Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
231/1997.L1-4
Relator: MARIA JOÃO ROMBA
Descritores: REVISÃO DA INCAPACIDADE
PRAZO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/08/2012
Votação: UNANIMIDADE
Texto Parcial: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA A DECISÃO
Sumário: Não obstante o art. 187º da L. 98/2009, de 4/9 determinar que a mesma apenas é aplicável aos acidentes ocorridos após a respectiva entrada em vigor, porque o desaparecimento, no art. 70º, do prazo preclusivo para requerer a revisão da incapacidade, como constava das leis de acidentes de trabalho anteriores, constitui verdadeiramente uma alteração do conteúdo da relação jurídica emergente de acidentes de trabalho, tem pertinência a aplicação dessa norma às situações jurídicas já constituídas à data da entrada em vigor da lei, em conformidade com o disposto na parte final do nº 2 do art. 12º do CC, o que é uma forma de assegurar o princípio constitucional da igualdade de tratamento.
(Elaborado pela Relatora)
Decisão Texto Parcial:Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação de Lisboa

 No processo emergente de acidente de trabalho acima identificado, que correu termos no Tribunal do Trabalho de Almada, em que é A. e sinistrado AA e R. a Cª de Seguros BB, S.A., requereu o A. em 09 de Julho de 2010 exame médico de revisão alegando agravamento das lesões causadas pelo acidente de que foi vítima em 12 de Novembro de 1975.
A seguradora manifestou-se no sentido de que não fosse atendido o requerimento, por ser extemporâneo. O Ministério Público pronunciou-se também pelo indeferimento do requerido, por se mostrarem ultrapassados os prazos previstos no artigo 25º, nº. 2 da Lei 100/97, de 13 de Setembro e seguidamente foi proferida o despacho de indeferimento constante de fls. 109/110,que no essencial passamos a transcrever:.
            “São os seguintes os factos pertinentes para o conhecimento da admissibilidade do pedido de revisão formulado:
a) Por sentença homologatória, datada de 17.03.1982, foi fixada ao sinistrado dos autos, com início em 17.03.1981 e até 30.04.1981 a pensão anual e temporária de 24.738$00 e de 1.05.1981 a 30.09.1981 a pensão anual e temporária de 29.686$00e a pensão anual e vitalícia de 35.293$00, em consequência de uma IPP de 41,23% resultante de um acidente de trabalho de que foi vítima em 12 de Novembro de 1975.
b) Por despacho de 12.04.1989 e após ter sido requerido exame médico de revisão pelo sinistrado, foi-lhe fixada e aumentada aquela pensão anual para Esc: 127.200$00, com efeitos desde 03.04.1989, em resultado de uma IPP de 0,53, em consequência do agravamento das lesões provocadas por aquele mesmo acidente.
Dispõe o nº. 2 da Base XXII da Lei nº. 2127, de 03 de Agosto de 1965, que se impõe aplicar atendendo à data do acidente “A revisão só poderá ser requerida dentro dos 10 anos posteriores à data da fixação da pensão e poderá ser requerida uma vez em cada semestre, nos dois primeiros anos, e uma vez por ano, nos anos imediatos”.
No caso vertente, como já se disse, o acidente ocorreu em 12 de Novembro de 1975 ou seja, há muito mais de 10 anos. Contudo, não se pode olvidar que, posteriormente, a essa data formulou o sinistrado pedido de revisão, que foi julgado procedente por despacho de 12.04.1989.
Não se ignora a jurisprudência do Tribunal Constitucional, nomeadamente, a fixada no Acórdão nº. 147/2006, de 22.02.2006 e no recente Acórdão nº. 548/2009, de 27 de Outubro de 2009, no âmbito do processo nº.606/09, que decidiu “Julgar inconstitucional, por violação do direito dos trabalhadores à justa reparação dos acidentes de trabalho, consagrado no artigo 59º, nº. 1, alínea f), da Constituição, a norma do art. 25º da Lei nº. 100/97, de 13 de Setembro, interpretada no sentido de consagrar um prazo absolutamente preclusivo de 10 anos, contados a partir da data da fixação inicial da pensão devida ao sinistrado por acidente de trabalho, com fundamento em agravamento superveniente das lesões sofridas, nos casos em que desde a fixação inicial da pensão e o termo desse prazo de 10 anos tenham ocorrido actualizações da pensão, por se ter dado como provado o agravamento das lesões sofridas pelo sinistrado.” Jurisprudência a que sempre se poderia recorrer não obstante a aplicabilidade, ao caso dos autos, da citada Lei 2127.
Contudo, a situação dos autos não cai sob a alçada da jurisprudência fixada, porquanto, entre a última actualização da pensão verificada em 12.04.1989, na sequência do agravamento das lesões do sinistrado e o pedido de revisão, ora em apreço, formulado em 09 de Julho de 2010, decorreram mais de 10 anos.
Termos em que se conclui, que o pedido de revisão formulado pelo sinistrado é extemporâneo.”

