualquer pessoa tem direito à protecção da lei contra tais […] atentados.”) e 19º (“Ninguém pode ser inquietado pelas suas opiniões. Toda e qualquer pessoa tem direito à liberdade de expressão […].” Esse direito “comporta deveres e responsabilidades especiais, podendo, em consequência, “ser submetido a certas restrições, que devem, todavia, ser expressamente fixadas na lei e que são necessárias ao respeito dos direitos e reputação de outrem ou à salvaguarda da segurança nacional, da ordem pública, da saúde e da moralidade públicas”.) do Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos, adoptado pela Resolução 2.200-A (XXI) da Assembleia Geral da ONU de 19DEZ1966[2].
Igualmente nos artigos 7º (“Todas as pessoas têm direito ao respeito pela sua vida privada e familiar […]”) e 11º (“Qualquer pessoa tem direito à liberdade de expressão. Este direito compreende a liberdade de opinião e a liberdade de receber e de transmitir informações ou ideias, sem que possa haver ingerência de quaisquer poderes públicos e sem consideração de fronteiras.”) da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia[3], à qual está atribuído valor jurídico idêntico ao dos Tratados pelo artº 6º do Tratado da União Europeia, na redacção resultante do Tratado de Lisboa.
E, também, pelos artigos 8º e 10º da Convenção Europeia para a Protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, com o seguinte teor:
Artigo 8°
Direito ao respeito pela vida privada e familiar
1. Qualquer pessoa tem direito ao respeito da sua vida privada[4] e familiar, do seu domicílio e da sua correspondência.
2. Não pode haver ingerência da autoridade pública no exercício deste direito senão quando esta ingerência estiver prevista na lei e constituir uma providência que, numa sociedade democrática, seja necessária para a segurança nacional, para a segurança pública, para o bem-estar económico do país, a defesa da ordem e a prevenção das infracções penais, a protecção da saúde ou da moral, ou a protecção dos direitos e das liberdades de terceiros.
Artigo 10°
Liberdade de expressão
1. Qualquer pessoa tem direito à liberdade de expressão. Este direito compreende a liberdade de opinião e a liberdade de receber ou de transmitir informações ou ideias sem que possa haver ingerência de quaisquer autoridades públicas e sem considerações de fronteiras. O presente artigo não impede que os Estados submetam as empresas de radiodifusão, de cinematografia ou de televisão a um regime de autorização prévia.
2. O exercício desta liberdades, porquanto implica deveres e responsabilidades, pode ser submetido a certas formalidades, condições, restrições ou sanções, previstas pela lei, que constituam providências necessárias, numa sociedade democrática, para a segurança nacional, a integridade territorial ou a segurança pública, a defesa da ordem e a prevenção do crime, a protecção da saúde ou da moral, a protecção da honra ou dos direitos de outrem, para impedir a divulgação de informações confidenciais, ou para garantir a autoridade e a imparcialidade do poder judicial.
Não sendo tais direitos absolutos (como claramente é inculcado nos artigos 18º, nºs 2 e 3, da Constituição da República e 8º, nº 2, e 10º, nº 2 da Convenção Europeia para a Protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais), nem se encontrando estabelecida nenhuma hierarquia, levanta-se toda uma problemática relativamente à conflitualidade latente entre eles, a qual vai sendo resolvida segundo critérios casuísticos e, não raras vezes, com diferenciadas soluções de jurisdição para jurisdição ou mesmo dentro da mesma jurisdição.
No espaço judicial europeu, em função da vinculação à Convenção Europeia para a Protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem tem vindo a debruçar-se sobre tal problemática, elaborando uma jurisprudência que permite já assegurar um mínimo de uniformidade no tratamento e resolução dessa problemática, e onde podemos encontrar linhas de orientação fundamentais para a abordagem das situações concretas que vão sendo colocadas à apreciação dos tribunais.
Segundo tal jurisprudência:
1) A liberdade de expressão, consagrada no artº 10º da Convenção, constitui um dos fundamentos essenciais de uma sociedade democrática, baseada no pluralismo, tolerância e abertura de espírito, e é uma das condições básicas para o progresso dessa sociedade e para a realização pessoal de cada um dos seus membros[5].
