Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
5448/07.7TTLSB.L1-4
Relator: JOSÉ EDUARDO SAPATEIRO
Descritores: ACIDENTE DE TRABALHO
DESCARACTERIZAÇÃO DE ACIDENTE
CULPA DA ENTIDADE PATRONAL
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/08/2012
Votação: UNANIMIDADE
Texto Parcial: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA A DECISÃO
Sumário: I – O quadro legal constante dos artigos 6.º e 8.º da LAT – convindo realçar também a presunção contida no número 1 do artigo 7.º do seu diploma regulamentar –, quando devidamente conjugado com a matéria de facto dada como assente, permite concluir pela ocorrência de um evento imprevisto e agressivo, verificado no local e tempo de trabalho e susceptível de produzir, directamente, lesão corporal que implicou a morte do sinistrado.
Ainda que assim não fosse, bastaria lançar mão das presunções legais contidas nos artigos 17.º, número 5 da Lei n.º 100/97 de 13/09 e 7.º, número 1 do Decreto-Lei n.º 143/99 de 30/04 (reconhecimento da lesão a seguir a um acidente, verificado no local e tempo de trabalho) para concluir pela ocorrência do acidente de trabalho em questão.
II – É manifesto ter o sinistrado sofrido um acidente de trabalho pois foi objecto de uma queda de um andaime, para onde tinha subido momentos antes e relativamente ao qual estava a auxiliar na sua montagem os seus três colegas, queda essa verificada no tempo e no local de trabalho e quando o mesmo prestava (jurídica que não materialmente) serviços, em termos subordinados e assalariados para a 2.ª Ré, tendo o referido evento, ocasional e involuntário, em função das lesões físicas que lhe provocou, sido causador do seu falecimento imediato.
III – Apesar do sinistrado na altura apresentar uma taxa de alcoolemia de 2,29 gramas/litro e a presença de morfina-opiáceos, numa concentração de 88 ng/ml, seguro é que não conseguimos perceber em que circunstâncias concretas de modo, espaço e tempo aconteceu o acidente de trabalho dos autos, ficando somente com a certeza de que o trabalhador estava a ajudar os três colegas a partir do chão na montagem do referido andaime e que, a certa altura, por razões e com objectivos que não foi possível, em absoluto, apurar, decidiu trepar ao dito andaime, dali se tendo despenhado no solo, de altura não demonstrada e num quadro envolvente da génese, causas e desenvolvimento da queda, totalmente desconhecido.
IV – Logo, não é possível imputar ao sinistrado, em termos de negligência grosseira (culpa grave) e causa exclusiva da verificação do acidente de trabalho, a responsabilidade pelo mesmo, de forma a proceder à sua descaracterização, nos termos e para os efeitos da alínea a) do número 1 do artigo 7.º da LAT (em conjugação com o número 1 do artigo 8.º do Decreto-Lei n.º 143/99, de 30/04.
V – Face ao quadro factual que se deixou descrito em III e apesar de não existir no local de trabalho e da obra - montagem do andaime - quaisquer equipamentos de segurança colectiva e individual, também não é possível responsabilizar a entidade empregadora nos termos e para os efeitos do artigo 18.º e do número 2 do artigo 37.º da LAT, pois não se provou o nexo de causalidade adequado e necessário entre essa omissão e o sinistro dos autos.
(Elaborado pelo Relator)
Decisão Texto Parcial:ACORDAM NESTE TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA:
I – RELATÓRIO

