Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
227640/10.4YIPRT.L1-2
Relator: PEDRO MARTINS
Descritores: DESPACHO DE APERFEIÇOAMENTO
EXCEPÇÃO DILATÓRIA INOMINADA
INJUNÇÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 03/29/2012
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: Se o requerente de uma injunção de 2010, de valor superior a 15.000€ e inferior a 30.000€, não alegar os factos necessários ao preenchimento da previsão que alega – obrigação emergente de transacção comercial -, o juiz deve, na acção declarativa especial (= AECOP) que se seguir à oposição, convidá-lo a aperfeiçoar o seu requerimento de modo a incluir aqueles factos, sob pena de absolvição da instância, devido a excepção dilatória inominada.
(Sumário da responsabilidade do Relator)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: “A” – Infraestruturas e equipamentos desportivos, SA, requereu, em 12/07/2010, uma injunção contra “B”, para que este lhe pagasse 15.010,72€, acrescidos de 990,30 de juros de mora, calculados à taxa anual de 8%, vencidos até 30/06/2009, pelos trabalhos discriminados na factura nº. 67/2009, emitida e vencida em 03/09/2009, no valor de 25.260,72€, realizados a pedido do ré, no âmbito da actividade desenvolvida pela autora (tendo apenas sido efectuado, a 31/12/2007, um pagamento no valor de 10.250€). À frente da pergunta que consta do requerimento “obrigação emergente de transacção comercial (Dec.-Lei 32/2003)? Escreve: “sim”.
O requerido deduziu oposição: como o pedido é superior a 15.000€, ultrapassa o valor limite previsto no art. 1 do diploma preambular do Dec.-Lei 269/98, de 01/09, pelo que a injunção só podia ser requerida ao abrigo da parte final do art. 7 do anexo ao DL 269/98, que se refere às obrigações emergentes de transacções comerciais abrangidas pelo Dec.-Lei 32/2003, de 17/02; ora, este DL exclui expressamente a sua aplicação aos contratos celebrados com consumidores [vd. al. a) do n.º 2 do art 2], qualidade na qual o requerido surge indubitavelmente e da qual jamais poderá ser dissociado; por outro lado, o DL 32/2003 apenas considera como obrigações emergentes de transacções comerciais “qualquer transacção entre empresas ou entre empresas e entidades públicas, qualquer que seja a respectiva natureza, forma ou designação, que dê origem ao fornecimento de mercadorias ou à prestação de serviços contra uma remuneração” (vd. al. a) do art. 3), definindo, para o efeito, como “empresa”, “qualquer organização que desenvolva uma actividade económica ou profissional autónoma, mesmo que exercida por pessoa singular” (vd. al. b) do art. 3); ora, o requerido diz que não desenvolve qualquer actividade que corresponda à noção de empresa acima descrita, não se verificam, nem assim, os pressupostos para a aplicação do DL 32/2003. Pelo que deverá o requerimento de injunção que desencadeou o presente procedimento ser “liminarmente” recusado nos termos das alíneas g) e h) do n.º 1 do art. 11 do DL 269/98, e, assim, ser o procedimento extinto, com custas pela requerente; Sem prejuízo de o uso indevido e inadequado, por parte da requerente, do procedimento previsto no DL 269/98, configurar ainda uma excepção dilatória inominada, susceptível de conhecimento pelo tribunal e conducente à absolvição do requerido da instância, nos termos da alínea e) do n.º 1 do art. 288 e do n.º 2 do art. 493 do CPC (neste sentido veja-se o entendimento de Salvador da Costa, A Injunção e as Conexas Acção e Execução, Almedina, pág. 172, bem como o ac. do Tribunal da Relação do Porto de 26/09/2005, 0554261, e o ac. do Tribunal da Relação de Lisboa de 08/11/2007, 9037/2007-8, ambos da base de dados do ITIJ).
