Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
374/1995.L1-6
Relator: AGUIAR PEREIRA
Descritores: ALTERAÇÃO DA ESTRUTURA DO PRÉDIO
ACÇÃO DE DESPEJO
ARRENDAMENTO
RESOLUÇÃO DO CONTRATO
LEI APLICÁVEL
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 03/23/2012
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: 1. Os fundamentos de resolução de um contrato de arrendamento são aqueles que estejam previstos no regime jurídico vigente na data em que ocorreu o incumprimento do contrato que o justifiquem.
2. O arrancamento, pelo arrendatário, de uma árvore e a construção não autorizada de uma sala com lareira no quintal do prédio arrendado, com cerca de 6 m2, encimada por um terraço cujo telhado se apoia na antiga parede exterior do prédio e de que resultou terem passado a ser divisões interiores uma cozinha e uma divisão que confrontava com o quintal, constitui alteração substancial da estrutura externa e da disposição interna das divisões que confere ao senhorio o direito a resolver o contrato de arrendamento.
( Da Responsabilidade do Relator )
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: EM NOME DO POVO PORTUGUÊS, ACORDAM OS JUÍZES DESEMBARGADORES DA 6ª SECÇÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA:

I – RELATÓRIO
a) No Tribunal Judicial da Comarca de ... A , viúva, residente (…) em ..., B , casada, residente (…) em ..., C , casado, residente (…) em ... e D , solteiro, maior, residente (…) em ..., intentaram a presente acção de despejo, com processo sumário, contra E e esposa, F , residentes (…) em ..., visando a declaração de resolução do contrato de arrendamento celebrado verbalmente entre as partes em 1969 e com base na alteração substancial da estrutura externa e interna do prédio sem consentimento do senhorio.
Subsidiáriamente os autores invocam a necessidade do locado para nele o autor D instalar a sua residência e de sua família, alegando matéria de facto integradora do fundamento legal de denúncia do contrato para o termo do prazo.
b) Os réus, regularmente citados, apresentaram contestação em que, para além de pedirem a suspensão da instância por falta de apresentação do documento escrito e de prova do direito de propriedade dos autores e de invocarem a nulidade da petição inicial por contradição de pedidos, impugnam os factos alegados pelos autores como fundamento do pedido de resolução do contrato de arrendamento por, alegadamente, as obras terem sido feitas com consentimento do senhorio e como fundamento do pedido de denúncia do contrato, contestando a necessidade do locado por parte dos autores.
c) A tal articulado responderam os autores, concluindo como na petição inicial.
d) Teve lugar uma audiência preparatória.
Foi proferido despacho saneador, em que se considerou não haver razão para suspensão da instância e que não procedia a excepção da ineptidão da petição inicial.
Foi seleccionada a matéria de facto assente e controvertida.
A instância esteve suspensa por falecimento da autora (…) e até à habilitação dos respectivos herdeiros.
Teve lugar a audiência de julgamento, no âmbito da qual foi decidida a matéria controvertida.
Foi então proferida sentença que julgou a acção improcedente e absolveu os réus do pedido atenta a circunstância de obstar à resolução do contrato o facto de a ré F ter 67 anos de idade e o réu E 68 anos de idade.
e) Inconformados com tal decisão dela interpuseram recurso de apelação os autores.
Por acórdão deste Tribunal da Relação de Lisboa proferido a 4 de Março de 2008 (fls 289 a 304) foi anulado o julgamento a fim de se proceder à ampliação da matéria de facto.
Teve lugar audiência de julgamento relativa à matéria de facto aditada, após o que foi proferida nova sentença que julgou procedente a acção e declarou resolvido o contrato de arrendamento dos autos.
f) Inconformada interpôs recurso de apelação da sentença que assim decidiu a ré F .
São do seguinte teor as conclusões das respectivas alegações:
“1. Na douta sentença recorrida optou-se pela aplicação do velho RAU, afastando-se a aplicação do NRAU.
2. À realização de obras pelo locatário, sem autorização, aplicam-se actualmente as disposições do nº 2 do artigo 1083º do Código Civil, na redacção dada pela Lei 6/2006, de 27 de Fevereiro (NRAU); Estas não foram abrangidas pelas disposições transitórias previstas nos artigos 26º a 58º e 59º nº 1, in fine, do NRAU;
3. Assim, no caso sub judice, porque está em causa uma acção judicial de despejo cujo fundamento consiste na execução de obras pelo inquilinos e não estando esta situação excepcionada pelo artigo 260, "pode-se concluir que o Novo Regime de Arrendamento Urbano (NRAU) tem aqui plena aplicação, inexistindo fundamentação legal para arredar os seus principias ou subtrairmos do seu campo de aplicação o caso em análise".
A causa deverá ser julgada de harmonia com a lei actualmente vigente e não com apelo à lei antiga, em vigor à data da petição inicial em Juízo, pois a estatuição da 2a parte do na 2 do artigo 120 do Código Civil não pode ser arredada sem preceito legal que tal determine".
4. As obras realizadas pelos inquilinos consistiram, essencialmente, na construção de uma sala com lareira e com 6 m2 (marquise) no logradouro (retaguarda) do locado para melhoria do conforto e comodidade destes e até vieram aumentar o valor venal e funcionável da moradia encontrando-se justificadas, nos termos do artigo 10430, nº 1, do Código Civil.
5. Aos autores caberá o direito de exigirem que o locado lhes seja devolvido no estado em que foi arrendado (em 01.01.69) sem a sala (marquise) construída e que sejam indemnizados do justo valor da laranjeira arrancada. A liquidação dos devedores dos inquilinos far-se-á com a cessação do Contrato.
6. Não se vislumbra que a acção dos inquilinos seja de tal modo grave que, pelas suas consequências, tome inexigível aos senhorios a manutenção do Contrato com fundamento na realização de obras;
7. Estando em causa um arrendamento de há muitos anos (42), celebrado por um ascendente dos autores, há muito falecido, e as características da sala (marquise) construída no logradouro do locado, levam a concluir que os A.A. (actuais senhorios) vieram agir com manifesta má fé”.
Assim, foram violadas as disposições dos artigos 1043 e 1083º, ambos do Código Civil, na redacção dada pela Lei 6/2006, de 27 de Fevereiro (NRAU).
g) Os autores apresentaram contra alegações defendendo a manutenção do decidido e a declaração de resolução do contrato de arrendamento seja qual for o regime jurídico aplicável.
Ao abrigo do disposto no artigo 684-A do Código de Processo Civil os autores requerem a ampliação do âmbito do recurso por forma a abranger a apreciação do pedido de denúncia do contrato de arrendamento para o fim do prazo e que a sentença considerou prejudicada em função da procedência do pedido de declaração de resolução.
h) Colhidos os vistos legais dos Exmº Juízes Desembargadores adjuntos, cumpre agora apreciar e decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO
A) OS FACTOS
São os seguintes os factos considerados provados na douta sentença impugnada:
1. Os autores têm registado a seu favor na Conservatória de Registo Predial o prédio urbano sito na Rua (…) em ..., inscrito na matriz predial sob o art.º ....
2. Por contrato verbal celebrado em 01.01.1969, este imóvel foi arrendado, para fins habitacionais, ao réu marido, por um período de um mês, pela renda inicial de 600$00.
3. Sendo actualmente a renda mensal de 8.300$00.
4. O autor D é filho da autora B e nasceu em 2 de Agosto de 1970.
5. O réu E nasceu em 9 de Setembro de 1938 e a ré F nasceu em 12 de Julho de 1940.
6. O imóvel é composto por cinco divisões desde 1960.
7. Ou seja, era uma casa térrea com cozinha, casa de banho e mais três divisões.
8. No logradouro existiam três laranjeiras e uma oliveira.
9. Em data indeterminada, os réus arrancaram uma laranjeira.
10. Os réus edificaram uma sala com lareira.
11. Com uma área aproximada de 6 m2 e encimada por um terraço.
12. O telhado desta divisão apoia-se na antiga parede exterior do arrendado.
13. Este acrescento da nova sala tornou interior a divisão da casa que confrontava com o quintal.
14. E ainda a cozinha.
15. A porta da cozinha passou a servir de acesso à nova sala, em vez de servir de passagem para o quintal.
16. Os autores A e filho vivem na mesma casa.
17. O referido autor exerce a profissão de professor em ..., sendo também estudante universitário.
18. A casa onde estes autores habitam possui 3 divisões assoalhadas, cozinha e WC.
19. O autor D pretende uma casa onde possa instalar a sua economia doméstica e estabelecer a sua vida social e familiar, independentemente de sua mãe.
20. Ali fixando a sua residência e de sua família, que pretende neste momento constituir.
21. O autor D não possui, nem possuiu em qualquer ponto do país outra casa própria ou arrendada.
22. A ré F encontra-se incapaz, definitivamente, para a sua profissão.
23. A referida ré era operária fabril ao serviço da empresa (…), para quem trabalhou até Fevereiro de 1989.
B) O DIREITO
Importa agora apreciar as questões colocadas nas conclusões das alegações de recurso as quais delimitam, em regra e com ressalva das questões de conhecimento oficioso, o objecto do recurso.
De acordo com as conclusões apresentadas a principal questão a decidir é a de saber qual o regime jurídico à luz do qual deve ser avaliada a causa de resolução do contrato de arrendamento invocada pelos autores e se os factos apurados constituem, à luz do direito aplicável, causa de resolução do contrato de arrendamento.
1. Vem provado que o contrato de arrendamento a que estes autos aludem foi celebrado em 1 de Janeiro de 1969 e que o locado se destinava a fins habitacionais.
O contrato foi, portanto, celebrado de acordo com o regime previsto na redacção então vigente do Código Civil e antes da entrada em vigor do Regime de Arrendamento Urbano (RAU) aprovado pelo Decreto Lei 321-B/90, de 15 de Outubro.
De acordo com o artigo 28º do Novo Regime do Arrendamento Urbano (NRAU), aprovado pela Lei 2/2006, de 27 de Fevereiro, aos contratos de arrendamento com fins habitacionais celebrados antes da entrada em vigor do RAU aplica-se o regime transitório constante do artigo 26º (do NRAU) cujo nº 1 prevê que passem a estar submetidos ao Novo Regime do Arrendamento Urbano.
Por sua vez o artigo 59º do NRAU esclarece que o novo regime se aplica aos contratos que subsistam à data da sua entrada em vigor.
È, pois, fora de dúvida que todos os contratos de arrendamento para fins habitacionais celebrados no passado, antes ou depois da entrada em vigor do RAU, estão sujeitos à nova disciplina instituída pelo NRAU desde que se mantenham à data da entrada em vigor deste novo regime.
2. Da conclusão acabada de tirar não se segue que a eventual violação de deveres contratuais por parte do locatário, cometida em data anterior à da entrada em vigor do NRAU, seja absolutamente irrelevante e não tenha qualquer consequência ao nível, nomeadamente, do direito entretanto exercido à resolução do contrato, que o seu incumprimento conferisse ao senhorio.
Na verdade, as normas transitórias do NRAU destinam-se apenas a esclarecer em que termos as novas regras se aplicam aos contratos vigentes à data da sua entrada em vigor, mas, porque não colidem com o disposto no artigo 12º do Código Civil, não determinam a aplicabilidade imediata e retroactiva do novo regime às situações ocorridas antes da sua entrada em vigor.
Significa isso que a relevância dos factos praticados, enquanto causa de resolução do contrato de arrendamento por parte do senhorio, há-de ser aferida face às normas vigentes à data em que o incumprimento do contrato, decorrente da prática dos factos, teve lugar.
Daí que, tendo-se verificado inteiramente no domínio da vigência do RAU o fundamento da resolução do contrato de arrendamento é esse o regime aplicável; se, porventura, se tratasse de incumprimento que se prolongasse no domínio da vigência do NRAU (por exemplo, não uso do locado ou utilização para fins ilícitos ou diversos do acordado) poderia então ponderar-se a eventual aplicação de um ou outro dos dois regimes em presença.
No caso dos autos não é esta a situação, parecendo, de resto, um pouco destituída de sentido prático a questão colocada.
3. Como adiante se dirá, seja no âmbito do RAU seja no âmbito do NRAU, a alteração do locado nos termos apurados nestes autos confere aos autores o direito a obter a resolução do contrato.
Os autores pediram, há mais de dezasseis anos, a declaração de resolução do contrato com base na realização de obras não consentidas no locado de que resultou alteração substancial da estrutura externa e da disposição interna das divisões, que era uma das causas de resolução do contrato taxativamente permitida pelo artigo 64º do RAU. A construção invocada teria sido levada a efeito antes da instauração da acção.
Ainda que o NRAU tenha optado por não elencar de forma fechada as causas de resolução do contrato de arrendamento, as situações que anteriormente eram passíveis de ser qualificadas como de alteração substancial da estrutura externa do locado ou da disposição interna das suas divisões continuam a poder constituir fundamento de resolução do contrato de arrendamento uma vez que constituem incumprimento grave do dever de manutenção do locado no estado em que lhe foi cedido, tornando inexigível ao senhorio a manutenção do arrendamento.
4. Nos termos do artigo 64º nº 1 alínea d) do RAU, o senhorio pode resolver o contrato se o inquilino fizer no prédio, sem consentimento escrito do senhorio, obras que alterem substancialmente a sua estrutura externa ou a disposição interna das suas divisões.
Vem provado que as obras levadas a cabo pelos inquilinos consistiram no arrancamento de uma laranjeira existente no quintal e na construção de uma sala com lareira com a área aproximada de 6 metros quadrados, encimada por um terraço, cujo telhado se apoia na antiga parede exterior do prédio arrendado.
Dessa construção resultou que a divisão que anteriormente confrontava com o quintal e a cozinha passaram a ser divisões interiores e que a porta da cozinha passou a servir de acesso à nova sala, em vez de servir de passagem para o quintal.
Trata-se, efectivamente, de obras que alteraram de forma significativa não só a estrutura externa do prédio arrendado mas também a disposição interna das suas divisões e que, por isso, conferem aos autores o direito a pedir a resolução do contrato de arrendamento.
A alteração assim realizada pelos inquilinos no prédio, sem autorização do senhorio, constituiria igualmente fundamento de resolução do contrato de arrendamento à luz do NRAU já que, independentemente da obrigação do inquilino de restituir o locado no estado em que ele lhe foi cedido, as obras executadas alterando de forma definitiva a estrutura do prédio ultrapassam largamente deterioração inerente a uma prudente utilização e bem assim a possibilidade conferida pelo artigo 1073º do Código Civil e tornam inexigível ao senhorio a manutenção do contrato (artigo 1083º nº 2 do Código Civil).
5. Sendo de concluir que é aplicável às causas de resolução do contrato de arrendamento o regime vigente na data em que ocorreu o incumprimento bem andou a douta sentença impugnada ao considerar, face aos factos apurados, que deveria ser decretada a resolução do contrato de arrendamento a que os autos aludem.
As circunstâncias mencionadas na conclusão 7 das alegações de recurso não são suficientes para que se possa concluir que os autores actuaram com má fé.
A apelação improcede, confirmando-se a douta sentença impugnada, incluindo na parte em que considerou prejudicada a apreciação do pedido subsidiário de denúncia do contrato para o fim do prazo.
Sumariando a presente decisão, nos termos e para efeito do disposto no artigo 713º nº 7 do Código de Processo Civil; dir-se-á:
1. Os fundamentos de resolução de um contrato de arrendamento são aqueles que estejam previstos no regime jurídico vigente na data em que ocorreu o incumprimento do contrato que o justifiquem.
2. O arrancamento, pelo arrendatário, de uma árvore e a construção não autorizada de uma sala com lareira no quintal do prédio arrendado, com cerca de 6 m2, encimada por um terraço cujo telhado se apoia na antiga parede exterior do prédio e de que resultou terem passado a ser divisões interiores uma cozinha e uma divisão que confrontava com o quintal, constitui alteração substancial da estrutura externa e da disposição interna das divisões que confere ao senhorio o direito a resolver o contrato de arrendamento.

III – DECISÃO
Pelo exposto acordam em julgar improcedente a apelação e, em conformidade, em confirmar a douta sentença impugnada.
Custas pela ré apelante.
Notifique.
Dactilografado e revisto pelo relator:

Lisboa, 23 de Março de 2012

Manuel José Aguiar Pereira
Gilberto Martinho dos Santos Jorge
Maria Teresa Batalha Pires Soares