Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1422/08.4PBOER.L1-5
Relator: MARGARIDA BLASCO
Descritores: CONSUMO DE ESTUPEFACIENTES
DESCRIMINALIZAÇÃO
TRÁFICO DE MENOR GRAVIDADE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/07/2012
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NÃP PROVIDO
Sumário: Iº A revogação do art.40, do Dec. Lei nº15/93, de 22.01, pelo art.28, da Lei nº30/2000, de 29Dez., determinou uma descriminalização restrita à quantidade de estupefacientes necessária para consumo médio individual, durante um período de dez dias, pelo que a detenção de estupefacientes destinados a um consumo superior àquele período de tempo, ocorrida posteriormente ao início da vigência daquela Lei, continua a ser punida pelo art.40, daquele Dec. Lei;
IIº Com a publicação e entrada em vigor da Lei nº30/2000 operou-se uma cisão do regime punitivo do consumo de estupefacientes: para os casos menos graves um regime punitivo qualitativamente diferente - a contra-ordenação - para as restantes situações a manutenção de uma pena;
IIIº Para que se aplique o disposto no art.40, do Dec. Lei nº15/93, há que se provar que a quantidade de produto estupefaciente apreendida a qualquer agente seja destinado ao seu consumo exclusivamente pessoal, sendo que todas as restantes situações que ultrapassem este entendimento devem ser analisados à luz da previsão normativa dos ilícitos previstos nos artigos 21 e 25;
IVº Provada a detenção do estupefaciente, para o preenchimento da previsão daquele art.40, compete ao arguido a prova do elemento negativo do tipo de crime por que vinha acusado, ou seja, que o produto estupefaciente que detinha não se destinava senão ao seu consumo exclusivo – não apenas ao seu consumo, mas ao seu consumo exclusivo;
Vº Apesar da quantidade do produto detido assumir algum relevo (86,790 gramas de canabis), o que por si só afastaria os limites da diminuição da ilicitude, sendo o arguido consumidor, destinando parte do produto para seu consumo próprio e não se tendo provado circunstâncias próprias de cedência a terceiros (o produto não se encontrava acondicionado individualmente e não foram encontrados objectos de corte / pesagem), é de aceitar como verificada uma diminuição da ilicitude, que justifica a subsunção dos factos ao crime do art.25, do Dec. Lei nº15/93;
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na 5ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

1-No âmbito do processo acima referenciado foi proferida, em 4/04/2011, sentença que condenou, entre outros, o arguido A..., pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade, p e p. pelo art. 25º, al. a) do DL nº 15/93, de 22/01, por referência à tabela I-C, na pena de 18 meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período, sujeito a determinados deveres de conduta.

2- O arguido veio recorrer desta sentença tendo apresentado as seguintes conclusões de recurso após ter sido convidado para suprir a deficiência das mesmas:

