Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
735-C/1999.L1-7
Relator: GOUVEIA BARROS
Descritores: EXECUÇÃO
BENS PENHORÁVEIS
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/14/2012
Votação: MAIORIA COM * DEC VOT E * VOT VENC
Texto Integral: S
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: PROVIDO
Sumário: I - A averiguação oficiosa deferida ao juiz pelo artigo 837º-A do CPC, na redacção que foi vigente até à entrada em vigor do D.L. nº38/2003, pressupõe a aferição das razões do insucesso do próprio exequente, tanto na identificação de bens penhoráveis como na sua localização.
II - Comprovado tal pressuposto, seria incoerente que a lei permitisse ao juiz indagar junto de quaisquer entidades sobre a identificação dos bens do executado, mas lhe vedasse fazê-lo junto do próprio devedor por se entender que o seu dever de cooperação está confinado à localização dos bens já nomeados.
(Sumário do Relator)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes do Tribunal da Relação de Lisboa (7ª Secção):

BANCO …, S.A., com sede em Lisboa, requereu execução da sentença proferida nos autos principais que movera a A. e B..
Tendo-se frustrado a penhora dos bens que foram sendo nomeados pelo exequente, veio este requerer a notificação dos executados para identificar bens ou valores penhoráveis.
Conclusos os autos, foi tal pretensão indeferida pelas razões constantes do despacho certificado a fls 24 e 25 e que, em síntese, confluem no entendimento de que a disposição legal invocada pelo requerente (artº837º do CPC) não legitima a notificação para o executado identificar bens penhoráveis, mas apenas para prestar a colaboração necessária à efectivação da penhora de bens determinados.
Inconformado, recorreu o exequente para pugnar pela revogação do despacho impugnado e pelo consequente deferimento da pretensão formulada.
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Não foi apresentada contra-alegação.
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Questão prévia:
Na sua alegação o recorrente questiona o efeito atribuído ao recurso, pretendendo que, em vez do efeito meramente devolutivo, deve ser-lhe fixado efeito suspensivo, sob pena de sofrer dano irreparável.
O conhecimento de tal questão cabe, em primeira-mão, na competência do relator, sem prejuízo da subsequente apreciação pela Conferência, sob reclamação do recorrente.
Porém, nada obsta a que seja apreciada em conjunto com o objecto do recurso quando, como é o caso, a decisão do recurso é feita em tempo que não possibilita a contagem provisória do processo que, alegadamente, causaria o dano irreparável.
Evita-se assim uma reclamação sem conteúdo útil mas, com o devido respeito, sem qualquer justificação.
Com efeito, só por lapso pode invocar-se que “dado o tempo que sem dúvida este tribunal levará a decidir o presente recurso, a execução será remetida à conta, nos termos e de harmonia com o disposto no artigo 51º do CCJ”.
Independentemente do tempo que demore a decisão do recurso – que não é, evidentemente, o que o recorrente receia - nunca o processo poderia ser remetido à conta quando está pendente um recurso que visa sindicar o indeferimento de uma diligência tendente à identificação de bens susceptíveis de penhora.
É óbvio que o efeito atribuído é o legal (artigo 740º, nº1 a contrario), não podendo o recorrente sofrer dano irreparável em consequência da contagem provisória do processo, pois a mera pendência do recurso impede tal contagem (a ser levada a efeito está ferida de nulidade).
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Análise do recurso:
O objecto do presente recurso consiste em determinar o alcance do dever de cooperação fixado no artigo 837º do CPC, na redacção que foi vigente até à entrada em vigor do Decreto-Lei nº38/2003, de 8 de Março.
O referido artigo, revogado pelo mencionado diploma de 2003, era encimado pela epígrafe “Averiguação oficiosa e dever de cooperação do executado” e desdobrava-se em dois números com o seguinte teor:
“1) Sempre que o exequente justificadamente alegue séria dificuldade na identificação ou localização de bens penhoráveis do executado, incumbe ao juiz determinar a realização das diligências adequadas.
2) Pode ainda o juiz determinar que o executado preste ao tribunal as informações que se mostrem necessárias à realização da penhora, sob cominação de ser considerado litigante de má fé”.
