Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1613/11.0TBMTJ-D.L1-2
Relator: JORGE LEAL
Descritores: INSOLVÊNCIA
EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
SALÁRIO MÍNIMO NACIONAL
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/16/2012
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I – Na fixação do valor do rendimento do insolvente a excluir da dação a efetuar em benefício dos credores tendo em vista a eventual exoneração do passivo restante terá de se levar em consideração as particularidades de cada caso, devendo ponderar-se por um lado que se está perante uma situação transitória, durante a qual o insolvente deverá fazer um particular esforço de contenção de despesas e de perceção de receitas de molde a atenuar ao máximo as perdas que advirão aos credores da exoneração do passivo restante, e por outro lado atender ao que é indispensável para, em consonância com a consagração constitucional do respeito pela dignidade humana, assegurar as necessidades básicas do insolvente e do seu agregado familiar.
II – Vivendo a requerente com uma filha menor, que está a seu cargo, suportando com eletricidade, água, gás e comunicações cerca de € 190,00, carecendo de € 300,00 por mês para alimentação, higiene e vestuário, gastando € 200,00 por mês em combustível, de que a requerente carece para se deslocar para o local de trabalho, sendo certo que mora a 50 km de distância daquele e não dispõe de transporte público que o substitua e beneficiando a filha menor de pensão de alimentos no valor mensal de € 121,10, não merece censura a decisão recorrida, que excluiu da dação o equivalente a salário mínimo e meio, ou seja, o montante de € 727,50.
(Sumário do Relator)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os juízes no Tribunal da Relação de Lisboa

RELATÓRIO
Em 20.6.2011 “A”, divorciada, apresentou-se à insolvência no Tribunal Judicial de ..., requerendo que fosse declarada a sua insolvência, com exoneração do passivo restante.
Em 22.6.2011 foi proferida sentença em que se declarou a requerente em situação de insolvência.
Em 19.9.2011 foi proferido despacho em que se admitiu liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante e determinou-se, em consequência, que durante o prazo de cinco anos a contar da data de encerramento do processo de insolvência (período da cessão), o rendimento disponível que a devedora venha a auferir, com exclusão do montante equivalente a um salário e meio mínimo nacional, seja cedido a fiduciário, ficando a devedora com as obrigações expressas no art.º 239.º n.º 4 do CIRE, sob pena de não lhe ser concedido a final o pedido de exoneração.
A requerente apelou deste despacho, tendo apresentado motivação na qual formulou as seguintes conclusões, que se transcrevem:
1. A apelante requereu a sua insolvência.
2. Na petição inicial, requereu, também, que lhe fosse concedida a exoneração do passivo restante.
3. Por despacho inicial datado de 21/09/2011, foi declarado, pelo Tribunal "a quo", que nos termos do disposto nos n.ºs 1, 2 e 3 do CIRE considera-se excluído do rendimento disponível o valor equivalente a um salário e meio mínimo nacional.
4. Fixou o Tribunal “a quo” o montante equivalente a € 727,50 (setecentos e vinte e sete euros e cinquenta cêntimos), para a requerente/apelante, pagar as suas despesas mensalmente durante o período da cessão.
5. A única questão que se submete à apreciação desse Tribunal "ad quem" consiste em saber se o montante fixado a ser excluído do rendimento disponível é suficiente para assegurar o sustento mínimo da devedora e do seu agregado familiar.
6. Pois, esse valor é nitidamente diminuto, tendo em consideração a composição do seu agregado familiar, as despesas do mesmo e as despesas que a requerente tem que suportar, forçosamente, com as suas deslocações para o trabalho.
7. O agregado familiar é composto pela requerente, uma filha menor e um filho, que apesar de maior de idade, se encontra desempregado.
8. Nenhum dos filhos aufere qualquer tipo de rendimentos, estando ambos dependentes financeiramente da requerente, excepção feita relativa à pensão de alimentos da sua filha menor, no valor de € 121,10 (cento e vinte e um euros e dez cêntimos).
9. Está-se a negar à requerente o direito a arrendar uma casa onde possa viver com os seus filhos.
10. -Tem despesas com electricidade, água, gás e comunicações de cerca de € 190,00/mês conforme comprovado nos autos, despesas essas que se mantêm.
11. Também, conforme comprovado nos autos, que despende mensalmente a quantia de cerca de € 200,00 (duzentos euros) mensais em combustível para se poder deslocar para o seu local de trabalho, que dista cerca de 50 km da sua residência, visto que não consegue compatibilizar o seu horário de trabalho com os dos transportes públicos.
12. A que acrescem, naturalmente, despesas com alimentação, higiene e vestuário, que se considerarmos o valor módico de € 5,00/dia, para três pessoas, durante o período de 30 dias, totalizará a quantia de € 450,00 (quatrocentos e cinquenta euros).
13. A alínea b) do n.º 3 do artigo 239.º do CIRE dispõe que integra o rendimento disponível todos os rendimentos que advenham a qualquer título ao devedor com excepção daqueles que sejam razoavelmente necessários para o sustento digno do devedor e do seu agregado familiar, bem como os necessários para o exercício da sua actividade profissional.
14. A um agregado familiar composto por três pessoas, uma menor e ainda estudante e um filho maior, não podem ser aplicados critérios como se fosse uma só pessoa.
15. Atendendo aos documentos junto aos autos deveria o Tribunal "a quo" ter considerado os valores que deles constam.
16. A decisão que fixou a quantia mensal de € 727,50 (setecentos e vinte e sete euros e cinquenta cêntimos) como montante destinado ao sustento da insolvente viola o regime excepcional previsto nas subalíneas i) e ii) da alínea b) do n.º 3 do artigo 239.º do CIRE.
17. Resulta do preâmbulo do Decreto-Lei n.º 53/2004, de 18/03, que aprovou o CIRE, que "conjuga (…) o princípio fundamental do ressarcimento dos credores com a atribuição aos devedores singulares insolventes da possibilidade de se libertarem de algumas das suas dívidas, e assim lhes permitir a sua reabilitação económica.", a recorrente não terá acesso a essa reabilitação económica, nem a essa nova oportunidade, porque não fica garantido o seu sustento, quanto mais o minimamente digno para viver.
18. É essa oportunidade que a apelante pretende ver consagrada.
19. Dando-se provimento à apelação, deve ser revogado o douto despacho, substituindo-se o mesmo por outro que fixe o valor excluído do rendimento disponível em dois ordenados mínimos e meio.
20. Decorre do processo que a insolvente tem despesas mensais no valor de € 840,00 (oitocentos e quarenta euros), tidas com alimentação, higiene pessoal, electricidade, água, gás, telecomunicações, transportes, devidamente explicadas e discriminadas no processo de insolvência e que não foram objecto de contestação pelos credores.
21. Concluindo, no regime de exoneração do passivo restante e para efeitos do disposto nas subalíneas i) e ii) da alínea b) do n.º 3 do artigo 239.º do CIRE, devem considerar-se excluídos do rendimento disponível os montantes tidos por razoavelmente necessários para o sustento do devedor e do seu agregado familiar, considerando-se todas as despesas devidamente documentadas e comprovadas pelo devedor.
22. Pelo que, oTribunal “a quo” fez errada interpretação e aplicação do preceito contido nas supra mencionadas subalíneas, sendo o douto despacho recorrido passível de censura.
23. O douto despacho recorrido, que determinou o rendimento indisponível da apelante em € 727,50 (setecentos e vinte e sete euros e cinquenta cêntimos), aplicou incorrectamente a "cláusula do razoável".
24. Pois, esse é, no entendimento da requerente e em conformidade com os documentos apresentados, o valor necessário para o agregado familiar poder ter uma vida condigna nos 60 (sessenta meses) seguintes ao despacho inicial de exoneração do passivo.
A recorrente terminou pedindo que seja dado provimento ao recurso, alterando-se o despacho em crise na parte que determinou o rendimento disponível que a devedora, ora apelante, venha a auferir, com exclusão do montante equivalente a um salário e meio mínimo nacional, seja cedido ao fiduciário, e em consequência declarar-se a entrega ao fiduciário do rendimento disponível, com exclusão do montante equivalente a dois salários mínimos e meio.
A credora reclamante “Banco 1” de ..., ... e ..., CRL, contra-alegou, pugnando pela manutenção da decisão recorrida.
Foram colhidos os vistos legais.
FUNDAMENTAÇÃO
A única questão a apreciar neste recurso é se deve ser aumentado, para o correspondente a dois salários e meio mínimos nacionais, o valor do rendimento auferido pela devedora que deverá ser excluído da cessão em benefício dos credores a operar durante o período fixado tendo em vista a sua eventual exoneração do passivo restante.
Na sentença que declarou a insolvência foi dada como provada a seguinte
Matéria de Facto
1. A requerente está atualmente empregada, na sociedade “B” — ..., Ld.a, com escritórios sitos na Urbanização ..., ..., Lote ..., 0000-000 ..., desempenhando as funções de primeiro-oficial.
2. Celebrou com a sua entidade patronal contrato a termo certo, em 2 de janeiro de 2009, sendo que antes trabalhou para a sociedade “C”-Consulting & Services, S.A., cerca de um ano e meio, no mesmo ramo.
3. Aufere mensalmente o salário líquido no valor de € 1.284,68 (mil duzentos e oitenta e quatro euros e sessenta e oito cêntimos).
4. Além do seu vencimento, os rendimentos de que dispõe são os correspondentes a 58,5% da renda recebida como contrapartida do arrendamento do imóvel sito na Rua ..., n.° ..., 3.° Andar Dt.°, 0000-000 ..., no valor mensal de € 510,00 (quinhentos e dez curos).
5. O passivo da requerente ascende atualmente ao valor global de € 409.013,50 (quatrocentos e nove mil e treze euros e cinquenta cêntimos), a que acrescem juros legais.
6. Quando se divorciou, tinha um ordenado de cerca de € 1.500,00 (mil e quinhentos euros) líquidos, aos quais acrescia a pensão de alimentos dos filhos, no valor de € 200,00 (duzentos euros), ficando com um rendimento disponível no valor de € 1.700,00 (mil e setecentos euros).
7. Assim, adquiriu para habitação própria e permanente um imóvel, sito na Rua Dr. ..., n.° ..., rés do chão Esq.°, 0000-000 ..., para viver com os seus dois filhos, que na altura eram ambos menores.
8. Para tal, teve de recorrer a empréstimo bancário, celebrando dois contratos, a saber, um de venda, mútuo com hipoteca e fiança e outro de mútuo com hipoteca e fiança, no valor global de € 127.500,00 (cento e vinte e sete mil e quinhentos euros), junto do Banco “Banco 2”, pagando mensalmente a quantia aproximada de € 500,00 (quinhentos euros).
9. O remanescente dos seus rendimentos permitia-lhe fazer uma vida confortável, na companhia de seus dois filhos.
10. Sucede que conheceu o seu ex-companheiro, pessoa com quem viveu cerca de dois anos e em quem depositou toda a sua confiança.
11. Pensando em refazer a sua vida, na companhia dessa pessoa, que também tinha duas filhas, e pensando no bem-estar dos filhos de ambos, resolveram adquirir uma casa maior, que comportasse o alargado agregado familiar, composto por 6 (seis) pessoas.
12. Assim, contraíram (junto da instituição “Banco 1”, ... e ..., C.R.L., instituição para a qual trabalhava (e trabalha) o seu ex-companheiro) mútuos para aquisição do imóvel sito na Rua ..., n.° ..., 3.° Dt.°, 0000-000 ..., nos valores de € 155.000,00 (cento e cinquenta e cinco mil euros) e de € 30.000,00 (trinta mil euros).
13. Tendo procedido à transferência do crédito que o seu companheiro tinha naquela instituição, para uma reestruturação da dívida já existente (pertencente exclusivamente ao seu ex-companheiro), acedeu a requerente a efetuar novo contrato de mútuo em conjunto com aquele, no valor de € 115.000,00 (cento e quinze mil euros).
14. Entretanto, a requerente começou a ter problemas laborais, entrando mesmo em depressão e acabando por perder o seu emprego.
15. O seu companheiro contraía dividas e tal situação levou à rutura da vida em comum, subsistindo tais dívidas até à presente data.
16. Com tal rutura, a requerente voltou a residir no imóvel sito na Rua Dr. ..., n.° ..., rés do chão Esq.°, sua residência atual.
17. No intuito de resolver a situação do imóvel sito na Rua ... e para que fosse promovida a sua venda, foram contactadas várias imobiliárias, sem qualquer sucesso, ficando o imóvel para venda durante cerca de 3 anos.
18. Sempre na tentativa de resolução da situação, para fazer face ao pagamento dos empréstimos contraídos, deram de arrendamento o imóvel pelo valor de € 10.200,00 (dez mil e duzentos euros) anuais, a que corresponde a renda mensal de € 810,00 (oitocentos e dez euros).
19. Quando o imóvel foi objeto de arrendamento já existiam várias prestações relativas à amortização dos empréstimos que não haviam sido pagas.
20. Face a tais faltas de pagamento das prestações bancárias e ao não pagamento da renda por parte da inquilina, a instituição de crédito, “BANCO 1”, instaurou processo executivo, que correu termos no Tribunal de Família e Menores e de Comarca de Loures, pela 2.a Vara de Competência Mista, sob o n.° .../10.8TCLRS.
21. Pelo que, vendo-se confrontada com um processo executivo, a requerente e o seu ex-companheiro, “D”, recorreram a novo crédito, no valor de € 16.700,00 (dezasseis mil e setecentos euros), no sentido de regularizarem a situação e ser extinto o referido processo, o que veio a acontecer.
22. Atualmente, a inquilina continua em incumprimento, não procedendo ao pagamento das rendas estipuladas, e a requerente vê-se impossibilitada de cumprir também as suas obrigações face à “Banco 1”.
23. Apesar dos esforços que a requerente tem vindo a efetuar para proceder ao pagamento atempado das amortizações correspondentes aos empréstimos, na tentativa de não entrar de novo em incumprimento, o seu ex-companheiro não procede ao aprovisionamento da conta na proporção que lhe corresponde.
24. A requerente é dona de um veículo automóvel, matrícula ...-...-..., marca ..., modelo ..., que se viu forçada a adquirir para se poder deslocar para o seu local de trabalho, o qual dista cerca de 50 km da sua atual residência, sem que tenha transporte público para o fazer.
25. Essa viatura automóvel avariou e encontra-se presentemente na oficina Auto “E” Reparação de Automóveis, Ld.a, Complexo ... , Armazém ..., 0000-000 ..., sem que a requerente disponha do montante necessário para proceder à sua reparação.
26. Esse veículo automóvel foi adquirido mediante recurso ao crédito e sobre o mesmo incide reserva de propriedade.
27. A requerente não dispõe de quaisquer bens móveis que não os imprescindíveis à sua economia doméstica e que se encontram na sua residência.
28. Tem uma filha menor a seu cargo, que se encontra a frequentar o 12.° ano de escolaridade na Escola Secundária de ..., recebendo uma pensão de alimentos no valor de € 121,10 (cento e vinte e um euros e dez cêntimos).
29. A requerente não é titular de qualquer empresa, nem o foi nos últimos três anos.
30. Não tem, atualmente, quaisquer ações judiciais ou execuções contra si pendentes.
31. A requerente não tem contabilidade organizada ou qualquer pessoal ao seu serviço.
32. A requerente não é titular de qualquer estabelecimento.
33. As suas despesas mensais com eletricidade (€ 87,43), água (€ 16,44), gás (€ 28,71) e telefone (€ 58,00), ascendem em média ao valor de € 190,00 (cento e noventa euros) mensais.
34. A requerente apresenta as seguintes receitas e despesas/encargos mensais:
-Receitas:
Ordenado: € 1.284,68;
Renda da fração, sita na Rua ..., n.° ..., 3.° Dt.°: 58,5% de € 850,00: € 510,00;
Pensão de alimentos da filha menor: € 121,10.
Total: € 1.915,78.
-Despesas:
“BANCO 1” Amortização do empréstimo n.° ... (metade da prestação): € 261,48;
“BANCO 1” Amortização do empréstimo n.° …(metade da prestação): € 30,84;
“BANCO 1” –Amortização do empréstimo n.° … (metade da prestação): € 178,05;
“BANCO 1” Amortização do empréstimo n.° … (metade da prestação): € 148,20;
Seguro de vida relativo aos empréstimos supra à “BANCO 1”: € 70,27;
Condomínio da fração, sita Rua ... — 58,5%: € 34,50;
IMI da fração sita Rua Dr. ... — € 355,00 anual: € 29,58;
“Banco 2” – Amortização do empréstimo n.° .../…: € 98,34;
“Banco 2” – Amortização do empréstimo n.° …/…: € 355,20;
“Banco 2” – Cartão de crédito ...-00: € 49,95;
Seguro de vida relativo aos empréstimos “Banco 2”: € 61,23;
Condomínio da fração sita na Rua Dr. ...: € 29,66;
Eletricidade: € 87,43;
Água: € 16,44;
Gás: € 28,71;
TV Cabo: € 58,74;
Amortização do empréstimo n.° … — Crédito para compra de viatura automóvel: € 267,28;
Amortização do empréstimo n.° … — Crédito para aquisição de computador: € 38,97;
Gasolina € 200,00;
Total: € 2.044,85.
35. A requerente subsiste mediante auxílio de terceiros, nomeadamente de seus pais e de sua tia, sendo esta última quem faz face ao pagamento da amortização mensal do empréstimo do imóvel onde reside atualmente.
36. São os seguintes os credores da requerente:
a. “Banco 1” de ..., ... e ..., CRL, com sede na Av. ..., n.° …-A, 0000-000 ..., sendo o débito no valor de € 283.294,00;
b. Banco “Banco 2”, S.A., com sede Rua ..., n.° ..., 0000-000 Lisboa, sendo o débito no valor de € 116.396,00;
c. Banco “Banco 3”, S.A., Av. ..., n.° ..., 3.° Andar, 0000-000 ..., sendo o débito no valor global de € 8.290,00;
d. “F” Administração do Condomínio do prédio sito na Rua ..., n.° ..., 3.° Dt. °, 0000-000 ..., com sede na Rua de ..., n.° ..., 0000-000 ..., sendo o débito no valor de € 1.033,50.
37. São os seguintes os bens e rendimentos existentes no património da requerente, além do seu salário mensal:
- Bens Imóveis:
- Fração autónoma designada pela letra "G", correspondente ao terceiro andar direito, destinada a habitação, com garagem na cave e arrumos no sótão, do prédio urbano em regime de propriedade horizontal, sito na Rua ..., n.° ..., freguesia e concelho de ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.° ..., da dita freguesia, e inscrito na respetiva matriz predial sob o artigo ..., na proporção de quinhentos e oitenta e cinco/mil avos indivisos, adquirida pelo valor de € 242.500,00, com o valor patrimonial de € 154.631,70.
Rendimento: renda anual no valor de € 10.200,00 (dez mil e duzentos euros) a que corresponde a renda mensal de € 850,00 (oitocentos e cinquenta euros), dos quais a sua proporção é no valor de € 510,00 (quinhentos e dez euros).
- Fração autónoma designada pela letra "G", correspondente ao rés do chão esquerdo com entrada pelo número ..., destinado a habitação, com espaço de arrumos na cave, identificado pelo número três e um terraço, do prédio urbano, sito no Sítio ..., lote ..., freguesia e concelho de ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o número ..., inscrito na matriz da respetiva freguesia sob o artigo ..., adquirida pelo valor de € 127.500,00, com o valor patrimonial de € 50.719,51.
O Direito
O processo de insolvência é, nos termos da formulação legal, “um processo de execução universal que tem como finalidade a liquidação do património de um devedor insolvente e a repartição do produto obtido pelos credores, ou a satisfação destes pela forma prevista num plano de insolvência, que nomeadamente se baseie na recuperação da empresa compreendida na massa insolvente” (art.º 1º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, - CIRE - aprovado pelo Decreto-Lei nº 53/2004, de 18 de março, entretanto alvo de alterações que para o caso não relevam).
De atentar, contudo, que, no que respeita aos insolventes pessoas singulares, e no dizer do Preâmbulo do Código, este “conjuga de forma inovadora o princípio fundamental do ressarcimento dos credores com a atribuição aos devedores singulares insolventes da possibilidade de se libertarem de algumas das suas dívidas, e assim lhes permitir a sua reabilitação económica. O princípio do fresh start para as pessoas singulares de boa fé incorridas em situação de insolvência, tão difundido nos Estados Unidos, e recentemente incorporado na legislação alemã da insolvência, é agora também acolhido entre nós, através do regime da «exoneração do passivo restante». O princípio geral nesta matéria é o de poder ser concedida ao devedor pessoa singular a exoneração dos créditos sobre a insolvência que não forem integralmente pagos no processo de insolvência ou nos cinco anos posteriores ao encerramento deste. A efectiva obtenção de tal benefício supõe, portanto, que, após a sujeição a processo de insolvência, o devedor permaneça por um período de cinco anos — designado período da cessão — ainda adstrito ao pagamento dos créditos da insolvência que não hajam sido integralmente satisfeitos. Durante esse período, ele assume, entre várias outras obrigações, a de ceder o seu rendimento disponível (tal como definido no Código) a um fiduciário (entidade designada pelo tribunal de entre as inscritas na lista oficial de administradores da insolvência), que afetará os montantes recebidos ao pagamento dos credores. No termo desse período, tendo o devedor cumprido, para com os credores, todos os deveres que sobre ele impendiam, é proferido despacho de exoneração, que liberta o devedor das eventuais dívidas ainda pendentes de pagamento.
A ponderação dos requisitos exigidos ao devedor e da conduta recta que ele teve necessariamente de adoptar justificará, então, que lhe seja concedido o benefício da exoneração, permitindo a sua reintegração plena na vida económica.”
O referido regime, assim exposto no preâmbulo do CIRE, está regulado nos artigos 235.º a 248.º do CIRE.
Dele resulta que no caso da insolvência de pessoa singular de boa fé a proteção dos credores não esgota a finalidade do processo, havendo também, caso tal tenha sido requerido pelo devedor, o desiderato de lhe possibilitar um recomeço da sua vida, exonerando-o das dívidas que, passado um período de esforço sério de pagamento do devido, ainda subsistam. O requerente assumirá o compromisso de não ocultar os rendimentos que aufira e o seu património e de diligenciar pelo exercício de uma “profissão remunerada” (n.º 4 do art.º 239.º do CIRE), entregando ao fiduciário todos os rendimentos que venha a auferir e que constituam rendimento disponível.
Nos termos da alínea b) do n.º 3 do art.º 239.º do CIRE, será excluído do rendimento disponível o que for “razoavelmente necessário para”:
i) “O sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar, não devendo exceder, salvo decisão fundamentada do juiz em contrário, três vezes o salário mínimo nacional”;
ii) “O exercício pelo devedor da sua actividade profissional”;
iii) “Outras despesas ressalvadas pelo juiz no despacho inicial ou em momento posterior, a requerimento do devedor.”
Ou seja, ao insolvente será garantido o que for razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar, nessa medida cedendo os interesses dos credores. A lei presume que um valor superior a três salários mínimos excede o que é razoavelmente necessário para o indicado fim, pelo que em princípio o juiz não deverá ultrapassar tal limite, salvo em situações devidamente justificadas.
O valor a fixar terá de levar em consideração, obviamente, as particularidades de cada caso, devendo ponderar-se por um lado que se está perante uma situação transitória, durante a qual o insolvente deverá fazer um particular esforço de contenção de despesas e de perceção de receitas de molde a atenuar ao máximo as perdas que advirão aos credores da exoneração do passivo restante, e por outro lado atender ao que é indispensável para, em consonância com a consagração constitucional do respeito pela dignidade humana (art.º 1.º da CRP), assegurar as necessidades básicas do insolvente e do seu agregado familiar.
Interessa, atendendo ao disposto no n.º 3 do art.º 8.º do Código Civil, averiguar em que termos têm os tribunais concretizado a supra referida cláusula aberta ou indeterminada.
Assim, a Relação de Lisboa, a uma insolvente solteira, que residia com os pais, nada se sabendo quanto aos rendimentos destes, atribuiu o salário mínimo (acórdão de 15.12.2011, processo 350/10.8TJLSB-E.L1-7). A uma insolvente que vivia só, pagava € 330,00 de renda e suportava € 200,00 de outras despesas, excluíram-se da dação € 530,00 (Rel. Lisboa, 07.12.2011, 1592/10.1TBSSB-B.L1-2). A uma insolvente com a mãe a cargo reservou-se o montante de € 550,00 por mês (Rel. Lisboa, 30.11.2011, 8549/10.0TCLRS.L1-8). A um casal de insolventes com filha menor e € 900,00 de despesas com água, eletricidade, gás, alimentação, assistência médica, transportes e renda da casa, foi excluído o montante de € 900,00 (Rel. Lisboa, 17.11.2011, 505/11.8TBPDI-H.L1-6). A um casal insolvente, com duas filhas menores a cargo, de 1 e 7 anos de idade, foi salvaguardado o montante mensal de € 1 200,00 (Rel. Lisboa, 09.11.2011, 1311/11.5TBPDL-B.L1-1). A um requerente que vivia em casa de um amigo, contribuindo para as despesas da casa com cerca de € 100,00 por mês e que gastava em média com alimentação e outras despesas básicas quantia não inferior a € 200,00, foi atribuído o salário mínimo mensal, no valor de € 485,00 (Rel. Lisboa, 22.9.2011, 2924/11.0TBCSC-B.L1-8). A um casal de insolventes que se encontrava em processo de separação e em que ele padecia de sérios problemas de saúde, foi atribuído o equivalente a dois salários mínimos à requerente e três salários mínimos ao requerente (Rel. Lisboa, 12.4.2011, 1359/09TBAMD.L1-7). A uma insolvente divorciada, que pagava € 410,00 de renda de casa, com vários problemas de saúde e algumas exigências de imagem resultantes da sua vida profissional, atribuiu-se € 1 150,00 (Rel. Lisboa, 18.01.2011, 1220/10.5YXLSB-A.L1-7). A uma insolvente divorciada, com dois filhos menores, estudantes, a seu cargo, foi atribuído € 550,00 por mês (Rel. Lisboa, 04.5.2010, 4989/09.6TBSXL-B.L1-1). A um insolvente divorciado, que vivia em casa emprestada e cujos filhos já eram maiores, desconhecendo-se nos autos pormenores sobre a respetiva situação pessoal, foi atribuído € 600,00 por mês (Rel. Lisboa, 20.4.2010, 1621/09.1T2SNT.L1-1). Em benefício de um insolvente que pagava € 400,00 de renda de casa, foi excluído o equivalente a dois salários mínimos (Rel. Porto, 26.9.2011, 1202/11.0TBGDM-A.P1). A favor de um insolvente que vivia com a companheira em casa própria e tinha a cargo um filho menor, foi excluído o equivalente a dois salários mínimos (Rel. Porto, 10.5.2011, 1292/10.2TJPRT-D.P1). A um casal de insolventes que tinha a seu cargo um filho maior, estudante universitário, e em cujas despesas se incluía € 175,00 mensais de transporte da requerente para o local de trabalho, foi atribuído o total de € 1 256,00 (Rel. Coimbra, 28.9.2010, 1826/09.5T2AVR-C.C1). A um casal de insolventes com um filho menor, que suportava € 300,00 de renda de casa, foi atribuído o montante de € 700,00 (Rel. Guimarães, 26.10.2011, 1703/10.7TBBCL.G1). A uma insolvente viúva, que vivia sozinha em casa arrendada por € 200,00 mensais, foi atribuído o salário mínimo (Rel. Guimarães, 03.5.2011, 4073/10.0TBGMR-A.G1).
Em toda esta jurisprudência se faz notar, aliás em consonância com a jurisprudência constitucional (vide, v.g., acórdão do TC nº 177/2002, com força obrigatória geral, publicado no D. R., 1ª série-A, nº 150, de 02.7.2004, p. 5158), de que são reflexo as alterações introduzidas ao art.º 824.º do CPC pelo Dec.-Lei n.º 38/2003, de 8.3, que o salário mínimo nacional será um valor referencial a ter em conta como indicativo do montante mensal considerado como essencial para garantir um mínimo de subsistência condigna.
Reportemo-nos ao caso dos autos.
Nas suas alegações a requerente alega que o seu agregado familiar é composto por si, por uma filha menor e por um filho maior, que se encontra desempregado e que depende de si financeiramente.
No requerimento inicial, em que a insolvente pediu a exoneração do pedido restante, a ora apelante não mencionou essa relação de dependência do aludido filho maior, o qual não consta na discriminação dos encargos que a requerente aí fez esmiuçadamente (cfr. art.º 42.º do requerimento inicial). Daí que na sentença em que se decretou a insolvência e se deram como provados praticamente todos os factos alegados pela requerente, essa situação não figure na matéria de facto dada como provada. De resto, a mesma não está minimamente documentada nos autos, pese embora o Sr. administrador da insolvência, no relatório que elaborou ao abrigo do art.º 155.º do CIRE, a tenha dado como assente, ao que se julga com base nas declarações da insolvente e da sua advogada, invocadas no relatório.
Assim, sendo certo que essa questão não foi apresentada à 1.ª instância e reiterando que “a invocação das necessidades do devedor e o oferecimento da respetiva prova, em ordem a obter a fixação do montante referido atrás, deve ser feita no pedido de exoneração do passivo restante” (como se ajuizou no acórdão da Relação do Porto, de 02.6.2011, processo 347/8.8TBVCD-F.P1, Internet, dgsi-itij), não pode dar-se como provada a invocada pertença do alegado filho maior ao agregado familiar da requerente, nem a sua dependência económica da requerente.
Refere ainda a requerente que a decisão recorrida a impede de vir a arrendar casa.
Vejamos.
Resulta dos factos supra dados como provados (n.ºs 16, 7, 8, 34, 35 e 36 b)) que a requerente vive em casa própria, hipotecada para garantia de empréstimos celebrados tendo em vista a sua aquisição, cuja prestação tem sido suportada por uma sua tia, empréstimo esse que faz parte do passivo considerado na insolvência. Assim, por ora o encargo com a habitação em que a apelante reside está sujeito ao rateio próprio da liquidação e do período de cessão. Se a casa for transacionada ou por qualquer outra razão a requerente a deixar, a despesa com habitação que daí advirá deverá ser então dada a conhecer ao tribunal, podendo ser ponderada nos termos e para os efeitos previstos no ponto iii) da alínea b) do n.º 3 do art.º 239.º do CIRE, supra transcrito.
Por ora e face ao exposto o supra referido encargo com habitação não deve ser considerado para os efeitos agora em análise.
Assim, importa considerar que:
A requerente aufere o vencimento líquido mensal de € 1 284,63 (n.º 3 da matéria de facto).
A requerente vive com uma filha menor, que está a seu cargo (n.º 28 da matéria de facto). Suporta com eletricidade, água, gás e comunicações cerca de € 190,00 (n.º 33 e 34 da matéria de facto). Embora no factualismo dado como provado na sentença (certamente porque a requerente, eventualmente por lapso, nada invocou a esse respeito) nada se dê como provado no que concerne a despesas com alimentação, higiene e vestuário, aceita-se como razoável o montante indicado pela apelante, de € 5,00 diários por pessoa, o que equivale a 30 x € 5,00 x 2 = € 300,00 por mês (cfr. conclusão 12.ª das alegações da apelante). A isto acresce o gasto de € 200,00 por mês em combustível, de que a requerente carece para se deslocar para o local de trabalho, sendo certo que mora a 50 km de distância daquele e não dispõe de transporte público que o substitua (n.ºs 24 e 34, parte final, da matéria de facto).
Assim, o agregado familiar da requerente suporta despesas no montante mensal de € 690,00. Ora, o tribunal recorrido excluiu da dação o equivalente a salário mínimo e meio, ou seja, atento o disposto no Dec.-Lei n.º 143/2010, de 31.12, o montante de € 727,50. Se se atentar que além disso a filha da requerente beneficia de pensão de alimentos no valor mensal de € 121,10 (n.ºs 28 e 34 da matéria de facto) conclui-se que o valor fixado pela primeira instância é razoável, enquadrando-se naquilo que tem sido ajuizado pelos nossos tribunais.
A apelação deve, pois, improceder.

DECISÃO
Pelo exposto, julga-se a apelação improcedente e consequentemente mantém-se a decisão recorrida.
As custas da apelação são a cargo da massa insolvente.

Lisboa, 16 de Fevereiro de 2012

Jorge Manuel Leitão Leal
Pedro Martins
Sérgio Almeida