AA, em representação do seu filho menor BB, (…), com o patrocínio do Ministério Público (artigo 7.º do Código do Processo do Trabalho), intentou, em 18/02/2009, a presente acção emergente de acidente de trabalho contra CC SEGUROS, S.A. (actualmente DD - COMPANHIA DE SEGUROS, S.A.) e EE – MONTAGEM DE ESTRUTURAS METÁLICAS, LDA., pessoa colectiva n.º ..., com sede no ..., n.º ..., 0000-000 Lisboa, pedindo que as Rés sejam condenadas a pagar ao beneficiário, as seguintes prestações, nos seguintes termos (fls. 159 e seguintes):
I – A TÍTULO PRINCIPAL
A) A 2.ª Ré EE a pagar ao beneficiário BB a pensão anual no montante de € 2.100,00 devida desde 1.12.2007 (arts. 37.º, n.º 2 e 18.º, n.º 1, al. a), com referência ao art.º 20.º, n.º 1, al. a), todos da LAT, actualizada para € 2150,40, em 2008 e para € 2.212,76, em 2009.
B) A 1.ª Ré CC SEGUROS, SA condenada subsidiariamente a pagar tal quantia, que é de valor inferior ao que era devido pelas prestações normais, caso não fosse operativo o disposto no art.º 20.º, n.º 1, al. b) da LAT.
Deverá ainda ser condenada a pagar o subsídio por morte, no montante de € 4836,00.
II - A TÍTULO SUBSIDIÁRIO
Subsidiariamente, no caso de assim se não entender, e ao invés, se demonstrar que não houve culpa por parte da 2.ª Ré EE, deverá a 1.ª Ré CC SEGUROS, SA ser condenada a pagar a pensão, resultante da mera responsabilidade pelo risco, e em função da pensão de € 2.100,00, para 2007, € 2.150,40, para 2008 e para € 2212,76, para 2009.
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Para tanto alegou, em síntese, o seguinte:
1) No dia 30 de Novembro de 2007, pelas 20.30 horas, FF, trabalhava numa obra, caiu de um andaime e estatelou-se no chão, e, em consequência da queda, resultaram de forma directa e necessária, lesões traumáticas crâneo-encefálicas, torácicas, abdominais e raqui-medulares que foram a causa da sua morte.
2) O acidente ocorreu por falta de protecção que impedisse que o sinistrado caísse, pelo que a 2.ª Ré, EE violou regras sobre a segurança no trabalho, sendo possível estabelecer a existência de um nexo causal entre tal inobservância, por parte da empregadora, e a produção do acidente.
3) À data do acidente, o sinistrado auferia a retribuição anual de € 9.100,00 (€ 30,00 x 5 dias x 52 semanas : 12).
4) A entidade patronal, EE, tinha a responsabilidade emergente do acidente de trabalho transferida para a Ré CC SEGUROS, SA em função do aludido vencimento.
5) À data do acidente, FF era casado com AA, mas encontravam-se separados de facto, estando atribuído ao filho de ambos, BB, uma pensão de alimentos no valor de € 150,00 em favor do menor e a pagar pelo pai, FF.
6) No caso dos autos, há apenas um beneficiário, que é o filho do sinistrado, nos termos do disposto no art.º 20.º, n.º 1, al. b) da LAT, sendo que a pensão por morte do acidentado não pode ser superior à prestação de alimentos que vinha recebendo a viúva e seu filho, no montante de € 150,00 mensais.
7) Assim, a única pensão devida é a prestação anual de € 2.100,00 (150,00 x 14) a cargo da empregadora e a favor do menor BB, devida desde o dia seguinte à morte (art.º 49.º, n.º 7 do RLAT) e actualizável nos termos legais.
8) Nos termos do disposto no art.º 22.º, n.º 1, al. b) da LAT, têm os beneficiários direito a um subsídio por morte correspondente a 12 vezes a retribuição mínima mensal à data do acidente, sendo o SMN em 2007 no montante de € 403,00.
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A Ré EE - MONTAGEM DE ESTRUTURAS METÁLICAS, LDA, depois de citada por carta registada com Aviso de Recepção (fls. 166, 168 e 172), contestou (fls. 174 a 181), dizendo, em suma, que, à data do acidente, o sinistrado tinha sido cedido por si a GG (não tendo prestado por escrito a sua concordância) e trabalhava sob a direcção deste numa obra em que o mesmo era subempreiteiro e em que era dona da obra a empresa HH MOAGEM, S.A., sendo totalmente alheia aos moldes em que eram efectuados os trabalhos.
Na sua contestação, a Ré EE - MONTAGEM DE ESTRUTURAS METÁLICAS, LDA requereu o chamamento de GG para intervir como Réu, o qual veio a ser deferido por despacho de fls. 241 a 243.
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A Ré CC SEGUROS, S.A. depois de citada por carta registada com Aviso de Recepção (fls. 166, 167 e 171) também contestou (fls. 184 a 187), defendendo que o acidente de trabalho que vitimou o sinistrado ocorreu devido à inobservância das regras de segurança no trabalho, com violação do estabelecido no Decreto-Lei n.º 441/91, de 14.11, no Decreto-Lei 155/95, de1.07, no Decreto-Lei n.º 41821, de 11.08.1958 e na Portaria 101/96, de 3.04.
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O chamado GG foi citado através de carta registada com Aviso de Recepção (fls. 243 e 259 a 264) e interveio, tendo apresentado a sua contestação (fls. 267 a 273), na qual confirmou a cedência do trabalhado sem formalização por escrito, dizendo que não houve da sua parte qualquer violação das normas de segurança, porque o sinistrado não estava a trabalhar nos andaimes, mas no solo, pelo que não necessitava dos equipamentos de protecção pessoal, designadamente, arnês e cinto de segurança, além de que a iluminação era suficiente para executar os trabalhos em curso com segurança. Alega ainda que estando o sinistrado com uma taxa de alcoolemia bastante elevada e sob influência de drogas, o mesmo agiu com culpa grave e indesculpável, havendo descaracterização do acidente como de trabalho, conforme se refere no art.º 7.º da LAT.
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Foi proferido despacho saneador, a fls. 297 a 302, no qual foi julgada improcedente a ilegitimidade do chamado GG, considerada válida e regular a instância, fixada a matéria de facto assente e elaborada a base instrutória (3 artigos), que, após reclamação de fls. 318 a 323, da 2.ª Ré, sem a oposição das demais partes, foram alteradas por despacho de fls. 337 a 342, com a reprodução integral dessas duas peças na parte final do despacho.
A 1.ª Ré veio juntar, a fls. 348 e seguintes, documentação que comprovava a integração por fusão da CC SEGUROS, SA na DD - COMPANHIA DE SEGUROS, SA, tendo passado nesta última, por sucessão nos direitos e obrigações daquela, a figurar como demandada nos autos.
As partes haviam junto anteriormente os respectivos requerimentos probatórios (fls. 165, 181, 186 e 187), tendo-o ainda feito a fls. 322, cuja admissão ocorreu através do despacho de fls. 342, com a determinação da gravação da prova a produzir em sede de Audiência de Discussão e Julgamento, conforme requerido pelas Rés.
Procedeu-se à realização da Audiência de Discussão e Julgamento com observância de todas as formalidades legais, como resulta da respectiva acta, tendo a prova aí produzida sido objecto de registo áudio (cf. fls. 422 a 425).
A matéria de facto foi decidida por despacho proferido a fls. 427 e 428 que não suscitou quaisquer reparos pela parte presente (Autor) - cf. fls. 429.

Foi então proferida a fls. 432 a 443 e com data de 02/09/2011, sentença que, em síntese, decidiu o litígio nos termos seguintes:
IV - Pelos fundamentos expostos, julgo a presente acção parcialmente procedente e, em consequência, decido:
a) Condenar a Ré DD - COMPANHIA DE SEGUROS, S.A. a pagar ao beneficiário, ora Autor, BB, menor, representado por AA, a quantia de 1.820,00 € (mil oitocentos e vinte euros, a título de pensão anual, actualizável nos termos legais, até o mesmo perfazer 18, 22 ou 25 anos, enquanto frequentar, respectivamente, o ensino secundário ou curso equiparado ou o ensino superior ou sem limite de idade se afectado de doença física ou mental que o incapacite sensivelmente para o trabalho; tal pensão é devida desde 1 de Dezembro de 2007, pagável no domicílio do sinistrado, adiantada e mensalmente, até ao 3.º dia de cada mês, correspondendo cada prestação a 1/14 da pensão anual, sendo que nos meses de Maio e Novembro deverão acrescer mais 1/14, a título de, respectivamente, subsídio de férias e subsídio de Natal, devendo acrescer-lhe juros de mora, calculados à taxa legal, desde o dia em que cada parcela deveria ter sido liquidada até efectivo e integral pagamento;
b) Condenar a Ré DD - COMPANHIA DE SEGUROS, S.A. a pagar ao beneficiário, ora autor, BB, menor, representado por AA, o montante de € 4.836,00 (quatro mil, oitocentos e trinta e seis euros), a título de subsídio por elevada incapacidade previsto no art.º 22º, nº 1, al. b) da Lei nº 100/97, de 13.09, acrescido juros de mora, calculados à taxa legal, desde 1 de Dezembro de 2007 até integral pagamento;
c) Absolver os demais Réus do peticionado.
Custas pela Ré DD - COMPANHIA DE SEGUROS, S.A. (art.º 446.º do C. P. Civil).
Fixo o valor da causa em 23.403,38 € (art.º 120.º, n.º 1 do CPT).
Notifique e registe.
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A Ré Seguradora, inconformada com tal sentença, veio, a fls. 454 e seguintes, interpor recurso da mesma, que foi admitido a fls. 169 dos autos, como de Apelação, a subir imediatamente, nos próprios autos e efeito meramente devolutivo, apesar do efeito suspensivo solicitado pela recorrente, embora sem fundamento de facto ou de direito para tal.
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A Apelante apresentou, a fls. 472 e seguintes, alegações de recurso e formulou as seguintes conclusões:
(…)
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O Autor BB, menor, representado por AA, apresentou contra-alegações, dentro do prazo legal, na sequência da respectiva notificação, tendo formulado as seguintes conclusões (fls. 484 e seguintes):
(…)
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A Ré empregadora apresentou alegações dentro do prazo legal, não tendo formulado conclusões, limitando-se a pugnar pela manutenção da sentença recorrida (fls. 472 e seguintes).
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O chamado, apesar de notificado, não apresentou alegações, dentro do prazo legal.
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Tendo os autos ido aos vistos, cumpre apreciar e decidir.

