Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
5991/08.0TBOER.L1-7
Relator: CRISTINA COELHO
Descritores: CONTRATO DE ARRENDAMENTO
ABUSO DE DIREITO
NULIDADE DO CONTRATO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 01/31/2012
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I - O instituto do abuso de direito paralisa a declaração de nulidade, o que conduz à manutenção de eficácia de um contrato nulo e à produção dos seus efeitos, quando não foi esse o resultado pretendido pelo legislador.
II - Contudo, deve ser admitida a invocação do abuso de direito desde que, no caso concreto, as circunstâncias apontem para uma manifesta (clamorosa) ofensa da boa fé e do sentimento geral perfilhado pela comunidade.
III - Mas mesmo admitindo a aplicação, neste domínio, do abuso de direito, a verdade é que tal aplicação terá sempre natureza excepcional, não sendo, pois, qualquer actuação que justifica a paralisação da declaração de nulidade do contrato (desde logo porque as regras imperativas de forma visam fins de certeza e segurança do comércio em geral), mas uma actuação que se revele intoleravelmente ofensiva do nosso sentido ético-jurídico.
(Sumário da Relatora)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

RELATÓRIO.
R intentou contra T e JM, acção declarativa de condenação, sob a forma de processo ordinário, pedindo que os RR. sejam condenados a: a) reconhecerem a A. como dona e legítima proprietária da fracção descrita no artigo 1º da P.I.; b) restituírem-lhe a referida fracção de imediato, livre e desocupada de pessoas e bens; c) pagarem-lhe, a título de sanção pecuniária compulsória, € 100,00 por cada dia de atraso até à devolução da mesma à A., após citação dos RR.; d) pagarem-lhe uma quantia nunca inferior a € 30.000,00, a título de danos patrimoniais e não patrimoniais, cuja fixação deverá ser realizada a final com a entrega do imóvel e contabilização de todos os danos e lucros cessantes, a que deverão acrescer juros de mora, desde a citação e até efectivo pagamento.
A fundamentar o peticionado, alegou, em síntese, que:
A A. é dona da fracção autónoma designada por letra “C”, correspondente ao rés-do-chão esquerdo do prédio sito na , nº 20, C.
Nessa fracção viveram, até Maio de 2007, a A., a sua mãe e restante família, após o que se mudaram para o …, não pensando em arrendar, de imediato, a mencionada fracção.
Porém, por insistência dos RR. e respectivos pais, em Agosto de 2007, acabaram por acordar com aqueles em celebrar um contrato de arrendamento a partir de Setembro de 2007, altura em que o contrato seria assinado, pela renda mensal de € 500,00, e como os RR. se propuseram tratar das limpezas e efectuar possíveis pinturas, combinaram que até Abril de 2008 só pagariam a quantia de € 275,00, tendo-lhes entregue logo as chaves e feito a leitura dos contadores de água, luz e gás, para futura passagem dos mesmos para o nome dos RR.
No dia 17.09.2007 a A. telefonou à mãe do R. avisando-a que tinha os papéis do contrato em ordem para serem assinados, mas esta pediu mais uns dias, até Outubro, pois ainda não tinham decidido em nome de qual dos RR., ou se dos dois, ficaria o contrato, ao que a A. acedeu.
Os RR. nada mais disseram à A., esquivando-se depois ao contacto sempre que a A. tentava contactá-los.
Devido à situação de doença grave da mãe da A., esta só conseguiu interpelar a R. à porta da casa ocupada, em Abril de 2008, alertando para a necessidade urgente de celebrar o contrato de arrendamento e de começarem a efectuar o pagamento da renda (de € 500) acordada, ao que aquela se escusou, tal como aconteceu sempre que a A. tentou regularizar a situação, nunca tendo abandonado a fracção.
Os RR. efectuaram na casa alterações profundas e totalmente chocantes para a A. (no que ao aspecto estético respeita), para as quais nunca deu autorização e que não eram necessárias, sendo necessária uma quantia de cerca de € 4.000,00 para restituir a casa a um estado mais próximo do original, embora tal montante apenas possa ser  apurado depois da A. ter, de novo, acesso ao interior da fracção.
A 3.07.2008, a A. solicitou junto do SMAS o corte da água, o que estes confirmaram que fariam, por carta de 14 de Julho, tendo os RR., por 2 vezes, violado o selo do contador, provocando, uma das vezes, uma inundação para a escada, invocando junto do SMAS serem legais arrendatários.