Sobre esta excepção, depois de notificada judicialmente para se pronunciar sobre ela, veio a requerente dizer que em 2006, a requerente foi contactada pelo requerido para fornecer e aplicar relvado sintético na “C”, sita na …, projecto desenvolvido pelo requerido. Inicialmente, o requerido ficou de indicar qual o nome, morada e número de pessoa colectiva da empresa responsável pelo projecto à qual devia ser emitida a factura. Mas nunca o fez. Após várias tentativas para que os dados acima referidos fossem fornecidos, e tendo em conta o tempo que entretanto decorreu, a requerente, não vendo outra alternativa, e já que tudo tratou com o réu, decidiu emitir a respectiva factura pelos trabalhos efectuados àquele. Entende, pois, que a relação estabelecida com o réu foi uma transacção comercial, não recaindo a mesma em qualquer das hipóteses previstas no art. 2 do Dec.-Lei 32/2003, de 17/02. Concluí-se, portanto, que, tratando-se de uma transacção comercial, estão preenchidos os requisitos previstos na lei para se recorrer à injunção.
Como o requerido deduziu oposição, a injunção foi distribuída como acção especial para o cumprimento de obrigações pecuniárias.
Depois de um incidente de incompetência territorial – com fundamento no facto de o requerido ser uma pessoa singular -, o novo tribunal proferiu despacho de absolvição da instância, por a petição inicial, constituída pelo requerimento injuntivo, ser nula e inaproveitável, e por isso ser nulo todo o processo, excepção dilatória insuprível [arts. 493/1 e 2, 494b), 495 e 288/1b), todos do CPC]. E isto porque, em síntese:
O pedido deduzido pela requerente, de valor superior a 15.000€ mas inferior ao da alçada da Relação, não pode ser apreciado com recurso à tramitação das AECOP porque no requerimento injuntivo a requerente não se refere à qualidade em que terá intervindo o réu aquando da celebração do contrato que geneticamente se funda a obrigação do pagamento do preço solicitado. Sendo o requerido pessoa singular não se poderá considerar fundamento factual e jurídico da pretensão sub judicio uma relação contratual estabelecida entre duas empresas. Ora, as AECOP, de valor superior a 15.000€, só se podem aplicar às relações contratuais estabelecidas entre duas empresas [sendo estas definidas no art. 3b) do Dec. Lei 32/2003, de 17/02].
E a indicação daquela qualidade não pode ser feita depois da entrega do requerimento injuntivo, pois que então consubstanciaria ampliação da causa de pedir fora do circunstancialismo em que a mesma é admitida (cfr. arts. 272 e 273 do CPC).
Por outro lado, o processo não poderia ser aproveitado como processo comum sob a forma sumária, pois que tal representaria uma diminuição das garantias de defesa do réu (menos prazo para a defesa, com menos dilação e impossibilidade de deduzir pedido reconvencional).
É certo que o aproveitamento como processo sumário apenas determinaria a repetição do acto da citação, mas para isso era necessário que o requerimento injuntivo se encontrasse redigido de forma articulada e tivesse fundamentação jurídica, o que não é o caso.
A requerente interpôs recurso deste despacho, para que seja revogado e substituído por outro que mande prosseguir o processo, concluindo, em síntese, que:
i) a requerente não refere a qualidade em que terá intervindo o requerido e entende que não o tinha de fazer. Isto porque, de acordo com o art. 3 do Dec.-Lei 32/2003, considera-se transacção comercial qualquer transacção entre empresas. Empresa é qualquer organização que desenvolva uma actividade económica ou profissional autónoma, mesmo que exercida por pessoa singular. Ora, o fornecimento de bens ou serviços referido no requerimento de injunção teve lugar entre pessoas que exercem “actividade económica ou profissional autónoma”, logo, entre “empresas”, tal como definidas no aludido diploma legal;
ii) por outro lado, de acordo com o citado DL 32/2003, exclui-se a aplicação do diploma quando se trate de, entre outras coisas, contratos celebrados com consumidores; ora, o réu não pode ser considerado consumidor (noção que é facultada pelo art. 2 da Lei de Defesa do Consumidor, 24/96, de 31/07: “todo aquele a quem sejam fornecidos bens, prestados serviços ou transmitidos quaisquer direitos, destinados a uso não profissional, por pessoa que exerça, com carácter profissional, uma actividade económica que vise a obtenção de benefícios”);
iii) tendo em conta o estado e a fase do processo, se havia dúvidas, o tribunal devia ter proferido um despacho de aperfeiçoamento (art. 508/4 do CPC (invoca neste sentido, o ac. do TRL de 13/09/2007)), quer no âmbito da AECOP, nos termos do art. 17 do DL 269/98, quer no âmbito do processo sumário (art. 7 do DL 32/2003, que a requerente cita na redacção anterior à dada pelo Dec.-Lei 107/2005, de 01/07, para além disso partindo a requerente do pressuposto errado de que o processo está a seguir a forma sumária do processo comum…).
