Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1950/11.4YYLSB-C-8
Relator: ISOLETA COSTA
Descritores: ARRESTO
EMBARGOS DE TERCEIRO
DEPÓSITO BANCÁRIO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 03/08/2012
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I - No depósito bancário, o depositante troca a propriedade da soma depositada por um direito de crédito à restituição de outro tanto, com a transferência do risco a acompanhar a transmissão da propriedade (“res perit domino” - art.º 796ºnº1 do CC).
II - Penhorado o saldo de uma conta de d/o com diversos titulares e solidária, pode o co- titular opor-se à penhora por embargos de terceiro limitados à sua quota parte.
III- Não é a posse o que aqui está em causa, mas a ofensa ilegítima causada pela diligência judicial a outro direito de que o mesmo é titular. (artº 351º do CPC)
(Sumário da Relatora)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Por apenso,  ao processo executivo fundado em livrança que, o B… instaurou, contra, M… e outros, corre procedimento cautelar de arresto, em que foi decretado o arresto do saldo de conta de d/o nº ..., sediada no B.
 C…   intentou  embargos de terceiro a este  arresto decretado sobre o saldo da conta bancária em causa com fundamento na co-titularidade do saldo da referida conta d/o.
Após, inquirição de testemunhas nos termos do artº 351º do CPC, o Tribunal declarou como factos indiciariamente assentes, designadamente, que:
A ora apelante é co titular da referida conta de d/o.
É portadora de um cartão de débito referente à mesma conta que movimenta e da qual possui cheques.
O saldo credor em apreço resulta de disponibilidades financeiras que os co titulares depositaram naquela conta que era propriedade  de todos em partes idênticas.
Subsequentemente, o Tribunal «à quo» decretou o recebimento dos mesmos embargos, apenas, quanto a ¼ do saldo credor da referida conta com a consequente suspensão dos termos executivos nesta parte.
A embargante, C… apelou deste despacho liminar, para este Tribunal tendo lavrado as conclusões que, ao que interessa, seguem ao adiante:
A) Decidiu-se que, o pedido da Embargante do recebimento dos embargos de terceiro em relação a ¾ do valor do saldo não seria de deferir por se entender que a legitimidade da embargante cinge-se à defesa da sua titularidade na conta e não também à dos seus irmãos.
C) A referida conta bancária de depósitos à ordem, existente no B, sob o nº ... – foi aberta há cerca de 20 anos por A…, L…, C… e M…, sendo por isso uma conta colectiva e, neste caso, solidária.
D) O saldo da referida conta foi arrestado no âmbito desse procedimento cautelar intentado apenas contra M...
E) Ficou indiciariamente demonstrado que a conta bancária era utilizada por todos os seus titulares mediante a emissão de cheques e de cartão de débito, e que o saldo credor existente corresponde a valores detidos pelos seus titulares em partes idênticas, pois provêm do produto de uma venda de um imóvel propriedade de todos os titulares da conta bancária.
F) A…, L…, não foram Requeridos nos autos de arresto, sendo certo que L… e C… não são Executados nos autos de Execução.
G) A Embargante possui legitimidade para defender a composse, contra terceiros, sem que se possa invocar a sua falta de legitimidade.
H) De facto, o nº 1, do artº 1286º do Código Civil, é peremptório ao estabelecer que: Cada um dos compossuidores, seja qual for a parte que lhe cabe, pode usar contra terceiro dos meios facultados nos artigos precedentes, quer para defesa da própria posse, quer para defesa da posse comum, sem que ao terceiro seja lícito opor-lhe que ela não lhe pertence por inteiro.
I) Nestes termos, a decisão ora em crise, ao violar a disposição atrás referida, deveria ser substituída por uma outra na qual se considere que a Embargante pode defender a composse dos demais co titulares da conta não requeridos no arresto, e nessa medida seja deferida a pretensão em relação a ¾ do saldo da conta bancária em apreço e não apenas em relação a ¼ do saldo, ainda que a título preliminar, bem como se ordene a restituição provisória da posse sobre ¾ do predito saldo, e não apenas em relação a ¼ do saldo.
Houve contra alegação do B… a sustentar e em síntese:
A Recorrente,  e outros, M…, L… e A…, não obstante serem titulares da conta de depósitos à ordem nº.0... aberta junto do Recorrido, cuja totalidade do saldo se encontra arrestado, não são proprietários do respectivo valor nessa mesma conta depositado.
Por força da natureza irregular do contrato de depósito bancário, a Recorrente e demais contitulares passaram a ser somente detentores de direitos de crédito sobre o banco depositário.
A Recorrente e demais titulares não detêm, assim, a posse sobre quaisquer quantias que alegadamente tenham depositado nessa conta bancária.
Em consequência, está vedado à Recorrente o uso do meio de defesa da composse previsto no artigo 1286.° do Código Civil porquanto, tal possibilidade assenta precisamente na existência da posse, que, in casu, não existe.
A Recorrente não tem, assim, legitimidade para deduzir embargos de terceiros em nome dos demais contitulares da conta de depósito à ordem arrestada.
Devendo em consequência, manter-se inalterada a decisão recorrida.

         Nada obsta ao mérito.

         II-OBJECTO DO RECURSO
São as conclusões que delimitam a matéria a conhecer por este Tribunal que é de recurso sem prejuízo das questões  de conhecimento oficioso que cumpra apreciar, por imperativo do art.º 660, n.º 2., “ex vi” do art.º 713, nº 2, do mesmo diploma legal e 684º nº 3 e 685-A do CPC.
         O recurso coloca como questão a decidir  saber se:
O co titular de uma conta bancária de depósitos à ordem tem legitimidade processual para vir opôr-se por embargos de terceiro a diligência de arresto sobre a totalidade do saldo, defendendo a sua quota parte  e as quotas de outros co titulares, por recurso aos meios possessórios.

         III CONHECENDO:

Fundamentação de facto:
Dá-se aqui por reproduzida a factualidade descrita supra.

Fundamentação de direito:

1- Os embargos de terceiro ajustam-se à defesa de qualquer direito (incluindo, pois, os meros direitos de crédito), de que seja titular quem não seja, parte na causa, incompatível com a realização ou o âmbito de uma diligência ordenada judicialmente” AC do TRP de 13.11.2000 in WWW ITIJ /TRP.
Muito embora o artº 351º nº 1 do CPC  tenha a sua génese no artigo 1037º CPC,  redacção anterior a 1995/96, sofreu alterações de monta.
Releva o facto de os embargos passarem, a basear-se, para além da ofensa, a posse, em ofensa, a qualquer outro direito incompatível com a realização ou o âmbito de uma diligência judicialmente ordenada.
Os embargos de terceiro fundamentam-se numa posse ou num direito incompatível do terceiro sobre aquele bem (geralmente um bem penhorado) e visam  impugnar a legalidade desse mesmo acto.  “Através deles, agora relativamente desvinculados da posse, pode o embargante efectivar ou defender, para além da posse, qualquer direito de conteúdo patrimonial ilegalmente afectado pela diligência de tipo executivo”. Miguel Teixeira de Sousa Estudos sobre o Novo Código de Processo Civil, Lex Lisboa 1997 pg 460-461.
2- É fora de dúvidas  que a Apelante não pode deixar de ser considerada “terceiro”, para o efeito, uma vez que não é parte, nem  na execução, nem na relação exequenda. Também, como aliás já ficou decidido, é esta, aparentemente, titular de um direito incompatível com a diligência de penhora, tal qual foi ordenada.
3-O regime legal do nº 1 do artigo 856º do CPC, prescreve que  a penhora de créditos  consiste na notificação ao devedor de que o crédito fica à ordem do tribunal da execução.
Tratando-se de um depósito existente em instituição legalmente autorizada a recebê-lo, como é o caso de um banco, aplicam-se as regras referentes à penhora de créditos. A Instituição deve comunicar ao tribunal, no prazo de 15 dias, o saldo da conta... (artº 861º-A na redacção dada pelo DL 375-A/99 , de 20.09.99) que fica apreendido para a execução.
A reacção a esta apreensão, conforme os casos, tem cinco vias diferentes: recurso de agravo do despacho que a ordena; o protesto no acto da penhora; o incidente de oposição do executado à penhora; os embargos de terceiro; a acção de reivindicação. Cfra  Lebre de Freitas in a “A Acção Executiva” 2ª ed  (pag. 221)
4- Como estabelece o artigo 821º, nº 1 do CPC, estão sujeitos à execução todos os bens do devedor... E o seu nº 2 determina que nos casos especialmente previstos na lei, podem ser penhorados bens de terceiro, desde que a execução tenha sido movida contra ele.
“Portanto, em princípio, só estão sujeitos à penhora os bens do executado, seja ele o devedor seja um terceiro (mas aqui entenda-se “terceiro” em relação à obrigação exequenda e não em relação à execução). Só excepcionalmente, nos casos previstos na lei, podem ser penhorados bens de terceiro (nesta acepção), mas mesmo assim, desde que a execução tenha sido movida contra ele”. Ac desta Relação de 14.05.04 in WWW.ITIJ/TRL .
“In casu”,  está, porém, afastada a posse como sendo o situação lesada pela diligência 
É que,  o depósito bancário está sujeito às regras do depósito mercantil (art.ºs 403º a 407º do Cód. Com.), e mais disposições aplicáveis, subsidiariamente, pelos estatutos e pelos usos mercantis bancários. E, de entre estas disposições aplicáveis, importa aqui destacar os art.ºs 1142º e 1144º do Cód. Civil.