Desde Setembro de 2007 que a A. se vê impedida de arrendar a fracção e cobrar renda, no mínimo, de € 500,00 mensais, tendo já deixado de auferir a quantia de € 7.350,00, devendo ser declarado perdido a favor da A. parte desse valor, no montante de € 3.300,00 que entretanto foi sendo pago/transferido pelos RR.
A tudo isto acresce a situação traumática e enervante vivida pela A., que lhe causou depressão e muita angústia psicológica, e que os RR. deverão indemnizar.
Deverão, ainda, indemnizar a A. pelo desgaste do esquentador e fogão que deixou na casa, em valor não inferior a € 1.000,00.

Regularmente citados, os RR. contestaram, alegando litigar a A. com manifesta má-fé, devendo indemnizar os RR. no montante correspondente às despesas com a acção, que estimam em € 2.500,00, impugnaram os factos articulados na P.I., afirmando serem detentores de contrato de arrendamento válido que celebraram com a A. em Setembro de 2007, propugnando pela improcedência da acção, e deduziram reconvenção, pedindo que, na hipótese da acção ser julgada procedente, se declare a A. devedora aos RR. da quantia de € 20.000,00, pelas obras que os reconvintes realizaram e custearam no local arrendado, acrescida de juros de mora.
A fundamentar o peticionado, alegaram, em síntese, que:
Os RR., no âmbito do contrato de arrendamento, arranjaram e renovaram parte das canalizações de água e instalação eléctrica, substituíram as alcatifas que se encontravam extremamente danificadas e colocaram em toda a casa um piso novo em parquet flutuante, arranjaram paredes e tectos e pintaram-nos e repararam os móveis da cozinha, obras essas todas autorizadas e acompanhadas pela A., nas quais despenderam valor não inferior a € 20.000,00.

A A. replicou, impugnando a alegada litigância de má-fé, a matéria “excepcional” contida na impugnação e toda a matéria reconvencional, propugnando pela sua improcedência e pedindo a condenação dos RR. como litigantes de má-fé, em multa e indemnização a fixar pelo tribunal.

Foi admitida a reconvenção, proferido despacho saneador e seleccionadas matéria de facto assente e B.I., as quais não sofreram reclamações.
Procedeu-se a audiência de discussão e julgamento, tendo sido proferido despacho sobre a matéria de facto, que não foi objecto de reclamação.
Foi proferida sentença que julgou parcialmente procedentes a acção e a reconvenção, por parcialmente provadas e, em consequência:
a) Declarou que a A. é dona da fracção autónoma designada pela letra “C” composta por cinco divisões e duas casas de banho, correspondente ao rés-do-chão esquerdo, do prédio urbano sito na …, nº , …, …, inscrito na matriz predial urbana sob o artigo , com origem no artigo … da freguesia de , …, e descrito na Conservatória do Registo Predial de … sob o nº .
b) Condenou os RR. a restituírem à A. a fracção acima identificada;
c) Condenou os RR. no pagamento da sanção pecuniária compulsória diária de € 30 por cada dia de atraso na restituição da fracção, a partir do trânsito em julgado da presente sentença;
d) Absolveu os RR. dos restantes pedidos deduzidos pela A.;
e) Condenou a A. a pagar aos RR., em liquidação de sentença, o valor correspondente às seguintes obras efectuadas no imóvel:
- Arranjo e renovação de parte das canalizações de água, bem como arranjo e renovação da instalação eléctrica;
- Substituição da alcatifa e colocação em substituição de um piso novo em parquet flutuante;
- Arranjo de paredes e tectos e pintura integral dos mesmos;
- Reparação de móveis de cozinha, com o limite do aumento do valor do imóvel devido às obras à data da notificação do pedido reconvencional, nunca podendo o montante a restituir ser superior a € 20.000 (vinte mil euros).

Não se conformando com a decisão, dela apelaram os RR., formulando, no final das respectivas alegações, as seguintes conclusões:
1 - Vem o presente recurso interposto da douta sentença que condenou os RR. no pedido de desocuparem a fracção do prédio urbano de que a A. é proprietária, restituindo-a livre e devoluta de pessoas e bens à sua proprietária atenta a existência de um contrato de arrendamento que padece do vício de forma.
2 – A douta sentença reconhece que existe contrato de arrendamento urbano mas que o mesmo é nulo por inobservância de forma escrita.