Diz-se no despacho sob recurso que “do nº2 do citado artigo 837º-A não emerge nenhuma obrigação do executado informar e identificar quais são os seus bens penhoráveis”, acrescentando-se que “a interpretação desse preceito nesse sentido conduziria, necessariamente, a uma contradição com a faculdade de nomeação de bens à penhora concedida ao executado pelo artigo 833º, nº1 do CPC”.
Por conseguinte, escreve-se no despacho, “o referido preceito legal significa, tão só e apenas, que o executado está obrigado a prestar ao tribunal todas as informações necessárias à realização de uma penhora já determinada”, mas não lhe pode ser exigida cooperação para identificar os bens que hão-de ser objecto da apreensão.
E infere-se tal limitação dizendo que, estender essa cooperação à identificação de bens penhoráveis, conflitua com a regra estabelecida no nº1 do artigo 833º que confere ao executado “a faculdade de indicar os bens sobre os quais a penhora há-de recair”.
Com o devido respeito, é patente o equívoco subjacente a esta construção.
Com efeito, a referida faculdade está reportada à escolha dos bens, deferindo a lei tal escolha, em primeira mão, ao executado, mas sob cominação de o “direito de nomeação de bens à penhora se devolver ao exequente”, se ele não usar de tal faculdade, no prazo que lhe foi consignado.
Ora uma faculdade só existe quando ao seu titular se abre a possibilidade de adoptar uma determinada conduta, sem que daí derive sanção ou constrangimento, não sendo compatível com a fixação de um qualquer efeito cominatório para o modo como é exercida.
Ou seja, ao executado é deferida por lei a possibilidade de escolher os bens a penhorar, ainda assim segundo uma determinada ordem preestabelecida, sob pena de o direito se devolver ao exequente, sendo desconsiderada a indicação por aquele feita que desrespeite as precedências estabelecidas na lei.
Na verdade, é exacto que o executado, quando notificado para indicar os bens, pode deixar de fazê-lo, mas isso não implica que lhe assista uma faculdade em sentido técnico-jurídico, porquanto nesse plano o termo faculdade equivale a um poder de gozo que faz parte estruturante de um direito subjectivo, a todos oponível.
Ora, o poder conferido ao executado de indicar bens não passa de um mero poder de facto, passível de abdicação, mas cujo não uso desencadeia relevantes efeitos jurídicos, à semelhança do que sucede com o réu quando é citado: ele pode não contestar, mas sabe que tal opção tem como corolário determinado efeito que lhe é desfavorável.
Assim, muito embora o executado possa não escolher os bens sobre que há-de incidir a penhora, conformando-se com a devolução de tal poder ao exequente, daí não pode inferir-se que, quando justificadamente o exequente alegue séria dificuldade na identificação ou localização de bens penhoráveis, a imposição sobre o executado do ónus de identificar bens penhoráveis, configure uma contradição com aquele poder de os escolher, proclamado no acto de citação.
Na verdade, na óptica do legislador a escolha dos bens pelo executado configura uma vantagem processual para o próprio e uma desvantagem para o exequente que poderia eventualmente querer a penhora de direitos de crédito, mas vai ter de conformar-se com a escolha de bens móveis pelo executado, com a inerente demora que tal escolha envolve para a satisfação do crédito.
Diversamente, o dever de cooperação previsto na disposição em análise é um constrangimento da posição jurídica do executado, que só existe com o propósito de obviar à frustração da execução.
Ora a lei (nº1 do artigo 837º-A), verificado o condicionalismo nele previsto, comete ao juiz o poder-dever de “determinar a realização das diligências adequadas” não só para localização dos bens penhoráveis, mas também para a sua identificação”.
No nº2 do mesmo artigo, estabelece que o juiz “pode ainda determinar que o executado preste ao tribunal as informações necessárias à realização da penhora”.
Assim, na tese do despacho sob recurso, embora o juiz deva mandar fazer as diligências adequadas para a identificação de bens penhoráveis, estar-lhe-ia vedado fazê-las junto do próprio executado, pois este só tem de prestar a sua colaboração na realização de uma penhora já decretada.
Estaria assim tal dever de cooperação balizado por uma espécie de princípio equivalente ao vigente noutra jurisdição e conhecido como “nemo tenetur se ipsum accusare”, que impediria o tribunal de implicar as declarações do executado na consecução das finalidades da execução.