            O sinistrado, não conformado, recorreu, tendo deduzido a final as seguintes conclusões:
(…)
            A Seguradora contra-alegou, pugnando pela confirmação da decisão recorrida.
No mesmo sentido se pronunciou o M.P. junto deste tribunal.

O objecto do recurso, como decorre das conclusões antecedentes, consiste apenas na questão de saber se a interpretação dada pelo tribunal recorrido ao disposto no nº 2 da base XX da L. 2127 é desconforme ao princípio constitucional da justa reparação das vítimas de acidente de trabalho e ao princípio da igualdade consagrados no art. 59º nº 1 al. f) e 13º da CRP.

Os factos pertinentes para a decisão são os que constam do relatório que antecede, podendo resumir-se essencialmente como segue:
1- O sinistrado sofreu o acidente dos autos em 12/11/75.
2- Em 17/3/82 foi homologado judicialmente o acordo que lhe fixou o direito a pensão anual com base na IPP de 41,23%.
3- Requerido pelo sinistrado exame médico de revisão, veio a ser-lhe reconhecido o agravamento para uma IPP de 53%, sendo por isso a pensão alterada em conformidade a partir de 3/4/89.
4- O sinistrado requereu em 9/7/2010 a sujeição a novo exame médico de revisão, alegando que o estado das suas lesões se agravou.