(…)
A. Concluímos que o Tribunal a quo incorreu em erro de julgamento ao dar como provado a alínea H) nos termos em que o fez, isto porque, uma breve leitura dos factos provados nas alíneas G), H) e R) apenas nos remete para uma situação de detenção de estupefacientes para consumo próprio, p. p. nos termos do artigo 40.º do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, embora o recorrente tenha sido condenado, no nosso entender mal, pela prática de um crime de tráfico de menor gravidade, p. p. pelo artigo 25.º, n.º 1, alínea a) ex-vi artigo 21.º, do mesmo diploma legal.
B. A situação é tanto mais grave quanto é certo que do confronto do referido facto provado com a subsunção jurídica levada a efeito pelo Tribunal a quo, fica por esclarecer de forma inequívoca a que comportamento do recorrente aquele se reporta na alínea H), uma vez que, dos factos dados como provados não consta nenhuma circunstância de facto susceptível de se subsumir ao elenco do artigo 21.º do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, o que viola o espírito e a lei constitucional – artigo 32.º da CRP – considerando que o direito penal não admite a analogia.
C. Por outro lado, lê-se na Douta Sentença Recorrida: De facto, a consciência da ilicitude e vontade de acção no que concerne ao crime de tráfico de estupefacientes extrai-se do próprio desenrolar dos eventos e seu protelar no tempo, não sendo credível outra actuação que não a deliberada ou sequer que o arguido desconhecesse a ilicitude do seu comportamento e a punibilidade do mesmo (negrito nosso).
D. Todavia, a Douta Sentença é totalmente omissa nesta matéria no que aos factos concerne, de molde a permitir ao julgador tal conclusão e,
E. Com o devido respeito, a livre convicção do julgador não se pode confundir com livre arbítrio, em especial quando não existem quaisquer factos susceptíveis de fundamentar aquela posição.
F. E, nem a circunstância de a quantidade apreendida ao recorrente ser superior àquela que é comummente aceite como consumo diário pode ter a virtualidade de per si condenar alguém por tráfico de estupefacientes de menor gravidade.
G. Entendemos também que o Tribunal a quo fez errada interpretação e aplicação da Lei aos factos provados, pelo que se impõe o presente recurso a fim de o recorrente ver asseguradas, por esta via, as mais elementares garantias de defesa, designadamente, os princípios da presunção de inocência e in dubio pro reo, consagrados no artigo 32.º, n.º 2 CRP.
H. O enquadramento jurídico-legal que o Tribunal a quo fez, perante a prova produzida em sede de audiência de discussão e julgamento e que resultou provada nos termos que acima melhor se descreveu, foi no sentido de subsumir os factos provados no artigo 25.º, alínea a) ex vi do artigo 21.º do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro.
I. Para o efeito, entendeu o Tribunal que o recorrente praticou uma das condutas enunciadas no artigo 21.º do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, em concreto, ilicitamente detiver, fora dos casos previstos no art. 40.º, plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a III.
J. Por Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 25.06.2008, in www.dgsi.pt, foi fixada jurisprudência no sentido de não obstante a derrogação operada pelo art. 28.º da Lei n.º 30/2000, de 29 de Novembro, o artigo 40.º, n.º 2, do Decreto-Lei 15/93, de 22 de Janeiro, manteve-se em vigor não só “quanto ao cultivo” como relativamente à aquisição ou detenção, para consumo próprio, de plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a IV, em quantidade superior à necessária para o consumo médio individual durante o período de 10 dias.
K. Com relevância para a defesa do nosso entendimento, permitimo-nos citar algumas passagens absolutamente esclarecedoras do referido acórdão: (…) Como indefensável se tem igualmente – ora, por razões diametralmente opostas – a solução proposta por aqueles outros que, ainda por aplicação literal do citado artigo 28º da Lei n.º 30/2000, de 29 de Novembro, entendem ser de remeter para a norma fundamental do artigo 21º (ou do tipo privilegiado do artigo 25º ou até mesmo do artigo 26º) do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, o encargo de sancionar as condutas de aquisição ou detenção, para consumo próprio, antes abrangidas pelo artigo 40º e que, pela quantidade do produto em causa, não se encaixam na previsão do novo diploma legal. (…) uma lei benfazeja para o consumidor, surgida no âmbito de um movimento de despenalização das condutas menos desvaliosas de consumo de estupefacientes e substâncias psicotrópicas e imbuída da noção do “consumidor-doente” a reclamar, mais do que censura legal, a sua inclusão em programas virados para o tratamento e integração social – na medida em que, na prática e contra toda a lógica, tal traduzir-se-ia em transmudar um “doente” em traficante (13) por via de mais uns gramas de estupefacientes ou substâncias psicotrópicas que porventura detivesse ou adquirisse para consumo próprio, não menos verdade é que essa solução, desproporcionada e aberrante [à luz quer do novo diploma quer da própria Lei n.º 15/93, de 22.01 (que, distinguindo claramente o tráfico e outras actividades ilícitas do consumo, não transformava um crime noutro pelo mero facto de o agente deter maior ou menor quantidade de produto)] importaria ainda a violação dos princípios da culpa e bem assim da necessidade (ou da justa medida) e da proporcionalidade (ou da proibição do excesso) das penas (14), para além de que, sob o ponto de vista dogmático, só com manifesta afronta ao princípio da legalidade, e consequente proibição da analogia (15) e da tipicidade isso seria possível. É que, nos moldes em que se encontra configurado no DL n.º 15/93, de 22 de Janeiro o tipo base do tráfico de estupefacientes (e quem diz este, diz o tipo privilegiado do artigo 25º ou até mesmo o do artigo 26º) – com exclusão dos casos previstos no artigo 40º –, ele não pode aplicar-se às situações em que a substância detida ou adquirida se destina a consumo próprio do agente, qualquer que seja a quantidade em causa. Por outro lado, mal se compreenderia que o simples facto de a quantidade de estupefaciente detido ou adquirido pelo agente, para consumo próprio, exceder o necessário para consumo médio individual durante 10 dias levasse o legislador da Lei n.º 30/2000, de 29 de Novembro a transformar o crime de consumo em tráfico quando, expressa e inequivocamente salvaguardando da norma revogatória do artigo 28º o cultivo – conduta bem mais desvaliosa –, preveniu que ele continuasse a ser sancionado, ainda no âmbito do consumo, como crime e nos termos do preceituado na norma do artigo 40º do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro (…).
L. Em face de tudo quanto antecede resulta evidente que mal andou o Tribunal a quo ao condenar o recorrente pela prática de um crime de tráfico de menor gravidade, tendo inclusivamente sublinhado que se tratava de situação fora dos casos previstos no art. 40.º do referido diploma legal, pois a correcta interpretação e aplicação da lei aos factos concretos imporia que o recorrente tivesse sido condenado pela prática de um crime de consumo, p. p. pelo artigo 40.º, n.º 2, tudo de acordo com o Acórdão de Uniformização de Jurisprudência para o qual remetemos na íntegra.
M. Concluímos que mal andou o Tribunal a quo ao afirmar não ficou demonstrado que a destinava [por referência à resina (haxixe)] exclusivamente ao seu consumo porquanto aquilo que efectivamente não logrou provado foi que o recorrente destinasse o produto estupefaciente ao tráfico e, tanto quanto julgamos saber o ónus da prova em matéria criminal é do Ministério Público que tem que provar o tráfico, não podendo o julgador bastar-se com quantidades para condenar por crimes que não foram efectivamente praticados, ainda que estejamos perante um assunto de saúde pública com a importância que o mesmo merece.
N. A norma aplicável ao caso concreto – artigo 40.º, n.º 2 do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro – prevê a aplicação de pena de prisão e pena de multa e, entendemos que ponderadas todas as circunstâncias relevantes ao recorrente deverá ser aplicada apenas uma pena de multa que decerto satisfará todas as exigências de prevenção geral e especial.
Nestes termos e nos melhores de Direito que V. Exas. mui doutamente suprirão deve o presente recurso ser recebido, julgado procedente porque provado e, em sequência, absolver-se o arguido da prática de um crime crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade, p. e p. pelo artigo 25.º, alínea a) do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, por referência à sua tabela I-C e subsequentes injunções e, condenar-se o recorrente pela prática de um crime p. e p. pelo artigo 40.º, n.º 2 do mesmo diploma, de acordo com o Acórdão de Uniformização de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, mediante aplicação de pena de multa e regimes especial para jovens.
(…)

3- O Ministério público junto do Tribunal de 1ª Instância veio pronunciar-se pelo não provimento do recurso.

4- O recurso foi admitido e fixado o efeito legal.

5- Subiram os autos a este Tribunal, onde no Parecer a que corresponde o art. 416º do CPP, o Exmo. Procurador - -Geral Adjunto acompanhou a posição do MP junto do tribunal de 1ª Instância.

6- Cumprido o art.417º, nº2 do CPP, nada foi dito.

7- Efectuado exame preliminar, foram os autos remetidos para conferência.

Colhidos os vistos, cumpre apreciar.

II.


1-A sentença recorrida tem o seguinte teor, no que interessa à decisão do presente recurso (transcrição):

(…)


1. Fundamentação.
1.1. De facto.
1.1.1. Factos provados.
Com interesse para a discussão da causa resultaram provados os seguintes factos:
A) No dia 11.09.2008, pelas 4 horas e 15 minutos, o estabelecimento comercial denominado “E.I….”, sito na rua da V… foi assaltado.
B) Do seu interior foram retirados dois computadores marca “Apple”, um computador marca “Asus” e um monitor “LCD” de 17 polegadas, tudo no valor de, pelo menos, cinco mil euros.
C) No dia 24.09.2008, o referido estabelecimento comercial foi novamente assaltado.
D) Para tal, indivíduos não identificados rebentaram a fechadura da porta e entraram.
E) Todavia, o alarme foi accionado, razão pela qual os referidos indivíduos se puseram em fuga e nenhum bem foi retirado do interior do estabelecimento.
F) No dia 24.09.2008 foram efectuadas buscas domiciliárias a casa dos arguidos, tendo sido apreendidos os objectos constantes dos autos de apreensão de fls. 21, 27 a 29 e 39.
G) Nessas circunstâncias de tempo e lugar, foram apreendidos, na posse do arguido A..., oito pedaços de “canabis”, com o peso bruto de 86,790 gramas, acondicionados numa caixa metálica.
H) Ao ter tal produto na sua posse agiu o arguido A... deliberada, livre e conscientemente, bem sabendo que tal conduta lhe estava vedada por lei.
Mais se provou que:
I) O arguido A... não tem antecedentes criminais.
J) Consta do relatório social, elaborado pela Direcção Geral de Reinserção Social que o arguido é o mais novo de três irmãos germanos, tendo nascido num meio familiar de estatuto socioeconómico médio.
K) O pai morreu quando tinha 4 (quatro) anos.
L) Vive com a mãe (arqueóloga), o padrasto (arquitecto) e os 2 (dois irmãos).
M) Em termos relacionais, no seio familiar a abertura e o diálogo são práticas correntes, havendo proximidade afectiva nas relações estabelecidas entre o arguido e especialmente a mãe e um dos irmãos.
N) Frequenta o 11º ano no Liceu Camões, no período nocturno, em regime não presencial, por ser este regime o que melhor se adequa ao seu estatuto de atleta profissional.
O) Entre os 14 e os 18 anos praticou desporto profissional (Kickboxing), sendo atleta federado, desporto que continua a praticar embora com menor investimento.
P) O arguido, desde há alguns meses, começou a colaborar, a título experimental, como auxiliar técnico nas aulas de Kickboxing.
Q) O arguido é reservado, ficando muito tempo em casa, sendo os seus convívios centrados em alguns amigos da zona de residência e, bem assim, nas respectivas famílias.
R) O arguido menciona ter o hábito de consumir, de forma ocasional, haxixe, o que fará sozinho e por norma uma a duas vezes por semana,
S) O arguido considera esse consumo de produto estupefaciente natural.

1.1.2. Factos não provados.
Da discussão da causa não resultou provado que:
T) Nas circunstâncias de tempo e lugar referidas em A), os arguidos aí se dirigiram com o intuito de, por qualquer forma, ali entrarem e se apoderarem, no seu interior, de todos os objectos que ali estivessem e por que por eles fossem susceptíveis de serem transportados.
U) Lá chegados, utilizando pés-de-cabra, abriram a porta e entraram.
V) Já no seu interior apoderaram-se dos objectos referidos na alínea B).
W) Nas circunstâncias de tempo e lugar referidas em C), os arguidos voltaram ao estabelecimento com o intuito de, mais uma vez, o assaltarem e se apoderarem dos objectos que por eles fossem susceptíveis de serem transportados.
X) Foram os arguidos que praticaram os factos referidos em D) e E).
Y) Os arguidos ao procederem de tal forma agiram deliberada, livre e conscientemente, bem sabendo que tais condutas lhes estavam vedadas por lei.
Z) R… é legal representante do estabelecimento denominado “E.I….”.
AA) Na sequência de uma busca domiciliária realizada na casa do arguido B... foi apreendida uma faca “borboleta”, examinada a fls. 42.
BB) Ao ter tal objecto na sua posse o arguido B... agiu deliberada, livre e conscientemente, bem sabendo que tal conduta lhe estava vedada por lei.