II – OS FACTOS

1 - No dia 30 de Novembro de 2007, pelas 20.30 horas, FF, nas funções de servente de solo, trabalhava numa obra de montagem de andaimes onde se procedia ao travamento e montagem de um andaime metálico de pés fixos à parede dos silos da Fábrica Nacional (HH MOAGENS, SA).
2 - A dado momento, o sinistrado caiu de um andaime e estatelou-se no chão.
3 - Em consequência da queda, resultaram para FF, de forma directa e necessária, lesões traumáticas crâneo-encefálicas, torácicas, abdominais e raqui-medulares que foram a causa da sua morte.
4 - A análise ao sangue do sinistrado revelou a presença de álcool, numa concentração de 2,29 gramas / litro.
5 - A análise químico-toxicológica do sangue do sinistrado, revelou a presença de morfina-opiáceos, numa concentração de 88 ng/ml.
6 - À data do acidente, o sinistrado auferia a retribuição anual de € 9.100,00 (€ 30,00 x 5 dias x 52 semanas : 12).
7 - A Ré CC SEGUROS, SA e EE, LDA celebraram um “contrato de seguro” do ramo acidentes de trabalho, na modalidade de riscos traumatológicos/seguro completo, titulado pela apólice n.º ..., junto a fls. 189 a 197, cujo conteúdo se dá aqui por integralmente reproduzido.
8 - À data do acidente, FF era casado com AA.
9 - À data do acidente FF e AA estavam separados de facto.
10 - No dia 19 de Dezembro de 2002, nasceu BB, filho de FF e AA.
11 - Por homologação do acordo do exercício do poder paternal, em 11 de Fevereiro de 2005, no processo que correu termos no 3.º juízo do Tribunal de Família e Menores de Lisboa, o exercício do poder paternal do menor BB foi confiado à sua mãe, AA.
12 - Por decisão proferida nos autos de regulação do poder paternal sob o n.º 1149/04.6TMLSB que correu termos na 2.ª secção do 3.º juízo do Tribunal de Família e Menores de Lisboa, foi fixada uma pensão de alimentos no valor de € 150,00 em favor do menor e a pagar pelo pai, FF.
13 - Nas circunstâncias de tempo e lugar referidas supra em 1) o sinistrado não usava linha de vida, arnês e cinto de segurança.
14 - FF foi admitido para exercer as suas funções de servente sob as ordens, direcção e dependência económica e jurídica da empresa EE - MONTAGEM DE ESTRUTURAS METÁLICAS, LDA.
15 - À data do acidente, o sinistrado tinha sido cedido verbalmente pela empresa EE, LDA a GG, para exercer as suas funções no local onde ocorreram os factos referidos supra em 2).
16 - Aquando do acidente que motivou a morte do trabalhador, este estava sob a direcção de GG e trabalhava numa obra em que este era subempreiteiro e em que era dona da obra a empresa HH MOAGEM, S.A.
17 - O sinistrado caiu num local do andaime onde este se encontrava sem protecção colectiva.
18 - O sinistrado tinha funções de servente e trabalhava no solo; o sinistrado estava a trabalhar no solo a dar serventia aos colegas que estavam nos andaimes e subiu aos mesmos, altura em que terá caído.

Factos não provados ou respondidos restritivamente:

1.º) No local referido em B) existia iluminação directa para o local onde se encontrava a ser montado o andaime? Resposta: Não Provado;
2.º) O chamado GG disponibilizou ao sinistrado linha de vida, arnês ou cinto de segurança? Resposta: Não Provado;
3.º) O sinistrado decidiu não usar os materiais referidos no número anterior? Resposta: Prejudicado;
5.º) Não sendo a Ré EE responsável pelo cumprimento de quaisquer normas de segurança na obra em causa, nem tendo responsabilidade por qualquer ordem dada ao sinistrado? Resposta: Provado apenas o que consta da alínea P) dos Factos Assentes e da resposta ao quesito 4.º;
6.º) O sinistrado estava a trabalhar no solo a dar serventia aos colegas que estavam nos andaimes e subiu pata os ajudar, altura em que terá caído? Resposta: Provado que o sinistrado estava a trabalhar no solo a dar serventia aos colegas que estavam nos andaimes e subiu aos mesmos, altura em que terá caído;
8.º) O sinistrado caiu de uma altura de 14 metros? Resposta: Não Provado;
9.º) O sinistrado, embora tivesse funções de servente e trabalhasse no solo, recebeu ordens para subir aos andaimes? Resposta: Provado apenas que o sinistrado tinha funções de servente e trabalhava no solo.
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III – OS FACTOS E O DIREITO

É pelas conclusões do recurso que se delimita o seu âmbito de cognição, nos termos do disposto nos artigos 87.º do Código do Processo do Trabalho e 690.º e 684.º n.º 3, ambos do Código de Processo Civil, salvo questões do conhecimento oficioso (artigo 660.º n.º 2 do Código de Processo Civil).
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A – REGIME ADJECTIVO E SUBSTANTIVO APLICÁVEIS

