Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
686/05.0TBBNV.L1-6
Relator: MARIA TERESA PARDAL
Descritores: ALCOOLÉMIA
CONDUÇÃO AUTOMÓVEL
ACIDENTE DE VIAÇÃO
NEXO DE CAUSALIDADE
DIREITO DE REGRESSO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/09/2012
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I- De harmonia com o Acórdão do STJ Uniformizador de Jurisprudência, nº 6/2002, para que proceda o direito de regresso da seguradora contra o condutor que agiu sob a influência do álcool, previsto no artigo 19º c) do DL 522/85 de 31/12, é necessário que aquela alegue e prove que o acidente ocorreu por causa dessa condução sob a influência do álcool.
II- O Tribunal pode recorrer a presunções judiciais para, no caso concreto, dar como provado que a condução sob a influência do álcool do réu lhe diminuiu as capacidades físicas, nomeadamente de visão e de reacção e lhe causou uma desinibição que determinou uma deficiente avaliação das distâncias e dos perigos.
III- Tais factos constituem causa adequada para o comportamento culposo do réu que deu causa ao acidente, estando assim feita a prova do nexo causal que cabia à autora seguradora.
( Da responsabilidade da Relatora)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na 6ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa:

RELATÓRIO.
A ( …..Seguros,SA) iintentou a presente acção declarativa com processo sumário contra B alegando, em síntese, que, no dia 29/11/2002, o veículo de matrícula IX-00-00, seguro pela autora e conduzido pelo réu, circulava na EN nº118, sentido Benavente/Salvaterra de Magos e embateu noutros dois veículos, em virtude de o réu, por estar sob a influência do álcool que havia ingerido, ter efectuado uma manobra de ultrapassagem sem se certificar de que o podia fazer em segurança, num entroncamento e transpondo uma linha contínua, do que resultaram danos para os outros dois intervenientes no acidente, que a autora indemnizou, tendo ainda suportado despesas com o processo.
Concluiu invocando o seu direito de regresso contra o réu e pedindo a condenação deste a pagar-lhe a quantia de 6 451,95 euros, acrescida de juros de mora desde a citação.
O réu contestou impugnando a descrição dos factos constante na petição inicial, bem como os danos aí invocados e alegando que o facto de se encontrar a conduzir com uma taxa de alcolémia não foi a causa determinante do embate nos outros dois veículos.
Concluiu pedindo a improcedência da acção e a absolvição do pedido.
Saneados os autos, procedeu-se a julgamento, findo o qual foi proferida sentença que julgou a acção procedente e condenou o réu a pagar à autora a quantia de 6 451,95 euros acrescida de juros de mora desde a citação e até efectivo pagamento.
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Inconformado, o réu interpôs recurso, que foi admitido como apelação, com subida imediata, nos autos e efeito devolutivo.
O apelante alegou, formulando as seguintes conclusões:
1- Por contrato de seguro, a recorrida assumiu a responsabilidade civil emergente da circulação terrestre do veículo IX-00-00.
2- Celebrado o contrato de seguro, cada uma das partes fica sujeita a certas e determinadas obrigações correspondentes a outros tantos direitos da contraparte.
3- Por forçada lei do seguro obrigatório em vigor à data do acidente – Decreto-Lei nº522/85, de 31 de Dezembro, o segurado fica, em princípio, isento de pagamento de qualquer importância reclamada a título de indemnização, desde que a mesma se situe dentro dos seus limites.
4- De acordo com o Acórdão do STJ de 13-11-2003, processo 03B3128:
- “Não se discute a natureza contratual do seguro obrigatório automóvel.
A obrigação de indemnizar das seguradoras é, sem dúvida alguma, uma obrigação contratual, embora regulada com algum pormenor e rigor pela lei, tendo em vista os interesses em causa, sobretudo os dos lesados em receberem a indemnização.
5- Em princípio elas têm que assegurar o pagamento da indemnização devida aos lesados.
6- Há, no entanto, casos em que seria de todo injusto que essa obrigação não recaísse unicamente sobre o verdadeiro causador do sinistro. Nem que esse seja o próprio segurado, como no caso de ser ele o causador do sinistro por conduzir sob a influência do álcool”.
7- Assim, no presente caso, e por fora da lei, a seguradora fica com o direito de exigir ao causador do sinistro o que pagou ao lesado, uma vez que o dano excede o risco contratado.