1.1.3. Motivação da decisão da matéria de facto.
Para a formação da sua convicção, o Tribunal procedeu ao exame da prova produzida em audiência de julgamento bem como dos documentos juntos aos autos, tendo-os tido em consideração após uma análise global, conjugada e critica, segundo as regras expressas nos artigos 127º, 163º e 169º, todos do Código do Processo Penal, isto é, tendo em atenção o principio de que a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção.
Concretizando:
- A prova dos factos referidos de A) a E) (…)
(…)
A prova dos factos referidos nas alíneas F) e G) da diversa prova documental junta aos autos, designadamente: (i) auto de apreensão de fls. 21 e auto de exame de fls. 22 (dos quais se extrai quais os bens que se encontravam no veiculo os arguidos se faziam transportar aquando da detenção); (ii) termos de autorização de busca às residências dos arguidos de fls. 26, 28 e 49, por estes assinados, dos quais se extrai o seu consentimento para tal; (iii) autos de busca e apreensão realizadas nas residências dos arguidos, de fls. 27-33 e 39, dos quais se retiram a identificação dos bens e produtos aí apreendidos; (iv) autos de exame e de avaliação de fls. 33-35 e 40-45, dos quais se retira a natureza dos bens apreendidos nas residências dos arguidos B... e A..., já que na residência do arguido C... nada foi identificado ou apreendido (iii) teste rápido de fls. 46 e relatório de exame laboratorial de fls. 163, de cujo teor se extrai qual o peso e quais as substâncias activas presentes no produto estupefaciente apreendido ao arguido A....
Tais factos, designadamente as circunstâncias de tempo, modo e lugar das apreensões efectuadas foram ainda confirmados pelo depoimento das testemunhas T1…, T2…, T3.., T4… e T5…, todos agentes da PSP, que procedeu às diversas apreensões, tendo-se pronunciando sobre o que foi apreendido, sobre as circunstâncias em que foi feita a busca às residências dos mesmos e, bem assim, sobre a colaboração destes aquando da apreensão.
Estas testemunhas demonstraram ter conhecimento directo dos factos por si relatados, apresentando uma postura descontraída mas séria e um discurso calmo, assertivo e peremptório, pelo que mereceu a inteira credibilidade do Tribunal quanto a estes factos.
De referir que foi determinante o depoimento da testemunha T5… que relatou recordar-se de ter efectuado a busca a casa do arguido A..., descrevendo quais os objectos ai encontrados (designadamente, arma de airsoft, invólucros plásticos respectivos, faca de borboleta e produto estupefaciente), o que é congruente com o teor dos documentos acima referidos.
Assim, não se deu como provado, pois tal não resulta dos autos, antes pelo contrário, que foi apreendida na casa do arguido B... uma faca borboleta – factos AA) e BB).
A prova do facto referido em H) decorre das regras de experiência comum conjugadas com a demais matéria de facto dada como provada nos presentes autos. De facto, a consciência da ilicitude e vontade de acção no que concerne ao crime de tráfico de estupefacientes extrai-se do próprio desenrolar dos eventos e seu protelar no tempo, não sendo credível outra actuação que não a deliberada ou sequer que o arguido desconhecesse a ilicitude do seu comportamento e a punibilidade do mesmo, do geral conhecimento dos cidadãos.
- Quanto às condições pessoais, familiares e profissionais do arguido A... foi atendido ao teor do relatório social de fls. 371-374.
- Relativamente aos antecedentes criminais do arguido o Tribunal levou em conta o teor do Certificado de Registo Criminal junto a fls. 313.
*
Para a determinação da matéria de facto dada como não provada o Tribunal louvou-se na ausência de produção de prova da sua realidade, bem como pelo facto de serem tais factos diametralmente contrários (pelos motivos supra expostos e que, por economia, se dão por integralmente reproduzidos) àqueles que convenceram o Tribunal.

(…)


2- De harmonia com o disposto no n°1, do art. 412°, do CPP, e conforme jurisprudência pacífica e constante (designadamente, do STJ - Ac. de 13/5/1998, B.M.J. 477/263, Ac. de 25/6/1998, B.M.J. 478/242, Ac. de 3/2/1999, B.M.J. 477/271), o âmbito do recurso é delimitado em função do teor das conclusões extraídas pelos recorrentes da motivação apresentada, só sendo lícito ao tribunal ad quem apreciar as questões desse modo sintetizadas, sem prejuízo das que importe conhecer, oficiosamente por obstativas da apreciação do seu mérito (Ac. do Plenário das Secções do STJ, de 19/10/1995, D.R. 1 - A Série, de 28/12/1995).
São, pois, apenas as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas conclusões, da respectiva motivação, que o tribunal ad quem tem de apreciar – arts.403 °, nº 1 e 412°, n°1 e n°2, ambos do CPP. A este respeito, e no mesmo sentido, ensina Germano Marques da Silva, "Curso de Processo Penal", Vol. 1, 21 edição, 2000, fls. 335, “Daí que, se o recorrente não retoma nas conclusões as questões que desenvolveu no corpo da motivação (porque se esqueceu ou porque pretendeu restringir o objecto do recurso), o Tribunal Superior só conhecerá das que constam das conclusões”.
Sendo o objecto do recurso delimitado pelas conclusões extraídas da correspondente motivação (arts.403°, n.º 1 e 412°, n°1, do CPP), as questões que a recorrente pretende ver apreciadas por este Tribunal são as seguintes:

- existe erro na apreciação da matéria de facto pois devia o ora recorrente ter sido condenado pela prática de um crime de consumo de estupefacientes, p. e p. pelo art. 40º, n.º 2, do DL n.º 15/93, de 22/01, e não por um crime de tráfico de estupefacientes, de menor gravidade, p. e p. pelos arts.21º e 25º, al. a), do mesmo diploma legal;
- mal andou o Tribunal a quo ao afirmar que não ficou demonstrado que o arguido destinava o produto que foi apreendido [por referência à resina (haxixe)] exclusivamente ao seu consumo porquanto aquilo que efectivamente não se provou foi que o destinasse ao tráfico;
- o ónus da prova em matéria criminal é do Ministério Público, sendo este que tem que provar o tráfico, não podendo o julgador bastar-se com quantidades para condenar por crimes que não foram efectivamente praticados;
-o tribunal violou o princípio in dubio ro reo, e o art.32º da CRP;
-deve absolver-se o arguido da prática de um crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade, p. e p. pelo art. 25.º, al. a) do DL n.º 15/93, de 22 de Janeiro, por referência à sua tabela I-C e, condenar-se pela prática de um crime p. e p. pelo art. 40.º, n.º 2 do mesmo diploma, mediante aplicação de pena de multa e aplicação do regime especial para jovens.


3.