Importa, antes de mais, definir o regime processual aplicável aos presentes autos, atendendo à circunstância da presente acção (na sua fase conciliatória - cf. artigo 26.º, números 2 e 3 e 99.º do Código do Processo do Trabalho de 1999) ter dado entrada em tribunal em 10/12/2007, ou seja, antes da entrada em vigor das alterações introduzidas no Código do Processo do Trabalho pelo Decreto-Lei n.º 295/2009, de 13/10, que segundo o seu artigo 6.º, só se aplicam às acções que se iniciem após a sua entrada em vigor, tendo tal acontecido, de acordo com o artigo 9.º do mesmo diploma legal, somente em 1/01/2010.
Esta acção, para efeitos de aplicação supletiva do regime adjectivo comum, foi instaurada antes da entrada em vigor (que ocorreu no dia 1/1/2008) das alterações introduzidas no Código de Processo Civil pelo Decreto-Lei n.º 303/2007, de 24/08, e que só se aplicaram aos processos instaurados a partir de 01/1/2008 (artigos 12.º e 11.º do aludido diploma legal) bem como antes da produção de efeitos das mais recentes alterações trazidas a público pelo Decreto-Lei n.º 226/2008, de 20/11 e parcialmente em vigor desde 31/03/2009, com algumas excepções que não tem relevância na economia dos presentes autos (artigos 22.º e 23.º desse texto legal) – cf., quanto ao complexo regime decorrente das normas de direito transitório constantes do último diploma legal indicado, Eduardo Paiva e Helena Cabrita, “O processo executivo e o agente de execução”, 2.ª Edição, Abril de 2010, Edição conjunta de Wolsters Kluwer Portugal e Coimbra Editora, páginas 19 e seguintes -, mas esse regime, centrado, essencialmente, na acção executiva, pouca ou nenhuma relevância tem para a economia deste processo judicial.
Será, portanto, de acordo com o regime legal decorrente do anterior Código do Processo do Trabalho e da reforma do processo civil de 2003 (Decreto-Lei n.º 38/2003, de 8/03, com as alterações no mesmo introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 199/2003, de 10/09) e dos diplomas entretanto publicados e com produção de efeitos até ao dia da instauração dos presentes autos, que iremos apreciar as diversas questões suscitadas neste recurso de apelação.
Também se irá considerar, em termos de custas devidas no processo, o anterior Código das Custas Judiciais, dado que o Regulamento das Custas Processuais, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 34/2008, de 26/02, rectificado pela Declaração de Rectificação n.º 22/2008, de 24 de Abril e alterado pelas Lei n.º 43/2008, de 27-08, Decreto-Lei n.º 181/2008, de 28-08, Lei n.º 64-A/2008, de 31-12 e Lei n.º 3-B/2010, de 28 de Abril, só ter entrado em vigor no dia 20 de Abril de 2009 e se aplicar a processos instaurados após essa data.
Importa, finalmente, atentar na circunstância dos factos que se discutem no quadro destes autos terem todos ocorrido na vigência da LAT (ou seja, da Lei dos Acidentes do Trabalho aprovada pela Lei n.º 100/97, de 13/09 e da respectiva regulamentação inserida no Decreto-Lei n.º 143/99, de 30/04), dado as normas constantes do Código do Trabalho de 2009 – que entrou em vigor em 17/02/2009 -, relativas aos acidentes de trabalho (artigos 281.º e seguintes) estarem dependentes de legislação especial que só veio a encontrar a luz do direito com a Lei n.º 98/2009, de 4/09 e que, segundo os seus artigos 185.º, 186.º e 187.º, revogou o regime anterior (aquele aqui aplicável) e está em vigor desde 1/01/2010 e para eventos infortunísticos de carácter laboral ocorridos após essa data (também o novo regime jurídico da promoção da segurança e saúde no trabalho, vertido na Lei n.º 102/2009, de 10/09, só produz efeitos desde 1/10/2009 - cf. artigo 121.º).

B – IMPUGNAÇÃO DA DECISÃO SOBRE A MATÉRIA DE FACTO
(…)
Chegados aqui e pelos motivos expostos, tem o presente recurso de Apelação de ser julgado improcedente nesta sua vertente fáctica.

C – OBJECTO DO RECURSO

Se lermos as alegações de recurso e as conclusões delas extraídas, verificamos que o que é questionado pela Seguradora é a circunstância do tribunal da 1.ª instância não ter considerado juridicamente descaracterizado o acidente que vitimou o sinistrado ou, pelo menos, imputável, em primeiro grau, à entidade empregadora e aqui 2.ª Ré, por violação das regras de segurança, fundando tal discordância na seguinte argumentação:
“H) Assim, resulta evidente que, ao contrário do que aquelas testemunhas quiseram fazer crer em audiência de julgamento, o sinistrado subiu ao andaime a fim de ajudar nos trabalhos que estavam a ser executados;
L) Desta forma, resulta evidente que o trabalhador/sinistrado encontrava-se no andaime a auxiliar os restantes colegas, (…), a cerca de 14 metros do solo, no decurso dos trabalhos que estavam a ser executados, sendo que não se encontravam instalados qualquer dispositivos de protecção colectiva, nos andaimes em que estes se encontravam;
J) Resulta assim que, na origem do evento dos autos esteve o incumprimento das disposições referentes às medidas de protecção colectiva e/ou individual a utilizar em trabalhos com risco de queda em altura, uma vez que não se encontravam colocados guarda corpos e redes de protecção, bem como não tinham sido distribuídos aos trabalhadores linha de vida, arnês ou cintos de segurança, sendo que o facto de o trabalhador ter sido colocado a trabalhar num local onde o risco de queda em altura era eminente, não só em virtude da localização do seu posto de trabalho (em cima de um andaime) como também por força do tipo de trabalho que ele tinha de desempenhar que o obrigava a posicionar-se numa zona ainda menos segura e a realizar tarefas fisicamente exigentes e que poderiam originar grande desequilíbrio;
L) Para além dos factos já referidos, contribuíram decisivamente para a verificação do acidente de trabalho dos autos, o teor de álcool no sangue que o trabalhador/sinistrado apresentava, o qual alterou o seu estado de espírito e disposição, provocando-lhe, por um lado, um estado de euforia anormal, e, por outro, diminuindo-lhe a atenção, concentração e reflexos necessários aos trabalhos que se encontrava a executar;
M) Mais, tal teor de álcool no sangue, aliado à presença de morfina-opiáceos, foram causa directa e necessária da produção do acidente dos autos, influenciando ainda a destreza e a capacidade de atenção e concentração daquele FF, provocando naquele um défice na avaliação do risco, para além de uma diminuição da acuidade visual e o estreitamento do campo de visão e da percepção das distâncias;
N) Pelo que, resulta evidente e terá de se concluir por um comportamento temerário por parte do trabalhador/sinistrado, do qual resultou a morte deste, revelador de uma negligência grosseira, razão pela qual se encontram preenchidos os requisitos constantes da alínea c), do n.º 1, do artigo 7.º, da Lei n.º 100/97, de 13 de Setembro, e, desta forma, o acidente dos presentes autos encontra-se descaracterizado como de trabalho, não havendo, por isso, à luz da lei e condições gerais, particulares e especiais da apólice em vigor, lugar a reparação por parte da ora recorrente;
O) Daí que os factos provados não possam levar a concluir, ao contrário do que fez a sentença recorrida, pela responsabilização da ora recorrente, em face da caracterização do evento dos autos como acidente de trabalho;”
Julgamos despiciendo analisar as questões que a montante da problemática em análise habitualmente se colocam, em face do acordo existente entre as partes no que toca à existência de uma relação de trabalho subordinada e remunerada entre a vítima do acidente dos autos e a 2.ª Ré, achando-se a responsabilidade infortunística laboral transferida pela entidade empregadora para a Companhia de Seguros aqui também demandada.
Igualmente pensamos que já transitou em julgado a sentença recorrida na parte que concerne à inexistência de responsabilidade por parte do Réu chamado, GG, por se ter considerado a cedência ocasional para este feita pela 2.ª Ré como ilícita e, nessa medida, juridicamente ineficaz relativamente às Rés, dado ter sido meramente verbal, sem o acordo da vítima e fora das circunstâncias previstas no artigo 324.º do Código do Trabalho de 2003.