O requerido não apresentou alegações.
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Questões que importa resolver: se a requerente devia ter sido convidada a alegar os factos necessários ao preenchimento da conclusão “emergente de transacção comercial”.
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Os factos são aqueles que constam acima.
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As normas…
O DL 269/98, de 01/09 (que se vai referir na versão mais recente, de 2008, que já estava em vigor à data em que o requerimento destes autos foi apresentado; este Dec.-Lei foi alvo, em 10 anos, de 16 alterações, todas identificadas no “sítio” da PGD de Lisboa, donde se vão retirar as normas que se seguem), tem um diploma preambular e um anexo a tal diploma.
No art. 1 do diploma preambular diz que é aprovado o regime dos procedimentos destinados a exigir o cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contratos de valor não superior a 15 000€, publicado em anexo, que faz parte integrante do presente diploma.
No anexo ao diploma, no capítulo II, com a epígrafe de Injunção, o art. 7, diz que se considera injunção a providência que tem por fim conferir força executiva a requerimento destinado a exigir o cumprimento das obrigações a que se refere o artigo 1.º do diploma preambular, ou das obrigações emergentes de transacções comerciais abrangidas pelo Dec.-Lei 32/2003, de 17/02.
No art. 11 prevêem-se duas causas de recusa do requerimento com interesse para a questão dos autos: se: g) O valor ultrapassar o referido no art. 1 do diploma preambular, sem que dele conste a indicação prevista na alínea g) do n.º 2 do artigo anterior [: ou seja: “g) Indicar, quando for o caso, que se trata de transacção comercial abrangida pelo Dec.-Lei 32/2003”]; h) O pedido não se ajustar ao montante ou finalidade do procedimento.
No nº. 1 do art. 16 esclarece-se que deduzida oposição ou frustrada a notificação do requerido, no caso em que o requerente tenha indicado que pretende que o processo seja apresentado à distribuição, nos termos da alínea j) do n.º 2 do artigo 10.º, o secretário apresenta os autos à distribuição que imediatamente se seguir.
No nº. 1 do art. 17 diz-se que após a distribuição a que se refere o n.º 1 do artigo anterior, segue-se, com as necessárias adaptações, o disposto no n.º 4 do artigo 1.º e nos artigos 3.º e 4 [trata-se dos termos da acção declarativa, ou seja, da acção especial para cumprimento das obrigações pecuniárias…]. E no nº. 3 do art. 17 acrescenta-se que recebidos os autos, o juiz pode convidar as partes a aperfeiçoar as peças processuais.
O DL 32/2003, de 17/02, que ainda só sofreu 2 alterações… , sendo particularmente relevante a do Dec.-Lei 107/2005, de 01/07, já que a outra, de 2010, não mexe nas normas que vão ser referidas, diz:
Art. 2: 1 - O presente diploma aplica-se a todos os pagamentos efectuados como remunerações de transacções comerciais. 2 - São excluídos da sua aplicação: a) Os contratos celebrados com consumidores; […]
Art. 3: Para efeitos do presente diploma, entende-se por: a) «Transacção comercial» qualquer transacção entre empresas ou entre empresas e entidades públicas, qualquer que seja a respectiva natureza, forma ou designação, que dê origem ao fornecimento de mercadorias ou à prestação de serviços contra uma remuneração; b) «Empresa» qualquer organização que desenvolva uma actividade económica ou profissional autónoma, mesmo que exercida por pessoa singular; [… ]
Art. 7: 1 - O atraso de pagamento em transacções comerciais, nos termos previstos no presente diploma, confere ao credor o direito a recorrer à injunção, independentemente do valor da dívida. 2 - Para valores superiores à alçada da Relação, a dedução de oposição e a frustração da notificação no procedimento de injunção determinam a remessa dos autos para o tribunal competente, aplicando-se a forma de processo comum. 3 - Recebidos os autos, o juiz pode convidar as partes a aperfeiçoar as peças processuais. 4 - As acções destinadas a exigir o cumprimento das obrigações pecuniárias emergentes de transacções comerciais, nos termos previstos no presente diploma, de valor não superior à alçada da Relação seguem os termos da acção declarativa especial para cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contratos.
O art. 31/1 da Lei 52/2008, de 28/08 (lei que já teve 9 alterações…, todas também disponíveis naquele “sítio”) diz que em matéria cível, a alçada dos tribunais da Relação é de 30.000€ e a dos tribunais de 1.ª instância é de 5000€.
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Da aplicação das normas ao caso
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Do erro na forma do processo?
Do que antecede resulta que a injunção que deu origem ao presente processo, por ter um valor superior a 15.000€ e inferior a 30.000€, só podia ter por fim exigir o pagamento de obrigações emergentes de transacções comerciais abrangidas pelo Dec.-Lei 32/2003, de 17/02, e que, tendo havido oposição, a mesma foi distribuída como AECOP com valor superior à alçada da 1ª instância….
Por outro lado, que o requerimento de injunção observava as condições impostas para que fosse recebido, pois que fazia a indicação de que a obrigação emergia de transacção comercial (embora através de uma simples resposta a uma pergunta).
E assim, apreciado o fim a que se destinava o requerimento e a forma escolhida pela requerente, não se podia chegar à conclusão da existência do erro na forma de processo. Neste sentido, veja-se o ac. do STJ de 14/02/2012 (319937/10.3YIPRT.L1.S1):
“17. Note-se que o pedido que primacialmente está em causa não é o pedido de condenação no pagamento de determinada quantia, mas o pedido de injunção.
18. Ora, quanto a este último, quando o credor apresenta o requerimento de injunção na secretaria judicial declarando que a transacção comercial está abrangida pelo DL 32/2003, ele não está a incorrer em erro na forma de processo, pois requer a providência nos termos que a lei prescreve […].
20. Se o credor requer injunção alegando crédito emergente de transacção comercial que só depois se verifica advir de um contrato celebrado com consumidor, não houve erro na forma de processo, pois o credor requereu a providência em abstracto adequada à finalidade tida em vista; se o credor não vê reconhecida a sua pretensão à injunção é porque, em termos de fundo, se veio a verificar que o credor não tem direito a obter a injunção considerada a transacção que efectivamente realizou […].
21. Queremos com isto significar que […] a inadequação do pedido de injunção em razão da transacção comercial realizada dependerá da análise dos seus termos.”
Bem como o estudo de Paulo Duarte Teixeira, na Thémis, 13, 2006, Os pressupostos objectivos e subjectivos do procedimento de injunção, págs. 169 a 212, espec. págs. 206/207 [este estudo tem, hoje, que ser lido com as adaptações e cautelas necessárias, dado que não pode ter tido em conta as 5 alterações ocorridas entre 2006 e 2008], para além de todos os acórdãos - que serão referidos abaixo – que defendem que quando se prova que o crédito não emerge de transacção comercial o que se verifica é uma excepção dilatória inominada e não um erro na forma de processo.