3.1-Existe erro na apreciação da matéria de facto pois o recorrente devia ter sido condenado pela prática de um crime de consumo de estupefacientes, p. e p. pelo art. 40º, n.º 2, do DL n.º 15/93, de 22/01, e não por um crime de tráfico de estupefacientes, de menor gravidade, p. e p. pelos arts.21º e 25º, al. a), do mesmo diploma legal. Entende o recorrente que dos factos dados como provados não consta nenhuma circunstância de facto susceptível de se subsumir ao elenco do art. 21º daquele Diploma, ou seja, no seu entender que não se provou que o produto que lhe foi apreendido fosse destinado ao tráfico.

Apreciemos:

Em 1º lugar, refira-se que foram conhecidas as dificuldades jurídicas criadas pela entrada em vigor da Lei nº 30/2000, decorrente de um aparente vazio legislativo instalado na sequência da revogação do art.40º do DL 15/93 operada pelo art.28º daquela Lei.
A norma então revogada contemplava todas as situações de detenção de estupefaciente para consumo pessoal, independentemente da quantidade detida. A afectação da droga ao consumo bastava para afastar a punição como tráfico.
Com a entrada em vigor daquela Lei, foi descriminalizado o consumo de estupefacientes, passando a prever como comportamento contra - ordenacional a factualidade até então prevista e punida como crime no art. 40º. Só que excluiu da previsão da contra – ordenação a detenção de substâncias para consumo em quantidade superior à necessária para consumo individual durante 10 dias, como decorre do nº2 do seu art.2º, sendo que a quantidade a que o preceito alude há-de considerar os limites definidos pela portaria a que alude o nº 1 do art. 71º do DL 15/93. Por seu turno, estabelece a Portaria 93/96, de 26/03, num mapa a que se refere o art. 9º, o limite quantitativo máximo de 0,5 gramas para a substância em análise (canabis - resina).

Ora, sobre este assunto foram consagradas pelo menos três posições jurisprudenciais, questão que veio a ser resolvida com a publicação do Acórdão de Uniformização de Jurisprudência de 25/06/2008, disponível in www.dgsi.pt, no qual foi fixada jurisprudência no sentido de não obstante a derrogação operada pelo art. 28.º da Lei n.º 30/2000, de 29/11, o art.40.º, n.º 2, do DL nº15/93, de 22/01, manteve-se em vigor não só “quanto ao cultivo” como relativamente à aquisição ou detenção, para consumo próprio, de plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a IV, em quantidade superior à necessária para o consumo médio individual durante o período de 10 dias.

Como decorre do recurso, pretende o arguido que a matéria provada seja subsumível à situação prevista neste artigo 40º e não como o fez a sentença recorrida no art. 25º, aplicando-se, deste modo, a jurisprudência atrás citada.
Digamos, desde já, que não lhe assiste razão nesta sua pretensão.
Com efeito, a nossa posição foi definida no sentido que o entendimento que condutas de contornos semelhantes àquela que vem imputada ao arguido nos presentes autos não se encontram descriminalizadas, aplicando-se-lhes, uma pena - cfr. nosso Ac. de 25/02/2003, publicado na CJ, tomo 1, págs. 141 a 144, em que se diz no respectivo sumário: …A revogação do art. 40º do DL nº 15/93, de 22.01, pelo art. 28º da Lei nº 30/2000, de 29.12, determinou uma descriminalização restrita à quantidade de estupefacientes necessária para consumo médio individual, durante um período de dez dias, pelo que a detenção de estupefacientes destinados a um consumo superior àquele período de tempo, ocorrida posteriormente ao início da vigência daquela Lei, continua a ser punida pelo art. 40º do DL citado. Dizemos ainda naquele acórdão, que não é razoável pensar que uma lei descriminalizadora, benfazeja para o consumidor, pretenda que uns gramas de droga transformem um consumidor a proteger, num autêntico traficante, esquecendo-se de salvaguardar situações que a velha lei acautelava…
Ou seja, entendemos, conforme passaremos a explicar que, para que se aplique o disposto no art. 40º, há que se provar que a quantidade de produto estupefaciente que tenha sido apreendida a qualquer agente seja destinado ao seu consumo exclusivamente pessoal, sendo que todas as restantes situações que ultrapassem este entendimento devem ser analisados à luz da previsão normativa dos ilícitos previstos nos artigos 21 e 25.
Pelo que se por um lado, entendemos ser de afastar a posição que inclui no “tráfico “ a detenção de estupefaciente afecto exclusivamente ao consumo, por contrariar desde logo a ratio da alteração legislativa, que é precisamente a de tratar mais favoravelmente os consumidores, incentivando-os ao tratamento e ajudando-os na reinserção social, por outro lado, entendemos que o legislador não pretendeu punir os consumidores directamente como traficantes. Para além da violação dos princípios da necessidade e da proporcionalidade das penas, de referir que o crime p. e p. no art. 21º não é aplicável às situações em que toda a substância adquirida ou detida se destina ao consumo pessoal do agente, independentemente da sua quantidade.
Assim sendo e lançando mão dos preceitos interpretativos da lei geral - art. 9º do CC- com as limitações impostas pelo princípio da legalidade (que em processo penal veda a analogia), somos de entendimento que com a publicação e entrada em vigor da Lei nº 30/2000 se operou uma cisão do regime punitivo do consumo de estupefacientes: para os casos menos graves um regime punitivo qualitativamente diferente - a contra- ordenação - para as restantes situações a manutenção de uma pena.