2) E pode constituir-se como um dos principais meios de assegurar o gozo efectivo de outras liberdades fundamentais, designadamente a liberdade de reunião e de associação[6].
3) Aplica-se não só ao que é visto como favorável ou inofensivo, mas também ao que ofende, choca ou incomoda[7].
4) Aplica-se também no domínio das relações de trabalho, públicas e privadas, mas a denúncia pública de irregularidades deve ser precedida, salvo se impraticável, de denúncia interna[8].
5) A garantia de liberdade de expressão relativamente á comunicação social (imprensa) reveste-se de uma particular importância dado o papel desta última numa sociedade democrática, onde se impõe pluralismo de ideias, tráfego de informação e escrutínio público[9].
6) O exercício da liberdade de expressão, contudo, importa deveres, designadamente de respeito pelos valores e direitos referidos no nº 2 do artº 10º da Convenção, e responsabilidades, em particular no caso de afirmações destituídas de fundamento factual ou proferidas de má-fé[10].
7) No entanto, no debate de questões de interesse público a possibilidade de restrição da liberdade de expressão é muito limitada[11]
8) Há que distinguir entre imputação de factos e juízos de valor, dado que os factos são susceptíveis de demonstração enquanto que a validade dos juízos de valor é insusceptível de prova, bastando-se com a existência de adequada base factual[12].
9) Deve ser feita clara distinção entre crítica e insulto, sendo que este último, em princípio justifica sanções[13]
10) É do interesse económico geral e do interesse particular dos detentores do capital e dos trabalhadores que as empresas possam defender (e que seja respeitada) a sua reputação comercial e a sua viabilidade. Tal interesse, porém, está destituído da dimensão moral própria da reputação individual[14].
11) A liberdade de expressão, quando exercida de boa-fé e relativamente a matérias de interesse público, não deixa de ser legítima ainda que envolva factos falsos ou que causem dano[15]
12) O Estado, para além da obrigação de não interferência no exercício de tal liberdade, tem também a obrigação positiva de proteger a liberdade de expressão contra a interferência de particulares (v.g. através do uso de poderes disciplinares)[16].
13) Nos termos do nº 2 do artº 10º da Convenção as limitações à liberdade de expressão são de carácter estrito, necessitando de se mostrarem convincentemente justificadas, e tendo de preencher ter requisitos fundamentais: estarem previstas na lei, prosseguirem um fim legítimo e serem necessárias numa sociedade democrática[17].
14) A previsão legal da limitação à liberdade de expressão tem de ser clara e precisa, em termos de permitir ao sujeito prever as consequências dos seus actos e regular por tal a previsão da sua conduta[18].
15) Para que seja considerada necessária numa sociedade democrática a interferência tem de corresponder a uma necessidade social imperiosa[19].
16) Os políticos, as figuras públicas e os funcionários superiores da administração pública actuando enquanto tal estão sujeitos a limites mais alargados de crítica aceitável do que os privados[20].
17) Justifica-se, porém, a limitação da liberdade de expressão para defesa da vida privada de terceiros, ainda que figuras públicas, quando o exercício desta é motivado por mera intenção sensacionalista ou mera satisfação de curiosidade[21].
18) A proporcionalidade da interferência relativamente a um juízo de valor depende da existência de uma suficiente base factual para tal juízo[22].
19) A natureza e severidade da sanção bem como a relevância e suficiência da fundamentação das decisões do tribunais nacionais são de particular relevância para aferir da proporcionalidade da interferência, cuja apreciação cabe, em última instância, e não obstante a margem de apreciar que cabe a cada um dos Estados, ao juiz europeu[23].
20) As sanções não podem ser de tal gravidade que tenham por efeito dissuadir (em particular a imprensa) de tomar parte na discussão de matérias que concitam o interesse público ou que escapem ao escrutínio democrático ou judicial[24], incluindo quando tal participação se efectua através de expressão artística ou satírica[25], bem como da investigação científica[26].
21) As regras do jogo político e do livre debate de ideias (nomeadamente através da imprensa) garantes de uma sociedade democrática permitem que no envolvimento do debate público se recorra a uma certa dose de exagero, mesmo de provocação, ainda que com alguma imoderação e resvalando mesmo para o plano pessoal[27].
