Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
5537/07.8TVLSB.L1-6
Relator: JERÓNIMO FREITAS
Descritores: OBRAS
DANO CAUSADO POR EDIFÍCIOS OU OUTRAS OBRAS
EMPRESA PÚBLICA
EMPREITEIRO
EMPRESA PRIVADA
RESPONSABILIDADE CONTRATUAL
RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL
FACTO NOTÓRIO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/23/2012
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: I. Não é um facto notório, por não ser do conhecimento geral (n.º1 do art.º 514.º do CPC) saber que influência tiveram as obras no Metropolitano de Lisboa, na circulação e no acesso em automóveis privados à Av.ª da ... e à Avenida ... e, particularmente, a um determinado estabelecimento.
II. Recorrendo à equidade para fixar a indemnização, nos termos previstos no art.º 566.º n.º3, do CC, nunca poderá o Tribunal exceder o valor pedido pela parte. Nesse caso, o tribunal julgará “(..) equitativamente dentro dos limites que tiver por provados”, mas ainda que tal conduza a um valor superior ao pedido formulado pela parte, a indemnização que vier a ser fixada tem que conter-se dentro daquele limite máximo definido pela própria parte. A isso o obriga o disposto no art.º n.º 1 do art.º 661.º, do CPC.
III. Para além da responsabilidade civil contratual, ou seja, a que respeita à execução da empreitada e se inscreve no âmbito das suas relações com o dono da obra, o empreiteiro é também responsável no âmbito da responsabilidade civil extracontratual, se no exercício dessa sua actividade e na execução dos trabalhos para realização da obra, desrespeitar ilicitamente e com culpa direitos de terceiro, provocando-lhe danos (artigo 483º, nº. 1, do Código Civil).
IV. Numa obra pública executada por empreitada (art.º 1.º do Decreto-Lei nº 59/99, de 2 de Março, entretanto revogado pela Lei n.º 67/2007, de 31 de Dezembro) em que o dono da obra é uma empresa pública e o empreiteiro uma pessoa colectiva de direito privado, no que respeita à responsabilidade civil extracontratual, há que distinguir entre o dono da obra e o empreiteiro.
V. Ao primeiro, enquanto pessoa colectiva de direito público, agindo “no interesse geral, mediante actos administrativos legais”, tem aplicação o disposto Decreto-Lei n.º 48051, de 21 de Novembro de 1967, entretanto revogado pela Lei nº 67/2007, de 31 de Dezembro. Mas já quanto ao segundo, apenas têm aplicação as regras gerais da responsabilidade civil extracontratual, previstas nos artigos 483.º e seguintes do CC.
( Da Responsabilidade do Relator )
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: I. RELATÓRIO

I.1 Nas Varas Cíveis de Lisboa, A ( Pastelaria …, Lda) , propôs acção declarativa de condenação com processo ordinário, que veio a ser distribuída à 2.ª Secção da 3.º Vara, contra B (...Lisboa, EP) e C (….ACE), pedindo a condenação solidária destas a pagarem-lhe a quantia de €137.571,97, acrescida de juros moratórios comerciais que se vencerem desde 13.12.2007, até efectivo reembolso, calculados à taxa anual de 11,07% (ou outra que entretanto vier a ser fixada) sobre o capital de €136.372,53.
No essencial alegou que tem por objecto a exploração de um estabelecimento de restaurante e pastelaria, com fabrico próprio, sito na Av. da ..., n.º ….. tornejando para a Av. ..., n….., em Lisboa, prestando serviços de restauração e serviços de cafetaria e de produtos de pastelaria que a própria A. fabrica, nas referidas instalações de "self-service" ou ao balcão, vendendo ainda os produtos por ela fabricados para consumo fora do estabelecimento.
A 1.ª R é uma empresa pública que explora o …. de Lisboa e é dona da obra de prolongamento da Linha Vermelha, no trajecto entre a Estação da Alameda e o Palácio da Justiça. E, a 2.ª R, é a empreiteira a quem a 1.ª R adjudicou a mencionada obra de prolongamento, que se iniciou em Setembro de 2004, e ainda prosseguia à data da entrada dos autos em juízo.
A obra obrigou a grandes escavações em toda a extensão da Av. ..., designadamente no cruzamento desta avenida com a Av. da ... o que implicou alterações ao trânsito de veículos automóveis e pedonal na Av. ..., bem como a alterações das paragens dos transportes colectivos e ao encerramento do átrio Norte da estação de Metro do Saldanha. O acesso à A ficou vedado a quem se deslocasse em automóveis privados ou em transportes colectivos e o trânsito pedonal tornou-se praticamente impossível por causa da colocação de vedações e tapumes que levou ao aumento em muitas dezenas de metros percursos que antes eram curtos.
Os RR. instalaram e fizeram circular e manobrar no estaleiro da obra, a poucos metros do estabelecimento da A., camiões pesados e outra maquinaria destinada ao transporte de materiais, à retirada de terras e entulhos e à escavação, o que obrigou, entre 17.01.2007 e 26.02.2007, ao encerramento da porta da Pastelaria ..., no n.º ...-C de polícia da Av. da ... e a organizar o acesso ao seu estabelecimento por uma porta de recurso, mais estreita.
As vibrações produzidas pelos veículos pesados, gruas e guindastes e martelos pneumáticos, fizeram vibrar o estabelecimento da A. criando nas pessoas, uma sensação de insegurança e de incomodidade impeditiva de qualquer conversa com uma intensidade de som normal, sem gritos nem berros.
A sua clientela é maximamente constituída por pessoas da classe média, de meia-idade e idosos que a procuram para conviver em ambiente tranquilo.
Devido a todas aquelas circunstâncias, a clientela afastou-se do estabelecimento da A. e procurou os serviços de estabelecimentos congéneres, nas imediações.
Os prejuízos económicos emergentes da diminuição de receitas, sofridos por causa das referidas obras, só foram minorados nas épocas de Natal e de fim do ano, graças à venda do bolo rei. A diminuição de clientela e a consequente retracção de vendas no período considerado de Setembro de 2004 a final de 2007, não é imputável à A., tendo sido causado pelas RR. que, com descrita conduta, causaram-lhe prejuízos e constituíram-se no dever de a indemnizar.
Devidamente citadas, as Rés apresentaram contestação.
Contestou o B , a fls. 73 e ss., alegando, no essencial, ser uma empresa pública, competindo aos tribunais administrativos e fiscais a apreciação de litígios que tenham por objecto a responsabilidade extracontratual de pessoas colectivas de direito público, para arguir a incompetência dos tribunais comuns para dirimir o conflito.
Por seu turno, a R. C , veio contrapor , em síntese, que como empreiteiro foi-lhe adjudicada pelo co-R. B, como dono da obra, a execução da obra denominada “ML 613/02 Execução dos Toscos do prolongamento da Linha Vermelha, Alameda/São Sebastião, do Metropolitano de Lisboa, E.P.», tendo ambas as partes celebrado o correspondente contrato de empreitada, mediante o qual se vinculou a executar os trabalhos de construção compreendidos nesse contrato segundo o projecto de execução que lhe foi submetido pelo co-R. B.
Incumbe ao R. B obter todas as autorizações e licenças de entidades terceiras que directamente ou indirectamente se encontram envolvidas no objecto do contrato de empreitada, e seus adicionais. A afectação das áreas em superfície, definidas nos projectos de autoria do R. B , foi objecto de prévia autorização pela Câmara Municipal de Lisboa. A localização dos estaleiros da obra, sua configuração e correspondentes alterações dos circuitos de tráfego viário e pedonal é parte integrante dos projectos submetidos ao R., para execução, pelo R. Metropolitano de Lisboa.
O redimensionamento dos circuitos de tráfego foi aprovado pela Câmara Municipal de Lisboa e a sua execução foi acompanhada pelos técnicos da Câmara Municipal de Lisboa. Foi mantida a dimensão e a geometria dos passeios existentes anteriormente ao início da execução da obra e as passagens de peões criadas para permitir a execução da obra foram devidamente sinalizadas e iluminadas.
Os passeios e os arruamentos que circundam o estabelecimento da A., nomeadamente a Avenida da ..., e a estação de metropolitano do Saldanha, incluindo os respectivos átrios de entrada, são públicos, não dispondo a A. de qualquer direito, real ou de outra natureza, que determine a constituição de direitos indemnizatórios a seu favor no caso de a execução de uma obra de manifesto interesse público implicar algum estorvo à sua utilização, mesmo que afecte temporariamente a exploração da sua actividade comercial.
Os equipamentos utilizados na obra cumprem os requisitos estabelecidos no Decreto Lei n." 221/2006, de 8 de Novembro, ou na demais legislação que se encontrava em vigor na data de seu fabrico, que estabelece as regras em matéria de emissões sonoras de equipamento para utilização no exterior.
O R. mobilizou a PSP para regular o trânsito à frente do estaleiro e o passeio em frente à pastelaria da A. nunca esteve totalmente ocupado pela obra.