C1 - DESCARACTERIZAÇÃO DO ACIDENTE DE TRABALHO

Convirá, face à transcrita argumentação jurídica da Ré Seguradora, chamar à boca de cena o estatuído nos artigos 6.º e 7.º da LAT, que, sem prejuízo das normas que os complementam em termos de regulamentação do correspondente regime (artigos 6.º, 7.º e 8.º do Decreto-Lei n.º 143/99, de 30/04), rezavam o seguinte à data do sinistro dos autos:

Artigo 6.º
Conceito de acidente de trabalho
1- É acidente de trabalho aquele que se verifique no local e no tempo de trabalho e produza directa ou indirectamente lesão corporal, perturbação funcional ou doença de que resulte redução na capacidade de trabalho ou de ganho ou a morte.
2- Considera-se também acidente de trabalho o ocorrido:
a) No trajecto de ida e de regresso para e do local de trabalho, nos termos em que vier a ser definido em regulamentação posterior;
b) Na execução de serviços espontaneamente prestados e de que possa resultar proveito económico para a entidade empregadora;
c) No local de trabalho, quando no exercício do direito de reunião ou de actividade de representante dos trabalhadores, nos termos da lei;
d) No local de trabalho, quando em frequência de curso de formação profissional ou, fora do local de trabalho, quando exista autorização expressa da entidade empregadora para tal frequência;
e) Em actividade de procura de emprego durante o crédito de horas para tal concedido por lei aos trabalhadores com processo de cessação de contrato de trabalho em curso;
f) Fora do local ou do tempo de trabalho, quando verificado na execução de serviços determinados pela entidade empregadora ou por esta consentidos.
3 - Entende-se por local de trabalho todo o lugar em que o trabalhador se encontra ou deva dirigir-se em virtude do seu trabalho e em que esteja, directa ou indirectamente, sujeito ao controlo do empregador.
4 - Entende-se por tempo de trabalho, além do período normal de laboração, o que preceder o seu início, em actos de preparação ou com ele relacionados, e o que se lhe seguir, em actos também com ele relacionados, e ainda as interrupções normais ou forçosas de trabalho.
5 - Se a lesão corporal, perturbação ou doença for reconhecida a seguir a um acidente presume-se consequência deste.
6 - Se a lesão corporal, perturbação ou doença não for reconhecida a seguir a um acidente, compete ao sinistrado ou aos beneficiários legais provar que foi consequência dele.
Artigo 7.º
Descaracterização do acidente
1- Não dá direito a reparação o acidente:
a) Que for dolosamente provocado pelo sinistrado ou provier de seu acto ou omissão, que importe violação, sem causa justificativa, das condições de segurança estabelecidas pela entidade empregadora ou previstas na lei;
b) Que provier exclusivamente de negligência grosseira do sinistrado;
c) Que resultar da privação permanente ou acidental do uso da razão do sinistrado, nos termos da lei civil, salvo se tal privação derivar da própria prestação do trabalho, for independente da vontade do sinistrado ou se a entidade empregadora ou o seu representante, conhecendo o estado do sinistrado, consentir na prestação;
d) Que provier de caso de força maior.
2 - Só se considera caso de força maior o que, sendo devido a forças inevitáveis da natureza, independentes de intervenção humana, não constitua risco criado pelas condições de trabalho nem se produza ao executar serviço expressamente ordenado pela entidade empregadora em condições de perigo evidente.
3 - A verificação das circunstâncias previstas neste artigo não dispensa as entidades empregadoras da prestação dos primeiros socorros aos trabalhadores e do seu transporte ao local onde possam ser clinicamente socorridos.