3 – No caso concreto face à matéria de facto dada como provada, designadamente a autorização da A. à realização de obras na fracção pelos RR., bem como o pagamento de quantia mensal a título de renda que a A. sempre aceitou, é de concluir que o pedido formulado pela A. de desocupação e restituição da fracção arrendada é conduta incompatível com a boa fé por tudo que foi a anterior conduta da A. e na qual os RR. confiaram.
4 – A douta sentença recorrida sempre com o devido respeito ao determinar a desocupação e entrega do arrendado por verificação do vício de forma não atendendo à conduta da A. que é incompatível com o pedido que formulou não fez correcta interpretação dos factos ao direito, designadamente ao art. 334º do Código Civil.
Terminam pedindo que se substitua a douta sentença recorrida por outra que determine que o pedido formulado pela A. e que foi atendido conflitua com aquilo que foi a sua conduta e, por isso, insere-se claramente no instituto do abuso de direito, na modalidade de venire contra factum proprium, com as devidas e legais consequências.
A A. contra-alegou, propugnando pela improcedência do recurso e manutenção da sentença recorrida.

QUESTÕES A DECIDIR.
Sendo o objecto do recurso balizado pelas conclusões dos recorrentes (arts. 684º, nº 3 e 685º-A, nº 1 do CPC), a única questão a decidir é se a A. litiga em manifesto abuso de direito, devendo improceder o pedido de devolução da fracção arrendada.

Cumpre decidir, corridos que se mostram os vistos.

FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO.
O Tribunal recorrido deu como provados os seguintes factos:
A. Encontra-se inscrita a favor da A. a fracção autónoma designada pela letra “C” composta por cinco divisões e duas casas de banho, correspondente ao rés-do-chão esquerdo do prédio urbano sito na , nº , …, …, inscrito na matriz predial urbana sob o artigo , com origem no artigo  da freguesia de …, …, e descrito na Conservatória do Registo Predial de … sob o nº  (al. A) dos factos assentes).
B. Em Agosto de 2007 e por intermédio de uma vizinha da mãe da A., MF , aquela (A.) foi procurada por um casal, os aqui RR., para possível arrendamento da fracção identificada em A) (al. B) dos factos assentes).
C. Aquando da realização do primeiro encontro entre a A. e os RR., com excepção do esquentador e fogão, o imóvel já se encontrava devoluto (resposta ao quesito 35º).
D. Estabeleceu a A., num primeiro momento, como valor da renda a pagar, a quantia de € 300,00 (resposta ao quesito 36º).
E. A A. não estava disponível para a realização de obras (resposta ao quesito 37º).
F. Podendo os RR. efectuar as obras que entendessem mas sempre suportando os respectivos custos (resposta ao quesito 38º) [1].
G. Ao que os RR. retorquiram que face aos encargos que iriam suportar com as obras que lhes fosse atendida uma especial atenção traduzida num eventual desconto no valor da renda (resposta ao quesito 39º).
H. Aceitando a A. proceder ao arrendamento pelo valor de € 275,00 (resposta ao quesito 40º).
I. Os RR. tratariam da limpeza da casa e a A entregou-lhes as chaves (resposta ao quesito 1º).
J. Foram as chaves efectivamente entregues aos RR. em 21.8.2007 (resposta ao quesito 7º).
K. Vindo os RR. a ocupar e utilizar a fracção desde pelo menos Setembro de 2007, pagando pela mesma a quantia mensal de € 275,00 (al. C) dos factos assentes).
L. Até Abril de 2008 os RR. só pagariam € 275,00 mensais e suportavam as despesas de limpeza e pintura da casa (resposta ao quesito 4º).
M. Mais tendo acordado que o contrato seria assinado em Setembro de 2007 (resposta ao quesito 5º).
N. Foi deixado no local, pela A., o esquentador e fogão (resposta ao quesito 8º).
O. Os RR. procederam ao pagamento mensal de € 275,00 para o NIB pertencente à conta que era, pelo menos, titular a mãe da A. (resposta ao quesito 53º).
P. No início das conversações entre as partes a A. autorizou a realização de obras e posteriormente tomou conhecimento das mesmas (resposta ao quesito 58º).
Q. Todos os contratos de fornecimento de água, luz e gás, para a fracção identificada em A), encontravam-se em nome da mãe da A. - MA (resposta ao quesito 61º).
R. Telefonou a A., em 17 de Setembro de 2007, à mãe da R., F.., avisando-a de que já tinha os modelos de contrato de arrendamento e que estava em condições de celebrar o contrato de arrendamento (resposta ao quesito 9º).