Apreciação
O caso dos autos, atenta a data do acidente, rege-se pela L. 2127, de 3/8/65, uma vez que, tanto a L. 100/97, de 13/9, como a L. 98/2009, de 4/9 expressamente dispõem que apenas são aplicáveis aos acidentes ocorridos após a respectiva entrada em vigor, ou seja, respectivamente após 1/1/2000 e 1/1/2010 (por um lado, art. 41º nº 1 al. a) da L. 100/97, conjugado com o art. 71º do DL 143/99, de 30/1 e art. 1º do DL 382-A/99, de 22/9 e, por outro lado, art. 187º nº 1 e 188º da L. 98/2009).
A base XXII da L. 2127, sobre a revisão das pensões, determina que quando se verifique modificação da capacidade de ganho da vítima proveniente de agravamento, recidiva, recaída ou melhoria da lesão ou doença que deu origem à reparação ou quando se verifique aplicação de prótese ou ortopedia as prestações poderão ser revistas e aumentadas, reduzidas ou extintas, de harmonia com a alteração verificada.
Dispõe o nº 2 da mesma base que a revisão só poderá ser requerida dentro dos dez anos posteriores à data da fixação da pensão e poderá ser requerida uma vez em cada semestre, nos dois primeiros anos, e uma vez por ano, nos anos imediatos.
Determina ainda o nº 3 que, nos casos de doenças profissionais de carácter evolutivo, designadamente pneumoconioses, não é aplicável o disposto no número anterior, podendo requerer-se a revisão em qualquer tempo; mas nos dois primeiros anos, só poderá ser requerida uma vez no fim de cada ano.
A Constituição da República, desde a revisão de 1997 inclui entre os direitos dos trabalhadores reconhecidos no art. 59º o direito “à assistência e justa reparação, quando vítimas de acidente de trabalho ou doença profissional” [nº 1 al. f)].
O Tribunal Constitucional foi chamado diversas vezes a pronunciar-se sobre a conformidade da norma contida no nº 2 da base XXII da L. 2127 com a referida norma constitucional, bem como com o princípio constitucional da igualdade consagrado no art. 13º, tendo em conta o preceituado pelo nº 3 relativamente às doenças profissionais de carácter evolutivo e ao disposto pelo art. 567º nº 2 do CC, relativamente à alteração das circunstâncias no que concerne a danos futuros (em relação à fixação inicial) em casos de indemnização por responsabilidade civil fixada em renda.
No ac. nº 155/2003 o TC julgou improcedentes as arguições de inconstitucionalidade sustentadas pelo respectivo recorrente com base na violação do princípio da igualdade. Na respectiva fundamentação pode ler-se: “Os condicionamentos temporais estabelecidos na Lei n.º 2127 e mantidos na Lei n.º 100/97 surgiram da "verificação da experiência médica quotidiana de que os agravamentos como as melhorias têm uma maior incidência nos primeiros tempos (daí a fixação dos dois anos em que é possível requerer mais revisões), decaindo até decorrer um maior lapso de tempo (que o legislador fixou generosamente em dez anos)" (cf. Carlos Alegre, Regime Jurídico dos Acidentes de Trabalho e das Doenças Profissionais, Coimbra, 2000, pág. 128).
                Neste contexto, não se reveste de flagrante desrazoabilidade o entendimento do legislador ordinário de que,  dez anos decorridos sobre a data da fixação da pensão (que pressupõe a prévia determinação do grau de incapacidade permanente que afecta o sinistrado), sem que se tenha registado qualquer evolução justificadora de pedido de revisão, a situação se deva ter por consolidada. Diferente seria a situação de, nesse lapso de tempo, terem ocorrido pedidos de revisão, que determinaram o reconhecimento judicial da efectiva alteração da capacidade de ganho de vítima, com a consequente modificação da primitiva determinação do grau de incapacidade, o que indiciaria que a situação não se poderia ter por consolidada. Não ocorreria, assim, violação do princípio da igualdade na primeira perspectiva assinalada. Com efeito, mesmo a aceitar-se como correcto – questão sobre a qual não cumpre tomar posição – o entendimento jurisprudencial, invocado pelo recorrente, segundo o qual os sinistrados que requereram uma primeira revisão dentro dos primeiros dez anos podiam requerer sucessivas revisões, desde que formuladas, cada uma delas, antes de decorrido um decénio sobre a precedente revisão, ele respeitaria a situações diversas daquelas em que decorrera por completo o prazo de dez anos desde a data da fixação da pensão sem que tivesse sido requerida qualquer revisão. Existiria, no primeiro grupo de situações, um factor de instabilidade, que não ocorreria no segundo grupo, o que não permitiria considerar como constitucionalmente ilegítima a apontada diferenciação de regimes.”
No mesmo sentido se pronunciou o TC no ac. nº 612/2008.
No ac. 147/2006 o TC julgou “inconstitucional, por violação do direito do trabalhador à justa reparação consagrado no art. 59º, nº 1 al. f), da Constituição, a norma do nº 2 da base XXII da L. 2127, de 3/8/65, interpretada no sentido de consagrar um prazo absolutamente preclusivo de 10 anos, contado  a partir da data da fixação inicial da pensão, para a revisão da pensão devida ao sinistrado por acidente de trabalho, com fundamento em agravamento superveniente das lesões sofridas, nos casos em que desde a fixação inicial da pensão e o termo desse prazo de 10 anos tenham ocorrido actualizações da pensão, por se ter dado como provado o agravamento das lesões sofridas pelo sinistrado”. No mesmo sentido foi a decisão tomada no ac. nº 161/2009 relativamente a casos em que “tendo sido, ao abrigo da base IX da mesma Lei, judicialmente determinado à entidade responsável a prestação de uma intervenção cirúrgica para além daquele prazo, o sinistrado invoque agravamento da situação clínica derivado dessa intervenção”. Idêntica apreciação foi formulada no ac. nº 59/2007 e nas decisões sumárias  nºs 390/2008, 470/2008 e 36/2009.