O quadro legal acima transcrito – convindo realçar também a presunção contida no número 1 do artigo 7.º do diploma regulamentar da LAT, já aludido –, quando devidamente conjugado com a matéria de facto dada como assente, permite concluir, sem margem para dúvidas, pela ocorrência de um evento imprevisto e agressivo, verificado no local e tempo de trabalho e susceptível de produzir, directamente, lesão corporal que implicou a morte do sinistrado (cf., quanto aos diversos elementos que integram o conceito de acidente de trabalho, Carlos Alegre, “Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais”, Regime Jurídico Anotado, 2.ª Edição, Fevereiro de 2000, Almedina, páginas 34 e seguintes e, em anotação ao artigo 6.º).
Ainda que assim não fosse, bastaria lançar mão das presunções legais contidas nos artigos 17.º, número 5 da Lei n.º 100/97 de 13/09 e 7.º, número 1 do Decreto-Lei n.º 143/99 de 30/04 (reconhecimento da lesão a seguir a um acidente, verificado no local e tempo de trabalho) para concluir pela ocorrência do acidente de trabalho em questão, não havendo, aliás, como ressalta do Auto de Tentativa de Conciliação de fls. 147 a 151, divergência entre as partes relativamente a tal facto.
Tendo em atenção os factos dados como assentes, é manifesto que o sinistrado, com a categoria de servente de solo, sofreu uma queda de uma altura indeterminada, quando se achava num andaime ainda em fase de montagem - e para a finalização da qual ele estava, aliás, a contribuir com o desempenho das suas funções no tempo e no local de trabalho -, para o qual tinha subido, momentos antes, tendo caído em circunstâncias não apuradas, vindo o referido evento, ocasional e involuntário, em função das lesões físicas que lhe provocou, a ser causador do seu falecimento imediato.
Tal chegada a esse primeiro porto não se confunde com a viagem seguinte, destinada exactamente a averiguar se o processo causal que levou à morte do sinistrado pode ser assacado ao mesmo, em termos de responsabilidade.
Nesta segunda fase da análise jurídica do pleito dos autos e tendo como pano de fundo a dinâmica concreta do acidente e as circunstâncias particulares em que ocorreu, importa fazer um novo juízo estribado nos pressupostos e parâmetros previstos nas diversas alíneas do número 1 do artigo 7.º da LAT.
Inexistindo qualquer indício, ainda que mínimo, que o sinistrado se atirou intencionalmente do andaime abaixo ou que a entidade empregadora tinha implementado no local e tempo do sinistro dos autos regras e equipamento adequado de segurança, que a vítima, ao contrário do que lhe sido ordenado e legalmente se lhe impunha, se recusou a acatar ou a usar, fica afastada, desde logo, a alínea a) do número 1 do artigo 7.º da LAT (em conjugação com o número 1 do artigo 8.º do Decreto-Lei n.º 143/99, de 30/04).
Resta-nos, portanto, analisar os factos dados como assentes e não assentes, à luz da alínea b) do número 1 do aludido artigo 7.º, sem esquecer o que o mesmo artigo 8.º da Regulamentação da Lei dos Acidentes de Trabalho estabelece, no seu número 2, quanto ao conceito de “negligência grosseira”.
O Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 20/01/2011, processo n.º 1127/08.6TTLRA.C1.S1, em que foi relator o Juiz-Conselheiro Fernandes da Silva, que se mostra publicado em www.dgsi.pt, refere a este respeito o seguinte:
Não dá direito a reparação, descaracterizando-o, v.g., o acidente que provier exclusivamente de negligência grosseira do sinistrado – art. 7.º, n.º1, b) da LAT – entendendo-se por negligência grosseira, no quadro definido no art. 8.º/2 do RLAT, o Decreto-Lei n.º 143/99, de 30 de Abril, todo o comportamento temerário em alto e relevante grau, que não se consubstancie em acto ou omissão resultante da habitualidade ao perigo do trabalho executado, da confiança na experiência profissional ou dos usos e costumes da profissão.
Como bem se refere na decisão revidenda, o requisito da descaracterização em causa contém em si duas condições ou realidades especificamente agravadas: a causalidade tem que ser exclusiva e a culpa/negligência tem que ser grosseira.
Não basta, pois, para o efeito, a verificação da culpa leve, a mera distracção, imprevidência ou comportamentos afins.
Exige-se um comportamento temerário, reprovado por um elementar sentido de prudência.
Sabido que a noção de mera culpa/negligência se traduz na violação de um dever geral de cuidado, evoluindo a mesma da negligência inconsciente para a consciente e esta com estabelecidas gradações dogmáticas (levíssima, leve e grave) em função da intensidade ou grau de ilicitude e da culpa (a culpabilidade por negligência é, no dizer de Wessels [«Direito Penal», Parte Geral, 1976, pág. 89.], a desatenta ou descuidada posição do agente em face das exigências objectivas de cuidado postuladas pela Ordem Jurídica, fundando-se a sua punição no poder-dever do agente de actuar de outro modo), o apelo da norma interpretanda dirige-se, como se disse, à negligência grosseira, correspondente – como é pacificamente entendido e aceite pela doutrina e Jurisprudência – a uma negligência particularmente grave em que ao inobservado dever objectivo de cuidado se associa, em termos da normal previsibilidade, um real e elevado dano ou perigo de dano.
Porque temerária, há-de configurar, por acção ou omissão, um comportamento fortemente censurável/reprovável, a apreciar casuisticamente.
Além disso, há-de ser exclusiva, ou seja, na eclosão do acidente não pode ter concorrido conduta de terceiro. O acidente há-de apresentar-se como resultado de uma única causa, o comportamento (temerário) do sinistrado.
Tenha-se ainda em consideração que compete à Ré a prova da materialidade correspondente à descaracterização do sinistro, enquanto facto ou conjunto de factos impeditivos do direito à reclamada reparação – n.º 2 do art. 342.º do Cód. Civil.
Lembre-se, por fim, que – como é jurisprudencialmente pacífico, há muito – a gravidade da infracção às regras estradais não é necessariamente sinónimo, por consabidas razões, de negligência grosseira, nos termos e dimensão postulados pelo direito infortunístico, não podendo o critério de gravidade, ínsito na legislação rodoviária, servir para descaracterizar, sem mais, um acidente simultaneamente de viação e de trabalho, como no caso.
Por seu turno, o Sumário do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 10/11/2010, processo n.º 3411/06.4TTLSB.L1.S1, em que foi relator o Juiz-Conselheiro Sousa Grandão, que se mostra publicado em www.dgsi.pt, sustenta o seguinte:
“X – Correspondendo a “negligência grosseira” à “culpa grave”, a sua verificação pressupõe que a conduta do agente – porque gratuita e de todo infundada – se configure como altamente reprovável, à luz do mais elementar senso comum.
XI – A exclusão da responsabilidade prevista na alínea b) do n.º 1 do art.º 7.º da LAT, a par de um comportamento altamente reprovável do trabalhador exige que o acidente tenha resultado em exclusivo desse comportamento.
XII – Não estando provado que o acidente haja ocorrido por culpa exclusiva do trabalhador, soçobra, sem mais, a “descaracterização” do acidente.”
Finalmente, o Sumário do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17/03/2010, processo n.º 110/06.0TTCBR.C1.S1, em que foi relator o Juiz-Conselheiro Bravo Serra, que se mostra publicado em www.dgsi.pt, defende também o seguinte:
“I - A alínea b) do n.º 1 do art. 7.º da Lei n.º 100/97, de 13 de Setembro (LAT), não se contenta tão só com a circunstância de o trabalhador que sofreu o evento infortunístico-laboral ter actuado com negligência grosseira – com a explicitação que deste conceito se surpreende no n.º 2 do art. 8.º do Decreto-Lei n.º 143/99, de 30 de Abril –, exigindo, ainda, que a actuação, que consubstancia a negligência grosseira, deva ser, em exclusivo, a causa do indicado evento.
II - Apesar de estar demonstrada a ocorrência do despiste do motociclo conduzido pelo Autor, ao circular numa rotunda e o estado de alcoolemia apresentado por aquele, estado esse que lhe diminuía de forma muito relevante as suas capacidades sensoriais, de concentração e de raciocínio, bem como os seus reflexos, atenção e capacidade de reacção, tal factualidade não permite a conclusão de que esse despiste foi devido, em exclusivo, ao estado de alcoolemia apresentado pelo Autor.
III - E isto porque, embora dessa matéria resulte o estado de alcoolemia em que se encontrava o Autor e a repercussão que o mesmo tinha nas suas capacidades sensoriais, o que é certo é que não foi também dado como provado que essa repercussão se postasse como a única causa da perda do domínio do veículo conduzido pelo Autor e do consequente despiste.
IV - Assim, a matéria fáctica adquirida nos autos não aponta, sem equívocos, para que a eclosão do despiste se deveu, em exclusivo, ao estado alcoolizado em que se encontrava o Autor, ou, se se quiser, que, se o mesmo se não encontrasse em tal estado, aquele despiste, de todo em todo, não tinha ocorrido, pelo que, não há lugar à exclusão do direito à reparação do acidente.” (em sede de doutrina, ouça-se, por todos, o que diz Carlos Alegre, em “Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais - Regime Jurídico Anotado”, 2.ª Edição, Fevereiro de 2000, Almedina, páginas 61 a 63, Nota III ao artigo 7.º).
Ora, se compulsarmos a factualidade dada como assente e apesar do sinistrado na altura apresentar uma taxa de alcoolemia de 2,29 gramas/litro e a presença de morfina-opiáceos, numa concentração de 88 ng/ml (Pontos 4 e 5), seguro é que não conseguimos perceber em que circunstâncias concretas de modo, espaço e tempo aconteceu o acidente de trabalho dos autos, ficando somente com a certeza de que o trabalhador estava a ajudar os três colegas a partir do chão na montagem do referido andaime e que, a certa altura, por razões e com objectivos que não foi possível, em absoluto, apurar, decidiu trepar ao dito andaime (18 - O sinistrado tinha funções de servente e trabalhava no solo; o sinistrado estava a trabalhar no solo a dar serventia aos colegas que estavam nos andaimes e subiu aos mesmos, altura em que terá caído), dali se tendo despenhado no solo, de altura não demonstrada e num quadro envolvente da génese, causas e desenvolvimento da queda, totalmente desconhecido.
A Ré Seguradora procura extrair tal negligência grosseira, como causa exclusiva do sinistro, quer dos referidos elementos toxicológicos, quer dos factos já antes ponderados, em sede da Impugnação da Decisão sobre a Matéria de Facto - o sinistrado subiu o andaime para ajudar os colegas na sua montagem e caiu do mesmo, de uma altura de 14 metros -, mas, não só estes últimos mantiveram-se excluídos da factualidade provada, como aqueles, isoladamente e sem que saiba em que canário factual específico e determinado o acidente aconteceu, não podem traduzir a aludida culpa muito grave e determinante, só por si, do dito sinistro.
Não custa a este tribunal presumir que a vítima estaria num estado psicológico e emocional alterado – talvez mesmo bastante alterado - mas isso não significa que o trabalhador tenha sofrido a queda em função de tal estado - pelo menos, em termos exclusivos -, sendo possível conceber co-causas que, conjuntamente com tal diminuição das faculdades psico-motoras do sinistrado, estejam na origem do acidente ou mesmos situações em que essa redução intelectual e física nada tenha a ver com o mesmo.
Como meras hipóteses abstractas, pense-se, por um exemplo, num desmaio, potenciado ou não pelo mencionado estado de alteração subjectiva, num gato, pombo ou gaivota pousados ou em vias de alcançar o andaime e que, surgindo do escuro e de repente, assustaram o trabalhador quando ele subia, ou no facto dos tubos e plataformas estarem escorregadias da humidade ou chuva da noite, numa ferramenta que tombou de cima e atingiu o indivíduo ou mesmo, num extremo e como mera hipótese de trabalho, numa altercação entre os outros assalariados e o sinistrado que degenerou em briga e na queda involuntária ou voluntária do mesmo.
Logo, pelos motivos expostos, este primeiro fundamento jurídico da Ré não pode proceder, tendo a Apelação de não ser considerada quanto a tal aspecto.