No entanto, deparamo-nos de novo com a letra da lei, segundo o qual o art. 40º foi revogado “excepto quanto ao cultivo”- art. 28º.
Renovando a leitura do citado art. 9 º do CC, vale para a lei penal, a regra que a “interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo (nº1) onde se privilegia a interpretação teleológica e de cariz objectivo”.
E prossegue o seu nº3 que “na fixação do sentido e do alcance da lei, o interprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas…”
Esta regra servirá para afastar uma solução que a nosso ver é absurda uma vez que a admitir-se, legalizava/despenalizava todas as situações de detenção de mais de 10 doses diárias para consumo pessoal, ou seja, não cabendo na nova redacção da lei - art. 2º da Lei 30/20000- nem no crime de tráfico - art. 21º do DL 15/93, punia-se o menos (grave) e despenalizava-se o mais (grave).
Certamente que esta conclusão trairia o espírito do legislador e os fins da política criminal que consagrando um novo regime legal, não visa legalizar o consumo, mas tão só descriminalizar as situações de menor gravidade.
Ora, recorrendo à interpretação restritiva do art. 28º da Lei 30/2000, permite-se chegar a uma solução mais concordante com o espírito do legislador - circunscrevendo-se a revogação constante daquele preceito às situações que doravante são abrangidas pela contra-ordenação do art. 2º daquela Lei, mantém-se em tudo o mais a norma do art. 40º, do DL 15/93.

Em síntese: se por um lado, o legislador quisesse punir, como contra-ordenação todo o agente que fosse encontrado com produto estupefaciente que destinasse ao seu consumo, não teria limitado a quantidade encontrada a uma determinada dose diária. Pelo que, não teria indicado qualquer limite, deixando ao intérprete, perante a análise do circunstancialismo fáctico, a decisão e a escolha de se estar perante mero ilícito ordenacional ou crime.
A interpretação que fazemos do pensamento do legislador, representa tão só despenalizar a mera detenção, para exclusivo consumo, de estupefaciente em quantidade não superior à necessária para consumo individual durante dez dias.
Não é, pois, plausível que esta interpretação possa alcançar todos os casos como o dos autos, a qual traria, a seguir-se o entendimento do recorrente, uma solução de impunidade dos demais casos que não se contivessem dentro desses parâmetros, passando qualquer detenção de droga para consumo a ser considerada contra-ordenação, pelo evidente entorse interpretativo que representa relativamente à intenção legislativa, de despenalizar, tão somente, a mera detenção, para consumo, de estupefaciente em quantidade não superior à necessária para consumo individual durante dez dias para, a seu reboque, se alcançar a absurda solução da impunidade dos demais casos que não se contenham nesses parâmetros.

Pelo que o art.40º se aplica a todos os casos em que o produto estupefaciente se destina ao exclusivo consumo do detentor daquele produto, descriminalizando-se, deste modo, as situações de menor gravidade, devendo as restantes (situações) ser apreciadas à luz dos arts. 21ºe 25º da Lei 15/93, ou seja, a apreciação da existência de crime e como tal a aplicação de uma pena.

3.2- Retomemos o caso dos autos:

Aquando das buscas em casa do recorrente foram apreendidos, na sua posse, oito pedaços de “canabis”, com o peso bruto de 86,790 gramas, acondicionados numa caixa metálica. Mais se provou que ao ter tal produto na sua posse agiu o arguido A... deliberada, livre e conscientemente, bem sabendo que tal conduta lhe estava vedada por lei. O recorrente reconheceu que consumia haxixe, o que fazia uma a duas vezes por semana, atitude que considera natural.
Estes os factos.
Recorde-se o que se diz na sentença recorrida quanto à subsunção desta matéria factual à previsão normativa: … De facto, uma vez que das declarações do arguido resulta que consome apenas uma ou duas vezes por semana e tendo como referência o consumo médio diário de 0,5 gramas, seriamos levados a considerar que o arguido detinha produto para consumir entre 86 a 172 semanas; ou que se preparava para ter uma overdose durante a próxima semana – consumindo nos 10 dias seguintes, em um ou duas ocasiões, todo o produto estupefaciente que lhe foi apreendido?!
Mais se diz que o recorrente não tinha rendimentos, pois à data dos factos era estudante e não teria ainda iniciado a colaboração, a título experimental, como auxiliar técnico nas aulas de Kickboxing, pelo que não colhe a análise de que teria adquirido produto estupefaciente suficiente para os próximos anos. De referir que, atento o consumo médio por si referido e a circunstância de o fazer sozinho, nem sequer é equacionável que detivesse o produto estupefaciente para partilhar com amigos.
Ou seja, a quantidade de produto que o arguido detinha, se considerada apenas por si e pela sua natureza, assume um relevo que constituiria índice de afastamento dos limites da detenção para consumo, sobretudo se atendermos à inexistência de explicação para tal detenção compaginável com o consumo exclusivo pelo mesmo.
Logo, considerando a quantidade que o arguido detinha de canabis (86,790 gramas), e face ao que ficou provado quanto aos seus hábitos de consumo, fácil é concluir que esta quantidade não era exclusivamente destinada ao seu consumo, nos termos em que dispõe o art.40º, ou seja: por exceder a quantidade necessária para o consumo médio individual durante o período de dez dias (cfr. art. 2º, n.º 2) e não se ter provado que detinha aquele produto exclusivamente para seu consumo. Pelo que a sua conduta não se subsume ao art. 40º.

Vejamos se se lhe aplica o disposto no art.26º,nº2: estabelece-se nesta norma que se o traficante (entendido como tal nos termos do art. 21º) for encontrado na posse de quantidade superior à necessária para o consumo médio individual pelo período de cinco dias não beneficia de “estatuto” de traficante consumidor.
Pelo que face à matéria dada como também não lhe é aplicável esta norma.
Resta analisar se, em face do quadro circunstancial de valoração da ilicitude do facto, a conduta do recorrente se inscreve na previsão ou do art.25º ou do art. 21º.
O crime previsto no art.25º consubstancia, conforme tem sido entendido na doutrina e jurisprudência, um tipo privilegiado em razão do grau de ilicitude em relação do tipo fundamental de art.21º - cfr., entre outros, o Acórdão do STJ de 04/05/2005, proferido no processo n.º 05P1263, disponível em www.dgsi.pt (e referido na sentença recorrida), onde se diz que e cita-se: a essência da distinção entre os tipos fundamental e privilegiado reverte, assim, ao nível exclusivo da ilicitude do facto (consideravelmente diminuída), mediada por um conjunto de circunstâncias objectivas que se revelem em concreto, e que devam ser conjuntamente valoradas por referência à matriz subjacente à enumeração exemplificativa contida na lei, e significativas para a conclusão (rectius, para a revelação externa) quanto à existência da considerável diminuição da ilicitude pressuposta no tipo fundamental, cuja gravidade bem evidente está traduzida na moldura das penas que lhe corresponde. Os critérios de proporcionalidade que devem estar pressupostos na definição das penas, constituem, também, um padrão de referência na densificação da noção, com alargados espaços de indeterminação, de «considerável diminuição de ilicitude”.
Ou seja, pressupõe, por referência ao tipo fundamental, que a ilicitude do facto se mostre “consideravelmente diminuída” a extrair de circunstâncias específicas, objectivas e factuais, verificadas no caso concreto, nomeadamente os meios utilizados pelo agente, a modalidade ou as circunstâncias da acção, e a qualidade ou a quantidade dos produtos.
De forma a analisar se a conduta do ora recorrente se insere na aludida norma, terá que o mesmo de ter praticado alguma das condutas enunciadas no art.21º, com considerável diminuição da ilicitude. Estabelece-se neste normativo que "quem, sem para tal se encontrar autorizado, cultivar, produzir, fabricar, extrair, preparar, oferecer, puser à venda, vender, distribuir, comprar, ceder ou por qualquer titulo receber, proporcionar a outrem, transportar, importar, exportar, fizer transitar ou ilicitamente detiver, fora dos casos previstos no art. 40, plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a III é punido com pena de prisão de 4 a 12 anos." (sublinhado nosso). Acrescente-se que, a canabis está prevista na tabela I-C, anexa ao referido diploma legal.
Da leitura atenta do preâmbulo do Decreto-Lei ora em análise, que contém disposições penais que criminalizam a detenção, o tráfico e o consumo de estupefacientes, resulta que o principal escopo do legislador é o de evitar a degradação e a destruição de seres humanos, provocados pelo consumo de estupefacientes, que o respectivo tráfico, indiscutivelmente, potencia; ou seja, o tráfico de estupefacientes põe em causa uma pluralidade de bens jurídicos: a vida, a integridade física e a liberdade dos virtuais consumidores; e, ademais, afecta a vida em sociedade, dificultando a inserção social dos consumidores, possuindo também comprovados efeitos criminógenos.
O crime de tráfico de estupefacientes caracteriza-se como um tipo legal que visa a protecção de uma multiplicidade de bens jurídicos, revestindo a natureza de um crime de perigo comum, e, aí, de perigo abstracto, uma vez que não exige o dano ou, sequer, o perigo, efectivo dos bens jurídicos protegidos.
A apreciação do facto de uma conduta consubstanciar, ou não, o tipo legal de tráfico de estupefacientes depende da apreciação casuística do caso concreto. Neste contexto assume primordial importância a aferição da intenção do arguido, principalmente quando este detinha substâncias estupefacientes em seu poder.
Pelo que há que avaliar um conjunto de factores: a quantidade de droga apreendida, os antecedentes criminais do arguido, o facto de este ser ou não um consumidor habitual de substâncias estupefacientes, entre outras circunstâncias que podem ser relevantes.
No entanto, cumpre salientar que no que concerne à ilicitude do facto praticado pelo arguido, esta se verifica com a simples detenção de substâncias estupefacientes que, pelas suas quantidades, seja nociva para a saúde humana, pelo perigo que tal situação potencia. É o que se retira do Acórdão do STJ, de 05/11/2009, de que se cita a seguinte parte: “… a mera detenção de produto considerado estupefaciente pelas tabelas I a III anexas ao DL 15/93, de 22.01, se não autorizada ou destinada a consumo próprio, é considerada crime de tráfico. (…), não é necessário que se prove a venda ou a cedência a outrem para haver crime de tráfico. É que consta dos elementos típicos previstos no artigo 21º do DL, de 22 de Janeiro (crime base): (…)”.

Analisando a quantidade apreendida -86,790 gramas - teria que se considerar que a conduta do arguido se enquadraria nas hipóteses do art. 21º. Recorde-se mais uma vez o que se diz na sentença recorrida …De facto, uma vez que das declarações do arguido resulta que consome apenas uma ou duas vezes por semana e tendo como referência o consumo médio diário de 0,5 gramas, seríamos levados a considerar que o arguido detinha produto para consumir entre 86 a 172 semanas; ou que se preparava para ter uma overdose durante a próxima semana – consumindo nos 10 dias seguintes, em um ou duas ocasiões, todo o produto estupefaciente que lhe foi apreendido?!
E prossegue a sentença recorrida no que ao aqui interessa e com o que estamos de acordo:Refira-se que, neste âmbito e atentos os factos dados como provados não ficam quaisquer dúvidas sobre a não afectação do produto apreendido ao consumo próprio – diferente seria se o arguido tivesse declarado que consumia diariamente ou em quantidades superiores a 0,5 gramas diárias. Todavia, tendo optado por não prestar declarações em sede de julgamento restam-nos as suas declarações perante a Direcção Geral de Reinserção Social que, conforme supra mencionado, são incongruentes com a detenção da droga para consumo exclusivo do arguido.
Por fim, retira-se ainda dos autos que o arguido é consumidor (ainda que esporádico), destinando certamente parte do produto para seu consumo próprio; não se demonstraram as circunstâncias em que ocorreria a eventual cedência a terceiros; e o produto não se encontrava acondicionado individualmente e não foram encontrados objectos de corte / pesagem levem a considerar a existência de uma qualquer estrutura organizada tendente ao tráfico.
Mais se provou que o arguido conhecia as características estupefacientes do produto (já que o consumia), sabia que não se encontrava autorizado a detê-lo e que a sua conduta era proibida por lei. Agiu, assim, deliberada, livre e conscientemente encontrando-se preenchido o elemento subjectivo, na modalidade de dolo directo do crime em referência, pelo que deve ser condenado pelo crime que era imputado”.
Ora, concatenando todas as circunstâncias entende-se que, se por um lado, a quantidade de produto assume um relevo que por si só afastaria os limites da diminuição da ilicitude, por outro, as restantes circunstâncias indicam que estamos perante uma diminuição da ilicitude.
Em suma: o conjunto de todas as circunstâncias aponta para uma situação em que a ilicitude se revela consideravelmente diminuída, pelo que estão preenchidos os elementos objectivos e subjectivos do crime previsto no art.25º do DL n.º 15/93, de 22/1.
Pelo que ao contrário do que alega o recorrente, entendemos que bem andou a sentença recorrida ao interpretar a norma do art.25º por reporte ao art.21º no sentido de que para ser considerado crime de tráfico não é necessário que se prove a venda ou a cedência a outrem. É que consta dos elementos típicos previstos naquele art. 21º (crime base) sendo certo que a mera detenção da quantidade de estupefaciente que foi apreendida ao recorrente não se destinava ao seu consumo exclusivo, pelo que não se subsume ao preceituado no art. 40º, mas sim ao art.25º doDL.15/83.