Na esteira do enquadramento legal e jurisprudencial exposto, atentemos agora na situação concreta dos autos.
E, em primeiro lugar, desde logo haverá de notar que para a formulação do juízo de ilicitude haverá de atender-se, não apenas ao teor literal do escrito ou afirmação em causa, mas ao contexto situacional em que ela se insere ou foi proferida.
Daí que não assista razão ao recorrente quando defende a desconsideração da factualidade apurada para além do que diz respeito às posições das partes, à publicação e conteúdo do artigo e o estado subjectivo que tal provocou no Autor.
Com efeito importava apurar o contexto em que se inseriu o comportamento do Réu, pois só da sua consideração global se pode aquilatar se se tratou ou não do legítimo exercício da liberdade de expressão.
Ficando, por seu turno, prejudicada a apreciação da ampliação do âmbito do recurso formulada pelo recorrido (incluindo a discussão de estarmos efectivamente perante uma situação de ampliação do âmbito do recurso).
O teor das declarações do Réu, bem como o conjunto do artigo de jornal onde as mesmas foram inseridas, constitui uma resposta política à actuação, também, política, do Autor. Ou seja, o contexto situacional em causa é o do jogo político, protagonizado pelo líder da oposição e pelo chefe do Governo e do partido dominante, em ano eleitoral (em 11OUT2009 tiveram lugar eleições autárquicas).
Já vimos que, pela importância fundamental que tem como garante de uma sociedade democrática, se tem por aceitável que o livre debate de ideias que ela pressupõe se faça com vivacidade e empenho, propiciadoras de imoderação e de alguma fulanização, não ocorrendo, nessas circunstâncias violação do direitos de personalidade dos respectivos actores. Até porque, por um lado, sendo a participação nesse jogo voluntária, aceitaram essa circunstância dado não poderem ignorar, ser da essência da sociedade democrática o escrutínio público dos dirigentes políticos; e, por outro lado, faz parte das ‘regras do jogo’ a capacidade de lidar com a acutilância do debate político democrático, sendo exemplo de escola da enunciação dessa regra a expressão, atribuída ao presidente dos EUA Harry S. Truman, “if you can´t stand the heat, get out of the kitchen”.
Ademais, as afirmações do Réu constituem, fundamentalmente, uma apreciação, negativa embora, da actuação política do Autor enquanto chefe do …. e do Partido..….., que é, manifestamente, de relevante interesse público; tanto mais que essa apreciação toca em particular o tema da qualidade da democracia tal como protagonizada pelo partido dominante naquela Região Autónoma, tema esse que estava na agenda política do momento (e que, ainda hoje, continua bem presente no debate político).
Enquanto constituindo apreciação de uma actuação como agente político as afirmações produzidas constituem juízo de valor, referindo-se às consequências daquela actuação, sem contudo, fazer imputação da prática de actos concretos. O Réu limita-se a afirmar que a actuação do Autor promove a corrupção, não podendo daqui extrair-se a imputação de um concreto acto de corrupção.
E os juízos formulados não surgem como absolutamente desprovidos de base factual, mas antes numa implicação, quanto ao seu conteúdo, à tenaz oposição do partido do Autor a qualquer iniciativa parlamentar destinada a combater a corrupção, e, quanto à sua forma, ao estilo truculento e provocatório utilizado pelo Autor nas situações descritas no elenco factual fixado.
Conclui-se, pois, pela inexistência de razões que tornem necessária numa sociedade democrática a limitação da liberdade de expressão do Réu relativamente à actuação política do Autor. Pelo contrário, tal exercício mostra-se concretamente adequado ao escrutínio dos agentes políticos garante de uma sociedade democrática.
Nada há, pois, a censurar à sentença recorrida quando conclui pela inexistência de ilicitude na conduta do Réu.

V – Decisão
Termos em que, na improcedência da apelação, se confirma integralmente a sentença recorrida.
Custas pelo Autor.

Lisboa, 14 de Fevereiro de 2012

Paulo Rijo Ferreira
Afonso Henrique
Rui Torres Vouga
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[1] - Publicada no Diário da República, I série, 9MAR1978.
[2] - Que entrou em vigor em 23MAR1976, aprovado para ratificação pela Lei 29/78, 12JUN, e a que Portugal se encontra vinculado desde 15JUN1978.