S. Tendo aquela pedido à A. mais uns dias porque ainda não haviam decidido em nome de quem ficaria o contrato, se em nome do R., da R. ou dos dois (resposta ao quesito 10º).
T. A A. esperou pela reunião para a formalização do contrato (resposta ao quesito 11º).
U. Os RR. ficaram de contactar a A. pelo telefone (resposta ao quesito 17º).
V. Foi agendada uma reunião para o dia 8 de Junho de 2008, a qual se realizou na casa identificada em A) (resposta ao quesito 18º).
W. A A. verificou que os RR. mexeram no chão original que tinha tacos de madeira (resposta ao quesito 19º).
X. Verificou ainda que a cozinha havia sido pintada de vermelho vivo, incluindo azulejos originais, armários e chão de linóleo (resposta ao quesito 21º).
Y. Os azulejos da casa de banho foram pintados de verde (resposta ao quesito 22º).
Z. E havia sido colocado papel de parede num dos quartos (resposta ao quesito 23º).
AA. E a alcatifa arrancada da sala de jantar e escritório (resposta ao quesito 24º).
AB. Para a formalização do acordo a A. pretendia uma renda de € 500,00 mensais (resposta ao quesito 3º).
AC. O R. transmitiu à A. que não pagava uma renda de € 500,00 e, por isso, não assinava o contrato (resposta ao quesito 26º).
AD. A A. transmitiu aos RR. que não aceitando a renda proposta na reunião em casa dos RR., estes teriam que sair (resposta ao quesito 48º).
AE. Pois era seu entendimento que face aos valores de mercado a fracção autónoma supra identificada justificava aquele valor (resposta ao quesito 50º).
AF. A A. enviou aos RR. a carta de fls. 105/106, na qual lhes pede que abandonem a fracção até ao dia 30.6.2008, sob pena de recurso às vias judiciais (al. H) dos factos assentes).
AG. Vindo os RR. a responder nos termos da carta de fls. 107/109, na qual invocam a existência de contrato de arrendamento (al. I) dos factos assentes).
AH. A 3 de Julho de 2008 a A., e sua mãe mandaram cancelar o contrato de abastecimento de água que fornecia a fracção identificada, conforme documento de fls. 47/48 (al. D) dos factos assentes).
AI. Tendo recebido confirmação no dia 14 de Julho de 2008 dos SMAS de que iriam proceder ao corte no fornecimento de água e que iam rescindir o contrato, conforme documento de fls. 50 (al. E) dos factos assentes).
AJ. A mãe da A. recebeu do SMAS a comunicação de fls. 51, aqui dada por inteiramente reproduzida (al. F) dos factos assentes).
AK. Os RR. enviaram ao SMAS a carta de fls. 110/111, mediante a qual requereram a reposição do contrato de fornecimento de água (al. G) dos factos assentes).
AL. A A. sente angústia psicológica e insegurança (resposta ao quesito 27º).
AM. A A. deslocou-se a …, vive no … e na altura tinha um bebé pequeno e a mãe doente (resposta ao quesito 29º).
AN. Na altura o companheiro da A. estava desempregado e a empresa onde a A. trabalha estava em vias de fechar (resposta ao quesito 31º).
AO. Realizaram os RR. obras na fracção consistentes no arranjo e renovação de parte das canalizações de água, bem como arranjo e renovação da instalação eléctrica (resposta ao quesito 54º).
AP. Os RR. substituíram a alcatifa e colocaram em substituição um piso novo em parquet flutuante (resposta ao quesito 55).
AQ. E, ainda, arranjo de paredes e tectos e pintura integral dos mesmos (resposta ao quesito 56º).
AR. E reparação de móveis de cozinha (resposta ao quesito 57º).

FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO.
A única questão que se suscita no presente recurso, como os apelantes esclarecem nas alegações, é a de “cuidar de saber-se se face à matéria de facto dada como provada, não deverá operar o instituto do abuso de direito e, nesse sentido, no caso, a nulidade do contrato de arrendamento declarado por vício de forma, como a douta sentença concluiu, ser tolhida pelo abuso de direito em que terá incorrido a A. e, consequentemente, legitimar a recusa de entrega da fracção arrendada pelos RR.”.
O tribunal recorrido reconheceu a existência de um contrato de arrendamento verbal da fracção objecto dos autos celebrado entre a A. e os RR, mas por o mesmo ser inválido por falta de forma[2], concluiu pela sua nulidade e determinou a entrega da fracção à A.