Note-se que o ac. do TRC de 18/01/2005 (3714/04) que qualifica esta situação – ou seja, a situação em que se vem a provar que a obrigação não emerge de transacção comercial - como de erro na forma de processo, basta-se, no entanto, para que o processo prossiga como AECOP, que se tenha mencionado que a transacção emerge de transacção comercial. Pelo que a solução, para este acórdão, é a mesma que se está a defender aqui.
Em sentido contrário, aparentemente iria o acórdão do TRL de 14/04/2005 (2661/2005-6), mas neste não se esclarece se a requerente alegou que a obrigação emergia de transacção comercial (Dec. Lei 32/2003).
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Consequências de não se alegarem factos concretos
Deixar-se seguir o processo quando o requerente alega que a obrigação emerge de transacção comercial, considerando-se pois que o processo não enferma de erro na forma de processo, é, no entanto, só um primeiro passo.
Pois que o requerido pode opor-se à injunção e levantar a questão, impugnando aquela afirmação, ou dizendo que é consumidor e que por isso o processo especial não podia ser aplicado. Como o faz, no caso dos autos, o requerido.
E então o juiz pode ser colocado perante um requerimento em que, para além daquela afirmação conclusiva, nada mais se alegue de facto que permita concluir que a obrigação emerge mesmo de transacção comercial.
Ora, a forma de processo escolhida só pode ser utilizada, de facto, para exigir o cumprimento de obrigações provenientes de transacções comerciais.
Assim, o requerente tem o ónus de alegar e provar que as obrigações em causa são provenientes de transacções comerciais (neste sentido, veja-se o estudo de Paulo Duarte Teixeira, obra citada, págs. 208 a 211). Para o que tem de alegar os factos correspondentes ao preenchimento da previsão de que a obrigação emerge de transacções comerciais.
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Ora, no caso dos autos, a requerente, manifestamente, não alegou os factos necessários ao preenchimento da previsão daquela norma. Dizer que a obrigação emerge de transacção comercial, entendida nos termos do DL 32/2003, não é a mesma coisa que alegar os factos correspondentes.
O facto de o fornecimento de bens ou serviços ter tido lugar entre pessoas que exercem “actividade económica ou profissional autónoma”, logo, entre “empresas”, para além de só ter sido alegado em recurso, é alegação conclusiva. E não se pode extrair da alegação conclusiva de a obrigação emergir de transacção comercial, sob pena de petição de princípio (situação diferente existe no caso do ac. do TRL de 30/06/2011 - 154563/10.0YIPRT.L1-1 -, pois que aí, os factos, devidamente interpretados, permitiam a conclusão de que o requerido era uma organização).
Aquilo que a requerente diz na resposta à excepção pouco adianta: “fornecer e aplicar relvado sintético na “C”, sita na …, projecto desenvolvido pelo requerido” não afasta a hipótese de se tratar de uma casa particular, já que o tribunal não tem os conhecimentos que a requerente terá…
Dizer-se que “o requerido ficou de indicar qual o nome, morada e número de pessoa colectiva da empresa responsável pelo projecto à qual devia ser emitida a factura”, não corresponde a alegar que a requerente foi contratada pelo requerido em nome de tal pessoa colectiva e se o tivesse feito, não seria ele o obrigado…
A requerente continua a incorrer em petição de princípio quando diz que se exclui da aplicação do DL 32/2003 os contratos celebrados com consumidores e que o réu não pode ser considerado consumidor. Ora, o que se passa é que a requerente não alegou factos para concluir que a transacção era comercial, ausência de factos essa que também impede que se possa concluir que o requerido não é consumidor.
O despacho recorrido tem toda a razão, pois, para considerar que não foram alegados factos que permitam a prova de que a transacção era comercial, sendo irrelevante tudo o que de contrário é dito pela requerente no recurso.
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Se não ficar provado que a transacção era uma transacção comercial, a decisão final não pode condenar no pedido, pois que não se pode dizer que a obrigação era uma daquelas que podia ter sido exigida no tipo de processo empregue. A requerente tem ou pode ter o direito, mas não o pode exercer neste tipo de processo.