[3] - JO, C 83, de 30MAR2010, p. 389.
[4] - Segundo a jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem do respeito pela vida privada consagrado neste artigo emerge um direito à protecção da reputação. Cf. casos Petrina c. Roménia (78060/01), Abeberry c. França (58729/00) e Leempoel & S.A. ED Cine Revue c. Bélgica (64772/01).
[5] - Cf. casos Sabanovic c. Montenegro e Sérvia (5995/06), Wizerkaniuk c. Polónia (18990/05), Palomo Shanchez e outros c. Espanha (29955/06), Hertel c. Suíça, Steel e Morris c. Reino Unido (68416/01), Stoll c. Suíça (69698/01), Handyside c. Reino Unido (5493/72), Lopes Gomes da Silva c. Portugal (37698/97), Azevedo c. Portugal (20620/04), Roseiro Bento c. Portugal (29288/02), Almeida Azevedo c. Portugal (43924/02) e Alves da Silva c. Portugal (41665/07).
[6] - Cf. casos Velluti e Michel c. França (32820/09), Nilsen e Johnsen c. Noruega (23118/93), Barraco c. França (31684/05) e Palomo Shanchez e outros c. Espanha (29955/06).
[7] - Cf. casos Castells c. Espanha, Vogt c. Alemanha, Sabanovic c. Montenegro e Sérvia (5995/06), Wizerkaniuk c. Polónia (18990/05), Palomo Shanchez e outros c. Espanha (29955/06), Oberschlick c. Áustria, Uj c. Hungria (23954/10), Hertel c. Suíça, Steel e Morris c. Reino Unido (68416/01), Lopes Gomes da Silva c. Portugal (37698/97), Azevedo c. Portugal (20620/04), Roseiro Bento c. Portugal (29288/02), Almeida Azevedo c. Portugal ( 43924/02) e Alves da Silva c. Portugal (41665/07).
[8] - Cf. casos Heinisch c. Alemanha (28274/08), Kudeshkina c. Rússia (29492/05), Vogt c. Alemanha, Fuentes Bobo c. Espanha (39293/98), Guja c. Moldova (14277/04) e Marchenko c. Ucrânia (4063/04).
[9] - Cf. casos Worm c. Áustria, Fressoz e Roire c. França (29183/95), Pinto Coelho c. Portugal (28439/08), Janowski c. Polónia (25716/94), Uj c. Hungria (23954/10), Scharsach e News Verlagsgesellschaft c. Áustria (39394/98) e Lopes Gomes da Silva c. Portugal (37698/97).
[10] - Cf. casos Dupuis e outros c. França (1914/02), Campos Dâmaso c. Portugal (17107/05), Pinto Coelho c. Portugal (28349/08), The Observer e Guardian c. Reino Unido, Bladet Tromso e Stensaas c. Noruega (21980/93), Wizerkaniuk c. Polónia (18990/05), Goodwin c. Reino Unido, Fressoz e Roire c. França (29183/95), Wolek, Kasprow e Leski c. Polónia (20953/06), Castells c. Espanha e Heinisch c. Alemanha (28274/08).
[11] - Cf. casos Nilsen e Johnson c. Noruega (23118/93), Sabanovic c. Montenegro e Sérvia (5995/06), Baczkowski e outro c. Polónia (1543/06), Wojtas-Kaleta c. Polónia (20436/02), Wizerkaniuk c. Polónia (18990/05), Vellutini e Michel c. França (33820/09), Basilier c. França (71343/01), Surek c. Turquia (26682/95), Uj c. Hungria (23954/10), Stoll c. Suíça (69698/01), Heinisch c. Alemanha (28274/08) e Lopes Gomes da Silva c. Portugal (37698/97).
[12] - Cf. casos Steel e Morris c. Reino Unido (68416/01), Sabanovic c. Montenegro e Sérvia (5995/06), Petrenco c. Moldávia ( 20928/05), Petrina c. Roménia (78060/01) e Azevedo c. Portugal (20620/04).
[13] - Cf. casos Palomo Sanchez e outros c. Espanha (28955/06), Skalka c. Polónia (43425/98) e Stoll c. Suíça (69698/01).
[14] - Cf. casos Uj c. Hungria (23954/10), Steel e Morris c. Reino Unido (68416/01) e Kulis e Rozycki c. Polónia (27209/03).
[15] - Cf. casos Dalban c. Roménia e Sabanovic c. Sérvia e Montenegro (5955/06).
[16] - Cf. Casos Palomo Sanchez e outros c. Espanha (28955/06), Fuentes Bobo c. Espanha (39293/98), Ozgur Gundem c. Turquia (23144/93) e Dink c. Turquia (2668/07).
[17] - Cf. casos Azevedo c. Portugal (20620/04), Almeida Azevedo c. Portugal (43924/02) e Roseiro Bento c. Portugal (29288/02).
[18] - Cf. casos Altug Taner Arcam c. Turquia (27520/07), Sigma Radio Television Ltd c. Chipre (32181/04) e Rekvenyi c. Hungria ( 25390/94).
[19] - Cf. casos Vellutini e Michel c. França (32820/09), Lehideux e Isorni c. França, Mamére c. França (12697/03), Sigma Rádio Television Ltd c. Chipre (32181/04), Steel e Morris c. Reino Unido (68416/01), Heinisch c. Alemanha (28274/08), Hertel c. Suíça, Stoll c. Suiça (69698/01), Lopes Gomes da Silva c. Portugal (37698/97) e Alves da Silva c. Portugal (41665/07).
[20] - Cf. casos Thoma c. Luxemburgo (38432/97), Pedersen e Baadsgaard c. Dinamarca (49017/99), Mamère c. França (12697/03), Dyundin c. Rússia (37406/03), Sabanovic c. Montenegro e Sérvia (5995/06), Incal c. Turquia, Scharsach and News Verlagsgesellschaft c. Áustria (39394/98), Wizerkaniuk c. Polónia (18990/05), Vellutini e Michel c. França (32820/09), Basilier c. França (71343/01), Lingens c. Áustria, Nikula c. Finlândia (31611/96),  Roseiro Bento c. Portugal (29288/02), Almeida Azevedo c. Portugal (43924/02) e Lopes Gomes da Silva c. Portugal (37698/97).
[21] - Cf. caso Von Hannover c. Alemanha (59320/00).
[22] - Cf. casos Steel e Morris c. Reino Unido (68416/01), Sabanovic c. Montenegro e Sérvia (5995/06), Lopes Gomes da Silva c. Portugal (37698/97) e Petrina c. Roménia (78060/01).
[23] - Cf. casos Cumpana e Mazzare c. Roménia (33348/96), Zana c. Turquia, Sabanovic c. Montenegro e Sérvia (5995/06), Wizerkanuik c. Polónoa (18990/05), Skalka c. Polónia (43425/98), Sokolowski c. Polónia (75955/01), Vellutini e Michel c. França (38820/09), Chavy e outros c. França (64915/01) e Stoll c. Suíça (69698/01).
[24] - Cf. casos Standard Verlags GmbH c. Austria (13071/03), Kulis e Rozycki c. Polónia (27209/03), Wille c. Liechtenstein (28396/95), Nikula c. Finlândia (31611/96), Goodwin c. Reino Unido, Elci e outro c. Turquia (23145/93), Wizerkaniuk c. Polónia (18890/05), Skalka c. Polónia (43425/98), Cumpana e Mazare c. Roménia (33348/96), Kudeshkina c. Rússia (29492/05), Heinisch c. Alemanha (28274/08) e Stoll c. Suíça (69698/01).
[25] - Cf. casos Alves da Silva c. Portugal (41665/07) e Vereinigung Bildender Kunstler c. Áustria (68354/01).
[26] - Cf. caso Azevedo c. Portugal (20620/04).
[27] - Cf. casos Vellutini e Michel c. França (32820/09), Kenaud c. França (13290/07), Lopes Gomes da Silva c. Portugal (37698/97), Almeida Azevedo c. Portugal (43294/02), Uj c. Hungria (23954/10), Mamère c. França (12697/03), Dabrowski c. Polónia (18325/02), Roseiro Bento c. Portugal (29288/02), Almeida Azevedo c. Portugal( 43294/02) e Lopes Gomes da Silva c. Portugal (37698/97).