Os apelantes não põem em causa a nulidade do contrato de arrendamento, por falta de forma, mas sustentam que, resultando dos autos que a A. actuou em manifesto abuso de direito, na modalidade de venire contra factum proprium, deverá tal nulidade ser “tolhida” nas suas consequências, devendo legitimar-se a recusa dos RR. em entregar a fracção arrendada.
Apreciemos.
Estatui o art. 334º do CC que “é abusivo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito”.
Há abuso de direito quando, embora exercendo um direito, o titular exorbita o exercício do mesmo, quando o excesso cometido seja manifesto, quando haja uma clamorosa ofensa do sentimento jurídico-socialmente dominante.
E não se exige que o titular do direito tenha consciência de que o seu procedimento é abusivo, bastando que os limites tenham sido excedidos de forma nítida e intolerável, não obstante serem relevantes os factores subjectivos.
O legislador sufragou a concepção objectivista do abuso de direito (que proclama que não é preciso que o agente tenha consciência da contrariedade do seu acto à boa fé, aos bons costumes ou ao fim social ou económico), o que não significa “que ao conceito de abuso do direito consagrado no art. 334º sejam alheios factores subjectivos, como, por exemplo, a intenção com que o titular tenha agido” - cfr. Pires de Lima – Antunes Varela, in CCAnotado, Vol. I – 2ª Ed., pág. 277.
 A figura do abuso de direito surge como uma forma de adaptação do direito à evolução da vida.
Serve como válvula de escape a situações que os limites apertados da lei não contemplam por forma considerada justa pela consciência social vigorante em determinada época, evitando que, observada a estrutura formal do poder que a lei confere, se excedam manifestamente os limites que se devem observar tendo em conta a boa fé e o sentimento de justiça em si mesmo.
Como refere Jorge Coutinho de Abreu, in Do Abuso de Direito, pág. 43, “Há abuso de direito quando um comportamento, aparentando ser exercício de um direito, se traduz na realização dos interesses pessoais de que esse direito é instrumento e na negação de interesses sensíveis de outrem”.
Para os Profs. Pires de Lima e Antunes Varela, in CC Anotado, Vol. I, 4ª Ed., pág. 300, “A nota típica do abuso do direito reside ... na utilização do poder contido na estrutura do direito para a prossecução de um interesse que exorbita do fim próprio do direito ou do contexto em que ele deve ser exercido”.
E Cunha de Sá, in Abuso do Direito, pág. 101 escreve que “abusa-se do direito quando se vai para além dos limites do normal, do legítimo: exerce-se o direito próprio em termos que não eram de esperar, ultrapassa-se o razoável, chega-se mais longe do que seria de prever”. E, mais adiante (pág. 103), analisando a noção legal de abuso de direito, refere que o mesmo se traduz “num acto ilegítimo, consistindo a sua ilegitimidade precisamente num excesso de exercício de um certo e determinado direito subjectivo: hão-de ultrapassar-se os limites que ao mesmo direito são impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo próprio fim social ou económico do direito exercido”.
Antunes Varela, in “Das Obrigações em Geral”, Vol. I, págs. 436 a 438, escreve que “há abuso de direito, segundo a concepção objectiva aceite no art. 334º, sempre que o titular o exerce com manifesto excesso dos limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim económico ou social desse direito. Não basta que o exercício do direito cause prejuízos a outrem. Naturalmente, a reclamação do crédito pelo credor abastado ao devedor em má situação económica será contrária aos interesses deste. O proprietário que constrói, no seu terreno, tirando as vistas ou a luz ao prédio vizinho, também pode prejudicar este. Mas em nenhum dos casos haverá, em princípio, abuso de direito, visto a atribuição do direito traduzir deliberadamente a supremacia de certos interesses sobre outros interesses com eles conflituantes. Para que o exercício do direito seja abusivo, é preciso que o titular exceda manifestamente os limites que lhe cumpre observar. Se, para determinar os limites impostos pela boa fé e pelos bons costumes, há que atender de modo especial às concepções ético-jurídicas dominantes na colectividade, a consideração do fim económico ou social do direito apela de preferência para os juízos de valor positivamente consagrados na própria lei. Não pode, em qualquer dos casos, afirmar-se a exclusão dos factores subjectivos nem o afastamento da intenção com que o titular tenha agido, visto este poder interessar, quer à boa fé ou aos bons costumes, quer ao próprio fim do direito”.
O abuso de direito pode revestir várias modalidades [3], entre elas, a que os recorrentes invocam - venire contra factum proprium -, que se traduz no exercício de uma posição jurídica em contradição com o comportamento assumido anteriormente pelo exercente, em que, fundadamente, a outra parte haja confiado.
Insere-se este instituto na tutela da confiança [4] que deverá estar subjacente à relação entre as partes.
Sustentam os apelantes que a A. actua em abuso de direito porque, os autorizou a efectuar obras na fracção, e desde que os RR. foram habitar a fracção – pelo menos Setembro de 2007 – que sempre pagaram a quantia mensal de € 275,00 correspondente ao valor da renda estabelecida pela A., quantia que esta sempre aceitou, comportando-se os RR. como inquilinos e a A. como senhoria, sendo que o pedido que a A. formula de desocupação e restituição do imóvel representa uma conduta incompatível com a boa fé por tudo que foi a sua conduta anterior, em que fundadamente os RR. tinham confiado.
O que os RR. sustentam é que a A. os autorizou a fazer as obras, sempre aceitou a renda, que ela própria estabeleceu, reconhecendo a qualidade de inquilinos dos RR. e comportando-se como senhoria, pelo que, recusar-se a assinar o contrato, mediante exigência de uma renda não acordada e vir na acção pedir a entrega da fracção, é actuar em abuso de direito.
Na presente acção, alegou a A. ser proprietária da fracção em causa e estarem os RR. a ocupar a mesma sem título, por se terem recusado a assinar o contrato, nos termos em que havia sido acordado [5], recusando-se a abandonar a fracção, não obstante a insistência da A.
Perante a factualidade provada, o tribunal recorrido deu como provada a existência de um contrato de arrendamento celebrado entre a A. e os RR., em termos não coincidentes com os alegados pela A., nomeadamente quanto ao montante da renda, mas ordenou a entrega da fracção à A. (na sequência do reconhecimento do seu direito de propriedade sobre a mesma), em face da nulidade do contrato de arrendamento, por falta de forma (escrita).
Não foi a A. que veio invocar a nulidade do contrato, com aquele fundamento, mas o tribunal que concluiu pela sua invalidade, nos termos legais.
O que a A. havia sustentado era a inexistência de contrato de arrendamento, donde resultava a ocupação ilegítima da fracção pelos RR., determinante da sua entrega, como peticionado.
E, nesta óptica, é que os apelantes alegam actuar a A. em abuso de direito – antes reconhecendo um contrato de arrendamento por força do qual foi recebendo rendas, e permitiu obras, e, agora, negando a sua existência –, exercendo os seus direitos de propriedade sobre a fracção em termos clamorosamente ofensivos da boa fé.
Declarada a nulidade do contrato, por falta de forma, e determinada a entrega da fracção à apelada, ainda que com fundamento diferente, cumpre, ainda assim, apreciar do invocado abuso de direito, que poderá paralisar aquela declaração.
Não se poderá deixar de referir que é discutível a aplicação da figura do abuso de direito quando está em causa a nulidade formal de um contrato.
O instituto do abuso de direito paralisa a declaração de nulidade, o que conduz à manutenção de eficácia de um contrato nulo e à produção dos seus efeitos, quando não foi esse o resultado pretendido pelo legislador [6].
Na esteira, porém, do que vem sendo o entendimento da maioria da jurisprudência [7], afigura-se-nos que deverá ser admitida a invocação do abuso de direito desde que, no caso concreto, as circunstâncias apontem para uma manifesta (clamorosa) ofensa da boa fé e do sentimento geral perfilhado pela comunidade.
Mas mesmo admitindo a aplicação, neste domínio, do abuso de direito, a verdade é que tal aplicação terá sempre natureza excepcional [8], não sendo, pois, qualquer actuação que justifica a paralisação da declaração de nulidade do contrato (desde logo porque as regras imperativas de forma visam fins de certeza e segurança do comércio em geral), mas uma actuação que se revele intoleravelmente ofensiva do nosso sentido ético-jurídico.
Da matéria de facto provada resulta que, efectivamente, em Agosto em 2007, a A. foi procurada pelos RR. para possível arrendamento da fracção de que aquela é proprietária, tendo, num primeiro momento, estabelecido como valor da renda a pagar a quantia de € 300,00 mensais, mostrando-se indisponível para realizar obras no arrendado, mas permitindo aos RR. que as fizessem, desde que suportassem os respectivos custos.
Perante isto pediram-lhe os RR. que “lhes fosse atendida uma especial atenção traduzida num eventual desconto no valor da renda” atentos os encargos que iam suportar com as obras, aceitando a A. proceder ao arrendamento pelo valor de € 275,00, ou seja, até Abril de 2008, os RR. só pagariam € 275,00 mensais e suportavam as despesas de limpeza e pintura da casa.
As chaves foram entregues aos RR. em 21.08.2007, vindo estes a ocupar e utilizar a fracção desde, pelo menos, Setembro de 2007, pagando pela mesma a quantia de € 275,00, através de transferência bancária para uma conta pertencente à mãe da A. [9].
Ficou acordado entre as partes que o contrato seria assinado em Setembro de 2007 e em 17.09.2007, a A. telefonou à mãe da R. avisando que tinha os modelos do contrato e estava em condições de o celebrar, perante o que esta pediu mais uns dias por ainda não estar decidido em nome de qual dos RR., ou se de ambos, ficaria o contrato.
A A. esperou pela reunião para formalização do contrato, ficando os RR. de a contactar pelo telefone.
Agendada reunião para o dia 8.6.2008, a mesma realizou-se, sem que se tivesse assinado o contrato, uma vez que para a formalização do mesmo a A. pretendia uma renda de € 500,00 mensais e o R. transmitiu à A. que não pagava essa renda e, por isso, não assinava o contrato, ao que a A. lhe transmitiu que, não aceitando essa renda, teriam de sair, por entender que, face aos valores de mercado a fracção justificava aquele valor.
A A. enviou aos RR. uma carta pedindo que abandonassem a fracção até ao dia 30.06.2008, sob pena de recurso às vias judiciais, tendo intentado a presente acção em 8.09.2008 e tendo, entretanto, em Julho de 2008, requerido o cancelamento do contrato de abastecimento de água à fracção.
Perante a factualidade acabada de referir poder-se-á, com clareza e de forma inequívoca, afirmar que a não redução a escrito do contrato de arrendamento é inteiramente imputável à A. ?
E que tal comportamento é contraditório com o anteriormente tido, e em que os RR. haviam, fundadamente, confiado ?
Salvo o devido respeito por opinião contrária, afigura-se-nos que não, não sendo possível concluir, da análise da factualidade acabada de reproduzir, que a A. litiga em abuso de direito (de forma clamorosamente ofensiva do direito), capaz de justificar a paralisação da entrega da fracção.
De facto, desde logo ressalta da matéria de facto dada como provada que a renda inicialmente estipulada (de € 300 mensais) tinha algo de provisório ou, pelo menos, de discutível a posteriori.
Atente-se que o que resultou provado foi que, a A. estabeleceu, num primeiro momento, como valor da renda a pagar a quantia de € 300.
Por outro lado, também resultou provado que se mostrou indisponível para realizar quaisquer obras na fracção, embora tenha, desde logo, permitido aos RR. que as efectuassem, desde que suportassem os respectivos custos.
Mas perante a disponibilidade manifestada pelos RR. em suportar os encargos com as obras mediante “um desconto” no valor da renda, aquela aceitou em proceder ao arrendamento pelo valor de € 275,00, valor esse que os RR. pagariam até Abril de 2008, suportando os RR. as despesas de limpeza e pintura da casa [10].
Desta factualidade ressalta a ideia de que as partes nunca acertaram em definitivo qual seria o valor da renda para valer posteriormente a Abril de 2008, ou, pelo menos, que a questão tinha ficado em aberto [11], pelo que o pedido da A. de um valor de renda superior, na reunião de Junho [12], não está completamente fora do comportamento anterior da A. [13].
Por outro lado, resulta da factualidade provada que o contrato só não foi logo formalizado em Setembro de 2007 [14] - altura em que a A. informou estar preparada para o fazer e de acordo com o que tinha ficado acordado - porque os RR. protelaram a sua assinatura.
E foi por força de ficar a aguardar pela reunião para formalizar o contrato, e pelo contacto telefónico dos RR. para o efeito, é que a A. foi recebendo as rendas e comportando-se como senhoria e os RR. como inquilinos, como alegam os apelantes.
Mas logo que na reunião não chegaram a acordo sobre a renda, a A. informou os RR. de que, não pagando a renda pretendida, teriam que sair da casa, o que reafirmou por escrito, tendo intentado a presente acção pouco tempo depois de findo o prazo que tinha dado para entregarem a casa.