A obra foi sujeita a um processo de avaliação de impacte ambiental, do qual resultou a emissão pelo Sr. Secretário de Estado do Ambiente de uma Declaração de Impacto Ambiental (DIA), exigindo a implementação de várias medidas de minimização do impacto ambiental durante a fase de construção.
O R. elaborou um Plano de Gestão Ambiental (PGA) para o estaleiro da Estação Saldanha II, com o objectivo de definir programas de acção para a implementação das medidas de minimização estabelecidas na DIA.
Entidades terceiras, devidamente acreditadas, realizam campanhas de monitorização para os descritores ruído, vibrações e qualidade do ar. Foram realizadas campanhas de monitorização de referência, com o objectivo de caracterizar o local quanto a ruído, vibrações e qualidade do ar;
O estaleiro da Estação Saldanha II possui uma Licença Especial de Ruído, emitida pela Câmara Municipal de Lisboa e por despacho do Sr. Secretário de Estado dos Transportes e Comunicações, o R. está dispensado do cumprimento de certos limites de ruído estabelecidos na legislação vigente.
Anteriormente ao início da execução da obra, o estacionamento na zona era extremamente difícil e em frente ao estabelecimento da A. o estacionamento era proibido.
Apesar de o R. não ter obrigação de assegurar a limpeza no exterior do local de realização da obra, sempre teve a preocupação e conseguiu que as imediações da obra estivessem limpas.
A obra melhorará a rede do metropolitano de Lisboa, cria uma nova estação e a sua execução cria condições para o crescimento do tráfego de pessoas junto do estabelecimento da A., implicando uma vantagem directa para a A., que compensa os incómodos causados pela sua execução.
No mais, impugna, no essencial os factos alegados pela A., designadamente no que se refere ao montante dos prejuízos que a A. alega ter sofrido.
Apresentou a A. articulado de tréplica defendendo a competência deste tribunal no que se refere à incompetência deste tribunal.
I.2 Foi realizada audiência preliminar na qual se decidiu julgar procedente a excepção de incompetência material arguida pelo Metropolitano de Lisboa, com a consequente absolvição da instância.
Procedeu-se a julgamento e, subsequentemente, à prolacção da sentença, onde se decidiu julgar a acção parcialmente procedente, condenando-se “a Ré B a pagar à A. a quantia de €250.000,00”; e, a pagar (..), os juros de mora contados sobre a quantia referida em a), desde 15 de Janeiro de 2009”, absolvendo-a quanto à “parte sobrante do pedido”.
I.3 Inconformada com essa decisão, quer quanto à matéria de facto considerada provada quer quanto à aplicação do direito, veio a requerente apresentar o presente recurso de apelação, o qual foi recebido na espécie própria e com o efeito e modo de subida devidos.
Com as alegações a recorrente apresentou as respectivas conclusões, com o teor seguinte:
1. O quesito 2º da Base Instrutória deveria ter sido julgado não provado, com base nos depoimentos das testemunhas … e ….;
2. Considerando que a A. Apelada pediu a condenação do R. Apelante no pagamento da quantia de € 136.372,53, mais os juros contados desde 13 de Dezembro de 2007 até efectivo reembolso; e que a sentença recorrida condenou a Apelante no pagamento de € 250.000,00 de capital, e determinou que os juros se contariam à taxa legal supletiva para as obrigações civis desde 15 de Janeiro de 2009, a sentença recorrida condenou em quantidade superior à do pedido, assim incorrendo em nulidade, nos termos conjugados do disposto nos arts. 661º e 668º do C.P.C.;
3. A sentença recorrida apreciou e julgou a eventual responsabilidade do Apelante como se este fosse uma entidade pública actuando na prossecução dum fim público, fundando a sua condenação nos seguintes preceitos legais: o art. 22º da Constituição e o art.º 9.º do D. Lei 48051 de 21.11.1967;
4. Ora, esses preceitos regulam a responsabilidade do Estado e das entidades públicas por actos de gestão pública, mas o Apelante é uma entidade privada que praticou actos de natureza privada, pelo que não se lhe aplicam os referidos preceitos legais;
5. Enquanto entidade privada a que se aplica o direito civil, a responsabilidade do Apelante deveria ter sido aferida exclusivamente pelo Código Civil, e nomeadamente pelo disposto no art. 483º desse Código;
6. Ora, ao abrigo deste preceito legal, a própria sentença recorrida parece excluir a responsabilidade do Apelante;
7. Em sede de responsabilidade civil delitual, não pode o suposto lesante ser condenado a indemnizar o suposto lesado sem que se alegue e prove que aquele praticou um acto ilícito e culposo, e bem assim que existiu dano;
8. Sucede que, no caso, nenhum desses 3 pressupostos da responsabilidade civil aquiliana se provou;
9. Tendo o Apelante executado uma obra de construção sem que se tivesse provado ter ele incorrido em violação de normas legais ou técnicas, não existe culpa nem existe facto ilícito, uma vez que tal facto não é censurável e não viola ilicitamente o direito de outrem nem qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios;
10. No direito civil, só existe obrigação de indemnizar independentemente de culpa nos casos especificados na lei (v. art. 483º, n.º 2 do C.C.), e a responsabilidade por factos lícitos é excepcional, só existindo nos casos previstos na lei; mas a sentença recorrida condena o Apelante sem que este tenha praticado um facto ilícito e sem que haja culpa deste;
11. Sendo certo que a sentença recorrida não afirma a existência de uma norma legal civil pela qual o Apelado pudesse responder por facto lícito e independentemente de culpa;
12. Ademais, o facto determinante da responsabilidade, ao mesmo tempo que causa um dano, proporciona ao lesado a aquisição de uma vantagem, pelo que o valor desta deve ser deduzido ao montante do prejuízo, para se determinar o valor exacto da indemnização, sob pena de violação do disposto no art. 566º do C.C.;
13. Na verdade, é inteiramente justo que os beneficiados por estruturas de transportes, como a proximidade de estações do metropolitano de Lisboa, construídas, mantidas e melhoradas à custa de investimentos públicos de elevado valor, suportem os encargos temporários com a realização de obras de conservação e de melhoramento;
14. Assim, a sentença recorrida, ao condenar o Apelante no pagamento de € 250.0000, beneficiou injustamente a Apelada, a qual retira vantagens, desde sempre, da proximidade da estação de metro intervencionada, e continuará a dela beneficiar;
15. Pretendendo fixar por equidade o valor do pretenso dano, ao abrigo do disposto no art. 566º, n.º 3, o Tribunal a quo limitou-se a enunciar um conjunto de factores, sem os quantificar minimamente, concluindo pela fixação duma quantia pecuniária objectivamente muito elevada que não pode ser sindicada pelo Tribunal ad quem, incorrendo assim em arbitrariedade, e na consequente violação desse preceito legal;
16. Na fixação do valor do pretenso dano, a decisão recorrida considera unicamente a redução de receitas, e não tem em conta que, a ter havido uma redução das receitas em medida impossível de calcular com rigor, houve também uma redução concomitante das despesas, em medida igualmente impossível de calcular com rigor;
17. Assim, ao abrigo do disposto no art. 566º, n.º 2, do C.C., a haver indemnização, esta teria de ser fixada na diferença entre a diminuição de receitas e a diminuição de despesas;
18. Por conseguinte, a quantificação efectuada na sentença, tomando em conta apenas a diminuição de receitas mas não a concomitante diminuição de despesas, incorre num pressuposto manifestamente errado, obtendo um valor injusto para o pretenso dano e violando o mencionado preceito legal;
19. Antes das obras em causa, a A. Apelada coleccionou prejuízos, sendo a sua actividade fortemente deficitária; e no ano de 2004, ano em que as obras se iniciaram, já realizou lucros, o que não tinha conseguido nos anos anteriores;
20. Considerando que em 2004, ano em que se iniciaram as obras, a receita da A. excedeu a receita do ano de 2003, ano em que não houve obras; e considerando ainda ser facto notório que, em geral, o tempo em que a obra foi executada foi um período mau para a economia portuguesa e o comércio em geral, a fixação do pretenso dano em € 250.000 é fortemente injusta;
21. Por todo o exposto, a sentença recorrida violou o disposto nos artigos 483º, nº 1 e nº 2, 487º, 563º, 562º, 566º, nº 2 e 3, e 342º, nº 1, todos do C.C..
Termos em que deve a presente apelação ser julgada procedente, com as consequências legais, assim se fazendo a costumada JUSTIÇA!
I.4 A recorrida apresentou contra-alegações, pugnando pela improcedência do recurso.
I.5 Foram colhidos os vistos legais.
I.6 Delimitação do objecto do recurso
Sendo o objecto do recurso delimitado pelas conclusões das alegações apresentadas (artigos 684.º, n.º 3 e 685.º-A, n.º1, do CPC), as questões a apreciar são as seguintes:
a) Reapreciando a prova, a de saber se o quesito 2º da Base Instrutória deveria ter sido julgado não provado, com base nos depoimentos das testemunhas … e ….;
b) A de saber se a sentença recorrida condenou em quantidade superior à do pedido, assim incorrendo em nulidade, nos termos conjugados do disposto nos arts. 661º e 668º do C.P.C.;
c) A de saber se no caso, sendo a apelante entidade privada, a responsabilidade civil apenas pode ser aferida pelo Código Civil, nomeadamente pelo disposto no art.º 483º, sendo de excluir o apuramento da mesma como se fosse uma entidade pública actuando na prossecução dum fim público, nomeadamente atento o disposto no art.º 9.º do D. Lei 48051 de 21.11.1967.

II: FUNDAMENTAÇÃO
II.1. MOTIVAÇÃO DE FACTO
Na decisão recorrida foi considerada provada a matéria de facto adiante transcrita, da qual, assinala-se, apenas o facto 39 (em itálico) foi impugnado:
1.A A. é uma sociedade comercial por quotas que tem por objecto a exploração de um estabelecimento de restaurante e pastelaria, com fabrico próprio, sito na Av. Da ..., … tornejando para a Av. ...,…., em Lisboa;
2. O objecto da A. materializa-se através da prestação de serviços de restauração, pequenos- almoços, almoços e lanches no "self-sevice";
3. Bem como através da prestação de serviços de cafetaria e de produtos de pastelaria que a própria A. fabrica, cafés e outras bebidas, nas referidas instalações de "self-service" ou ao balcão;
4. E, ainda, através da venda dos mencionados produtos de cafetaria e pastelaria por ela fabricados, para consumo fora do estabelecimento;
5. O prédio onde está instalado o estabelecimento da A. situa-se na …. da Av. da ... … com a Av. ..., em Lisboa;
6. B é uma empresa pública que explora o Metropolitano de Lisboa;
7. E é dona da obra de prolongamento da Linha Vermelha, no trajecto entre a Estação da Alameda e o Palácio da Justiça;
8. A R. C , é a empreiteira a quem a entidade referida em 6) adjudicou a mencionada obra de prolongamento denominada «ML 613/02 Execução dos Toscos do Prolongamento da Linha Vermelha, Alameda/S. Sebastião, do …. de Lisboa, E.P.», mediante contrato de empreitada;
9. Ao serviço e sob a direcção de quem estão os trabalhadores que executam a referida I obra de prolongamento da Linha Vermelha;
10. Obra que se iniciou em Setembro de 2004, e ainda prossegue;
11. É do conhecimento público que a mencionada obra obrigou a grandes escavações em toda a extensão da Av. ...;
12. Designadamente no cruzamento desta avenida com a Av. da ...;
13. O que implicou alterações ao trânsito de veículos automóveis, públicos e privados e ao trânsito pedonal na Av. ...;
14. Bem como a alterações das paragens dos transportes colectivos;
15. E ao encerramento do átrio Norte da estação de Metro do Saldanha;
16. Quanto ao trânsito automóvel, foi cortado em ambos os sentidos da Av. ... numa extensão considerável, desde o cruzamento desta com a Av. ..., passando pelo cruzamento com a Av. Da ..., até ao cruzamento com a Av. 5 de Outubro;
17. Quanto ao trânsito pedonal, este sofreu enormes alterações que as fotografias anexas documentam (doe. 1 a 14);
18. A colocação de vedações e tapumes aumentou em muitas dezenas de metros percursos tão curtos como, por exemplo, alcançar o estabelecimento da A., vindo no lado Poente da Av. da ..., no sentido Norte/Sul (Campo Grande/Saldanha), estando o peão já no quarteirão que antecede a Av. ..., separado desta apenas pelo edifício do ….. (cfr. doc. 4);
19. Nesta hipótese, o peão teria de entrar no "labirinto", virando à esquerda, percorrer 10m, virar à direita, andar mais 12 m, virar à esquerda, palmilhar 22 m, virar à direita, calcorrear mais 14 m, ziguezaguear para a esquerda e direita, andar mais 4 m, virar à esquerda e, vislumbrando, ao fundo, a entrada de recurso da Pastelaria ..., arrastar-se ainda mais 14 m para lá chegar, percorrendo um total de 76 metros (doc. 15);
20.O mesmo sucedendo a quem, estando perto da relojoaria/ourivesaria situada imediatamente a Sul, da A , no mesmo lado Poente da Av. da ..., pretendesse deslocar-se ao estabelecimento da A (cfr. doc. 7);
21.Nesta hipótese, o peão teria de iniciar uma deslocação de 12 m, no sentido Poente/Nascente, virar à esquerda, percorrer mais 24 m, no sentido Sul/Norte, virar à esquerda para andar mais 14 m no sentido Nascente/Poente, ziguezaguear para a esquerda e direita, andar mais 4 m, no mesmo sentido Nascente/Poente, para, finalmente, virar à esquerda e percorrer mais 14m, no sentido Norte/Sul, para, enfim, aceder à entrada de recurso da A , percorrendo um total de 68 m (cfr. doc. 15);
22. E, finalmente, os estabelecimentos situados nas cercanias do átrio Sul da estação do Saldanha (que se manteve sempre aberto) e aqueles que se localizam nas cercanias do átrio Norte, mas longe do estaleiro dos RR., não sofreram qualquer prejuízo decorrente das obras e vão beneficiar delas tanto como a A. ;
23. O 1º R. vinculou-se a executar os trabalhos de construção compreendidos nesse contrato de empreitada segundo o projecto de execução que lhe foi submetido pelo Metropolitano de Lisboa;
24. Incumbe ao Metropolitano de Lisboa obter todas as autorizações e licenças de entidades terceiras que directamente ou indirectamente se encontram envolvidas no objecto do contrato de empreitada, e seus adicionais;
25. A afectação das áreas em superfície, definidas nos projectos de autoria do R. B , foi objecto de prévia autorização pela Câmara Municipal de Lisboa;
26. A localização dos estaleiros da obra, sua configuração e correspondentes alterações dos circuitos de tráfego viário e pedonal é parte integrante dos projectos submetidos ao R., para execução, pelo R. B ;
27. O redimensionamento dos circuitos de tráfego foi aprovado pela Câmara Municipal de Lisboa;
28. A sua execução foi acompanhada in loco pelos técnicos da Câmara Municipal de Lisboa;
29. Foi mantida a dimensão e a geometria dos passeios existentes anteriormente ao início da execução da obra;
30. As passagens de peões criadas para permitir a execução da obra foram devidamente sinalizadas e iluminadas;
31. O estaleiro tem, em permanência, um guarda, contratado a uma empresa de segurança privada;
32.Os passeios e os arruamentos que circundam o estabelecimento da A., nomeadamente a Avenida da ..., e a estação de metropolitano do Saldanha, incluindo os respectivos átrios de entrada, são públicos, não pertencendo à A.;
33. Acresce que a utilização dessas vias para a execução da obra está devidamente autorizada pela entidade pública competente (no caso, a Câmara Municipal de Lisboa);
34. Os equipamentos utilizados na obra cumprem os requisitos estabelecidos no Decreto-Lei n.º 221/2006, de 8 de Novembro, ou na demais legislação que se encontrava em vigor na data de seu fabrico, que estabelece as regras em matéria de emissões sonoras de equipamento para utilização no exterior;
35. O R. mobilizou a PSP para regular o trânsito à frente do estaleiro e durante o horário de expediente do estaleiro, tendo, em permanência, um agente da P.S.P. ordena o trânsito;
36. O passeio em frente à pastelaria da A. nunca esteve totalmente ocupado pela obra;
37. Nas declarações fiscais, em sede de IRC, a A. apresentou prejuízos fiscais dedutíveis, no ano de 2003, no valor de € 70.305,00; no ano de 2002, no valor de € 51167,00; no ano de 2000, no valor de €45072,00; no ano de 1999, o valor de € 37142,00; em 1998 o valor de € 66739,00; e no ano de 2006, o valor de €33969,04 e no ano de 2004, teve o lucro tributável de €562,59 cfr doc de fI.s 39 a 50 cujo teor se dá por reproduzido;
38. No que diz respeito à venda a retalho, a qualidade do bolo-rei que a A. fabrica, torna-o um dos mais procurados por quem vive ou trabalha em Lisboa;
39. [O acesso à A ficou vedado a quem se deslocasse em automóveis privados];
40. O circuito por onde circulam os peões, está ladeado por tapumes que diminuem ou eliminam a visão periférica dos transeuntes o que torna o percurso confuso;
41. Os RR. instalaram e fizeram circular e manobrar no estaleiro da obra, a poucos metros do estabelecimento da A., camiões pesados, com betoneiras incorporadas ou destinados ao transporte de materiais de construção ou à retirada de terras e entulhos, tractores pesados, gruas, martelos pneumáticos, guindastes, tractores pesados, retro escavadoras e outros equipamentos destinados à realização da obra que se propuseram executar;
42. O que obrigou, entre 17.01.2007 e 26.02.2007, ao encerramento da porta da A , no nº…. da Av. da ...;
43. A A. procedeu à protecção dos vidros do estabelecimento contra possível rebentamento de vidros provocados por vibrações ou estilhaços;
44. Por força do referido em 42, a A. organizou o acesso aos seu estabelecimento por uma porta mais estreita, sita no nº… de polícia, Av. ...;
45. As obras tornaram as imediações do estabelecimento da A. num local onde, por vezes, o ruído era desagradável;
46. As vibrações produzidas pela circulação e manobras de veículos pesados, das gruas e dos guindastes e o matraquear de potentes martelos pneumáticos, fizeram vibrar o estabelecimento da A., o edifício onde este está instalado e os edifícios da área circundante o que criou nas pessoas uma sensação de incomodidade;
47. A A. é um local que as pessoas procuram para conviver e/ou para, num ambiente calmo e aprazível, consumir os serviços oferecidos e para proceder a encomendas ou adquirir, para consumo no exterior, produtos de cafetaria e de pastelaria;
48. A clientela da A é constituída por pessoas da classe média, de meia-idade e idosos;
49. o referido em 17 a 21, 39, 42 e 46 a 48, provocou um afastamento da clientela do estabelecimento da A.;
50. O estabelecimento da A. está bem dimensionado, organizado e equipado, o que só um esforço de actualização de processos de atendimento e de fabrico, de modernização, de equipamentos e de contínua formação profissional e aposta na qualidade dos produtos oferecidos e dos serviços prestados é que faz com que esteja aberta ao público desde 1902;
51. A trepidação, o ruído e a emissão de poeira prejudica uma actividade - fabrico e comercialização de produtos e serviços de pastelaria - que tem especial preocupação com a higiene das condições de fabrico e laboração;
52. A A. teve de proteger o estabelecimento das poeiras e lixos provocados pelas obras do Metro;
53. Com especial atenção para os expositores de produtos alimentares e para o transporte desses produtos, para o exterior da A ;
54. O valor das receitas em 2007, após o fecho da porta, é o que consta da tabela constante do referido no art.28º da base instrutória (cfr. fls.300) com a alteração do valor de €2.285 devendo considerar-se o valor de €2.571,13;
55. Depois do fecho da porta, o valor das receitas entre 18.1.05 e 10.2.07, é o que consta do quadro constante do art.29º da base instrutória (cfr. fls.300) corrigindo-se o valor de €2.152,00 para 2.254,46;
56. As receitas globais de 2002 a 2006 têm vindo a diminuir em cerca de 12,91% (€98.869,00);
57. Em termos previsionais para o ano de 2007 e seguindo uma tendência linear dos anos anteriores, podemos afirmar que a variação de 2002 para 2007 será de -18,9%;
58. De 2002 para 2004 o decréscimo foi de 1,3% (€10.020) enquanto que de2004 para 2006 o decréscimo foi de €11,7% (€88.649);
59. De 2004 a 2007 o decréscimo desde 2004 cifra-se em 17,8% (€134.325);
60. O valor mensal efectuado em Dezembro de 2006 foi devido a uma venda de encomendas de bolo rei no valor de €15.232,00;
61. Os valores referidos em 54 e 60, expressam-se na tabela constante da resposta ao quesito 18º da perícia efectuada;
62. A obra foi sujeita a um processo de avaliação de impacte ambiental, do qual resultou a emissão pelo Sr….. de uma Declaração de Impacte Ambiental (DIA);
63. O R. elaborou um plano de Gesdão Ambiental (PGA) para o estaleiro da Estação Saldanha II, com o objectivo de definir programas de acção para a implementação das medidas de minimização estabelecidas na DIA, (cfr. escrito que se junta como doe. 2 e aqui se considera integralmente reproduzido);
64. Mensalmente, o R. elabora relatórios de acompanhamento ambiental que evidenciam a implementação das medidas estabelecidas no PGA, e o R. B envia-os para o Instituto do Ambiente;
65.Entidades terceiras, devidamente acreditadas, realizam, com periodicidade previamente definida, campanhas de monitorização para os descritores ruído, vibrações e qualidade do ar;
66. Previamente ao início dos trabalhos, foram realizadas campanhas de monitorização de referência, com o objectivo de caracterizar o local quanto a ruído, vibrações e qualidade do ar;
67. Da análise dos 11 relatórios de monitorização de ruído já realizados, verifica-se que os valores obtidos se encontram abaixo dos limites estabelecidos na legislação em vigor à data de realização da campanha, com excepção de uma campanha realizada em Março de 2005, devido à laboração pontual de uma grua móvel muito próximo do ponto de medição;
68. Foram elaborados relatórios de monitorização de ruído, vibrações, qualidade do ar, os quais se mostram juntos de fls. 505 a 571, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, e cujos resultados são os aí constantes;
69. Para os índices de partículas no ar, contribui o tráfego automóvel;
70. As deslocações de automóveis e conversas de pessoas emitem ruídos;
71. Dá-se aqui por reproduzido o teor dos documentos juntos de fls.231 a 234;
72. Anteriormente ao início da obra, o estacionamento na zona era difícil;
73. A R. teve preocupações de limpeza das imediações da obra;74. A conclusão da obra referida em 8 cria condições para o crescimento de tráfego de pessoas na zona.
II.1.1 Reapreciação da matéria de facto.
A R. põe em causa a apreciação da prova feita pelo tribunal a quo no que respeita exclusivamente ao facto 39.
No facto controvertido perguntava-se se o acesso à A ( estabelecimento de pastelaria) ficou vedado a quem se deslocasse em automóveis privados ou em transportes colectivos. E, no julgamento da matéria de facto, foi considerado provado que o acesso à A ficou vedado a quem se deslocasse em automóveis privados.
A decisão sobre a matéria de facto levada a cabo pela 1ª instância pode ser alterada, nomeadamente na hipótese prevista no art.º 712, n.º 1, a), do CPC, atendendo a todos os elementos de prova que serviram de base à decisão sobre os pontos da matéria de facto indicados, por ter ocorrido gravação dos depoimentos prestados, sendo feita a impugnação, nos termos do art.º 685-B, do CPC.
Sendo inquestionável que o nosso sistema processual civil garante um duplo grau de jurisdição, nomeadamente quanto à reapreciação da matéria de facto, importa contudo assinalar que igualmente continua a vigorar entre nós o princípio da livre apreciação da prova, conforme resulta do artº 655.º, do C. P. Civil, o qual estatui que “o tribunal coletivo aprecia livremente as provas, decidindo os juízes segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto”, pelo que a convicção do Tribunal não é, em princípio, sindicável.
Significa isto, que para se proceder à alteração da decisão da 1ª instância é necessário que algo de “anormal” se tenha passado na formação dessa apontada “prudente convicção”, ou seja, ter-se-á que demonstrar que na formação da convicção, retratada nas respostas que se deram aos factos, foram violadas regras que lhe deviam ter estado subjacentes.
Por outro lado, deve também ter-se presente que o recurso à gravação sonora dos meios probatórios oralmente produzidos, pode não assegurar a fixação de todos os elementos susceptíveis de condicionar ou influenciar a convicção do julgador perante o qual foram produzidos os depoimentos em causa, funcionando essa falta de imediação como um factor limitador na reapreciação da prova [Cfr. Ac. do STJ de 27.9.2005 e de 20.5.2005, disponíveis em http://www.dgsi.pt/jstj].
Assim, ponderados os princípios enunciados, vejamos então os concretos pontos de facto postos em crise pela recorrente.
Como primeiro argumento, alega a recorrente que para os habitantes de Lisboa é notório que este facto não é verdadeiro. Todos os lisboetas sabem que, no decurso da obra, mesmo tendo alguns condicionamentos, jamais o trânsito esteve interrompido na Avenida da ... e continuou a existir estacionamento na zona. E, como segundo argumento, invoca que esse facto foi confirmado pelas testemunhas … e … .
Diz-nos o n.º1 do art.º 514.º do CPC, que “Não carecem de prova nem de alegação os factos notórios, devendo entender-se como tais os factos que são do conhecimento geral”.
Segundo o ensinamento do Professor Alberto dos Reis, que se mantém inteiramente válido, sendo um facto notório, por definição, um facto conhecido, não basta qualquer conhecimento, “(..) é indispensável um conhecimento de tal modo extenso, isto é, elevado a tal grau de difusão que o facto apareça, por assim dizer, revestido de carácter de certeza”, não podendo qualificar-se de “(..) notório um facto unicamente conhecido pelo juiz ou por um círculo restrito ou particular de pessoas. Prosseguindo, o autor classifica os factos notórios em duas grandes categorias: a) acontecimentos de que todos se aperceberam directamente (uma guerra, um ciclone, um eclipse total, um terramoto, etc.); b) factos que adquirem o carácter de notórios por via indirecta, isto é, mediante raciocínios, formados sobre factos observados pela generalidade dos cidadãos”, para depois concluir, que se quanto aos primeiros não pode haver dúvidas, já quanto aos segundos, “o juiz só deve considera-los notórios se adquirir a convicção de que o facto originário foi percebido pela generalidade dos portugueses e de que o raciocínio necessário para chegar ao facto derivado estava ao alcance do homem de cultura média” [Código de Processo Civil anotado, vol. III , 4.ª ed., Coimbra Editora, 1985, pp. 259 a 262].
Nenhuma dúvida pode haver de que o facto em questão não poderá jamais ser um facto notório directo.
E, quanto a saber se o pode ser por via indirecta, salvo devido respeito, também não poderá haver qualquer dúvida. Se é possível aceitar que a maioria dos portugueses saibam que existiram obras de vulto no …. de Lisboa, designadamente pela divulgação que tal envolveu nos meios de comunicação social, já o mesmo não pode obviamente admitir-se quanto a um dado bem concreto e preciso, qual seja o de saber que influência essas obras tiveram na circulação e, logo, no acesso em automóveis privados públicos à Av.ª da ... e à Avenida ... e, particularmente, à Pastelaria de A .
(…)
Assim, reapreciando a prova, em substituição do que consta no facto 39, considera-se provado o seguinte:
[39] “A partir da execução da 2.ª fase da obra, na estação do Saldanha, em finais de 2006, o estaleiro em obra foi instalado na Av.ª ..., ocupando parte da mesma, na qual se situa a Pastelaria ..., nessa parte tendo o trânsito automóvel sido interdito”.
II.2. MOTIVAÇÃO DE DIREITO
II.2.1 A arguida nulidade da sentença
A recorrente veio arguir a nulidade da sentença, alegando que a recorrida pediu a sua condenação no pagamento da quantia de € 136.372,53, mais os juros contados desde 13 de Dezembro de 2007, até efectivo reembolso, e que a sentença recorrida, ao fixar a indemnização em € 250 000,00, condenou-a em quantidade superior à do pedido, sendo nula, nos termos conjugados do disposto nos arts. 661º e 668º do C.P.C.
Nas contra-alegações contrapôs a recorrida que a sentença não condenou para além do pedido, dado ter recorrido à equidade para fixar os danos, nos termos previstos no art.º 566.º n.º3, tendo-o feito dentro dos limites que teve por provados, ao julgar adequado actualizar a indemnização à data do encerramento em 1.ª instância.
Passemos à apreciação.
É sabido que a sentença deve conter-se dentro dos limites definidos pela pretensão do autor, bem como da reconvenção, nos casos em que é deduzida pelo réu.
Trata-se de um corolário do princípio dispositivo (art.º 264.º do CPC).
Assim, dispõe o n.º 1 do art.º 661.º, do CPC, “A sentença não pode condenar em quantidade superior ou em objecto diverso do que se pedir”.
A violação deste limite, ou seja, a não coincidência da decisão por excesso de pronúncia determina a nulidade da sentença, como decorre do n.º1 e al. e) do art.º 668.º do CPC, onde se lê que a sentença é nula quando “O juiz condene em quantidade superior ou em objecto diverso do pedido”.
No caso, a recorrida pediu a condenação solidária das RR. a pagarem-lhe a quantia de €137.571,97, acrescida de juros moratórios comerciais que se vencerem desde 13.12.2007, até efectivo reembolso, calculados à taxa anual de 11,07% (ou outra que entretanto vier a ser fixada) sobre o capital de €136.372,53.
Mais precisamente, a recorrida liquidou os alegados prejuízos em € 136 372,53. A quantia de € 137 571,97, inclui já os juros que liquidou como vencidos até 12.12.2007.
E, na sentença, a Recorrente foi condenada “(..) a pagar à A. a quantia de €250.000,00”; e, a pagar (..), os juros de mora contados sobre a quantia referida em a), desde 15 de Janeiro de 2009”.
Para chegar a esse resultado, argumenta-se na sentença que sendo “impossível de se alcançar, a exacta medida da diminuição da receita” terá de “(..) recorrer-se à equidade, analisando as receitas dadas como provadas reportadas aos diversos anos apresentados”, para depois ter sido feito uso do disposto no art.º 566º, nº3 do C.Civil, fixando-se a “(..) indemnização de €250.000,00, decisão actualizada à data do encerramento da discussão em 1ª instância”.
Ora, salvo o devido respeito, ainda que recorrendo à equidade para fixar a indemnização, nos termos previstos no art.º 566.º n.º3, do CC, nunca poderá o Tribunal exceder o valor pedido pela parte.
Nesse caso, o tribunal julgará “(..) equitativamente dentro dos limites que tiver por provados”, mas ainda que tal conduza a um valor superior ao pedido formulado pela parte, a indemnização que vier a ser fixada tem que conter-se dentro daquele limite máximo definido pela própria parte. A isso o obriga o disposto no art.º n.º 1 do art.º 661.º, do CPC.
Reportando ao caso, tal significa que o tribunal a quo ao fixar a indemnização não podia considerar prejuízos além dos € 136 372,53, acrescidos dos juros.
Ora, é evidente que o montante de € 250.000,00, embora actualizada “à data do encerramento da discussão em 1ª instância, o que significa, também, que inclui os juros vencidos, excede largamente o pedido formulado pela recorrida. Com efeito, no período abrangido pelos juros de mora, entre 13.12.2007 e 15.03.2011 (data da sentença), ainda que se aplicasse a taxa de juros pedida pela A. (11,07%), o valor seria de cerca de 60 000,00.
Ora, a diferença entre o valor liquidado e o fixado para a indemnização é de € 113 627,47.
Conclui-se, pois, que assiste razão à recorrente, sendo de reconhecer que a sentença é nula, nos termos previstos nos artigos 661.º n.º1 e 668.º n.º1 al.e), do CPC, em consequência cumprindo decretar a sua nulidade.
Não obstante, sendo certo que na apelação a regra é a da irrelevância da nulidade, sempre deverá este tribunal conhecer do objecto do recurso (art.º 715.º n.º1 do CPC).
II.2.2 Responsabilidade civil da Ré C .
II.2.2.1 Numa breve síntese, na presente acção a A. A, demandou o B e C , pedindo a “condenação solidária destas a pagarem-lhe a quantia de €137.571,97, acrescida de juros moratórios comerciais que se vencerem desde 13.12.2007 (..), até efectivo reembolso”, a título de indemnização pelos prejuízos que, em consequência das obras realizadas para o prolongamento da Linha Vermelha, lhe resultaram para a prossecução da sua actividade.
Para sustentar o pedido, a A. invocou, no essencial, que o B é o dono da obra de prolongamento da Linha Vermelha, iniciada em Setembro de 2004, e a R. C a empreiteira a quem foi adjudicada a realização da obra.
Na execução da obra, as escavações e instalação do estaleiro em obra provocaram alterações ao trânsito pedonal e automóvel, bem como aos acessos a transportes públicos, vedando ou limitando o normal acesso à Pastelaria. No período entre 17 de Janeiro de 2007 e 20 de Fevereiro de 2007, terá mesmo sido necessário encerrar a porta de acesso à mesma, sita na Av. da ..., e organizar o acesso por uma porta de recurso mais estreita.
Para além disso, as vibrações e ruídos provocados pela maquinaria em obra, criou inseguridade e incomodidade nas pessoas.
Este conjunto de circunstâncias terá afastado a clientela do estabelecimento, prejudicando o normal funcionamento do estabelecimento e provocado a redução de receitas.
Por conseguinte, o que está em causa é apurar da eventual responsabilidade civil extracontratual decorrente dos alegados prejuízos causados por aquelas circunstâncias decorrentes da execução da obra de prolongamento da rede do metropolitano, a qual foi imputada tanto à dona da obra como à empreiteira
Porém, nesta fase, apenas cumpre apurar essa eventual responsabilidade relativamente à R. C, uma vez que quanto à R. B , foi julgada procedente a excepção de incompetência material, arguida pela mesma, com a consequente absolvição da instância, decisão essa que transitou em julgado.
II.2.2.2 É dado assente que o B é o dono da obra de prolongamento da Linha Vermelha, no trajecto entre a estação da Alameda e o Palácio da Justiça (facto 7)e a R. C é a empreiteira a quem aquela adjudicou a mencionada obra, mediante contrato de empreitada (facto 8).
A noção legal de empreitada é-nos dada pelo art.º 1207.º do CC , como sendo o “(..) contrato pelo qual uma das partes se obriga em relação à outra a realizar certa obra, mediante um preço”.
É requisito essencial deste tipo de contrato que ele tenha por objecto a realização de uma obra.
Não há um vínculo de subordinação do empreiteiro em relação ao dono da obra. O empreiteiro age sob sua própria direcção, com autonomia, não sob as ordens ou instruções do comitente, estando apenas sujeito à fiscalização da obra. Ainda assim, o empreiteiro deve não só obedecer, na realização da obra, às prescrições do contrato, mas também às regras da arte em cujo âmbito se integre a execução da obra [Cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Vol. II., 3.ª ed., Coimbra Editora, 1986, pp. 787].