Verifica-se, pois, uma excepção dilatória inominada que deve levar à absolvição da instância (neste sentido, vão, desde logo, os acs. citados pelo requerido, do TRP de 26/09/2005, 0554261, e do TRL de 08/11/2007, 9037/2007-8; e vai também o ac. do STJ de 14/02/2012, já citado acima - este acórdão, apesar de estar a decidir um caso de injunção transmudada em acção ordinária, pronunciou-se também sobre a hipótese de um injunção transmudada em AECOP porque o acórdão fundamento tratava desta hipótese. Assim:
“38. Afigura-se-nos, assim, que as condições que a lei impõe para que seja decretada a injunção são condições de natureza substantiva que devem verificar-se para que a injunção seja decretada; no entanto, ultrapassada esta fase, elas não assumem expressão na fase subsequente do processo que venha a ser tramitado sob a forma de processo comum ordinário quando o seu valor seja superior à alçada da Relação (art. 7.º/2 do DL 32/2003).
39. Com efeito, neste caso, a circunstância de o crédito não se enquadrar na transação comercial a que alude o art. 2.º/1 e 3.º do DL 32/2003 não exerce nenhuma influência, rectius, não tem qualquer correlação com a forma de processo a tramitar em momento subsequente.
40. No entanto, no caso da AECOP emergentes de transações comerciais de valor não superior à alçada da Relação, prescreve o n.º 3 do art. 7 do DL 32/2003 que tais ações “seguem os termos da AECOP emergentes de contratos”.
41. Estamos, pois, face a um processo especial […]
42. A questão de direito substantivo - por exemplo, saber se houve uma transação comercial com consumidor – tem incidência no processo especial a utilizar; por isso, o pedido de condenação no pagamento da quantia reclamada não pode, nessa ação, ser concedido se não se provar que o crédito que o autor invoca tem origem em transação comercial que esteja abrangida no âmbito do DL 32/2003. Assim, se a causa tiver de prosseguir por se mostrar necessário averiguar questões de facto atinentes com a efetiva natureza da transação comercial, o juiz não poderá deixar de as apreciar.
43. Com efeito, não se questiona o direito do autor ao pagamento da quantia reclamada, mas o facto de o autor não poder obter esse pagamento a não ser por via de ação comum quando o crédito não seja daqueles que estão abrangidos pelo DL 32/2203. Só quanto a estes é legítimo ao autor utilizar esta ação especial ab initio ou na sequência da conversão da injunção. Por isso, afigura-se-nos que neste caso a não comprovação de um crédito com a invocada origem importa, como referiu o magistrado que elaborou o mencionado estudo, a absolvição da instância por ocorrer uma exceção dilatória inominada (art. 494 do CPC).”
E ainda: o estudo citado de Paulo Duarte Teixeira, pág. 207, que cita no mesmo sentido Salvador Costa, A injunção e as conexas acção e execução, Almedina, 2005, pág. 263; e o ac. do TRC de 24/01/2012 (546/07.0TBCBR.C1: Afere-se, pois, a existência do erro em causa, mediante um juízo de adequação do pedido formulado pelo autor à forma de processo usada. No caso em análise, havendo adequação do pedido ao procedimento utilizado, não estão é reunidos os pressupostos que permitiriam tal utilização, pelo que se nos afigura, tal como se entendeu no ac. do TRL de 07/06/2011, estar-se perante uma excepção dilatória inominada que implica a absolvição da instância).
Contra, no entanto, considerando que há erro na forma do processo empregue, vejam-se, por exemplo, os acs. do TRE de 23/02/2011 (349766/09.OYIPRT.E1), TRL de 18/06/2009 (6201/06.0TBAMD.L1-2), para além dos dois já citados acima, do TRC de 18/01/2005 (3714/04) e do TRL de 14/04/2005 (2661/2005-6), com as ressalvas já assinaladas.