3.2- De resto, como se referiu, o recorrente não indicou qualquer elemento de prova que sustente que a quantidade de produto estupefaciente que detinha, se destinasse, toda ele (como se impunha que sucedesse para se estar perante um crime de consumo e não de tráfico), ao seu consumo.

E contrariamente ao que alega competia-lhe a prova do elemento negativo do tipo de crime por que vinha acusado, ou seja, recaia sobre o recorrente o ónus de provar que o produto estupefaciente que detinha não se destinava senão ao seu consumo exclusivo – não apenas ao seu consumo, mas ao seu consumo exclusivo (Acórdão do STJ, de 21/06/1989, disponível em www.dgsi.pt).
Desta forma, na ausência de qualquer prova sobre o destino do produto ao consumo exclusivo do arguido e não se pondo em causa a posse da substância e as demais circunstâncias em que os factos ocorreram, claro está que mais não podia o Tribunal do que concluir pela sua condenação pela prática do crime que lhe vinha imputado.

3.3- Entende o recorrente que na dúvida, devia o Tribunal a quo ter concluído pela não verificação do crime.

De acordo com o princípio in dubio pro reo, na decisão de factos incertos a dúvida favorece o arguido. Porém, não é toda a dúvida, lançada em abstracto, que legitima o funcionamento deste princípio – estando em causa factos pretéritos existe sempre uma dúvida abstractamente possível sobre a sua verificação e/ou autoria, na certeza de que quem os aprecia não os presenciou. Mas apenas a dúvida argumentada que, em concreto – após a produção e análise crítica de todos os meios de prova relevantes e sua valoração de acordo com os critérios legais – deixa o julgador (objectivo e distanciado do objecto do processo) num estado em que permanece como razoavelmente possível mais do que uma versão do mesmo facto.
Ora, no caso em apreço, não se vislumbra que o Tribunal recorrido tenha chegado a qualquer estado de dúvida sobre a prática dos factos pelo ora recorrente, mas sim que o Tribunal chegou a um estado de certeza quanto à perpetração de tais factos por parte do mesmo. Sendo certo, também, que nenhuma dúvida se lhe ofereceu sobre a ausência de prova acerca do destino do produto ao consumo exclusivo do arguido, pois que, como já se referiu, também de nenhum elemento de prova trazido ao seu conhecimento no decurso da audiência resultou que o arguido destinasse toda aquela quantidade de produto estupefaciente ao seu consumo exclusivo.

Pelo que não foram violados quer o princípio in dubio pro reo , quer o art.32º da CRP.

3.4 – Entende, por fim, o recorrente que deve ser absolvido da prática de um crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade, p. e p. pelo art. 25.º, al. a) do DL n.º 15/93, de 22 de Janeiro, por referência à sua tabela I-C e, condenar-se pela prática de um crime p. e p. pelo art. 40.º, n.º 2 do mesmo diploma, mediante aplicação de pena de multa e aplicação do regime especial para jovens.
Ora, conforme o que atrás se disse, bem andou o tribunal em condenar o recorrente pelo crime p. e p. pelo art. art. 25.º, al. a) do DL n.º 15/93, de 22/01, por referência à sua tabela I-C.
Este crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade imputado ao arguido é punível com pena de prisão de 1 a 5 anos [art. 25, nº 1, al. a) do DL n.º 15/93, de 22/01].
Ao recorrente foi aplicado o regime previsto no DL nº. 401/82, de 23/9, atenuando especialmente a pena nos termos do art. 73º do CP, pelo que o crime imputável ao arguido é punível com pena de prisão entre um mês e três anos, 4 meses e um dia – cfr. art. 73, n.º 1, als. a) e b) do CP (pelo que não poderia ser aplicável uma pena de multa, como pretende).
Quanto à determinação e aplicação da pena, entendemos que a mesma cabe dentro dos parâmetros referidos na sentença recorrida, para onde se remete, não havendo nada a censurar quanto à oportunidade, adequação e proporcionalidade da medida encontrada, ou seja, a pena de 18 meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período, sujeito a determinados deveres de conduta.
Pelo que não procede a pretensão do recorrente.

III.
Por tudo o exposto, acordam as Juízas deste Tribunal em negar provimento ao recurso interposto pelo arguido A... e manter na íntegra a sentença recorrida.
Custas pelo recorrente que se fixam em UC’s.

Lisboa, 7 de Fevereiro de 2012

Relatora: Margarida Blasco;
Adjunta: Filomena Lima;