8- Contudo, não basta a verificação da simples materialidade das situações previstas no artigo 19º do DL 522/85, DE 31 DE Dezembro, para que a seguradora possa, sem mais, exercer o direito de regresso.
9- É ainda preciso provar que se verifica o referido dano exorbitante do risco normal assumido pelo seguro contratado.
10- Por isso é que, em consagração da orientação jurisprudencial dominante, foi tirado o referido acórdão do STJ Uniformizador de Jurisprudência nº 6/2002 no sentido de que o direito de regresso em causa exige, para a sua procedência, o ónus da prova pela seguradora do nexo de causalidade adequada entre a conduta sob o efeito de álcool e o acidente.
11- Também o Professor Sinde Monteiro, na Anotação que fez ao Acórdão do STJ Uniformizador de Jurisprudência nº 6/2002, nos Cadernos de Direito Privado, nº2 Abril/Junho 2003, página 52, conclui “parecer-lhe correcta a orientação nele doutrinada da exigibilidade da prova, pela seguradora, do falado nexo de causalidade, requisito que se deve manter no âmbito de disposições leais de protecção em sentido estrito (normas de perigo abstracto), não bastando a constatação de que o dano se enquadra dentro do fim de protecção”.
12- Quanto ao nexo de causalidade entre a condução, o efeito do álcool e o acidente – este tem de ser aferido com recurso às Presunções, sendo estas “ilações que a lei ou o julgador tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido” (artº. 349 do C.Civil).
13- Sendo as presunções judiciais as “que só são admitidas nos casos e termos em que é admitida a prova testemunhal” (artº. 351 do C.Civil).
14- Pelo que a prova produzida, nestes casos, é sempre subjectiva e está pendente das ilações que o Meritíssimo Juiz faz s testemunhos apresentados, sem nenhum grau de objectividade e por isso ilidíveis:
- pois, um mesmo facto poder ter interpretações distintas, consoante quem os interpreta.
15- Daí, o ora recorrente e em relação aos factos provados, ter de acrescentar o seguinte:
Durante os testemunhos feitos em audiência de julgamento, nenhuma das testemunhas inquiridas referiu a existência, no comportamento do recorrente, de sinais que denunciassem que este último estivesse privado de alguma das suas faculdades ou tivesse algumas delas afectadas pelo álcool, não tendo qualquer das testemunhas do acidente se apercebido que o recorrente estivesse sob o efeito do álcool ou revelado qualquer anormalidade no seu comportamento.
Acrescenta-se que o facto de ter ficado provado que o recorrente efectuou uma manobra perigosa, não implica por si só que a mesma tenha sido causada por influência de uma elevada taxa de álcool no sangue.
Até porque diariamente são feitas centenas de manobras perigosas por condutores que não estão sob a influência do álcool.
Muitas vezes é a falta de perícia na condução que leva à ocorrência e acidentes e não o facto dos condutores estarem ou não sob o efeito do álcool.
Também está provado cientificamente que os efeitos de álcool no sangue variam de pessoa para pessoa, tendo em conta muitos factores, como o peso, altura, se foi ingerido ou não simultaneamente com comida, etc.
No presente caso concreto o recorrente vinha de um jantar pelo que estava bem alimentado, além de que é um homem de estatura alta e composição física forte.
Tanto mais que o recorrente não mostrou após o acidente quaisquer indícios de ter tomado álcool.
Simplesmente mostrou um estado nervoso, perfeitamente aceitável após a ocorrência de um acidente de viação, sendo mesmo uma reacção que qualquer pessoa no seu estado normal teria tido, indicando inclusive perfeita noção do que tinha acontecido.
Além de que o facto do recorrente conduzir a uma velocidade superior a 60 Kms/hora não se tendo conseguido apurar qual a velocidade concreta, tão pouco dá mostras de um comportamento animado pelo álcool.
Pois uma velocidade de cerca de 60 kms é perfeitamente normal numa estrada nacional e não demonstra qualquer tipo de excesso, antes pelo contrário protagoniza uma condução regular.
Os factos provados, constantes nas alíneas u) e v) desta Douta Sentença e acima descritos, são eras presunções feitas pela Ilustre Drª Juíza “a quo”.
Porquanto a prova da diminuição das capacidades físicas e motoras do recorrente, bem como a limitação das suas capacidades de visão e reacção não ficaram provadas.
Tal como não é possível provar que o recorrente fez uma subavaliação do perigo e das distâncias, tendo um comportamento desinibido, tudo devido ao efeito do álcool.