Para além da responsabilidade civil contratual, ou seja, a que respeita à execução da empreitada e se inscreve no âmbito das suas relações com o dono da obra, o empreiteiro é também responsável no âmbito da responsabilidade civil extracontratual, se no exercício dessa sua actividade e na execução dos trabalhos para realização da obra, desrespeitar ilicitamente e com culpa direitos de terceiro, provocando-lhe danos (artigo 483º, nº. 1, do Código Civil).
A responsabilidade civil extracontratual está regulada nos art.ºs 483.º e segts. do CC, compreendendo a responsabilidade por factos ilícitos (art.ºs 483.º e segts); a responsabilidade pelo risco (art.ºs 490.º e segts.); e, a responsabilidade por factos lícitos (cfr. p. ex. art.º 339.º n.º 2).
É pacificamente aceite que para haver responsabilidade por factos ilícitos, com a consequente obrigação de indemnizar, é necessário que se verifiquem os pressupostos seguintes:
i)Um facto voluntário do agente; ii) ilicitude desse facto; iii) nexo de imputação do facto ao lesante, a título de dolo ou mera culpa; iv) a verificação de um dano; v) nexo de causalidade entre o facto e o dano.
O facto voluntário do agente, em regra consiste em acção, mas pode consistir em omissão (art.º 486.º).
A ilicitude do facto pressupõe uma acção ou omissão controlável pela vontade, violadora de direitos subjectivos relativos ou absolutos de outrem.
A culpa lato sensu é susceptível de abranger o dolo, e a culpa stricto sensu ou mera negligência traduz-se na omissão pelo agente da diligência ou do cuidado que lhe era exigível. Esta pode ser consciente ou inconsciente, consoante o agente preveja a realização do facto ilícito como possível mas, por leviandade, precipitação, desleixo ou incúria, creia na sua inverificação; ou, embora o pudesse e devesse prever, por imprevidência, descuido, imperícia ou inaptidão, não o previu.
Na falta de outro critério legal, a culpa é apreciada pela diligência de um bom pai de família, em face das circunstâncias de cada caso (artigo 487º, nº 2, do Código Civil). O critério legal de apreciação da culpa é, pois, abstracto, ou seja, tendo em conta as concretas circunstâncias da dinâmica do evento em causa, por referência a um agente normal.
Verifica-se a existência de um dano quando haja um prejuízo resultante da lesão de um bem, direito ou interesse juridicamente protegido. A existência de um dano é pressuposto essencial da obrigação de indemnização. Não existindo dano não há fundamento para a obrigação de indemnizar e, logo, não tem cabimento falar-se de responsabilidade civil, qualquer que tenha sido a natureza e efeitos da conduta do agente.
No domínio da responsabilidade civil por facto ilícito, o ónus de alegação e prova dos factos constitutivos do direito de indemnização reclamado recai sobre quem se arroga nesse direito, de acordo com as regras gerais de repartição do ónus da prova, [n.º 1 do art.º 342.º do CC].
A única excepção a esta regra respeita à prova da actuação culposa, mas apenas no caso de haver presunção legal. É o que decorre do disposto no n.º1 do art.º 487.º do CC, onde se dispõe “É ao lesado que incumbe provar a culpa do autor da lesão, salvo presunção legal de culpa”.
II.2.2.3 Vejamos o que se extrai dos factos assentes em abono da posição da A..
A A. é uma sociedade comercial que tem por objecto a exploração de um estabelecimento de restaurante e pastelaria, com fabrico próprio, o qual está instalado na ….da Av. da ... (lado poente) com a Av. ..., em Lisboa (factos 1 e 5).
Foi a R. C, na qualidade de empreiteira que executou a obra de prolongamento da Linha Vermelha, nomeadamente quanto à execução de toscos (factos 7 e 8), tendo os trabalhos tido início em Setembro de 2004 e estando ainda em execução à data da propositura da acção (facto 10).
A obra envolveu a grandes escavações em toda a extensão da Av. ..., designadamente no cruzamento desta avenida com a Av. Da ..., o que implicou alterações ao trânsito de veículos, públicos e privados e, também, ao trânsito pedonal, naquela primeira, bem como a alterações das paragens de transportes colectivos e ao encerramento do átrio Norte da Estação de Metro do Saldanha (factos 10 a 15).
O trânsito automóvel foi cortado em ambos os sentidos na Av. ..., desde o cruzamento da Av.º ..., passando pelo cruzamento com a Av. Da ..., até ao cruzamento com a Av. 5 de Outubro (facto 15). A partir da execução da 2.ª fase da obra, na estação do Saldanha, em finais de 2006, o estaleiro em obra foi instalado na Av.ª ..., ocupando parte da mesma, na qual se situa a Pastelaria ..., nessa parte tendo o trânsito automóvel sido interdito (facto 39).
Quanto ao trânsito pedonal, a colocação de vedações e tapumes aumentou os percursos a pé para alcançar o estabelecimento da Pastelaria da A (factos 17 e 21).
A R. vinculou-se a executar os trabalhos de construção compreendidos no contrato de empreitada segundo o projecto de execução que lhe foi submetido pelo B (facto 23), incumbindo a este obter todas as autorizações e licenças (facto 24).
A afectação das áreas em superfície , definidas no projecto, foi objecto de prévia autorização pela Câmara Municipal de Lisboa, bem como o redimensionamento dos circuitos de tráfego, tendo a execução sido acompanhada por técnicos desta entidade (factos 25, 27 e 28).
A localização e configuração dos estaleiros e correspondentes alterações de trânsito pedonal e viário faz parte integrante dos projectos submetidos à R. para execução pelo B (facto 26).
Foi mantida a dimensão e geometria dos passeios existentes anteriormente ao início da obra, sinalizadas e iluminadas as passagens de peões criadas (factos 29 e 30). Esses passeios e arruamentos são públicos e a utilização para execução da obra foi autorizada pela Câmara Municipal de Lisboa (factos 32 e 33).
O passeio em frente à Pastelaria nunca esteve totalmente ocupado (facto 36).
Durante o horário de funcionamento do estaleiro um agente da PSP assegurava em permanência o ordenamento do trânsito (facto 35).
Os RR. instalaram e fizeram circular e manobrar no estaleiro, a poucos metros do estabelecimento da A. camiões betoneira e camiões destinados ao transporte de materiais e retirada de terras e entulhos, tractores pesados, gruas, martelos pneumáticos, guindastes, retroescavadoras e outros equipamentos, o que obrigou, entre 17.01.2007 e 26.02.2007, ao encerramento da porta da Pastelaria ..., no n.º00 da Av. da ..., tendo a R. organizado o acesso ao estabelecimento por uma porta mais estreita, sita no n.º 000 da Av. ..., e procedeu à protecção de vidros contra possível rebentamento provocado por vibrações ou estilhaços (factos 42 a 44).
As obras tornaram as imediações do estabelecimento da A. num local onde, por vezes, o ruído era desagradável e as vibrações produzidas pela circulação e manobras de veículos pesados e guindastes, e o matraquear dos martelos pneumáticos, fizeram vibrar o estabelecimento da A., o que criou nas pessoas uma sensação de incomodidade (factos 45 e 46).
O estabelecimento da A. é um local que as pessoas procuram para, num ambiente calmo e aprazível, consumir os serviços oferecidos e para proceder a encomendas ou adquirir para consumo no exterior, produtos de cafetaria e de pastelaria, sendo a sua clientela constituída por pessoas de classe média, de meia-idade ou idosos (factos 47 e 48).
O referido nos factos 17 a 21 , 39, 42 e 46 a 48, provocou um afastamento da clientela do estabelecimento da A. (facto 49).
A trepidação, o ruído e emissão de poeira prejudica o fabrico e comercialização de produtos de pastelaria, que tem especial preocupação com a higiene das condições de fabrico, tendo a A. tido que proteger o estabelecimento das poeiras e lixos provocados pelas obras de metro, com especial atenção para os expositores de produtos alimentares e transporte desses produtos para o exterior da Pastelaria de A (factos 51 a 53).
O valor das receitas da R., de 2002 a 2006, diminuiu 12,91% (€ 98 869,00), sendo que de 2002 a 2004 foi de 1,3% (€ 10 020,00), e de 2004 a 2006 de de 11,7% (€ 88 649,00). De 2004 a 2007, o decréscimo cifra-se em € 17,8% (€ 134 325,00) (factos 56, 58 e 59).
Nas declarações fiscais, em sede de IRC, a A. apresentou prejuízos fiscais dedutíveis: em 1998 o valor de € 66739,00; no ano de 1999, o valor de € 37142,00; no ano de 2000, no valor de €45072,00; no ano de 2002, no valor de € 51167,00; no ano de 2003, no valor de € 70.305,00; e no ano de 2006, o valor de €33969,04. No ano de 2004, teve o lucro tributável de €562,59.
II.2.2.4 Como se deixou dito, a existência de um dano é pressuposto essencial para haver obrigação de indemnizar.
Do elenco daqueles factos é possível concluir que após o início da execução das obras e ao longo das mesas, até 2007, houve um acentuar progressivo do decréscimo de receitas, a que não foi alheio todo o circunstancialismo que envolveu aquela, nomeadamente com implicações nas alterações de trânsito em automóvel e a pé, bem como nos acessos aos transportes públicos, instalação do estaleiro junto ao estabelecimento, um período com o acesso principal sem possibilidade de utilização e a produção de ruídos, vibrações e poeiras, que conjuntamente concorreram para a diminuição de clientela.
Não se sabe exactamente em que medida cada um daqueles factores concorreu para aquele efeito, nem com rigor o valor do prejuízo causado, tanto mais que a A. no período compreendido entre 1997 a 2003, apresentou sucessivos prejuízos, apenas tendo tido lucro tributável em 2004, no valor €562,59.
Porém, é certo que de 2004 a 2007, há o aludido decréscimo de 17,8% nas receitas, correspondente a € 134,325, sendo de considerar que para tal contribuiu a diminuição de clientela provocada pela conjugação daqueles factores, na medida em que menos clientela significa, em termos de normalidade, menos negócio.
Havendo dano e estabelecido o nexo causal entre o mesmo e aqueles factos, importa prosseguir na indagação quanto aos demais pressupostos.
II.2.2.5 A recorrente insurge-se quanto à sentença por ter julgado a sua eventual responsabilidade como se fosse uma entidade pública actuando na prossecução de um fim público, fundando a sua condenação no disposto no art.º 22.º da CRP e no art.º 9.º do DL n.º 48 051, de 21.11.1967, preceitos que regulam a responsabilidade do Estado e demais entidades públicas por actos de gestão pública, contrapondo que, tratando-se de uma entidade privada, a sua responsabilidade deveria ser aferida apenas nos termos da responsabilidade civil por facto ilícito.
E, na verdade, é o que resulta da sentença, onde consta, para além do mais, a invocação de que “o princípio da igualdade dos cidadãos na repartição dos encargos públicos constitui o fundamento da responsabilidade por actos licítos, acolhido no art.º 9.º do DL 48 051 de 21.11.1967 responsabilidade pública”, para se afirmar que a R. actuou na realização de um interesse público, não ficando por isso eximida da obrigação de indemnizar, apesar de não se verificar a existência de qualquer ilicitude resultante da violação de normas a que aquela devesse obediência, tendo as obras sido devidamente licenciadas e cumpridas todas as legis artes. E, com base nessa premissa, concluiu-se que por isso, a ilicitude da R. não está excluída, dado haver um prejuízo anormal e especial, por se revestir de certo peso ou gravidade, em termos de ultrapassar os limites do que o cidadão tem de suportar enquanto membro da comunidade, extravasando em importância e em peso de sacrifício, os encargos sociais normais, exigíveis em contrapartida da existência de funcionamento e funcionamento dos serviços públicos.
Por seu turno, a recorrida, pugnando pela manutenção da sentença, defende que a R. pode qualificar-se como “agente de estado, no sentido de que ao serviço de uma pessoa colectiva de direito público, executou a vontade dessa pessoa colectiva” e, que por isso “não está isenta do respeito devido às normas constitucionais e aos deveres que estas lhe impõem enquanto pessoa e enquanto agente do Estado” e que foi com base no art.º 483.º do CC que o tribunal a quo concluiu pela condenação.
Vejamos, então, se a posição seguida na sentença e, nesta fase recursiva subscrita pela recorrida, tem fundamento.
Conforme assente (facto 6) o B é uma empresa pública que explora o … de Lisboa. Mais precisamente o B foi criado pelo DL n.º 439/78, de 30 de Dezembro, que aprovou os respectivos Estatutos, estatuindo o artigo 1º, n.º 2, que “(..) é uma pessoa colectiva de direito público, com personalidade jurídica, autonomia administrativa, e financeira e patrimonial, rege-se pelos seus estatutos (..) e pela lei aplicável às empresas públicas”.
Por seu turno, a R. C é um agrupamento complementar de empresas (ACE), nos termos previstos na Lei n.º 4/73, de 4 de Junho, regulamentada pelo Decreto-Lei n.º 430/73, de 25 de Agosto, diplomas entretanto alterados, entre outros, pelo Decreto-Lei n.º36/2000, de 14 de Março, dispondo de personalidade jurídica de direito privado.
Aquela primeira entidade é o dono da obra de prolongamento da Linha Vermelha (facto 7) e esta segundo o empreiteiro a quem foi adjudicada a obra de prolongamento, mediante contrato de empreitada (facto 8).
À data o regime jurídico vigente relativo às empreitadas públicas regia-se pelo Decreto-Lei nº 59/99, de 2 de Março, entretanto revogado pela Lei n.º 67/2007, de 31 de Dezembro.
Para os efeitos de aplicação daquele diploma, considera-se obra pública, qualquer obra de construção, reconstrução, ampliação, alteração, reparação, conservação, limpeza, restauro, adaptação, beneficiação e demolição de bens imóveis destinada a preencher, por si mesma, uma função económica ou técnica, executada por conta de um dono de obra pública (art.º 1.º n.º1).
Dispondo depois o n.º2, do mesmo artigo, que “As obras públicas podem ser executadas por empreitada, por concessão ou por administração directa”.
E, referindo o art.º2.º, sob a epígrafe, “Âmbito de aplicação objectiva”, que o mesmo estabelece o regime do contrato administrativo de empreitada de obras públicas (n.º1).
Sobre o “Âmbito de aplicação subjectiva” dispõe o art.º3.º, resultando do n.º1, que para efeitos do disposto no diploma são considerados donos de obras públicas, para além do Estado e outras entidades ai mencionadas “As empresas públicas (..)” [al. g)].
No que respeita às partes do contrato de empreitada de obras públicas, estatui o art.º 7.º, que são o dono da obra e o empreiteiro (n.º1), sendo aquele primeiro “a pessoa colectiva que manda executá-la” (n.º2).
Finalmente, no que aqui interessa, da conjugação do disposto no art.º 24.º com outros, no âmbito da responsabilidade contratual, recai sobre o empreiteiro um conjunto de deveres, entre eles, o de fornecer à sua custa os aparelhos, instrumentos, ferramentas e utensílios indispensáveis à execução dos trabalhos [art.º 23.º], bem assim de fornecer o estaleiro e proceder à sua montagem e desmontagem [n.º 3 do art.º 24.º]; de cumprir os regulamentos de segurança e polícia das vias públicas. Tomar as medidas preventivas necessárias em vista da segurança das pessoas em obra e do público em geral e de evitar danos nos prédios vizinhos [art.º 24.º al.b)]; de restabelecer, por meios de obras provisórias, todas as servidões ou serventias que haja necessidade de alterar ou destruir para a execução dos trabalhos [art.º 24.º al. c)]; de manter a polícia e a boa ordem no local dos trabalhos [art.º 142.º].
De outro passo, reportando também ao período temporal em questão, o regime da responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais pessoas colectivas públicas no domínio dos actos de gestão pública, regia-se então pelo disposto Decreto-Lei n.º 48051, de 21 de Novembro de 1967, entretanto revogado pela Lei nº 67/2007, de 31 de Dezembro.
Quanto à responsabilidade por actos ilícitos culposos, dispunha o n.º1 do artigo 2.º, que “O Estado e demais pessoas colectivas públicas respondem civilmente perante terceiros pelas ofensas dos direitos destes ou das disposições legais destinadas a proteger os seus interesses, resultantes de actos ilícitos culposamente praticados pelos respectivos órgãos ou agentes administrativos no exercício das suas funções e por causa desse exercício”, prevenindo de seguida o n.º2, que “Quando satisfizerem qualquer indemnização nos termos do número anterior, o Estado e demais pessoas colectivas públicas gozam do direito de regresso contra os titulares do órgão ou os agentes culpados, se estes houverem procedido com diligência e zelo manifestamente inferiores àqueles a que se achavam obrigados em razão do cargo”.
Mais adiante, o artigo 6.º vinha dizer que para os efeitos do diploma, “consideram-se ilícitos os actos jurídicos que violem as normas legais e regulamentares ou os princípios gerais aplicáveis e os actos materiais que infrinjam estas normas e princípios ou ainda as regras de ordem técnica e de prudência comum que devam ser tidas em consideração”.
E, quanto ao dever de indemnizar, ainda que mediante actos administrativos legais ou actos materiais lícitos, estatuía o artigo 9.º o seguinte:
[n.º1] “O Estado e demais pessoas colectivas públicas indemnizarão os particulares a quem, no interesse geral, mediante actos administrativos legais ou actos materiais lícitos, tenham imposto encargos ou causado prejuízos especiais e anormais.
n.º2] Quando o Estado ou as demais pessoas colectivas públicas tenham, em estado de necessidade e por motivo de imperioso interesse público, de sacrificar especialmente, no todo ou em parte, coisa ou direito de terceiro, deverão indemnizá-lo”.
Sendo esta a norma invocada na sentença, deixa-se já referido, a propósito do seu sentido e alcance, ser entendimento pacífico da jurisprudência que por prejuízo especial entende-se aquele que não é imposto à generalidade das pessoas, mas a pessoa certa e determinada em função de uma específica posição relativa. E, prejuízo anormal, é aquele que não seja inerente aos riscos normais da vida em sociedade, suportados por todos os cidadãos, ultrapassando os limites impostos pelo dever de suportar a actividade lícita da administração [ cfr. Ac. TCAS, de 26 de Maio de 2005, Proc.º 3840/2008, disponível em http://195.23.10.149/datajuris/dataj].
Importa, ainda ter presente que nos termos do n.º1, do art. 266º da CRP, “A Administração Pública visa a prossecução do interesse público, no respeito pelos direitos e interesses legitimamente protegidos dos cidadãos”, e que o art. 22º da mesma lei fundamental declara ainda o Estado e demais entidades públicas civilmente responsáveis, em forma solidária com os seus órgãos ou agentes, “por acções ou omissões praticadas no exercício das suas funções ou por causa desse exercício, de que resulte violação dos direitos, liberdades e garantias ou prejuízo para outrem”.
Tendo em conta este elenco, conclui-se que estamos perante uma obra pública, da qual é dono o B , pessoa colectiva de direito público, que a mandou executar por empreitada, para o efeito tendo sido celebrado o respectivo contrato, no qual assume a posição de empreiteiro o R. agrupamento complementar de empresas (ACE), que através do mesmo vinculou-se “a executar o projecto de execução que lhe foi submetido pelo B ” (facto 23).
No âmbito das relações contratuais entre o dono da obra e o empreiteiro, decorrentes daquele contrato, aplicava-se o regime jurídico vigente relativo às empreitadas públicas, constantes do referido Decreto-Lei nº 59/99, de 2 de Março, entretanto revogado pela Lei n.º 67/2007, de 31 de Dezembro.
No que respeita à responsabilidade civil extracontratual, que é o que aqui nos interessa, há que distinguir entre o dono da obra e o empreiteiro. Ao primeiro, enquanto pessoa colectiva de direito público, agindo “no interesse geral, mediante actos administrativos legais”, tem aplicação o disposto Decreto-Lei n.º 48051, de 21 de Novembro de 1967, entretanto revogado pela Lei nº 67/2007, de 31 de Dezembro. Mas já quanto ao segundo, apenas têm aplicação as regras gerais da responsabilidade civil extracontratual, previstas nos artigos 483.º e seguintes do CC.
Na verdade, a intervenção da R. é apenas a de executante da obra, através do contrato de empreitada, conforme definida e projectada pelo dono da obra, a quem cabia obter, como o fez, todas as autorizações e licenciamentos necessários (facto 24), nomeadamente quanto à ocupação do espaço público, com as obras e estaleiro, incluindo as alterações ao trânsito de veículos, pedonal ou alterações relativas ao acesso a transportes públicos na área onde decorria a obra (factos 25 a 28, e 33), bem assim quanto às questões de natureza ambiental, neste particular tendo sido emitido uma declaração de impacte ambiental, pelo Secretário de Estado do Ambiente (factos 62 a 64).
Nem a R. é uma pessoa colectiva pública, nem a qualidade de empreiteiro, executante da obra pública, significa qualquer intervenção como agente de administração, substituindo-se ao Estado ou ao Metropolitano de Lisboa, nomeadamente, dispondo de quaisquer poderes para praticar quaisquer actos de gestão pública.
Quanto ao que são actos de gestão pública, o Decreto-Lei n.º 48 051, de 21 de Novembro de 1967, não os define, mas a jurisprudência do Tribunal dos Conflitos, tem pacificamente decidido (no âmbito da distinção entre actos de gestão pública e actos de gestão privada) que os actos de gestão pública os praticados pelos titulares dos órgãos ou por agentes de uma pessoa colectiva pública, que se compreendem no exercício de um poder público, na realização de uma função compreendida nas atribuições de um ente público, independentemente de envolverem ou não o exercício de meios de coerção e independentemente ainda das regras, técnicas ou de outra natureza, que na prática dos actos devem ser observadas [Acórdão do Tribunal de Conflitos, de 04-03-2004, proc.º 010/03, disponível em http://www.dgsi.pt].
Precisamente por isso, relativamente à R., não tem aplicação o regime de responsabilidade extracontratual civil extracontratual do Estado e demais pessoas colectivas públicas no domínio dos actos de gestão pública, constante do Decreto-Lei n.º 48051, de 21 de Novembro de 1967.
Significa isto, necessariamente e contra o que foi entendido na sentença, que relativamente à R. o dever de indemnizar não pode ser aferido face ao disposto no art.º 9.º daquele diploma.
Por conseguinte, fazendo-se uso da lição do Professor Marcelo Caetano (Manual de Direito Administrativo, Tomo II, pp. 983 e 984, 9.ª ed., Coimbra Editora), invocado e citado pela recorrida, o empreiteiro de obras públicas “é responsável por todos os erros de execução que não resultem de obediência a ordens ou instruções escritas transmitidas pelo fiscal da obra ou que tenham obtido expressa concordância deste (..) A responsabilidade implica por um lado, a obrigação de efectuar as obras, alterações e reparações necessárias à adequada supressão das deficiências verificadas e, por outro lado, a obrigação de indemnizar a outra parte ou terceiros pelos prejuízos causados”.
O que vale por dizer, contrariamente à interpretação que a recorrida pretende retirar, que qualquer dever de indemnização por prejuízos causados pelo empreiteiro na execução da obra, depende de os mesmos terem resultado de “erros de execução”, ou seja, de uma actuação desconforme ao projecto que se obrigou a observar, ou então desconformes às regras da arte para aquele tipo de obra, em qualquer dos casos desde que tal resulte de uma conduta ilícita e culposa.
Ora, a verdade é que tal não se verifica.
Decorre inequivocamente dos factos assentes, de resto como se concluiu na sentença recorrida, que a R., no que respeita, à ocupação de espaço público em geral, cumpriu rigorosamente o projecto que lhe foi submetido pelo Metropolitano, executando-o em conformidade com as autorizações e licenciamentos concedidos pelas autoridades competentes, os quais foram previamente obtidos por aquele dono da obra.
O mesmo é de dizer quanto ao impacto ambiental provocado pela execução da obra, nomeadamente aos ruídos, vibrações e poeiras. Ficou provado estar evidenciado que a R. implementou as medidas estabelecidas no Plano de Gestão Ambiental elaborado pelo R. B, e as campanhas de monitorização realizadas periodicamente por entidades terceiras acreditadas revelaram, constando tal de 11 relatórios, que os valores obtidos se encontravam abaixo dos limites estabelecidos na legislação em vigor, excepto numa campanha realizada em Março de 2005, ai resultante da laboração de uma grua móvel muito próximo do ponto de medição (factos 63 a 68).
Como inicialmente se deixou dito, para além da responsabilidade civil contratual, o empreiteiro é também responsável no âmbito da responsabilidade civil extracontratual, mas desde que no exercício dessa sua actividade e na execução dos trabalhos para realização da obra, desrespeite ilicitamente e com culpa direitos de terceiro, provocando-lhe danos (artigo 483º, nº. 1, do Código Civil).
Mas como também se deixou dito, para que haja essa responsabilidade é necessário que se mostrem verificados todos os requisitos da responsabilidade civil que então se enunciaram, cabendo à recorrida o ónus de alegação e prova (art.º 342.º 1, do CC).
Ora, do que se vem expondo, conclui-se não existirem factos provados que permitam considerar verificada a existência de qualquer ilicitude ou actuação culposa por parte da R. ao executar a obra.
Assim, em face de tudo o exposto, resta reconhecer razão à recorrente, devendo o recurso proceder e, consequentemente, ser aquela absolvida do pedido deduzido pela recorrida.
***
Considerando o disposto no art.º 446.º n.ºs 1 e 2, do CPC, a responsabilidade pelas custas recai sobre a recorrida, que atento o decaimento a elas deu causa.

III. DECISÃO
Em face do exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar procedente o recurso de apelação e, consequentemente:
- Declarando a nulidade da sentença, nos termos previstos nos artigos 661.º n.º1 e 668.º n.º1 al.e), do CPC.
- Julgando a acção improcedente e absolvendo a Ré C dos pedidos deduzidos pela A A .
Custas, em ambas as instâncias, pela recorrida.

Lisboa, 23 de Fevereiro de 2012

Jerónimo Freitas (Relator)
Fernanda Isabel Pereira (Adjunta)
Olindo Geraldes (adjunto)