         Nos termos do primeiro, o depositante empresta dinheiro ao banco ficando este obrigado a restituir outro tanto do mesmo género e qualidade, mais os juros, se, devidos. Nos termos do segundo as coisas mutuadas tornam-se propriedade do mutuário pelo facto da entrega. O que mostra que o contrato de depósito bancário é, quanto à sua constituição, um contrato real “quoad effectum”, sem deixar de ser simultaneamente um contrato obrigacional “quoad effectum”, com o depositante a gozar do direito de crédito à restituição de “tantundem eiusdem generis” (crédito de valuta a que se aplica o princípio do nominalismo __ art.º 550 do Cód. Civil).
Donde e pelo que vem dito, o depositante troca a propriedade da soma depositada por um direito de crédito à restituição de outro tanto, com a transferência do risco a acompanhar a transmissão da propriedade (res perit domino __ art.º 796º, n.º 1 do Cód. Civil) neste sentido, João Calvão da Silva in Direito Bancário Liv Almedina Coimbra, 2001, pg 348
         Neste entendimento, “o depósito bancário constitui um depósito irregular, sujeito às regras do mútuo na medida do possível, por meio do qual a posse e a propriedade do dinheiro depositado pelo cliente se transferem para o banco que recebeu o depósito, ficando o cliente depositário com um direito de crédito sobre o banco de outro tanto da soma depositada”. Citado Ac deste Tribunal de 14.05.04 in WWW.ITIJ.
         5- As contas solidárias podem ser movimentadas, tanto a crédito como a débito por qualquer dos titulares, sozinhos, livremente, qualquer deles pode fazer levantamentos, e o banqueiro exonera-se, no limite, entregando a totalidade do depósito a um único dos titulares. Nos termos do art.º 528º, n.º 1 do Cód. Civil, o banco pode escolher o credor solidário a quem pagar, enquanto não tiver sido judicialmente citado para a respectiva acção por outro credor, cujo crédito se ache vencido.
No que respeita à atribuição do saldo (direito de crédito sobre o banco), e não, portanto, da propriedade das quantias depositadas, face ao que se deixou dito, na conta solidária, e no que toca às relações entre os titulares e o banco, vale a presunção do art.º 516º do Cód. Civil, no que respeita à repartição do saldo: presume-se que todos os titulares participam em partes iguais no saldo, sempre que da relação jurídica entre eles existente não resulte que são diferentes as suas partes, podendo a presunção ser ilidida nos termos gerais. E se um destes credores for satisfeito para além da parte que lhe compete no crédito comum, tem de satisfazer os outros na parte que lhes cabe nesse crédito (art.º 533º do Cód. Civil). E o direito de regresso destes limita-se apenas à parte, que por seu turno, lhe compete nas relações internas (art.º 533º do Cód. Civil) Vde A Varela Das Obrig Vol I  p 770.   
A titularidade da conta e  a titularidade exclusiva do direito de crédito sobre o saldo ou qual a quota-parte do direito de crédito que a cada titular da conta solidária detenha não são necessariamente coincidentes.
6- Do exposto resulta que tendo ficado “ab initio” limitado o direito da embargante a ¼ do saldo bancário da referida conta solidária,  quota parte, que não está em causa neste recurso;  e porque não se trata aqui de defender a posse, mas sim esse direito de crédito, indevidamente, lesado por ofensa do disposto no artº 821º do CPC e 817 do CC., não lhe são aplicáveis, como sustenta a apelante,  as regras da posse e da composse.

Sumário: No depósito bancário o depositante troca a propriedade da soma depositada por um direito de crédito à restituição de outro tanto, com a transferência do risco a acompanhar a transmissão da propriedade (“res perit domino” __ art.º 796ºnº1 do CC).
Penhorado o saldo de uma conta de d/o com diversos titulares e solidária, pode o co- titular opor-se à penhora por embargos de terceiro limitados à sua quota parte.
Não é a posse o que aqui está em causa, mas a ofensa ilegítima causada pela diligência judicial a outro direito de que o mesmo é titular. (artº 351º do CPC)

         Segue deliberação:
         Improcede a apelação, mantém-se a decisão apelada.
         Custas pela apelante

Lisboa, 8 de Março de 2012

Isoleta Almeida Costa
Carla Mendes
Octávia Viegas