Ora, face a toda a referida factualidade não se pode concluir que a A. actuou de forma clamorosamente ofensiva do direito e em comportamento contraditório com o anteriormente tido.
A terminar dir-se-á, ainda, que, para que se conclua pela verificação do abuso de direito, e como já supra referido, é necessário que se verifique a necessidade de protecção da confiança e que esta saia defraudada, o que, no caso, não se verifica plenamente, uma vez que se é verdade que os RR. efectuaram as obras, não o é menos que pediram o reembolso dos valores despendidos e o tribunal lhes reconheceu esse direito.
Por tudo quanto se deixa dito conclui-se que, face à factualidade provada, não se verifica o invocado abuso de direito capaz de “paralisar” a entrega da fracção ordenada, improcedendo a apelação.

DECISÃO.
Pelo exposto, acorda-se em julgar improcedente a apelação, confirmando-se a sentença recorrida.
Custas pelos recorrentes.

Lisboa, 31 de Janeiro de 2012

Cristina Coelho
Maria João Areias
Luís Lameiras
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[1] Que embora não conste da fundamentação de facto da sentença recorrida, foi dado como provado como se verifica do despacho de fls. 321.
[2] Invalidade que conclui ser ad substantiam.
[3] Menezes Cordeiro in “Da Boa Fé no Direito Civil”, pág. 719 e ss., faz referência ao “venire contra factum proprium”, à “inalegabilidade de nulidades formais”, à “suppressio”, à “surrectio”, ao “tu quoque” e ao “desequilíbrio no exercício jurídico”.
[4] Ver João Baptista Machado in Obra Dispersa, Vol. I, pág. 345 e ss..
[5] Isto é, mediante o pagamento de uma renda mensal de € 500,00, embora até Abril de 2008 apenas pagassem a quantia mensal de € 275,00 para fazer face a eventuais despesas com a limpeza da casa – arts. 46º e 47º da P.I.
[6] Quando está em causa uma formalidade ad substantiam como é o caso.
[7] Entre muitos outros, cfr. o Ac. do STJ de 30.10.2003, P. 03B3125, rel. Cons. Araújo Barros, Ac. da RL de 25.03.2004, P. 1785/2004-6, rel. Desemb. Urbano Dias e da RP de 3.03.2005, P. 0530531, rel. Desemb. José Ferraz, todos in www.dgsi.pt.
[8] Como se refere no Ac. do STJ de 8.06.2010, P. 3161/04.6TMSNT.L1.S1, rel. Cons. Lopes do Rego, in www.dgsi.pt “Não pode generalizar-se e banalizar-se o recurso à figura do abuso de direito como forma de – sindicando os motivos pessoais e subjectivos que estão na base da invocação da nulidade pelo interessado cujo interesse é por ela prosseguido - acabar por se precludir a aplicação sistemática do regime legal imperativo que comina determinada invalidade por motivos de deficiências de forma do acto jurídico – dependendo a subsistência do invocado abuso de direito da alegação e prova de ter ocorrido um particular e fundado «investimento de confiança» na estabilidade e definitividade do contrato promessa”.
[9] Sendo que a última que se mostra documentada nos autos foi efectuada em 3.3.2011 – fls. 260.
[10] Na realidade, se até Abril de 2008 os RR. pagavam um valor de renda inferior ao inicialmente falado, para compensar as despesas que iam ter com limpeza e obras, não se pode dizer que apenas os RR. suportavam tais despesas.
[11] Não sendo despiciendo referir que os RR., mesmo após Abril de 2008, continuaram a pagar sempre a mesma renda de € 275,00.
[12] Justificando que o valor proposto estava de acordo com os valores de mercado.
[13] Já na sentença recorrida se escreveu que “Embora tenha ficado provado que as partes tinham combinado formalizar o contrato até Setembro de 2007, o certo é que tal não sucedeu, tendo sido precisamente no processo de redução a escrito que surgiu o diferendo entre as partes. A exigência da redução a escrito pretende, para além da segurança jurídica, garantir a reflexão das partes sobre o acordo que querem assumir. A não celebração por escrito do acordo significa que não existiu um verdadeiro e reflectido encontro de vontades sobre as condições de vigência do arrendamento”.
[14] Altura em que teriam logo ficado claramente estipuladas todas as cláusulas contratuais.