Antes pelo contrário, apesar do recorrente ser culpado pelo acidente ocorrido, teve uma actuação durante o acidente, em termos de tentar minimizar os danos que qualquer pessoa diligente, nas mesmas circunstâncias, teria tido, porquanto, face à situação descrita, o mesmo tentou, através dos meios que lhe eram possíveis, imobilizar o seu veículo automóvel.
Com efeito, e como supra se prova, o recorrente após o embate com o veículo automóvel de matrícula 00-00-QI, despistou-se tendo sido projectado para a hemi-faixa de rodagem contrária.
Dessa circunstância, o recorrente deparou-se com o veículo automóvel AX-00-00 e, não obstante ter tentado controlar o seu veículo automóvel, tal não lhe foi possível – não por estar sob a influência do álcool mas tão só porque o embate no veículo automóvel de matrícula 00-00-QI não lhe permitiu controlar o seu próprio veículo automóvel – sendo que, ainda assim, conseguiu desviar-se, danificando apenas o espelho lateral do veículo automóvel de matrícula AX-00-00.
16- Do supra exposto resulta que o recorrente não teve a conduta negligente e desatenta, antes fora a sua resposta rápida e atempada que evitou a ocorrência de um acidente com consequências mais gravosas.
17- Na situação em apreço e, apesar dos factos considerados provados pelo Tribunal de 1ª instância, acima elencados, o ora recorrente considera que tais factos não são suficientes para poder provar o nexo de causalidade entre a condução, o efeito do álcool e o acidente.
18- Porquanto a prova produzida não foi suficiente para determinar que foi a TAS que lhe diminuiu a capacidades físicas e motoras, afectando-lhe determinantemente a capacidade de condução, nem tão pouco lhe limitou as suas capacidades de visão e de reacção, pois, tal como já se referiu.
19- Não se tendo provado, por isso, o referido nexo de causalidade, necessário de acordo com a Lei para o direito de regresso por parte da recorrida – A.
A Sentença de que ora se recorre violou o artigo 19º do DL nº522/85 de 31 de Dezembro, os artigos 349º e 351º ambos do C.Civil e o Acórdão do STJ Uniformizador de Jurisprudência nº 6/2002.
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A recorrida contra-alegou, pugnando pela manutenção da sentença recorrida.
As questões a decidir são:
I) Impugnação da matéria de facto.
II) Saber se a autora seguradora tem direito de regresso contra o réu por se verificar o nexo causal entre a condução sob a influência do álcool e o acidente.
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FACTOS.
Os factos considerados provados pela sentença recorrida são os seguintes:
a) A autora exerce a actividade de seguros, para a qual se encontra devidamente autorizada (A).
b) No dia 29 de Novembro de 2002, pelas 22.25 horas, ocorreu uma colisão na EN 118, no km 46,900, em Salvaterra de Magos, em que foram intervenientes o veículo com a matrícula 00-00-87, conduzido pelo réu, o veículo com a matrícula AX-00-00, conduzido por C e o veículo com a matrícula 00-00-QI, conduzido por D (B).
c) O local do acidente apresenta boa visibilidade, uma vez que é possível aos condutores avistar a faixa de rodagem em toda a sua largura numa extensão de 50 metros; o trânsito processa-se em ambos os sentidos e por uma via de circulação em cada sentido (C).
d) Na altura da colisão o tempo estava bom, não chovia e o piso encontrava-se seco (D).
e) Nas circunstâncias referidas, o veículo IX circulava na EN 118, no sentido Benavente/Salvaterra de Magos e o veículo AX no sentido Salvaterra de Magos/Benavente (E).
f) O veículo de matrícula IX foi projectado para o lado direito da faixa de rodagem, atento o seu sentido de marcha, acabando por ir embater na lateral esquerda do veículo QI, que circulava no mesmo sentido de trânsito do réu (F).
g) Em consequência deste embate, o veículo IX capotou, vindo a imobilizar-se ao eixo da via, ocupando parcialmente as duas hemi-faixas de rodagem (G).
h) O condutor do veículo IX foi submetido a teste de despistagem de álcool e acusou uma taxa de 1,60 g/litro de sangue (H).
i) O local da colisão referido em b) configura uma recta, com piso asfaltado e em regular estado de conservação (1).
j) Alguns metros após o local referido em b) existe um entroncamento formado pela EN 118 e uma outra rua (2).
k) As faixas de rodagem no local referido em b) encontram-se separadas por uma linha longitudinal contínua (3).
l) A faixa de rodagem no local referido em B) mede 7,80 metros de largura (4).
m) O veiculo IX circulava nas circunstâncias referidas em e) animado de velocidade não concretamente apurada, superior a 60 Km/hora (5).
n) Ao chegar ao km 46,900, o réu deparou-se com uma fila de quatro veículos à sua frente, na hemi-faixa de rodagem da direita, atento o seu sentido de marcha, que se encontravam, naquele momento, a reiniciar a sua marcha em virtude do sinal luminoso, existente no local, regulador do trânsito naquele sentido (6).
o) Apesar da presença de tais veículos à sua frente, o réu não deteve a marcha do veículo IX, nem accionou os órgãos de travagem do mesmo e iniciou uma manobra de ultrapasssagem aos veículos, transpondo a linha longitudinal contínua (7 e 8).
p) O réu invadiu a hemi-faixa de rodagem contrária, onde, naquele momento, circulava o veículo AX, no sentido Salvaterra de Magos/Benavente (9).
q) Perante tal actuação do réu, o condutor do veículo AX apenas conseguiu desviar a sua trajectória para o lado direito (10).
r) Vindo a colidir com a sua dianteira esquerda contra a dianteira esquerda do veículo IX (11).
s) Em consequência deste embate, ocorreu a colisão referida em f) (12).
t) Por força desta colisão, o veículo QI foi projectado para cima do passeio do lado direito, atento o seu sentido de marcha (13).
u) A taxa de álcool no sangue referida em h) diminuiu as capacidades físicas e motoras do réu e limitou as suas capacidades de visão e reacção (14).
v) A taxa de álcool no sangue referida em h) actuou como agente desinibidor, provocando no réu uma subavaliação do perigo e das distâncias (15).
w) Na sequência da colisão resultaram ferimentos na condutora do veículo QI e danos materiais nos veículos intervenientes (16).
x) Para reparação do veículo QI seria necessário despender a quantia de 3 945,56 euros, quantia que a autora, ao abrigo do contrato de seguro, suportou (17).
y) Uma vez que a reparação do veículo AX superava o seu valor venal, a autora entregou, o abrigo do contrato de seguro, ao proprietário o montante de 2 250,00 euros correspondente ao valor venal (18).
z) A autora despendeu ainda com a investigação do acidente a quantia de 166,60 euros (19).
aa) A autora despendeu com a peritagem dos veículos a quantia de 89,79 euros (20).
ab) Ao chegar ao local do embate, o réu deparou-se com uma fila de trânsito com um número indeterminado de veículo automóveis à sua frente (22).
ac) No exercício da sua actividade, a autora celebrou com o E um contrato de seguro do Ramo Automóvel, titulado pela apólice nº.../..., em que a autora assumiu a responsabilidade civil emergente de acidentes de viação decorrentes da circulação do veículo de matrícula IX-00-00.
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ENQUADRAMENTO JURÍDICO.
I) Impugnação da matéria de facto.
O apelante impugna a matéria de facto de forma muito pouco rigorosa, sem discriminar de forma clara os elementos a que se refere o artigo 690º-A do CPC.
Contudo, das conclusões das suas alegações (“conclusões” estas que são a repetição do corpo das alegações), nomeadamente do seu número 15, retira-se que o recorrente impugna a resposta aos quesitos 14º e 15º, que correspondem, respectivamente, às alíneas u) e v) dos factos provados da sentença, pretendendo que a esses quesitos seja dada a resposta de “não provado”.
Para fundamentar a sua pretensão, o recorrente alega que nenhuma das testemunhas referiu ter notado sinais de o apelante estar sob a influência do álcool e que as presunções a que recorreu a decisão impugnada não são suficientes para se chegar a tal decisão.
É a seguinte a redacção dos referidos quesitos, que tiveram a resposta de “provado”:
Quesito 14º - A taxa de álcool no sangue referida em h) diminuiu as capacidades físicas e motoras do réu e limitou as suas capacidades de visão e reacção?
Quesito 15º - A taxa de álcool referida em h) actuou como agente desinibidor, provocando no réu uma sub avaliação do perigo e das distâncias?
A decisão sobre a matéria de facto apresentou a seguinte fundamentação para as respostas a estes dois quesitos:
Quanto aos quesitos 14º e 15º, e por inexistirem elementos objectivos – que não a taxa de álcool no sangue detectada no réu – para a prova destes foram determinantes elementos indirectos, donde se conclui, do normal acontecer e da experiência comum, que o álcool foi determinante na ocorrência deste acidente.
Assim, resulta clara a retirada de reflexos e de concentração, bem como uma excessiva confiança na condução, consistente com a ingestão de álcool na quantidade provada que, sublinhe-se, é já considerada crime.
Por outro lado, quanto às circunstâncias do acidente, resulta que o mesmo ocorreu numa recta com boa visibilidade, estrada nacional com duas hemi-faixas de rodagem que estavam em boas condições e delimitadas por uma linha longitudinal contínua, com aproximação de entroncamento, tendo, mesmo assim, o réu iniciado uma manobra de ultrapassagem, ocupando a hemi-faixa contrária, e podendo aperceber-se da iminência da colisão, só não acontecendo por não estar no seu estado normal”.
Haverá desde já que ter em conta que a impugnação da matéria de facto não constitui uma forma de obter um segundo e definitivo julgamento, servindo apenas para corrigir eventuais vícios do julgamento da 1ª instância.
Isto porque, de acordo com o artigo 655º do CPC, vigora no nosso ordenamento jurídico o princípio da livre apreciação das provas, o qual não é afastado com a garantia do duplo grau de jurisdição em sede de matéria de facto.
Assim, o tribunal de recurso não julga de novo, limitando-se a fiscalizar da razoabilidade da convicção probatória da 1ª instância e, nessa conformidade, só deverá alterar a matéria fáctica quando detecte flagrantes desvios às regras de experiência comum ou manifestos erros de julgamento.
Se não forem detectados manifestos erros de julgamento na decisão da 1ª instância e dando esta preferência a determinados meios de prova em detrimento de outros, fundamentando a sua convicção e não se afastando das regras de experiência comum na fundamentação, será essa convicção a prevalecer, como consequência de se presumir que a imediação e a oralidade proporcionam as condições ideais para uma correcta apreciação da prova.
No presente caso, o tribunal apenas dispunha das circunstâncias em que ocorreu o acidente e do facto de o réu acusar uma taxa de álcool de 1,60 g/l de sangue.
Desses factos, a decisão recorrida tirou ilações baseadas na experiência comum e entendeu dar como provado os dois quesitos em causa, recorrendo a presunções judiciais, como lhe é permitido pelos artigos 349º e 351º do CC, sendo certo que para o caso seria admitida a prova testemunhal, por não estar directa ou indirectamente afastada pela lei (artigos 392º e seguintes do CC).
Ora as ilações retiradas no julgamento da 1ª instância apresentam-se lógicas.
Desde logo, é um facto conhecido e cientificamente provado que a ingestão de álcool desinibe o comportamento e provoca uma diminuição nas capacidades físicas, nomeadamente nos reflexos.
E, se é certo que esses efeitos não são iguais em todos os casos – variando com a quantidade de álcool ingerido, com a compleição física e os hábitos de cada pessoa e com a ingestão de alimentos – as circunstâncias concretas em que ocorreram os embates nos outros veículos são de molde a considerar que foi o estado alcoolizado do recorrente que determinou o seu comportamento.
Apesar de, infelizmente, frequentemente ocorrerem conduções temerárias e em contravenção com o código da estrada mesmo sem ingestão de álcool, os factos dos autos apontam para que, no caso do recorrente, foi tal ingestão que lhes deu causa.
É que o recorrente não se limitou a fazer uma ultrapassagem em contravenção com as regras do código da estrada, tendo efectuado essa manobra sem sequer abrandar a marcha, não accionando os travões e invadindo a faixa contrária onde, visivelmente, circulava pelo menos outro veículo.
Tal temeridade (quando nem sequer se provou que circulasse a uma velocidade que não lhe permitisse parar) aliada ao grau de álcool que lhe foi detectado, já apreciavelmente elevado, consente que, ao abrigo do artigo 349º se chegue ao facto de que o réu, por via do álcool que ingerira, tinha as capacidades físicas e reflexos diminuídos e agiu de forma displicente resultante da desinibição determinada pelo álcool.
Para impugnar este julgamento, o apelante não invoca qualquer meio de prova para além de alegar que não estão correctas as ilações retiradas e que nenhuma testemunha referiu ser visível o seu estado de alcoolizado.
Contudo, as referidas ilações apresentam-se correctas, nos termos acima expostos e o facto de as testemunhas não terem referido que seria visível o estado de alcoolizado do apelante, por si só, nunca seria relevante, tendo em atenção que, como é sabido, a diminuição das capacidades causada pela ingestão do álcool nem sempre é visível.
Não se detecta, pois, qualquer violação das regras de experiência comum, nem nenhum erro de julgamento, devendo manter-se os pontos u) e v) dos factos provados e improcedendo a impugnação da matéria de facto.
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II) Se a autora tem direito de regresso contra o réu por se verificar o nexo causal entre a condução sob o efeito do álcool e o acidente.
Tendo procedido ao pagamento de indemnizações por danos provocados a terceiros pela circulação de um veículo automóvel cujos riscos estavam cobertos por um contrato de seguro que celebrou, a autora seguradora, ora recorrida, pretende exercer, contra o réu, condutor do veículo, o direito de regresso previsto no artigo 19º c) do DL 522/85 de 31/12 – diploma regulador do seguro automóvel obrigatório, que se encontrava em vigor à data dos factos e que entretanto foi revogado e substituído pelo DL 291/2007 de 21/8.
Segundo essa disposição legal, satisfeita a indemnização, a seguradora tem direito de regresso contra o condutor se este agiu sob a influência do álcool.
Esta norma foi alvo de diferentes interpretações: a que entendia que bastava que o condutor conduzisse sob o efeito do álcool, a que entendia que seria necessário que a seguradora provasse que o efeito do álcool causara o acidente e a que entendia que a condução sob o efeito do álcool seria uma presunção de este causara o acidente, cabendo ao condutor ilidi-la.
O acórdão do STJ Uniformizador de Jurisprudência nº6/2002 veio pôr termo a esta divergência de interpretações, nos seguintes termos: “A alínea c) do artigo 19º do Decreto-Lei nº 522/85 de 31 de Dezembro exige para a procedência do direito de regresso contra o condutor por ter agido sob a influência do álcool o ónus da prova pela seguradora do nexo de causalidade adequada entre a condução sob o efeito do álcool e o acidente”.
Haverá então que apreciar se, no caso dos autos, a autora ora apelada fez prova de que o acidente foi causado pelo efeito do álcool no comportamento do recorrente réu.
Dúvidas não há de foi o recorrente o exclusivo culpado do embate nos dois veículos.
Com efeito, foi a manobra de ultrapassagem efectuada pelo réu que deu causa aos embates, sendo que ao fazê-lo, o recorrente não se certificou de que o podia fazer em segurança, transpondo uma linha longitudinal contínua e na aproximação de um entroncamento, assim violando os artigos 3º nº2, 13º nº1, 18º nº2, 35º nº1, 38º, 41º nº1 c) do código da estrada e 6º do regulamento do código da estrada.
Mas, para que proceda o direito de regresso da autora, é necessário que fique provado que este comportamento culposo foi determinado pelo facto de o réu conduzir sob a influência do álcool, tendo em atenção que este acusou uma taxa de 1,60 g/l de álcool no sangue.
E essa prova foi feita, uma vez que ficou provado que, em concreto e naquele momento, aquela taxa de álcool com que o réu conduzia diminuiu as suas capacidades físicas e motoras, limitou as suas capacidades de visão e de reacção e determinou uma sub avaliação do perigo e das distâncias.
E embora não conste expressamente dos factos provados que foi esta diminuição das capacidades do réu que determinou o seu comportamento do réu, a mesma constitui causa adequada para tal comportamento, tal como vem definida no artigo 563º do CC.
Ou seja, o estado do réu, ao conduzir com a referida taxa de álcool no sangue – que, naquele momento, lhe determinou diminuição de visão, de reacção e de avaliação do perigo e das distâncias – é adequado para causar o comportamento que adoptou e que deu causa ao acidente, não constituindo uma mera causa determinada por circunstâncias extraordinárias e não havendo outra explicação para tal comportamento (cfr neste sentido, entre outros, acs RL de 9/09/2008, P.5138/2008.7, de 22/11/2007, P.7441/2007.2 e STJ de 7/06/2011, P. 380/08.0 e de 23/04/2009, P.09B0132, todos em www.dgsi.pt).
Conclui-se, portanto, que a apelada logrou fazer prova necessária para a procedência do seu direito de regresso, improcedendo as alegações do apelante.
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DECISÃO.
Pelo exposto, acorda-se em julgar improcedente a apelação e confirmar a sentença recorrida.
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Custas pelo apelante.
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Lisboa, 9 de Fevereiro de 2012

Maria Teresa Pardal
Tomé Ramião
Jerónimo Freitas