C2 – CULPA DA ENTIDADE EMPREGADORA (2.ª RÉ) – RESPONSABILIDADE MERAMENTE SUBSIDIÁRIA DA RÉ SEGURADORA

Chegados aqui e tendo afastado, pelas razões acima expostas, a descaracterização do acidente como de trabalho, resta-nos averiguar se os factos dados como assentes permitem reconduzir o mesmo à previsão do corpo do número 1 do artigo 18.º da LAT, com as consequências legais que daí derivam, e que se mostram elencadas nas duas alíneas do mesmo número 1, bem como nos seus números 2 e 3, sem olvidar, finalmente, o estatuído no número 2 do artigo 37.º, igualmente do mesmo diploma legal, reproduzindo-se, de seguida, o seu teor, para melhor compreensão do respectivo regime:

Artigo 18.º
Casos especiais de reparação
1 - Quando o acidente tiver sido provocado pela entidade empregadora ou seu representante, ou resultar de falta de observação das regras sobre segurança, higiene e saúde no trabalho, as prestações fixar-se-ão segundo as regras seguintes:
a) Nos casos de incapacidade absoluta, permanente ou temporária, e de morte serão iguais à retribuição;
b) Nos casos de incapacidade parcial, permanente ou temporária, terão por base a redução de capacidade resultante do acidente.
2 - O disposto no número anterior não prejudica a responsabilidade por danos morais nos termos da lei geral nem a responsabilidade criminal em que a entidade empregadora, ou o seu representante, tenha incorrido.
3 - Se, nas condições previstas neste artigo, o acidente tiver sido provocado pelo representante da entidade empregadora, esta terá direito de regresso contra ele.
Artigo 37.º
Sistema e unidade de seguro
1 - As entidades empregadoras são obrigadas a transferir a responsabilidade pela reparação prevista na presente lei para entidades legalmente autorizadas a realizar este seguro.
2 - Verificando-se alguma das situações referidas no artigo 18.º, n.º 1, a responsabilidade nela prevista recai sobre a entidade empregadora, sendo a instituição seguradora apenas subsidiariamente responsável pelas prestações normais previstas na presente lei.
3 - (…)

Exactamente porque a actividade humana contém, em proporções variáveis, uma dose de risco para a integridade física e/ou vida de quem a desenvolve ou para terceiros (assim como relativamente a bens materiais do beneficiário da actividade, dos prestadores da dita actividade ou de outras pessoas singulares ou colectivas) e, exactamente, para evitar até onde é possível a ocorrência de eventos ou condutas causadores de tais prejuízos de natureza pessoal e patrimonial, procura-se, técnica e legalmente, regular aquela, nas suas inúmeras variantes e modalidades, produtivas ou não.
É neste quadro geral que surgem as múltiplas regras e procedimentos de carácter profissional, destinados a prescrever, em moldes comuns e genéricos e, depois, especificamente para cada sector ou área, determinadas maneiras de interagir com as situações de perigo que podem surgir, quer seja na montagem, desmontagem e manuseamento de ferramentas, máquinas ou outros mecanismos, quer no trabalho, atentas as circunstâncias particulares em que ocorre, atendendo, nomeadamente, à sua agressividade ou risco inerentes (quer em altura como em profundidade, em terra, no ar ou no mar, etc.), quer na deslocação de pessoas, materiais ou veículos, quer noutras que seria despiciendo enumerar aqui em toda a sua extensão e pormenor (cf., a título de exemplo, a Lei n.º 102/209, de 10/02, já acima referida e não invocável no caso dos autos, ao contrário do que acontece com os diplomas que a mesma veio revogar, nos termos do seu artigo 120.º: Decretos-Lei n.ºs 411/91, de 14/11, 26/94, de 1/02 e 29/2002, de 14/02 e Portaria n.º 1179/95, de 26/09).
Julgamos importante chamar, neste âmbito e porque nos parece relevante para a problemática dos autos, chamar à colação o número 1 do artigo 11.º da Portaria n.º 101/96 de 3/04.
Tal dispositivo legal estatui o seguinte:

Artigo 11.º
Quedas em altura
1. Sempre que haja risco de quedas em altura, devem ser tomadas medidas de protecção colectiva adequadas e eficazes ou, na impossibilidade destas, de protecção individual, de acordo com a legislação aplicável, nomeadamente o Regulamento de Segurança no Trabalho da Construção Civil.
2. Quando, por razões técnicas, as medidas de protecção colectiva forem inviáveis ou ineficazes, devem ser adoptadas medidas complementares de protecção individual, de acordo com a legislação aplicável.