Importa lembrar que a norma em causa foi introduzida num tempo em que, por virtude do aumento exponencial de processos executivos, os tribunais se viram tolhidos para lhes dar resposta, porquanto, a par de tal aumento, potenciado pela concessão generalizada de crédito ao consumo, se verificava também a multiplicação de meios com a virtualidade de propiciar a ocultação do património (cartões de débito que possibilitam ao devedor a mobilização de contas abertas em nome de terceiros, contratos de ALD e de locação financeira que apenas conferem ao devedor a posse mas não a titularidade dos bens, etc).
E ainda se discutia na jurisprudência se o exequente, para conseguir penhorar um saldo bancário sedeado num determinado banco, teria de indicar o número da conta ou bastaria identificar o balcão!
Por isso a consagração da solução acolhida no artigo 837º-A do CPC foi assim justificada no preâmbulo do Decreto-Lei nº 329-A/95:
“A penhora — fase verdadeiramente nuclear do processo executivo — é objecto de significativa reformulação, quanto a alguns aspectos do regime vigente, no sentido de, por um lado, obstar à frustração da finalidade básica do processo executivo, a satisfação efectiva do direito do exequente, e, por outro lado, garantir, em termos satisfatórios, os direitos ilegitimamente atingidos pela realização, conteúdo ou âmbito de tal diligência.
Assim, considera-se que o princípio da cooperação implica, desde logo, que o tribunal deva prestar o auxílio possível ao exequente quando este justificadamente alegue e demonstre existirem dificuldades sérias na identificação ou localização de bens penhoráveis do executado. Tem-se, na verdade, como dificilmente compreensível que, mesmo quem tenha a seu favor sentença condenatória transitada em julgado, possa ver, na prática, inviabilizada a realização do seu direito se não lograr identificar bens que possa nomear à penhora, sendo por demais conhecidas as dificuldades, virtualmente insuperáveis, que, numa sociedade urbana e massificada, poderá frequentemente suscitar a averiguação pelo particular da efectiva situação patrimonial do devedor e confrontando-se ainda com a possível invocação de excessivos e desproporcionados «sigilos profissionais» sobre tal matéria.
Sem prejuízo de se prescrever a existência de um dever de informação a cargo do executado, importa prever e instituir outras formas de concretização do aludido princípio da cooperação, facultando ao tribunal meios efectivos e eficazes para poder obter as informações indispensáveis à realização da penhora, o que naturalmente, pressuporá alguma atenuação dos citados deveres de sigilo, nos termos já expostos no diploma atinente ao pedido de autorização legislativa” (são nossos apenas os sublinhados).
Bastará atentar na motivação que presidiu à consagração do princípio plasmado na disposição em análise para se concluir que o “nemo tenetur” surpreendido pelo tribunal recorrido não se ajusta à intenção do legislador, pois não faria sentido que se afrouxassem os deveres de sigilo que impendem sobre terceiros e se poupasse o executado a prestar a informação com vista à identificação do seu património.
Claro que não se ignora o insucesso de tal disposição legal, que transformou o processo executivo em maratonas sem fim, visando a identificação de bens, e sem que se lograsse obter a colaboração dos executados, salvo em casos residuais (o relator, em dez anos de aplicação de tal preceito na comarca de Lisboa, só num caso obteve resposta útil do executado, por sinal um cidadão inglês…).
E também não se desconhece que na quase totalidade das situações em que o exequente vem requerer a intervenção oficiosa do tribunal na identificação/localização de bens do executado, visa sobretudo evitar a contagem provisória do processo, enredando o tribunal em diligências antecipadamente condenadas ao insucesso para conseguir tal desiderato.
Mas que censura pode merecer tal conduta quando o tribunal leva à conta de inércia do exequente o facto de, durante anos a fio, não se ter logrado penhorar um único bem do executado, mesmo que de valor inexpressivo, que leve à liquidação do julgado e não à contagem provisória das custas a cargo do exequente?
Não seria curial, de iure condendo, que em caso de frustração total da execução não se onerasse o exequente com o adiantamento das custas?
Contra este entendimento já se disse que sobre o exequente incumbe o dever de averiguar previamente a existência de bens passíveis de penhora e, por isso, corre a seu cargo a responsabilidade pela frustração da execução, se, temerariamente, não cuidou de fazer tal indagação.
Mas então, se assim é, a interpretação que advogamos torna-se ainda mais justificada, porquanto a leitura restritiva acolhida no despacho conflitua com princípios éticos e de moralidade processual: nega-se ao exequente a derradeira diligência para identificar os bens do executado e imputa-se depois à sua inércia o facto de não ter conseguido penhorar qualquer bem!
Resulta do exposto que em nosso entender o dever de informação que impende sobre o executado abarca todo o espectro da averiguação oficiosa cometida ao tribunal, ou seja, a identificação de bens penhoráveis e a sua localização.
E tanto assim é que o legislador, ciente da ineficácia do regime plasmado no artigo em análise e da sanção estabelecida para a falta de cooperação do executado, justificou a revogação do preceito operada pelo Decreto-Lei nº38/2003, dizendo que “quanto ao dever de informação do executado, intenta-se torná-lo mais efectivo, mediante a fixação de sanções pecuniárias compulsórias” (cfr. preâmbulo do diploma).
E em execução de tal propósito estabeleceu que:
Artº 833º:
5. Se o exequente não indicar bens penhoráveis, o executado é citado para, ainda que se oponha à execução, pagar ou indicar bens para penhora (…) com a advertência das consequências de uma (…) falta de declaração, nos termos do nº 7;
7 . Quando posteriormente se verifique que tinha bens penhoráveis o devedor que não haja feito qualquer declaração (…) fica sujeito a sanção pecuniária compulsória, no montante de 1% da dívida ao mês, desde a data da omissão até à descoberta dos bens”.
Por conseguinte, a par da injustiça flagrante a que a limitação defendida pelo despacho recorrido conduziria (v.g., por que razão não haveria de poder exigir-se ao executado que identifique a sua entidade patronal para se penhorar a quota parte do vencimento?), é também manifesto que a apontada restrição não encontra guarida na letra da lei, nem, como é patente, corresponde à intenção do legislador.
Em suma, o agravo merece inteiro provimento.
***
Decisão:
Atento o exposto, concede-se provimento ao agravo e, consequentemente, revoga-se o despacho o qual deverá ser substituído por outro que defira a diligência pretendida pelo agravante.
Sem custas.

Lisboa, 14 de Fevereiro de 2012

Gouveia Barros
Cristina Coelho
Maria da Conceição Saavedra

Voto de vencido
Manteria o despacho recorrido.
O citado art. 837-A do C.P.C., aplicável ao caso (antes da reforma de 2003), preconizava o dever de cooperação do executado, estabelecendo que ao mesmo competia prestar ao tribunal as “informações que se mostrem necessárias à realização da penhora, sob cominação de ser considerado litigante de má fé”.
Entender que tais informações se reportavam, então, também à obrigatoriedade da indicação de bens à penhora pelo executado é, quanto a nós e salvo o devido respeito, ir para além do previsto no indicado normativo e contrariar a filosofia ao tempo ínsita no Código do Processo Civil em matéria de acção executiva.
Na verdade, sendo o executado citado para, em 20 dias, pagar ou nomear bens à penhora, ou, no mesmo prazo, querendo, deduzir oposição, ao abrigo do disposto nos arts. 811, 812 e 816 do C.P.C., e, naquele prazo, não usando da faculdade de nomear bens à penhora (cfr. art. 833), julgamos que não seria lógico ser depois obrigado a fazê-lo nos termos contemplados no art. 837-A, nº 2, ou seja, “sob cominação de ser considerado litigante de má fé”.
Julgamos que, dentro da lógica do sistema vigente antes de 2003, aquela norma devia ser interpretada no sentido de que ao executado cumpria fornecer indicação sobre a situação dos bens que se sabia, de antemão, existirem e cujo paradeiro se desconhecia, ou que tinham desaparecido, sem justificação, do local onde se encontravam habitualmente, etc..
Quanto a nós, a versão que veio a ser acolhida no art. 833 do C.P.C. pela reforma de 2003, sobre as diligências de penhora, não contraria e antes justifica esta posição. Integrada numa diferente e nova filosofia da acção executiva, veio ali a prever-se a nomeação de bens à penhora pelo executado noutras condições. Mas, ainda assim, somente se cominou com sanção a falta de declaração ou a prestação de declaração falsa pelo executado, quando convidado a indicar bens, face à posterior descoberta de bens penhoráveis (ver nº 5 e 7 daquele normativo), o que manifestamente não previa o indicado nº 2 do art. 837-A do C.P.C. no caso aplicável.
Maria da Conceição Saavedra