Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
28/10.2TJLSB.L1-8
Relator: ANA LUÍSA GERALDES
Descritores: ARRENDAMENTO
CADUCIDADE
TRANSMISSÃO DO ARRENDAMENTO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/16/2012
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: I - Por força do preceituado no nº 1, da alínea e), do art.57º, do NRAU, o arrendamento para habitação não caduca por morte do primitivo arrendatário quando, nomeadamente, lhe sobrevivam filhos maiores nas seguintes condições: que com ele convivessem há mais de 1 ano, e sejam portadores de deficiência com grau comprovado de incapacidade superior a 60%.
II - Casos em que se transmitirá o respectivo arrendamento, não obstante a morte do primitivo arrendatário.
III - Terão, assim, de ser alegados e provados pelo Réu – enquanto pessoa que se arroga beneficiário da excepção legal – os pressupostos constitutivos do seu direito, de molde a operar a transmissão no arrendamento para a habitação daquele, como seu efectivo arrendatário, após o falecimento de sua mãe.
IV - Não se bastando a lei com uma qualquer incapacidade. Mas com aquela que seja superior, e exceda, os 60%.
V - Excluídas estarão, portanto, todas as incapacidades “não comprovadas” ou “de grau igual ou inferior” a essa percentagem.
VI - A lei não estabelece, em parte alguma do texto do diploma legal em análise, qual a entidade que deverá certificar o grau dessa incapacidade.
VII - Daí que, estando em causa um juízo técnico e científico, temos para nós que, em tais circunstâncias, o Réu deve, pelo menos, requerer exame pericial destinado a que os respectivos peritos se pronunciem e comprovem o seu grau de incapacidade superior a 60%, avaliação a calcular de acordo com a Tabela Nacional de Incapacidades.
(Sumário da Relatora)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA

I – A… I.P.
Instaurou a presente acção declarativa com processo comum, sob a forma sumária, contra:
B…
Pedindo que se reconheça o A. como único e legítimo proprietário da fracção autónoma identificada nos autos e se condene o Réu a reconhecer tal direito e a restituir de imediato a referida fracção, livre de pessoas e bens.
Requereu ainda que se condene o Réu ao pagamento, ao Autor, a título de indemnização, pelos prejuízos emergentes pela não restituição da fracção, no valor de 15.400,00 €, acrescida da indemnização mensal de 1.400,00 €, desde Abril de 2010 até à efectiva entrega da fracção.
Alegou, para o efeito, e em síntese que:
É proprietário da fracção identificada que deu de arrendamento por contrato com início em 1/7/1956.
Acontece, porém, que faleceu a arrendatária, em 14 de Julho de 2008, tendo caducado o contrato de arrendamento, mas o Réu, filho da primitiva arrendatária, ocupa o andar sem para tal possuir título legítimo e recusa-se a sair.
A não entrega do local arrendado acarreta prejuízos ao Autor no valor identificado na p.i..

2. Contestou o Réu, argumentando, em síntese, que sempre residiu com a sua mãe, que à data do falecimento da primitiva arrendatária tinha 73 anos de idade e já sofria de uma incapacidade que lhe dificulta e restringe a sua capacidade e qualidade de vida,
Assim, o arrendamento transmitiu-se por força da lei do arrendamento urbano, quer do anterior regime, quer do NRAU.

3. Seguiu-se a tramitação processual que os autos retractam e realizada a audiência de julgamento foi proferida sentença na qual o Tribunal “a quo” julgou a acção improcedente, por não provada e, em consequência, absolveu o Réu dos pedidos formulados pelo Autor.

4. Inconformado o Autor Apelou, tendo formulado, em síntese, as seguintes conclusões [1]:

1. O Recorrente não se pode conformar com a sentença proferida pela 1ª instância pelas razões que se seguem.
2. O Tribunal “a quo” considerou provados os factos vertidos nos arts. 2º e 3º da Base Instrutória, designadamente, que à data de falecimento da primitiva arrendatária, mãe do Réu, este já sofria de uma incapacidade física grave e crescente, de grau comprovado a 60%.
3. A decisão sobre a matéria de facto em causa, como resulta dos autos, teve por base os “elementos médicos juntos a fls. 145 a 148, conjugados com os depoimentos dos filhos do Réu, em particular L…”… “e os dois pareceres médicos, juntos a fls. 146 a 148” que no entendimento do Tribunal “a quo” confirmam que o Réu é portador de incapacidade físicas com grau evolutivo que se verifica desde os últimos anos. Estes relatórios estão devidamente fundamentados e revelam-se por isso meio probatório adequado”.
4. Mas quer os depoimentos prestados em audiência de julgamento, quer os referidos relatórios médicos, não são meio probatório adequado e idóneo, para provar que o Réu, à data do falecimento da primitiva arrendatária, já era portador de deficiência com grau comprovado de incapacidade superior a 60%.
5. Sem prescindir, regista-se que no relatório médico de fls. 146 a 147 a data aposta é 10/10/2008 e que no relatório de fls. 148 a data é de 25/Janeiro/2011.
6. Ao caso dos autos aplica-se o art. 57º da Lei nº 6/2006 – novo regime de arrendamento urbano – tal como se decidiu. E para que exista o direito à transmissão do arrendamento a lei exige, entre outros requisitos, que o filho do primitivo arrendatário seja portador de deficiência com grau comprovado de incapacidade superior a 60%.
7. Ora, o Decreto-Lei nº 202/96, de 23 de Outubro – diploma aplicável à data do falecimento da primitiva arrendatária, com as alterações do DL nº 174/97, de 19 de Julho – estabeleceu o regime de avaliação da incapacidade das pessoas com deficiência, aplicando-se a todas as situações, para efeitos de acesso às medidas e benefícios previstos da lei.
8. Nos termos do diploma citado “ a avaliação de incapacidades compete a juntas médicas para o efeito constituídas ” (art. 2.º), “…é calculada de acordo com a Tabela Nacional de Incapacidades…” (art. 4.º n.º1), sendo comprovada mediante atestado médico de incapacidade, passado pelo presidente da junta médica respectiva, o qual obedecerá ao modelo definido, designado por atestado médico de incapacidade multiuso (art. 4º n.º2).
9.  Sempre que a lei faça depender a atribuição de benefícios de determinados requisitos específicos, como é o caso da transmissão do contrato de arrendamento, o atestado de incapacidade deve indicar o fim a que se destina, específicos efeitos e condições legais, bem como a natureza das deficiências e os condicionalismos para a concessão dos benefícios, conforme estatuído no art. 4 n.º 4 do diploma referido.
10. É liquido que a transmissão do contrato de arrendamento prevista no art. 57.º n.º 1 alínea e) é um benefício previsto na lei. E quando a lei faz depender a atribuição do benefício do quantitativo da incapacidade – como é o caso da transmissão do contrato de arrendamento – a avaliação da incapacidade compete a juntas médicas, constituídas para o efeito,
11. O que resulta ainda e expressamente do preâmbulo do Dec.-Lei n.º 174/97 de 19 de Julho, que se transcreve: “O Decreto-Lei n.º 202/96 de 23 de Outubro estabeleceu o regime de avaliação da incapacidade de deficientes, aplicando-se a todas as situações em que a lei faça depender a atribuição de benefícios da quantificação da incapacidade.”
12.  Consequentemente, a prova de que o R., era portador de deficiência com grau comprovado de incapacidade superior a 60%, à data do falecimento da primitiva arrendatária – 14 de Julho de 2008 – só poderia ser realizada mediante junção aos autos de atestado médico de incapacidade multiuso, na sequência de realização de junta médica constituída para o efeito ou mediante a realização de perícia médico-legal.
13. Ora, nada disso foi feito! Pelo que o Tribunal “a quo” não poderia ter dado como provada a existência de uma deficiência, com grau comprovado de incapacidade superior a 60%, à data da morte da primitiva arrendatária,
14.  Decidindo, como decidiu, a sentença recorrida violou, expressamente, o disposto no art. 57.º n.º 1 alínea e) do NRAU e o disposto no Dec.-Lei n.º 202/96 de 23 de Outubro, com a redacção introduzida pelo Dec.-Lei n.º 174/97 de 19 de Julho, concretamente, arts. 2.º, 4.º., pelo que ter-se-á verificado a caducidade do contrato de arrendamento, nos termos do estatuído na alínea d) do art. 1051.º do CC, não existindo qualquer título que justifique a ocupação da fracção em causa pelo R.
15.  Nestes termos e demais de direito, deve ser dado provimento ao presente recurso, considerando-se as respostas à matéria de facto constante dos arts 2.º e 3.º da base instrutória como “não provada” e consequentemente revogar-se a sentença proferida, substituindo-a por outra que decrete a caducidade do contrato de arrendamento, com os devidos e legais efeitos.


5. Foram apresentadas contra-alegações pugnando pela confirmação do decidido e pela não aplicação ao caso concreto dos citados diplomas legais.

6. Corridos os Vistos legais,
Cumpre Apreciar e Decidir.

II - Os Factos:

1. Mostram-se provados os seguintes factos:
1. O prédio urbano sito na …, nº …, em Lisboa, inscrito na matriz predial urbana da freguesia …, sob o art. … e descrito na …ª Conservatória do Registo Predial de … sob o nº …, está inscrito a favor do Autor, conforme e nos demais termos da certidão de fls. 11 a 17 cujo teor se dá por reproduzido na íntegra.
2. O A. adquiriu o prédio em 10/06/1951, a FH, JF e JC e mulher.
3. Em 2/5/1956, o prédio foi construído em propriedade horizontal.
4. Por escrito de 19/6/1956, a então proprietária deu de arrendamento o 3º andar esquerdo – correspondente à fracção autónoma designada pela letra “J” – à mãe do Réu, com destino a habitação, pela contrapartida monetária mensal de Esc. 1.400,00, com início em 1/7/1956, prorrogável por sucessivos e iguais períodos, conforme e nos demais termos do documento de fls. 18 a 19, cujo teor se dá por totalmente reproduzido.
5. O Réu residia na fracção autónoma desde a data referida em D), com a mãe e LJ, com quem está casado no regime da comunhão geral de bens.
6. A mãe do Réu faleceu em 14/7/2008, tendo na altura o Réu 73 anos.
7. O Autor solicitou ao Réu, por carta datada de 12/3/2009, a devolução da fracção e a entrega das chaves no prazo de 30 dias, conforme documento de fls. 22 e 23, cujo teor se dá por totalmente reproduzido.
8. O Réu permanece na fracção, juntamente com a esposa e o filho de ambos.
9. O Réu depositou mensalmente (entre Janeiro de 2009 e Fevereiro de 2010) na CGD, a quantia de € 139,79, conforme documentos de fls. 50 a 64 que se dão por reproduzidos na íntegra.
10. A fracção autónoma «J», objecto dos autos, é composta por cinco divisões, cozinha, 2 casas de banho, vestíbulo, despensa e marquise.

2. Foi posta em causa a matéria factual resultante das respostas aos quesitos 2º e 3º da Base Instrutória, do seguinte teor:
“11. À data do falecimento da mãe, o Réu já sofria de uma incapacidade física de grau comprovado superior a 60%” - cf. respostas aos quesitos 2º e 3º da base instrutória e a sentença, a fls. 249.

III – Enquadramento Fáctico-Jurídico:

1. O Autor impugna, no seu recurso, as respostas dadas pelo Tribunal “a quo” à matéria de facto constante dos arts. 2º e 3º da Base Instrutória, ou seja, a matéria relativa à prova do facto de que o Réu, à data do falecimento da primitiva arrendatária, sua mãe, já sofria de uma incapacidade física de grau superior a 60%.
Matéria considerada provada pelo Tribunal “a quo” e que terá permitido dar por verificada a existência do direito à transmissão do arrendamento com base na referida incapacidade, com a consequente improcedência da presente acção.

De acordo com a decisão relativa à matéria de facto proferida pelo Tribunal, a prova de tais quesitos assentou nos documentos de fls. 145 a 148 – relatórios médicos – conjugada com o depoimento das testemunhas que confirmaram a doença – cf. fls. 246.
Entende o Autor, porém, que tais documentos não constituem meio probatório idóneo para prova de que o Réu era portador de tal incapacidade, porquanto são meros relatórios médicos e a avaliação da incapacidade só pode ser aferida por juntas médicas constituídas para o efeito nos termos legais, de acordo com os diplomas citados nas suas conclusões, que regulam tal matéria.

Destarte, está em causa, em sede recursória, saber se:
- Os factos que integram os quesitos 2º e 3º estão efectivamente provados;
- A prova da incapacidade do Réu, a que se reportam os referidos quesitos, se mostra atingida através da junção aos autos dos relatórios médicos apresentados.

Caso contrário, não terá operado a transmissão do arrendamento em causa, o que importará a caducidade do contrato de arrendamento por efeito da morte da locatária, nos termos preceituados pela alínea d) do art. 1051º do CC, com as legais consequências daí decorrentes: a condenação do Réu a desocupar de imediato o imóvel.

Decidindo.

2. A Transmissão do Arrendamento:

2.1. Um dos factos que determina a extinção do contrato de arrendamento urbano é a morte do arrendatário.
Porém, ao longo de décadas, o legislador permitiu que essa caducidade não operasse em determinadas circunstâncias, ressalvando, com cambiantes diversos, a transmissão do arrendamento – cf. art. 1051º, d), do Código Civil.
Tendo o regime da transmissão de arrendamento sofrido alterações consoante as reformas registadas no domínio do arrendamento e variando a sua amplitude ou restrição de acordo com a realidade social de cada época.
Assim, passou-se de uma fase mais permissiva – em vigor antes da aprovação do Regime de Arrendamento Urbano (RAU), pelo Decreto-Lei nº 321-B/90, de 15 de Outubro, e que se perpetuou, com ligeiras modificações introduzidas por este diploma legal – para uma mais restritiva com assento actual no NRAU, Novo Regime de Arrendamento Urbano, aprovado pela Lei nº 6/2006, de 27 de Fevereiro.

Com efeito, enquanto o RAU, no seu art. 85º permitia a transmissão do arrendamento, por morte do arrendatário ou do cônjuge sobrevivo para quem houvesse sido transmitido o direito ao arrendamento, para os descendentes que com ele convivessem há mais de 1 ano, independentemente da sua idade e da verificação de qualquer situação de incapacidade,
Já o NRAU, no seu art.57º, restringiu essa transmissão, nomeadamente ao não permitir, nos contratos que lhe são anteriores, a transmissão do arrendamento para os descendentes maiores de 26 anos que não sofram de qualquer incapacidade ou que sejam portadores de uma incapacidade inferior a 60%.

Estatuindo expressamente que o arrendamento para habitação não caduca por morte do primitivo arrendatário quando lhe sobreviva:
a) Cônjuge com residência no locado;
b) Pessoa que com ele vivesse em união de facto, com residência no locado;
c) Ascendente que com ele convivesse há mais de um ano;
d) Filho ou enteado com menos de 1 ano de idade ou que com ele convivesse há mais de um ano e seja menor de idade ou, tendo idade inferior a 26 anos, frequente o 11º ou 12º ano de escolaridade ou estabelecimento de ensino médio ou superior;
e) Filho ou enteado maior de idade, que com ele convivesse há mais de um ano, portador de deficiência com grau comprovado de incapacidade superior a 60% – cf. nº 1 do art. 57º do NRAU.

Temos assim que, em matéria de filiação, e por força do preceituado no nº 1, e das alíneas d) e e), do art.57º, do NRAU, o arrendamento para habitação não caduca por morte do primitivo arrendatário quando:

1. Sobrevivam filhos menores nas seguintes circunstâncias:
a) Filho com menos de 1 ano de idade;
b) Ou que com ele convivesse há mais de 1 ano e seja menor de idade.
2. Sobrevivam filhos maiores nas seguintes condições:
a) Com idade inferior a 26 anos, mas que frequente o 11º ano ou 12º ano de escolaridade ou estabelecimento de ensino médio ou superior e que com ele convivesse há mais de um ano – alínea d);
b) Filho maior de idade, que com ele convivesse há mais de 1 ano, portador de deficiência com grau comprovado de incapacidade superior a 60% – alínea e).

Casos em que se transmitirá o respectivo arrendamento, não obstante a morte da primitiva arrendatária.

2.2. Tratando-se (o RAU e o NRAU) de regimes legais com diferenciada aplicação no tempo, dúvidas não se colocam sobre a pertinência da alegação do citado art. 57º, que rege o caso dos autos.
Embora o contrato de arrendamento tenha tido o seu início no dia 1 de Julho de 1956 e a arrendatária falecido em 14 de Julho de 2008 – cf. factos provados e inseridos nos pontos 4) e 6) – o regime constante do citado art. 57º aplica-se aos contratos de arrendamento para fim habitacional existentes à data da entrada em vigor daquela Lei, celebrados antes ou durante a vigência do RAU.
A esta conclusão se chega por força do disposto nos arts. 59º, nº 1, 26º, nºs 1 e 2, 27º e 28º, todos do NRAU.
O primeiro dos quais a impor a aplicação do regime aos contratos celebrados após a sua entrada em vigor, bem como às relações contratuais constituídas que subsistam nessa data, sem prejuízo do previsto nas normas transitórias – cf. art. 59º, nº 1.
E as normas transitórias, previstas no Título II, nos arts. 26º a 28º, determinam a aplicação do novo regime não só aos contratos celebrados na vigência do Decreto-Lei nº 321-B/90, de 15/10 (=RAU), mas também aos contratos de arrendamento para habitação celebrados anteriormente a este RAU.
Razão pela qual a decisão recorrida fez aplicação, e bem, quanto à transmissão do arrendamento por morte do arrendatário, e abstractamente considerada, da disciplina normativa instituída pelo art. 57º do NRAU.

Contudo, não basta aplicar a lei. É preciso que, do ponto de vista fáctico, estejam reunidos os respectivos factos – e que se provem – de modo a permitir posteriormente a sua subsunção e enquadramento jurídicos.
3. Ora, da análise desse normativo, na parte que nos interessa, constata-se que para se operar a transmissão do arrendamento a lei exige a verificação dos seguintes pressupostos cumulativos:
a) Que o filho seja maior de idade;
b) Que já convivesse com o arrendatário falecido há mais de 1 ano;
c) Seja portador de deficiência com grau comprovado de incapacidade superior a 60% – cf. sua alínea e).

Terá, assim, de ser alegado e provado pelo Réu – enquanto pessoa que se arroga beneficiário da excepção legal – os pressupostos constitutivos do seu direito, de molde a operar a transmissão no arrendamento para a habitação daquele, como seu efectivo arrendatário, após o falecimento de sua mãe. [2]

Ónus da prova que já decorria da regra geral do art. 342º do CC.

Prova que abrangerá:
1. A vivência com a arrendatária, sua mãe, há mais de um ano;
2. E ser portador de deficiência com grau comprovado de incapacidade superior a 60%.

Cujos factos a provar terão necessariamente de se reportar à data do falecimento da arrendatária, ocorrido, conforme se provou, em 14/Julho/2008, tendo na altura o Réu 73 anos de idade – cf. factos inseridos no ponto 6).
Não se bastando a lei com uma qualquer incapacidade. Mas com aquela que seja superior, e exceda, os 60%. [3]
Excluídas estarão, portanto, todas as incapacidades “não comprovadas” ou “de grau igual ou inferior” a essa percentagem.

No caso sub judice os factos relativos à prova do 1º requisito legal não foram sequer postos em causa e integram a matéria provada nos pontos 5), 6), 8) a 10).
Não assim no que concerne ao segundo requisito, que aqui constitui o objecto central do recurso.


4. A incapacidade e a prova da mesma:

4.1. Salientou-se já, nos pontos anteriores, que a incapacidade estabelecida na alínea e), do art. 57º, do NRAU, terá de ser superior a 60%, cabendo a sua prova ao Réu.
E será que o logrou fazer?
A sentença recorrida entendeu que sim, com base em dois documentos juntos pelo Réu.
Entendimento que não podemos de todo perfilhar.
Vejamos porquê.

4.2. Sobre esta questão o Tribunal “a quo” formulou dois quesitos:
“Quesito 2º – À data do falecimento da mãe, o Réu já sofria de uma incapacidade física grave e crescente? – Resposta: Provado.
Quesito 3º – De grau comprovado superior a 60%? – Resposta: Provado”.

A matéria dos referidos quesitos foi dada por provada com base “nos elementos médicos juntos a fls. 145 a 148, conjugados com os depoimentos dos filhos do Réu, em particular LF, que confirmou as doenças do pai, bem como os médicos que o acompanham, tendo-se encarregado de levantar no consultório o relatório médico de fls. 146 a 147” – cf. fundamentação do Tribunal “a quo” exarada a fls. 246.
Por sua vez os filhos do Réu mostram-se identificados nos autos: PP, técnico de prótese dentária e LF, consultor de empresas – cf. fls. 242.

Quanto aos documentos médicos de fls. 145 a 148, verificamos que:
1. O primeiro documento surge em papel timbrado do “Hospital de.”, em Lisboa e reporta-se a uma “angiografia da aorta abdominal e periférica”, exame realizado em 2/10/2006, assinado pelo Prof. Dr. JM, no qual se descreve o exame, nada referindo ou concluindo sobre qualquer incapacidade do Réu – cf. fls. 145.
2. O segundo documento, do mesmo Hospital, encontra-se datado de 10/10/2008 (data posterior ao falecimento da arrendatária), foi manuscrito pelo médico, tem um carimbo deste – Dr. BC de cirurgia vascular – e a denominação de “relatório médico”. Nele se diz que “o Sr. B… (o Réu) apresenta nesta altura doença arterial obstrutiva … (não se percebe depois a palavra) grave dos membros inferiores… O doente em epígrafe é por nós acompanhado desde 2006 neste Hospital, tendo já sido sujeito a cateterismo… medicado, apresenta uma impotência funcional dos membros inferiores, com tendência para …agravado, estimando em incapacidade superior a 60%. Por ser verdade e me ter sido pedido passei esta declaração que dato e assino” – cf. fls. 146 e 147.
3. O terceiro documento, do Hospital da Luz, denominado “relatório médico”, encontra-se datado de 25 de Janeiro de 2011, está assinado pela médica Dr. RG e refere: “para os devidos efeitos e a pedido do próprio se declara que o Sr. B…, de 74 anos de idade, é seguido na consulta de neurologia desde Janeiro de 2010 (data posterior ao falecimento da arrendatária) por dificuldades na marcha com mais de um ano de evolução…. Neste momento apresenta síndrome cerebeloso”… (etc. …)... E conclui: “Desta forma, presume-se uma incapacidade total de cerca de 70%. Por ser verdade e me ter sido pedido, passo o presente relatório que dato e assino”. Segue-se “Hospital …”, a data de “25 de Janeiro de 2011” e o nome e assinatura da médica.

Do que antecede constata-se que a prova documental apresenta-se bastante frágil, assente em elementos vagos, que não caracterizam a natureza das deficiências, os condicionalismos que daí resultam, nem a forma como efectuaram o cálculo da incapacidade do Réu e obtiveram as referidas percentagens.
Não possuindo, por conseguinte, qualquer valor probatório, por insuficiência clara desses elementos, sem igual suporte em prova testemunhal produzida em julgamento, não servindo para suprir as deficiências apontadas os depoimentos das testemunhas, maxime, dos filhos do Réu, que nem sequer são médicos.
 
Com efeito, o primeiro documento nada diz sobre a matéria que se discute.
O segundo, limita-se a “estimar” “a incapacidade como sendo superior a 60%”, mas sem justificar porquê, nem porque razão chegou a tal valor, agravado ainda pelo facto de se tratar de uma declaração emitida pelo médico em data posterior ao falecimento da arrendatária e que atesta que o doente “apresenta nesta altura” essa doença.
Por sua vez no terceiro documento é claramente referido que o doente/Réu só é seguido no Hospital … desde “Janeiro de 2010”… e que “neste momento apresenta” … e que “se presume uma incapacidade total de cerca de 70%”.
Para além de aparecerem referenciadas, neste documento, datas posteriores à morte da arrendatária, que ocorreu em 14/7/2008, ainda conclui no sentido da incapacidade por presunção.
Mas presume-se porquê, em que condições, com que bases?
Nada disto foi esclarecido. Nem pelos documentos médicos, nem pelos depoimentos das testemunhas, tanto mais que estas nem o são.

Ora, não se pode considerar provado um facto desta natureza – ser portador de deficiência com grau comprovado de incapacidade superior a 60%com tanta ligeireza e fundando-se o Julgador quer em conjecturas das testemunhas – pois no caso em análise não podem atestar esse grau de incapacidade, por falta de conhecimentos técnicos e científicos para esse efeito – quer em documentos médicos de teor evasivo e que se mostram desprovidos de rigor científico por se limitarem a presumir e a estimar uma incapacidade nesse valor, sem explicitarem as suas conclusões ou a razão desse grau de incapacidade nos termos já salientados.
Acrescido do facto de se reportaram a uma data posterior à morte da arrendatária ou se referirem à mesma de forma imprecisa.
Tem pois que se reconhecer que o Réu não fez prova da sua incapacidade – naquele grau e naquela data.
Tanto basta para se concluir pelo incumprimento do ónus da prova por parte do Réu e, por consequência, não se pode dar como provada a matéria de facto inserida nos quesitos 2º e 3º.
Nem, por arrastamento, extrair as conclusões a que a sentença recorrida chegou com suporte, como se viu, no referido circunstancialismo fáctico que o Réu não logrou provar.
O que determina desde logo a revogação da sentença recorrida com a procedência da acção, bem como do presente recurso de Apelação.

5. Mas a igual conclusão se chegará se aduzirmos outros argumentos trazidos aos autos pela Recorrente. Que entronca na questão de saber se para a prova da matéria da incapacidade comprovada não será indispensável que essa avaliação se faça nos termos e de acordo com a Tabela Nacional de Incapacidades.
E para essa prova da incapacidade carece o réu de apresentação de documento médico emitido na sequência da realização da respectiva junta médica, constituída para o efeito ou mediante a realização de perícia médico-legal.

5.1. Nesta matéria importa ter presente que o princípio da livre apreciação da prova, segundo o qual a prova é apreciada de acordo com as regras da experiência e a livre convicção do Julgador, não é um princípio absoluto.
Decorre tal conclusão da própria lei, nomeadamente quando impõe o valor probatório dos documentos autênticos e autenticados, ou estabelece o valor da confissão ou se refere, ainda, à prova pericial.
Quer a doutrina, quer a jurisprudência vêm defendendo que as garantias de defesa, consignadas no art. 32º da Constituição da República Portuguesa, exigem que o princípio da livre apreciação da prova se não confunda com arbitrariedade na apreciação da prova.
Daí que, quando estejam em causa a percepção ou a apreciação dos factos que exijam especiais conhecimentos técnicos ou científicos ou artísticos que o Juiz, e o Tribunal, não detêm, se considere que, como princípio geral, a admissibilidade única da prova pericial como meio de prova. Porquanto se presume, em tais circunstâncias, subtraído à livre apreciação do Julgador o juízo técnico, científico ou artístico inerente à matéria submetida à prova pericial.
Salientando-se, contudo, que tal juízo técnico ou científico não tem um valor probatório pleno, sendo apreciado livremente pelo Tribunal, por força do disposto no art. 591º do CPC.

Seja como for, só quem possui conhecimentos técnicos e científicos nessa área é que pode atestar as deficiências e, mais do que isso, comprovar a incapacidade superior a 60% do Réu, para efeitos do preceituado na alínea e) do art. 57º do NRAU.
Comprovação que carece de perícia médico-legal que certifique, comprovando, este requisito legal. E não se limite a atestar de forma desgarrada e não fundamentada o grau de incapacidade.

5.2. Defende o Autor/Recorrente, a este propósito, que o grau de incapacidade deverá ser aferido nos termos do Decreto-Lei nº 202/96, de 23 de Outubro, com as alterações introduzidas posteriormente pelo Decreto-Lei nº 174/97, de 19 de Julho.
Com a observância das formalidades aí previstas.

Não cremos que tais diplomas legais tenham aqui aplicação directa.
O nosso entendimento estriba-se no facto de os diplomas citados se destinarem a regular e aferir a incapacidade dos deficientes para efeitos de acesso às medidas e benefícios previstos na lei, com vista a facilitar a plena participação e integração dos deficientes na comunidade social portuguesa.
Ora, in casu, não se trata de uma situação que vise a participação de pessoa com deficiência, que importe garantir a igualdade de oportunidades, eliminar barreiras de acesso ou impedir qualquer discriminação.
Sendo certo também que a lei não estabelece, em parte alguma do texto do diploma legal em análise, qualquer referência ao regime de arrendamento urbano, nem indica neste regime, quer no RAU ou no NRAU, qual a entidade que deverá certificar o grau dessa incapacidade.

Daí que seja defensável que, em tais circunstâncias, o Réu deve, pelo menos, requerer exame pericial destinado a que os respectivos peritos se pronunciem e comprovem o seu grau de incapacidade superior a 60%.
Por isso temos para nós que a avaliação dessa incapacidade deverá ser calculada por peritos de acordo com a Tabela Nacional de Incapacidades.

Seja como for, a verdade é que, no caso concreto, conforme se referiu supra, nada se provou que permita responder afirmativamente à matéria dos quesitos 2º e 3º da Base Instrutória.
Não podia, assim, o Tribunal “a quo” ter dado como provados os quesitos citados e, por consequência, vedado lhe estava extrair de tais factos quaisquer consequências jurídicas. 
O que conduz à procedência do recurso e à revogação da sentença com os presentes fundamentos.

6. E não se diga que decidir nos termos que antecedem constitui falta de sensibilidade social.

Estamos perante uma opção legislativa e quer se concorde, quer não, temos de a respeitar, pois visou equilibrar dois interesses em confluência mas antagónicos: por um lado o direito à habitação do senhorio e, por outro, o do alegado inquilino, que se pretende concretizar no mesmo imóvel.
Direitos que se acabam por excluir um ao outro, porquanto cada um deles só pode satisfazer-se em detrimento do outro.
Daí que seja justa e compreensível a solução que o legislador consagrou: uma vez comprovada a incapacidade superior a 60%, considera-se preenchido o fundamento para operar a transmissão do arrendamento para o filho do arrendatário já falecido.
Entende-se que, em tais circunstâncias, o filho não dispõe de capacidades físicas e/ou intelectuais residuais que lhe permitam desocupar o local arrendado pelo seu progenitor e suportar uma renda de acordo com o valor actual do mercado.

É certo que, in casu, o Réu já completou 76 anos de idade. Mas infelizmente a lei actual não cobre tal situação. E o demais, que lhe garantia a continuidade, através da transmissão do arrendamento, não logrou o Réu fazer prova, como se viu.

7. Face ao que antecede revoga-se a decisão proferida pelo Tribunal “a quo” sobre a matéria de facto, na parte em que considerou provados os quesitos 2º e 3º.
E porque não se provou tal matéria, não pode ter lugar a transmissão do arrendamento, decidida pela sentença recorrida, operando, assim, a caducidade do contrato de arrendamento com as consequências legais peticionadas pelo Autor, de entrega imediata da fracção identificada nos autos, porquanto o Réu não possui título que legitime a ocupação de tal fracção.
Nesta medida procede o recurso, revogando-se a sentença recorrida com os presentes fundamentos.

IV – Em Conclusão:
1. Por força do preceituado no nº 1, da alínea e), do art.57º, do NRAU, o arrendamento para habitação não caduca por morte do primitivo arrendatário quando, nomeadamente, lhe sobrevivam filhos maiores nas seguintes condições: que com ele convivessem há mais de 1 ano, e sejam portadores de deficiência com grau comprovado de incapacidade superior a 60%.
2. Casos em que se transmitirá o respectivo arrendamento, não obstante a morte do primitivo arrendatário.
3. Terão, assim, de ser alegados e provados pelo Réu – enquanto pessoa que se arroga beneficiário da excepção legal – os pressupostos constitutivos do seu direito, de molde a operar a transmissão no arrendamento para a habitação daquele, como seu efectivo arrendatário, após o falecimento de sua mãe.
4. Não se bastando a lei com uma qualquer incapacidade. Mas com aquela que seja superior, e exceda, os 60%.
5. Excluídas estarão, portanto, todas as incapacidades “não comprovadas” ou “de grau igual ou inferior” a essa percentagem.
6. A lei não estabelece, em parte alguma do texto do diploma legal em análise, qual a entidade que deverá certificar o grau dessa incapacidade.
7. Daí que, estando em causa um juízo técnico e científico, temos para nós que, em tais circunstâncias, o Réu deve, pelo menos, requerer exame pericial destinado a que os respectivos peritos se pronunciem e comprovem o seu grau de incapacidade superior a 60%, avaliação a calcular de acordo com a Tabela Nacional de Incapacidades.


V – Decisão:

- Termos em que se acorda em julgar procedente a Apelação e, por consequência, revoga-se a sentença recorrida com os presentes fundamentos e condena-se o Réu a restituir de imediato ao Autor, livre de pessoas e bens, a fracção autónoma identificada nos autos.

- Custas da Apelação a cargo do Réu, parte vencida.

Lisboa, 16 de Fevereiro de 2012.

Ana Luísa de Passos Geraldes (Relatora)
António Manuel Valente
Ilídio Sacarrão Martins
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[1] Foram sintetizadas as conclusões porquanto o Autor, no seu recurso, em vez de formular conclusões da matéria alegada, limitou-se a transcrever quase na íntegra o que escrevera ao longo das suas alegações de recurso, ao arrepio do estabelecido no nº 1 do art. 690º do CPC.
[2] No mesmo sentido cf. Maria Olinda Garcia, in “A Nova Disciplina do Arrendamento Urbano (NRAU)”, 2ª Edição, Coimbra Editora, págs. 75 e segts.
[3] Conforme também reconhece Maria Olinda Garcia, ibidem.