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Do despacho de aperfeiçoamento
Considerando que se virá a estar perante uma excepção dilatória inominada e que por isso, chegando-se à fase da sentença, o requerido deve ser absolvido da instância, então, antes de lá se chegar, ou se segue o caminho do despacho recorrido, e absolve-se logo o requerido da instância, ou então, dá-se oportunidade à requerente de aperfeiçoar o seu requerimento, para que o processo só siga para a frente com a alegação dos factos necessários, para que a excepção não se verifique.
O despacho recorrido entenderá que não se pode proferir despacho de aperfeiçoamento, no caso, porque tal se traduziria numa alteração da causa de pedir.
Mas a causa de pedir são os factos de que emerge o direito substantivo da requerente (art. 498/4 do CPC), não os factos de que emerge o direito da requerente a exercer aquele direito neste tipo de processos.
Não se trata, pois, de ampliar ou alterar a causa de pedir, mas de suprir a falta de alegação de factos necessários para que o pedido da requerente possa ser conhecido neste tipo de processo.
Pois que, se a requerente alegar – e depois provar – os factos necessários ao preenchimento da previsão da obrigação provir de transacção comercial, a excepção dilatória não se verificará. Convidando a requerente a alegar tais factos o juiz mais do que fazer sanar uma excepção dilatória, evita o aparecimento desta.
Ora, tendo o juiz o dever de providenciar pelo suprimento da falta de pressupostos processuais susceptíveis de sanação, também o tem de evitar o surgimento destes (arts. 7 do DL 269/98 e 265/2 do CPC), pelo que devia ter convidado ao aperfeiçoamento.
Conclui-se, pois, que deve ser proferido despacho de aperfeiçoamento.
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No mesmo sentido, veja-se que o Regulamento (CE) 1896/2006 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12/12/2006, que cria um procedimento europeu de injunção de pagamento, dispõe, no seu art. 9: 1. Se não estiverem preenchidos os requisitos previstos no art. 7, e a menos que o pedido seja manifestamente infundado ou que o requerimento seja inadmissível, o tribunal deve conceder ao requerente a possibilidade de completar ou rectificar o requerimento […]. 2. Quando convidar o requerente a completar ou rectificar o requerimento, o tribunal deve fixar o prazo que considerar adequado às circunstâncias, podendo, se assim o entender, prorrogar esse prazo (sobre o projecto deste regulamento e sobre estes deveres do juiz, veja-se Paula Costa e Silva, Processo de Execução, vol. I, Títulos executivos europeus, Coimbra Editora, 2006, esp. págs. 198/199)
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No mesmo sentido, vai o ac. do TRL de 26/05/2011 (410098/08.5YIPRT.L1-6) numa situação quase idêntica à dos autos, pois que se mandou aperfeiçoar um requerimento que não alegava os factos necessários a concluir-se que a obrigação emergia de transacção comercial. A diferença é que neste acórdão a injunção se tinha transmudado em acção ordinária. De qualquer modo pode-se dizer que este acórdão até prevê um aperfeiçoamento numa situação de maior valor e de forma processual mais solene.
No mesmo sentido do aperfeiçoamento, mas agora com a diferença de se tratar do aperfeiçoamento de causas de pedir insuficientes, vejam-se os acórdãos do TRL de 13/09/2007 (5203/2007-2 da base de dados do ITIJ - este foi citado pela requerente), de 23/03/2010 (119828/09.3YIPRT.L1-7) e de 23/06/2009 (3380/07.3TCLRS.L1-1) e o ac. do TRP de 11/09/2008 (0834643). Mas aqui também se verifica a diferença de a injunção, nestes casos, também se ter transmudado em acção ordinária, e não em AECOP (que se trata de situações diferentes, demonstra-o o ac. do STJ de 14/02/2012, citado acima).
No entanto, absolvendo logo da instância, sem despacho de aperfei-çoamento, vejam-se os acs. do TRL 14/04/2005 (2661/2005-6) e de 08/11/2007 (9037/2007-8). Mas a questão da necessidade de aperfeiçoamen-to não era posta nestes recursos, nem neles é aduzida fundamentação para afastar o despacho de aperfeiçoamento.