Apesar de as decisões nem sempre terem sido idênticas, não há entre elas, materialmente, qualquer contradição. A diversidade das decisões decorre apenas da diversidade das situações analisadas.
A decisão ora recorrida está em inteira conformidade com a orientação resultante de tais acórdãos e decisões sumárias, pois embora no caso dos autos o sinistrado tivesse visto reconhecido o agravamento da incapacidade permanente que o afecta dentro do primeiro decénio posterior à fixação inicial da pensão (mais precisamente em 3/4/89), desde essa revisão e até ao requerimento de revisão de incapacidade cuja rejeição deu causa ao presente recurso, decorreram mais de vinte anos, o que, de acordo com as regras da experiência, em particular do foro médico, que estão subjacentes à fixação do prazo referido na base XXII nº 2  da L. 2127 (e reproduzido no art. 25º da L. 100/97, de 13/9) permite considerar que as lesões e sequelas resultantes do acidente após o agravamento ocorrido em 1989, se consolidaram e estabilizaram.
Porém, embora, o prazo de 10 anos desde a fixação da pensão (entendida não apenas como a fixação inicial, mas também as eventualmente decorrentes de revisões de incapacidade),  tenha sido considerado pelo legislador e reconhecido pela jurisprudência como razoável, importa ter em conta que autores como Carlos Alegre[1] e Paulo Morgado de Carvalho[2] se pronunciaram no sentido de que seria justo e vantajoso que a lei tivesse eliminado  qualquer prazo limite para a possibilidade de revisão e de não ver razões para limitar esse prazo.
Indo ao encontro destas posições a actual Lei dos Acidentes de Trabalho, nº. 98/2009, de 4/9, ao consagrar o instituto da revisão no respectivo art. 70º deixou de prever um prazo limite para o exercício desse direito, estabelecendo apenas, no respectivo nº 3 que a revisão pode ser requerida uma vez em cada ano civil, assim dando uma expressão mais consistente ao direito constitucional dos trabalhadores à assistência e justa reparação quando vítimas de acidente de trabalho.
Embora, de acordo com a norma consignada no art. 187º da L.98/2009, esta lei apenas seja aplicável aos acidentes ocorridos após a respectiva entrada em vigor (1/1/2010, cf. art. 188º), o desaparecimento, no respectivo art. 70º, do prazo preclusivo para requerer a revisão da incapacidade constitui verdadeiramente uma alteração do conteúdo da relação jurídica emergente de acidentes de trabalho, pelo que tem plena pertinência a aplicação dessa norma às situações jurídicas já constituídas à data da entrada em vigor da lei, em conformidade com o disposto na parte final do nº 2 do art. 12º do CC. Nesse sentido se pronunciou Abílio Neto[3] em anotação ao mencionado art. 70º, o que merece o nosso acordo. Em reforço deste entendimento (que importa consequentemente uma interpretação restritiva da norma do art. 187º, ao, permitir estender aos acidentes ocorridos na vigência das anteriores leis de acidentes de trabalho a possibilidade de requerer a revisão de incapacidade independentemente de qualquer prazo) cabe sublinhar que é uma forma de assegurar o princípio constitucional da igualdade de tratamento.
Com efeito, a assim não se entender, estaria criada uma situação de desigualdade, no que a esta questão concerne, entre os sinistrados de acidentes de trabalho ocorridos na vigência da nova lei e os sinistrados de acidentes de trabalho ocorridos na vigência da L. 100/97, da L. 2127 ou da L. 1942, de 27/7/36[4], para a qual não se vislumbra fundamento material bastante, não podendo pois ter-se como ser aceitável. Daí que uma interpretação conforme ao princípio da igualdade (art. 13º da CRP) imponha que o conteúdo do art. 70º da L. 98/2009, introduzido na nossa ordem jurídica a partir de 1/1/2010, e que traduz de uma forma mais perfeita e efectiva o direito constitucional do trabalhador à justa reparação por acidente de trabalho consignado no art. 59º nº 1 al. f) da CRP, se estenda também aos acidentes ocorridos na vigência das leis anteriores, afastando-se assim, consequentemente, a aplicação da norma da base XXII nº 2 da L. 2127.
Face ao que ficou exposto não acompanhamos o despacho recorrido, que deve ser revogado e substituído por outro que, admitindo o incidente de revisão, lhe dê o andamento devido, com a realização do exame médico de revisão e ulterior decisão.


Decisão
Pelo exposto se acorda em dar provimento ao recurso, revogando o despacho recorrido e ordenando que seja substituído por outro que, admitindo o incidente de revisão de incapacidade, dê andamento à respectiva tramitação, designadamente a sujeição do sinistrado a exame médico de revisão com vista a ulterior decisão do incidente.
Custas pela recorrida.

Lisboa, 8 de Fevereiro de 2012

Maria João Romba
Paula Sá Fernandes
José Féteira
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[1] In Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais, Regime Jurídico Anotado, Almedina, 2ª ed. , pag. 129
[2] In Um Olhar sobre o Actual Regime Jurídico dos Acidentes de Trabalho, in Questões Laborais,  nº 21, pag. 74 e seg., maxime  pag. 89.
[3] In Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais, Anotado,  Ediforum, 1ª ed. Fevereiro de 2011, pag. 200.
[4] Que estabelecia para o efeito um prazo de cinco anos, a contar da data da homologação do acordo ou do trânsito em julgado da sentença, desde que sobre a data da fixação da pensão ou da última revisão tivessem decorrido seis meses, pelo menos.
Decisão Texto Integral: