Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
545/10.4TBBNV.L1-7
Relator: GOUVEIA DE BARROS
Descritores: INSOLVÊNCIA
ACÇÃO DECLARATIVA
INUTILIDADE SUPERVENIENTE DA LIDE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 01/31/2012
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: Declarada a insolvência da promitente-vendedora e transitada tal decisão, verifica-se a inutilidade da acção declarativa contra ela intentada pelo promitente comprador com vista ao reconhecimento do seu crédito, porquanto este só pode ser tutelado no âmbito do processo de insolvência se o autor nele lograr vê-lo reconhecido.
(Sumário do Relator)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes do Tribunal da Relação de Lisboa (7ª Secção):

A., advogado, residente na Rua … em …, propôs a presente acção declarativa de condenação, sob a forma de processo ordinário, contra B…, Lda, com sede em …, contra a Caixa … CRL, com sede em … e ainda contra C…, SA, com sede em …, invocando a celebração de um contrato-promessa de compra e venda de um imóvel com a 1ª Ré, assim como a existência de hipoteca e de penhoras, constituídas sobre este imóvel, em favor das 2ª e 3ª Rés, pedindo que com a procedência da acção, se declare:
1. O incumprimento por parte da primeira R. em relação ao contrato-promessa de compra e venda que consta desta petição, como documento nº 1 e suas adendas.
2. Que o A. é titular de um crédito sobre a primeira R. no valor de 192.500,00 € que corresponde ao valor do imóvel, descontado da parte do preço em dívida, sendo aquele acrescido dos juros de mora vencidos até integral pagamento.
‘Ad Cautelam’, em relação a este segundo pedido
3. Que o A. é titular de um crédito correspondente à diferença entre o valor fixado para a moradia, descontado da parte do preço não pago, acrescido de juros de mora vencidos até integral pagamento.
4. Que este crédito tem origem no incumprimento do contrato, por parte da primeira R.
5. Que as RR. sejam condenadas a reconhecer que o A. é titular de um direito de retenção sobre o imóvel objecto da promessa, decorrente do crédito referido nos números anteriores.
6. Que as RR. sejam condenadas a reconhecer que tal crédito prevalece sobre a hipoteca e as penhoras incidentes sobre o imóvel aqui em apreciação”.
Mais tarde, o Autor requereu a intervenção principal do Estado, Serviço de Finanças de
…, no lugar de Réu, alegando que sobre o imóvel em relação ao qual o mesmo invoca a existência do direito de retenção foi constituída uma nova penhora, em favor deste último organismo.
Entretanto, na pendência da causa, Ré, T. N., por sentença proferida em 18 de Junho de 2010, transitada em 22/12/2010 foi declarada insolvente no processo nº…, a correr no mesmo juízo.
Notificadas as partes para se pronunciarem sobre a repercussão de tal decisão na presente instância, veio o autor requerer o seu prosseguimento, ao passo que a Ré, Caixa CRL pugnou pela extinção da instância com base na sua inutilidade superveniente.
O Administrador da Insolvência, por sua vez, tomou igualmente posição, considerando que esta acção não deveria ser apensada ao processo de insolvência, e defendendo, da mesma forma, que a presente instância não deveria ser declarada extinta.
Conclusos os autos, foi proferida sentença a declarar extinta a instância por inutilidade superveniente da lide.
Inconformada recorreu o autor para pugnar pela revogação da sentença, invocando para tal os seguintes fundamentos:
1ª) O Exmo. Senhor Juiz Julgador a quo adoptou uma tese na sentença que se entende não ser a adequada, pois a mesma não ponderou factos processuais que são determinantes in casu e que a serem tomados em consideração, bem como conjugados com a posição jurisprudencial dominante conduzem a que a sentença objecto de recurso padeça de erro de julgamento.
2ª) Alheou-se o Senhor Juiz a quo do facto de no processo de insolvência (sob o n.º …., do mesmo 2º Juízo do Tribunal Judicial de …e) ainda não se encontrar proferida uma decisão judicial - art. 140º do CIRE - transitada em julgado sobre a verificação e graduação dos créditos e nomeadamente no que releva, o do Recorrente, o que é do conhecimento directo deste Senhor Juiz, porque tem sob a sua pendência quer esta acção declarativa, quer aquela de insolvência e respectivos apensos.
3ª) O Recorrente e Credor naquele processo de insolvência já ali reclamou o seu crédito, o qual está reconhecido e classificado pelo Senhor Administrador de Insolvência, mas o qual foi entretanto impugnado por outros Credores.
4ª) Somente após ficar decidido judicialmente, de forma definitiva e inatacável, no apenso da reclamação de créditos a verificação e graduação do crédito do Recorrente é que a acção declarativa se poderá eventualmente considerar como inútil, não obstante a necessidade de tal acontecer somente após a liquidação e o pagamento dos créditos verificados.
5ª) Por outro lado, a utilidade da acção declarativa decorre do facto desta poder vir a produzir efeitos fora do processo de insolvência, como acontecerá no caso do processo de insolvência ser encerrado sem que tenha havido o proferimento da sentença de verificação e graduação de crédito, com o respectivo trânsito em julgado.
6ª) Também pode acontecer que se venha a apurar ser a massa insolvente é insuficiente, bem como que a Insolvente venha a deixar de se encontrar numa situação de insolvência e nestes casos, ou seja, em que haja encerramento do processo antes do rateio, aquela sentença de graduação de créditos, na forma de caso julgado, poderá ainda não existir e daí a necessidade do sentenciamento na declarativa.
7ª) Poderá eventualmente verificar-se que após o encerramento da liquidação da massa e o rateio final haja rendimentos e não beneficiando o devedor insolvente da exoneração do passivo restante e não tendo o Recorrente sido no seu crédito totalmente ressarcido, tenha de executar a insolvente, sendo que para esse fim necessita do título executivo a alcançar na acção declarativa proposta.
8ª) Também ao nível dos créditos incobráveis, sendo o Recorrente sujeito passivo de IVA, a procedência da tramitação da acção declarativa apresenta-se essencial.
9ª) Desde a data do sentenciamento da insolvência até ao momento actual (Junho de 2011) ainda não está definida a forma de satisfação dos créditos da insolvência, nem qualificado, nem quantificado o crédito do Recorrente, pelo que é essencial a manutenção e julgamento da acção declarativa.
10ª) O art. 85° nº 1 do CIRE ao determinar a possibilidade de apensação ao processo de insolvência das acções declarativas aí mencionadas admite o seu prosseguimento, pois se fosse intenção do legislador operar nessas situações a inutilidade da acção declarativa, tal estaria consagrado, como ficou nas acções executivas (art. 88º do CIRE) ao dali directamente se fazer constar que não devem prosseguir.
11ª) A jurisprudência dominante (destacando-se: acs da Relação de Lisboa n.ºs 5810/09.0TVLSB.L1-8, de 14/04/2011; 1135/06.1TVLSB.L1-1, de 15/02/2011; 2586/08, de 08/05/2008; acs. da Relação de Coimbra n.º 168/06.2TTCBR.C1, de 15/02/2007; Acs da Relação do Porto, procs nºs 6516/07.0TBVNG.P1, de 01/06/2010; 6092/06.1TBVFR.P1, 02/03/2010; 434/08.2TTSTS.P1, de 25/01/2010; 413/08.0TBSTS-F.p1, de 22/09/2009 e 0836085, de 17/12/2008) confere total tutela e protecção a este recurso e por tal deve o mesmo ser considerado procedente.
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Em resposta a co-ré Caixa CRL. defende a confirmação do julgado e a consequente improcedência do recurso.
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Análise do recurso:
Como certeiramente é assinalado pela recorrida Caixa CRL o objecto deste recurso reconduz-se a decidir se a declaração de insolvência de um réu determina a inutilidade superveniente da acção intentada por um credor contra a insolvente, tendente ao reconhecimento do seu crédito.
E bastará a simples leitura das alegações das partes para avaliar que tal questão encontra na jurisprudência respostas perfeitamente desencontradas, sugerindo assim que não há argumentos decisivos que confiram a qualquer das soluções o toque bom das coisas evidentes.
A favor do sentido propugnado pelo recorrente poderá mesmo, a par dos judiciosos argumentos coligidos na jurisprudência que invoca, convocar-se o disposto no nº3 do artigo 85º do CIRE que estabelece que “o administrador da insolvência substitui o insolvente em todas as acções referidas nos números anteriores, independentemente da apensação ao processo de insolvência”.
Tal redução sugere que possam existir acções em que se apreciem questões relativas a bens compreendidos na massa insolvente relativamente às quais se não verifiquem os requisitos para a sua apensação e hajam de prosseguir autonomamente, razão por que o devedor insolvente é nelas substituído pelo administrador da insolvência.
Porém, a presente acção não é subsumível à previsão do nº1 do artigo mencionado o que só por si torna inconsistente o argumento retirado da redacção acima transcrita.
Por outro lado, sempre a apontada substituição do insolvente pelo administrador terá campo de aplicação nas acções em que haja outros réus, os quais não podem ser arrastados para a instância insolvencial, para nela discutirem os seus direitos, porventura estranhos aos da própria massa.
Assim, a discussão nestes autos confina-se a saber se a acção tendente ao reconhecimento de um crédito do autor sobre um réu deve ou não ser extinta após o trânsito da sentença que declarou a devedora no estado de insolvência.
Nós, tal como o tribunal recorrido, entendemos que sim.
Ainda que sob outra perspectiva, escreveu-se no acórdão de 27/9/2011, deste mesmo Colectivo, tirado no processo nº1953/09, o seguinte:
“Já na vigência do CPC anterior ao CPEREF estabelecia o nº1 do artigo 1198º que “declarada a falência, todas as causas em que se debatam interesses relativos à massa são apensadas ao processo de falência, salvo se estiverem pendentes de recurso interposto da sentença final, porque neste caso a apensação só se faz depois do trânsito em julgado”.
Tal regra que a doutrina apelida de princípio da plenitude da instância falimentar tinha como corolário o afastamento de qualquer regra de competência especializada, implicando a extensão da competência do tribunal onde corre a falência, por exemplo, às questões emergentes dos contratos de trabalho.
(…)
A avocação dos processos para apensação podia ser da iniciativa do próprio tribunal, do administrador ou do autor e comportava relevantes efeitos processuais: os créditos exigidos nos processos apensados ao de falência dentro do prazo fixado para a reclamação considerava-se reclamado (nº3 do artigo 1218º).
Ou seja, a lei (nº2 do artigo 1218º) estabelecia que “o credor que tenha o seu crédito reconhecido por decisão definitiva não está dispensado de o reclamar no processo de falência, se nele quiser obter pagamento”, mas logo a seguir consignava aquela importante excepção, considerando reclamados os créditos exigidos nos processos apensados, ainda que os seus titulares nem sequer soubessem da falência do seu devedor.
O CPEREF manteve no essencial tanto a regra atinente ao princípio da plenitude da instância falimentar (artigo 154º), como os efeitos processuais da apensação (nºs 3 e 4 do artigo 188º).
Em qualquer dos casos, as reclamações configuram verdadeiros processos autónomos de cariz declarativo que corriam por apenso ao processo de falência. (…)
É algo diferente o regime instituído pelo CIRE (aplicável aos presentes autos, iniciados em 2009), mas relativamente aos efeitos sobre as acções pendentes subsiste no essencial a mesma disciplina (não nos debruçaremos aqui sobre as alterações introduzidas por não terem incidência na decisão deste recurso).
Mas o diploma veio agora cometer ao Administrador a tarefa de requerer ao juiz a apensação das acções em que se apreciem questões relativas a bens compreendidos na massa insolvente, contanto que invoque conveniência para os fins do processo, cabendo então ao juiz verificar os pressupostos legais de tal apensação (artº85º, nº1 do CIRE).
Porém, o nº2 do mesmo preceito alarga a possibilidade de apensação às acções em que o insolvente é parte e em que tenham sido apreendidos ou detidos bens abrangidos na massa insolvente, caso em que a apensação é oficiosa e obrigatória.
Na sua alegação os recorrentes invocam ter exercido o direito de retenção sobre o imóvel (artigo 9º), desconhecendo-se todavia a fonte e natureza do direito garantido, nomeadamente se emerge de promessa de contrato com eficácia real, como agora exige o nº1 do artigo 106º do CIRE (…).
Continua o CIRE a obrigar os credores a deduzir reclamação no processo de insolvência, sob pena de nele não obter pagamento, ainda que o mesmo esteja reconhecido por decisão definitiva (nº3 do artº128º), não tendo replicado sequer a norma da 2ª parte do nº2 do artigo 1218º do CPC acima referida, reiterada no nº4 do artigo 188º do CPEREF”.
Não vemos razão para abandonar o entendimento então perfilhado, pois continuamos a considerar decisivo o argumento retirado do nº3 do artigo 128º do CIRE: se mesmo que o crédito do autor já estivesse reconhecido por sentença transitada ele só pode obter pagamento se o reclamar (e o vir reconhecido na instância insolvencial), que sentido tem o prosseguimento da instância declarativa visando tal reconhecimento?
Repare-se que o autor, ora recorrente, até deduziu reclamação do seu crédito no processo de insolvência, tendo o mesmo sido reconhecido pelo administrador da insolvência, mas impugnado pela co-ré e credora hipotecária, Caixa ... de S., C.R.L., o que vale por dizer que a discussão do direito do autor ficaria a ser feita na instância declarativa e no processo de insolvência, caso procedesse a pretensão recursiva.
Com a particularidade, no caso vertente, de se processar perante o mesmo juiz!
Tanto bastaria para que a solução intencionada não pudesse ser acolhida, pois no mínimo, teria de se suspender a primeira até para obviar a eventual contradição de julgados.
Mas, se o autor tem necessariamente de deduzir reclamação para poder obter pagamento do seu crédito, ainda que já esteja munido de sentença a reconhecer-lho, que utilidade tem então o prosseguimento da acção declarativa se o seu resultado – qualquer que ele seja - é rigorosamente irrelevante?
Ou seja, o credor pode obter pagamento se na instância insolvencial o crédito vier a ser reconhecido, mesmo que a acção por ele intentada viesse a sucumbir e, ex adverso, nada receberá se a reclamação naufragar, ainda que na acção o crédito lhe venha a ser reconhecido.
Neste quadro, parece-nos manifesto que a lide se tornou supervenientemente inútil com a declaração de insolvência da ré, pois qualquer que seja o sentido da decisão sobre a tutela peticionada, nenhum interesse pode ter para a efectiva satisfação do crédito do autor.
Aliás, se mesmo o credor que tem o seu crédito reconhecido por sentença tem de o reclamar na insolvência, isso só pode significar que ele pode ser eficazmente impugnado por outro qualquer interessado, relativamente ao qual aquela decisão não constitua caso julgado.
Ainda que exorbitando do objecto do recurso, dir-se-á que o CIRE se distanciou de forma significativa do diploma que o antecedera e em particular “o capítulo dos efeitos da declaração de insolvência sobre os negócios em curso é um daqueles em que a presente reforma mais se distancia do regime homólogo do CPEREF” e “poucas são as soluções que se mantiveram inalteradas neste domínio”, como se proclama no ponto 35 da respectiva exposição de motivos.
Na verdade, estabelece-se agora um princípio geral quanto aos negócios ainda não cumpridos à data da declaração de insolvência: o cumprimento fica suspenso até que o administrador declare optar pela execução ou recusar o cumprimento (nº1 do artigo 102º).
Ou seja, a declaração de insolvência confere ao Administrador nomeado um poder (potestativo) de cumprir ou não cumprir o negócio que estava em curso e no qual a insolvente era parte, salvo quanto à promessa de compra e venda com eficácia real em que tenha havido tradição, pois nesse caso não lhe assiste a faculdade de recusar o cumprimento.
Como é sabido, não colheu os favores da melhor doutrina a extensão do direito de retenção, operada pelo Decreto-Lei nº379/86, pois, entre outras razões, a matriz dogmática de tal direito apontava “para créditos provenientes de actos que aproveitam a todos os credores, sem excepção dos credores pignoratícios e dos credores hipotecários, incluindo nestes os próprios titulares de hipotecas com registo anterior”- citámos Antunes Varela, em “Sobre o Contrato-promessa”, pág. 111.
A par disso, assinala o mesmo autor, “os créditos brindados nos artigos 754º e 755º com a comenda jurídica da retenção têm por via de regra como objecto quantias de pequeno montante (…) nada repugnando assim que o seu prévio pagamento ou caucionamento condicione o levantamento ou desembaraço da coisa que está na origem do crédito”,
“Ora, nenhuma das circunstâncias especiais que estão na base do comum das situações geradoras do direito de retenção aproveita aos casos de promessa de compra e venda (com entrega da coisa que seja objecto do contrato prometido), designadamente ao caso da promessa de compra e venda de coisa imóvel” – mesma obra, pág. 112.
A isto acrescia a amplitude da “comenda” que tanto abrangia o promitente-comprador de habitação permanente como a sociedade que destina as fracções a revenda e que conhece bem a existência do registo da hipoteca constituída a favor da entidade bancária que financiou a construção.
Ainda por cima – referem os Profs. Drs. Nuno Pinto Oliveira e Catarina Serraestá em causa uma garantia que não é pacífica, nem em termos gerais: desde logo por ser uma garantia oculta e não permitir o “conhecimento” por parte dos restantes credores; depois por prevalecer sobre a hipoteca, tornando a posição do promitente-comprador mais forte do que a do próprio comprador.
Terá sido por isso – recorde-se – que o segundo Anteprojecto de revisão do Código de Processo Civil (que culminou com a reforma de 2003) previa o registo do direito de retenção (através do registo da mera posse) e a eliminação da prevalência do direito de retenção dos promitentes-compradores sobre a hipoteca, consagrada no art. 759º, n°2 do CC.
Não é sem razão que se propugna uma interpretação restritiva do artº755°, n°1, alínea f), do CC - «a única que pode harmonizar o direito de retenção do titular da promessa de constituição ou transmissão de direito real com os direitos do credor hipotecário” – como refere Meneses Leitão (Direito das Obrigações, vol, I, pág. 247 a 249).
Com efeito, a prática judiciária vinha demonstrando que a promessa de compra e venda era um instrumento fácil para a insolvente privilegiar alguns dos seus credores – ou, mais prosaicamente, para investir fraudulentamente em tal qualidade pessoas determinadas – a coberto da qual operava a tradição dos bens, frustrando os créditos hipotecários que os oneravam e, naturalmente, todos os restantes créditos.
Ora o CIRE cortou cerce tal prática, possibilitando ao administrador a recusa de cumprimento de tais contratos-promessa (salvo no caso já assinalado), em ordem a dar satisfação ao princípio par conditio creditorum, permitindo-lhe a devolução em singelo do sinal recebido pela insolvente, acrescido da diferença (se positiva) entre o valor do bem à data da recusa e o preço convencionado na proposta.
Claro que tal regime representa um desvio significativo tanto relativamente ao do contrato-promessa fixado no artigo 442º, nº2 do CC como ao regime pregresso do CPEREF que dispunha expressamente que a extinção do contrato-promessa implicava a restituição em dobro do sinal recebido (na situação em análise).
Obviamente que esta incursão sobre o regime legal fixado pelo CIRE não tem qualquer incidência no caso concreto em discussão nos autos, porquanto, na óptica do autor, o contrato-promessa não se extinguiu por efeito da declaração de insolvência, mas antes em consequência do incumprimento definitivo.
No caso dos autos a discussão trava-se entre o autor e os dois credores demandados e centra-se, por um lado, na validade formal e substancial do contrato-promessa e, por outro, sobre o próprio incumprimento imputado à insolvente, questão que, como se infere do que ficou dito, terá decisiva importância sobre a extensão do crédito do autor.
Mas suponha-se que inexistia qualquer ónus inscrito e que, por isso mesmo, o autor havia demandado apenas a promitente vendedora, a qual, por incúria ou outra qualquer razão, não apresentava contestação (tal como sucedeu na acção), sendo a ré condenada no pedido.
Seria curial que, obrigado o autor a deduzir reclamação por força da lei no processo de insolvência, tal decisão pudesse ser oposta aos credores da insolvente?
É obvio que não!
Mas se a estes é permitido impugnar o crédito do autor ainda que reconhecido na hipotética sentença, que utilidade comporta aquela condenação se no processo de insolvência pode decidir-se exactamente o contrário, por se considerar o contrato inválido, ou inconsistente a causa de pedir invocada, e é esta decisão que prevalece?
E que justificação pode ter diferir para o trânsito da sentença de verificação e graduação de créditos a aferição da inutilidade da instância declarativa se, quer nela seja contemplado ou preterido o crédito do autor, é sempre indiferente a decisão final nesta instância?
Como se disse no início, o entendimento que propomos não é consensual, levantando-se contra ele objecções várias que conduzem a concluir que a inutilidade só ocorre com o trânsito em julgado da sentença de verificação de créditos.
Por um lado, diz-se, sendo os créditos reconhecidos na instância declarativa “tornam-se mais consistentes e, como tal, de difícil impugnação no processo de insolvência” (Ac. desta Relação de 11/5/2011).
Mas, com o devido respeito, tal constrangimento não configura qualquer vantagem e representa mesmo o melhor argumento para se dar prevalência à decisão proferida na instância insolvencial.
Como refere Artur Dionísio Oliveira (Revista Julgar, nº9, pág. 183) só a sentença que julgue verificado o crédito no processo de insolvência terá força vinculativa relativamente aos demais credores “e isto é assim porque (…) o legislador quis conferir a todos os credores a possibilidade de discutir o passivo do insolvente (…) e para isso “atribuiu legitimidade a todos os interessados para impugnar os créditos reclamados”.
Configuraria sem dúvida uma verdadeira perversão de tal propósito conferir qualquer espécie de força probatória, mesmo que de simples justificação, a uma decisão exterior ao processo de insolvência, gerada numa acção que correra termos apenas entre o credor e o devedor, não raro inquinada por uma postura de absoluta indiferença por parte deste, quando não mesmo assente num conluio, norteado a beneficiar pessoa determinada, travestida de credor, por mor de um qualquer artifício fraudulento.
Por outro lado, diz-se também, só o trânsito em julgado da sentença de graduação retira utilidade à acção declarativa, pois só então há pronúncia definitiva sobre a tutela reclamada em ambos os processos.
Claro que seria impensável o prosseguimento dos termos da acção declarativa em paralelo com os da reclamação (no caso concreto, sob a égide do mesmo juiz!), configurando-se assim uma relação de prejudicialidade que justifica a suspensão prevista no artigo 279º do CPC (ver neste sentido, obra e autor citado, pág. 184).
Com o devido respeito, parece-nos que tal construção assenta numa leitura restritiva do conceito de “inutilidade da lide”, ancorado embora em considerações doutrinais de inegável merecimento.
Com efeito, diz-se que “a impossibilidade ou inutilidade superveniente da lide dá-se quando, por facto ocorrido na pendência da instância, a pretensão do autor não se pode manter por virtude do desaparecimento dos sujeitos ou do objecto do processo, ou encontra satisfação fora do esquema da providência pretendida: num e noutro caso, a solução do litígio deixa de interessar – além, por impossibilidade de atingir o resultado visado; aqui, por já ter sido atingido por outro meio” (citámos, Lebre de Freitas, João Redinha e Rui Pinto, em CPC Anotado, vol.I, 2ª ed. Pág.555).
E na verdade, no caso que nos ocupa, o resultado visado pelo credor ainda não foi atingido por outro meio, isto é, através da reclamação, não tendo “encontrado satisfação fora do esquema da providência pretendida”.
Porém, a inutilidade reporta-se à lide processual e não à tutela e, assim sendo, tem de ser conferida em função do interesse processual na subsistência da instância e não estritamente na consecução da finalidade intencionada pelo autor/reclamante.
Sem dúvida que, tendo sido atingido por outro meio o resultado visado através da acção, a lide se tornou inútil, porquanto não tem qualquer interesse a actividade jurisdicional com vista à declaração de um direito já reconhecido ou satisfeito.
Mas não é também inútil a lide destinada ao reconhecimento de um direito, quando por uma circunstância ocorrida na sua pendência (a declaração de insolvência), a finalidade por ela visada se tornou absolutamente irrelevante?
Como se escreve no acórdão desta Relação de 9/6/2011 “o efeito útil da sentença, relevante para o efeito da subsistência da instância, é a composição definitiva do litígio. Ora (…) tal não é possível na acção declarativa pendente, face à situação de insolvência da ré”.
Concede-se que “a inutilidade da acção declarativa – escreve-se no mesmo aresto – não resulta propriamente do facto de, por outro meio se ter obtido o efeito tido em vista, mas sim de esse efeito (…) em nada acautelar o interesse dos AA, pois estes, para lograrem obter o reconhecimento judicial do seu crédito, terão de o reclamar, ex novo, no processo de insolvência”.
Ou seja, a inutilidade superveniente da lide abarca não apenas os casos em que a tutela visada foi alcançada por outro meio, mas também as situações em que, não obstante não ter sido ainda concedida, perdeu todo e qualquer interesse para o autor, em consequência de um facto ocorrido na pendência da instância.
Por fim, contra a solução que se defende, esgrime-se a possibilidade de a sentença de verificação não ser proferida por efeito do encerramento do processo de insolvência, nas situações previstas no artigo 230º do CIRE.
Quanto a esse argumento, louvamo-nos no acórdão do STJ de 20/9/2011 (Garcia Calejo) que, debruçando-se sobre o tema, escreveu:
“Para que exista encerramento a pedido do devedor é imprescindível que este deixe de se encontrar em situação de insolvência ou que todos os credores prestem o seu consentimento (al. c), do n°1, do art. 230°). Ora, o encerramento a pedido do devedor, no sentido de deixar de se encontrar em situação de insolvência, é sempre precedido de notificação aos credores, tal como se refere no artº 231°, os quais são todos os que tenham os seus direitos verificados no processo ou na eventualidade de não haver ainda verificação (…) todos os credores reclamantes (…).
Ou seja, não se vislumbra o que é que tal encerramento tem a ver com a utilidade ou inutilidade da lide de uma acção declarativa, prévia ao processo de insolvência, caso o credor queira que o seu crédito seja efectivamente reconhecido, não resultando do eventual encerramento do processo de insolvência que aquela instância declarativa tenha qualquer interesse autónomo (o que poderia conduzir à defesa da suspensão da respectiva instância), porquanto, das duas uma, ou a situação de insolvência não cessou, sendo o crédito verificado onde foi e tinha de ser reclamado, ou os credores não dão o consentimento, não podendo, assim, o processo de insolvência ser encerrado.
Por outro lado, registando-se o encerramento por insuficiência da massa insolvente (art. 230°, n°1, al. d), nem por isso a acção declarativa terá qualquer interesse autónomo., porquanto se não existem bens suficientes a liquidar não haverá qualquer utilidade em manter a instância declarativa”.
Ora, ao intrínseco merecimento da decisão transcrita, refere-se nela ainda que “segundo cremos, este STJ antes do presente caso, apenas foi chamado a decidir através do acórdão de 25/3/2010 (…) e através de um outro aresto de 13/1/2011 (…) e em ambas as decisões se concluiu que transitada em julgado a sentença que declara a insolvência da demandada, a acção que visa o reconhecimento de um direito de crédito sobre a insolvente, deve ser declarada extinta, por inutilidade superveniente da lide”.
Posto que, por si só, tão consistente consenso não seja decisivo, ele confere à solução que defendemos um conforto acrescido quanto à bondade das razões que ancoram a nossa opção na controvérsia que envolve a questão sob escrutínio.
Em suma, declarada a insolvência da promitente-vendedora e transitada tal decisão, verifica-se a inutilidade da acção declarativa contra ela intentada pelo promitente comprador com vista ao reconhecimento do seu crédito, porquanto este só pode ser tutelado no âmbito do processo de insolvência se o autor nele lograr vê-lo reconhecido.
Improcede, por isso, a apelação.
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Decisão:
Nos termos expostos, julga-se a apelação improcedente e, consequentemente, confirma-se a decisão impugnada.
Custas pelo recorrente.

Lisboa, 31 de Janeiro de 2012

Gouveia Barros
Maria da Conceição Saavedra
Cristina Coelho