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Quando está provado que a obrigação não emerge de transacção comercial
Note-se que a situação considerada é diferente daquela que existe quando o tribunal pode considerar como assente que o pressuposto processual específico não se verifica. Aí resta-lhe absolver da instância (seja considerando que o faz pela verificação da hipótese de uma excepção dilatória inominada – assim, por exemplo, o caso do ac. do TRP citado pelo requerido e do ac. TRC de 24/01/2012 (546/07.0TBCBR.C1) -, ou por uma nominada, que é a da nulidade de todo o processo – como é o caso do ac. do TRL de 23/02/2010 (206720/08.1YIPRT.L1.1). Não faz sentido, nestes casos, o aperfeiçoamento ou a adaptação processual. “De outro modo - diga-se com o ac. do TRC de 24/01/2012 -, estava encontrado o meio para, com pensado propósito de, ilegitimamente, se tentar obter título executivo, se defraudar as exigências prescritas nas disposições legais que disciplinam o procedimento de injunção.”
E no caso dos autos até se pode considerar que foi também este o entendimento do tribunal recorrido, pois que disse que sendo o requerido pessoa singular não se poderá considerar fundamento factual e jurídico da pretensão sub judicio uma relação contratual estabelecida entre duas empresas.
E fê-lo seguindo a posição assumida pelo requerido na oposição, ou seja, a posição de que o DL exclui expressamente a sua aplicação aos contratos celebrados com consumidores, qualidade na qual, diz o requerido, ele surge indubitavelmente e da qual jamais poderá ser dissociado.
Mas só assim seria se uma pessoa singular fosse sinónimo de consumidor. Mas não é. Consumidor é uma pessoa singular qualificada (nos termos do art. 2/1 da Lei 24/96, de 31/07 - de Defesa do Consumidor; ou nos termos do Dec-Lei 67/2003, de 08/04, com as alterações do Dec-Lei 84/2008, de 21/05). Assim, consumidor é qualquer pessoa singular que actue com fins que não pertençam ao âmbito da sua actividade profissional (Paulo Duarte Teixeira, especialmente, págs. 196 a 204, que invoca outros elementos legislativos, doutrinários e jurisprudenciais). Ora, os factos que permitem essa qualificação não estão alegados nem provados e, aliás, aquilo que o requerido diz sobre os defeitos da prestação (art. 12 da oposição) e também os factos que já foram alegados pela requerente na resposta à excepção (já transcrita acima) indiciam que o requerido, ao menos nesta relação contratual, está muito longe de poder ser considerado consumidor.
De qualquer modo, como se viu acima, quem tem de provar o pressuposto de que a obrigação emerge de uma “transacção comercial” é a requerente. Pelo que, ou ela prova de que se trata de uma transacção comercial e, fazendo-o, está afastada a hipótese de o requerido ser um consumidor; ou ela não o prova, e é irrelevante que o requerido seja consumidor. É que a norma do art. 2/1a) do Dec.-Lei 32/2003 não é matéria de excepção, mas “uma densificação do conceito de transacção comercial constante do nº. 1 (note-se que o teor da directiva não contém essa exclusão).” (Paulo Duarte Teixeira, obra citada, págs. 210/211).
Ou seja, aceita-se que se estivessem provados os factos que permitissem concluir que o requerido é consumidor, o requerido devia ser desde já absolvido da instância. Mas, como não o estão, o processo poderá prosseguir para prova, pela requerente, de que a obrigação emerge de transacção comercial, para o que ela terá antes de alegar os factos correspondentes, a convite do tribunal.
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Pelo exposto, julga-se o recurso procedente, revogando-se o despacho recorrido, que se substitui por este: convida-se a requerente a alegar, em 10 dias, os factos necessários ao preenchimento do pressuposto de que a obrigação emerge de uma transacção comercial entendida nos termos do Dec.-Lei 269/98, sob pena de absolvição da instância, devido a excepção dilatória inominada.
Custas pelo requerido.

Lisboa, 29 de Março de 2012

Pedro Martins
Sérgio Silva Almeida
Lúcia Sousa