Chegados aqui e cruzando tais considerações gerais com as disposições legais deixadas reproduzidas e os factos dados como demonstrados (tornando-se despiciendo relembrar aqui a síntese que fizemos acima relativamente ao que deles se extrai em termos de causa e dinâmica do acidente dos autos), resta-nos dizer que, muito embora não existissem no local de trabalho e da obra - montagem do andaime - quaisquer equipamentos de segurança colectiva e individual (13 - Nas circunstâncias de tempo e lugar referidas supra em 1) o sinistrado não usava linha de vida, arnês e cinto de segurança e 17 - O sinistrado caiu num local do andaime onde este se encontrava sem protecção colectiva), também não é possível, ainda nesta vertente da violação das regras de segurança pela entidade empregadora, imputar a esta a responsabilidade (principal) pela verificação do acidente de trabalho dos autos, pois mais uma vez se ignora em absoluto as circunstância e condições em que o mesmo ocorreu.
Sabendo-se somente que a vítima subiu ao andaime e que, a dada altura, caiu e se estatelou no chão, não é viável, fáctica e juridicamente, estabelecer um inequívoco nexo de causalidade adequada entre a inexistência dos referidos equipamentos de segurança e a dita queda, bastando pensar que o trabalhador terá tombado, por razões desconhecidas (tontura, desmaio?), quando ainda ia a trepar pela estrutura acima, ao encontro dos colegas, ou seja, quando não lhe era exigível a conexão de uma eventual linha de vida, arnês e cinto de segurança ao andaime, nem se colocava ainda a questão da existência das protecções colectivas (cf., a este respeito, a posição expressa no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 15/02/2006, em que foi relatora a Juíza Conselheira Maria Laura Leonardo, processo n.º 05S3135, http://www.dgsi.ot/jstj.nsf, quando refere o seguinte (Sumário): “(…) II – Considerando a forma como se desenvolvia o trabalho – furacões de 50 em 50 cm, demorando cada série de três furos, no máximo de 5 minutos – e a extensão do local onde seriam feitas tais furacões (em todas as ruas abrangidas pela obra de remodelação da rede eléctrica de baixa tensão na cidade de Ponta Delgada), não era viável o uso de andaimes (armar simultaneamente em todos os prédios andaimes, ou ir armando e desarmando andaimes à mediada que iam prosseguindo os trabalhos, dada a rapidez dos mesmos) para efeitos do disposto no artigo 11.º da Portaria n.º 101/96, nem era adequada a utilização de cintos com arnês de segurança a fixar em pontos resistentes a procurar (ou criar) nas paredes dos prédios (uma vez que a necessidade de procurar ou criar os pontos fixos e as sucessivas ligações e desligações dos cintos a esses pontos seriam factores de risco, aumentando o perigo de acidente)”.
Julgamos pertinente chamar à boca de cena alguma da jurisprudência mais recente do nosso mais alto tribunal, em que são decididos alguns acidentes em que foi igualmente invocada a violação pelas entidades patronais das regras de segurança.
Comecemos pelo Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 05/01/2012, processo n.º 486/07.2TTSTS.P1.S1, em que foi, de novo, relator o Juiz-Conselheiro Fernandes da Silva, que se mostra publicado em www.dgsi.pt e onde se refere a este respeito o seguinte (Sumário):
I – No âmbito da LAT a responsabilidade agravada tipificada no art. 18.º, n.º 1 está dependente da alegação e prova, de um comportamento culposo da entidade empregadora ou seu representante, ou a violação das regras de segurança e o nexo de causalidade entre a violação e o acidente.
II – O estabelecimento do nexo de causalidade, juridicamente relevante para o efeito da imputação de responsabilidade, pressupõe que o facto ilícito (acção ou omissão) praticado pelo agente tenha actuado como condição da verificação de certo dano, apresentando-se este como consequência normal, típica ou provável daquele.
III – Não se retirando da matéria de facto apurada nos autos que o acidente tenha resultado da falta de observação das regras de segurança no trabalho, não se mostram preenchidos os pressupostos da responsabilidade agravada da empregadora.
O Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 15/12/2011, processo n.º 222/03.2TTLRS-A.L2.S1, em que foi relator o Juiz-Conselheiro Pinto Hespanhol, que se mostra publicado em www.dgsi.pt, aborda um caso com algumas semelhanças com o nosso (queda em altura), aí se afirmando, no Sumário:
1. Sempre que haja o risco de queda em altura, devem ser tomadas medidas de protecção colectiva adequadas e quando, por razões técnicas, tais medidas forem inviáveis ou ineficazes, devem ser adoptadas medidas de protecção individual antiqueda, competindo ao empregador fornecer o correspondente equipamento.
2. O ónus da prova dos factos que agravam a responsabilidade da empregadora cabe a quem dela tirar proveito, nos termos do n.º 2 do artigo 342.º do Código Civil, incumbindo, no caso, à seguradora alegar e provar não só a inobservância por parte da empregadora de regras sobre segurança no trabalho, mas também a existência de nexo de causalidade entre essa inobservância e o acidente.
3. Provando-se, apenas, que o sinistrado executava trabalhos na cobertura do edifício, que recebia os baldes de cimento através de uma roldana montada no andaime e depois os transportava através de um vão existente no canto esquerdo do edifício e que caiu do beiral do telhado, ignorando-se a razão dessa queda, não é possível estabelecer nexo causal entre a inobservância de regras de segurança no trabalho e a produção do acidente, pelo que não se verificam os pressupostos da pretendida responsabilização da entidade empregadora.
Também o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 15/12/2011, processo n.º 827/06.0TTVNG.P1.S1, igualmente do Juiz-Conselheiro Pinto Hespanhol como relator, que se mostra publicado em www.dgsi.pt, aborda também um caso com algumas semelhanças com o nosso (queda em altura), aí se afirmando, no Sumário:
1. Embora conste da matéria de facto provada que «[o] sinistrado caiu no momento em que acedia à plataforma» e, doutro passo, que o sinistrado caiu «[d]e uma altura de cerca de 6 metros, distância a que se encontrava a plataforma do solo», materialidade que assim considerada se revela contraditória, se da conjugação lógica com outros factos provados se apreende o exacto circunstancialismo em que ocorreu o acidente de trabalho, não se verifica a contradição e a insuficiência da matéria de facto alegadamente impeditivas da solução jurídica da causa.
2. Se é certo que os factos provados demonstram a existência de ordens expressas da empregadora para que o autor, quando estivesse a trabalhar em altura, fixasse sempre o cinto ao cesto da grua e que o autor não tinha fixado o cinto ao referido cesto, aquando da queda, também se apurou que o autor só não conseguiu fixar o cinto àquela estrutura elevatória pelo facto de ter desmaiado, isto é, tal omissão só se verificou pelo sobredito motivo e não por qualquer atitude voluntária de desobediência, sem causa justificativa, às ordens da sua entidade empregadora.
3. Assim, não se configura fundamento conducente à descaracterização do acidente de trabalho que vitimou o sinistrado, mormente o previsto na segunda parte da alínea a) do n.º 1 do artigo 7.º da LAT.
Logo, tem o presente recurso de Apelação, pelos motivos expostos, de ser julgado improcedente também nesta parte, confirmando-se, nessa medida e na íntegra, a decisão judicial impugnada.

IV – DECISÃO

Por todo o exposto, nos termos dos artigos 87.º do Código do Processo do Trabalho e 712.º e 713.º do Código de Processo Civil, acorda-se neste Tribunal da Relação de Lisboa em julgar improcedente o presente recurso de apelação interposto por DD – COMPANHIA DE SEGUROS, SA, nessa medida se confirmando a decisão recorrida.

Custas a cargo da Apelante – artigo 446.º, número 1, do Código de Processo Civil.

Registe e notifique.

Lisboa, 8 de Fevereiro de 2012

José Eduardo Sapateiro
Maria José Costa Pinto
Seara Paixão
Decisão Texto Integral: