Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
472/10.5TVLSB.L1-8
Relator: CATARINA MANSO
Descritores: RESERVA DE PROPRIEDADE
CONTRATO DE CRÉDITO AO CONSUMO
CLÁUSULA
DEVER DE COMUNICAÇÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 03/01/2012
Votação: MAIORIA COM * DEC VOT E * VOT VENC
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I - O art. 6.º, n.º 3, al. f), do DL n.º 359/91, de 21-09 (diploma que estabelece o regime jurídico do crédito ao consumo) nada modifica os contornos da questão, pois o facto de no contrato de crédito para financiamento da aquisição de bens ou serviços dever constar “o acordo sobre a reserva de propriedade”, refere-se, de harmonia com o determinado no art. 409.º, n.º 1, do CC, ao alienante e não ao financiador/mutuante
II - Os contratos de crédito ao consumo são contratos de adesão, já que, a par de cláusulas específicas que exprimem a particularidade de cada negócio, contêm cláusulas pré-determinadas destinadas à massa dos consumidores e que não são passíveis de negociação individualizada, aplicando-se-lhe o regime das cláusulas contratuais gerais (ccg).
III - Neste tipo de contrato em que existe uma aceitação, não particularmente negociada pelo aderente, a lei visa a sua protecção, como parte contratualmente mais débil, assegurando de modo efectivo um “dever de informação” a cargo do proponente.
IV - Essa comunicação dever abranger a totalidade das cláusulas e ser feita de modo adequado e pessoal e com antecedência compatível com a extensão e complexidade do contrato, de modo a tornar possível o seu conhecimento “completo e efectivo por quem use de comum diligência”.
(Sumário da Relatora)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa

I – Banco… intentou acção declarativa comum, sob a forma ordinária, contra A…, pedindo que seja verificado o incumprimento contratual por parte da Ré, e condenada a reconhecer que o veículo automóvel da marca Ford, modelo “S-Max” Titan.7LG de matrícula … pertence à Autora, e a entregá-lo a esta.
Alegou que celebrou contrato de financiamento com a Ré, tendo-lhe emprestado quantia de 27.004,00€ para aquisição do veículo acima identificado, mediante o pagamento pela Ré de 25 prestações mensais. A Ré não pagou a 25ª e última prestação. Face ao incumprimento, a Autora resolveu o contrato e pediu a restituição do veículo, que considera sua propriedade, uma vez que no contrato de financiamento ficou consagrada uma cláusula de cessão da reserva de propriedade do veículo a favor da Autora.
Contestou a Ré, arguindo a ilegitimidade passiva, por ser casada com B…, a sua ilegitimidade activa, porquanto a cedência da reserva de propriedade é ineficaz perante si, e ainda a nulidade do contrato de financiamento, com diversos fundamentos, a saber, por falta de entrega do exemplar do contrato no momento da assinatura, por falta de expressão no contrato das condições de admissibilidade de alteração da TAEG e por falta de cumprimento dos legais deveres de comunicação e informação.
Replicou a Autora, defendendo que não ocorrem as excepções invocadas e requereu a intervenção principal provocada passiva do marido da Ré, que foi aceite.
No despacho saneador sentença decidiu-se:
a) verificado o incumprimento contratual por parte da Ré no que respeita ao pagamento da 25ª e última prestação;
b) Absolveu os Réus dos restantes pedidos formulados pela Autora.
Não se conformando com a decisão interpuseram recurso a autora e ré nas suas alegações concluiu:
- no âmbito da sua actividade, financiou o veículo automóvel objecto dos presentes autos à ora Apelada A… através do contrato de financiamento para aquisição a crédito n.º …já junto aos autos como doc. 1 da petição inicial;
- a aquisição do veículo em causa pela Apelada, vendido pela F…, S.A., apenas foi possível através do financiamento àquela pela ora Apelante Banco…;
- o esquema de aquisição supra referido permite observar que a vendedora e a mutuante são entidades associadas, sendo que a comercialização de veículos quando não é feita a pronto pagamento, apenas é possível uma vez existindo o financiamento do capital necessário pela ora Apelante;
- sem o financiamento da Apelante não existiria a compra e venda do veículo, razão pela qual a cláusula de reserva de propriedade foi estabelecida na esfera jurídica da vendedora do veículo no contrato de compra e venda, mas, até que se verificasse o pagamento, pela Apelada, de todas as prestações relativas ao contrato de financiamento – cf. certidão narrativa do registo automóvel junta como doc. 2 da Petição Inicial;
- a constituição ab initio da cláusula de reserva de propriedade, foi realizada de acordo com o disposto no artigo 409.º, n.º 1 do Código de Processo Civil, já que “nos contratos de alienação é lícito ao alienante reservar para si a propriedade da coisa até ao cumprimento total ou parcial das obrigações da outra parte, ou até à verificação de qualquer outro evento”;
- a cláusula de reserva de propriedade foi estatuída para garantir o cumprimento do contrato de financiamento, foi acordado no mesmo a possibilidade de a vendedora ceder a titularidade de tal reserva à mutuante do montante necessário à aquisição do veículo;
- nestes termos a cláusula de reserva de propriedade no contrato de compra e venda, a transferência do domínio do bem alienado fica suspensa até à verificação um determinado evento, sendo que o conceito de “qualquer outro evento” permite abarcar realidades como, por exemplo, a satisfação de crédito de terceiro que não o reservatário (no caso sub judicie, entenda-se aqui o reservatário originário);
- veja-se a este respeito o entendimento plasmado no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 14.07.2008, consultável em www.dgsi.pt ao entender que não pode “esta largueza de vistas e este agudo sentido de futuro (...) estar enterrados sob o peso intolerável das rotinas estabelecidas”;
- resulta assim do referido preceito que as obrigações nele visadas não são apenas e necessariamente as relativas à efectivação das prestações pecuniárias em que se analise o pagamento do preço ao vendedor, mas qualquer outro evento;
- neste contexto se podendo enquadrar sem dúvida as obrigações emergentes de um contrato de financiamento em que o próprio vendedor tenha outorgado, ou de cujo clausulado resulte para ele um interesse relevante (Acórdão da Relação de Lisboa n.º 7622/00 de 26 de Julho de 2000 – não publicado);
- é ainda absolutamente esclarecedor o entendimento constante do Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa, datado de 06.05.2010, onde é relator o Exma.Desembargadora Carla Mendes, disponível em www.dgsi.pt: “É na relação pagamento integral do preço da coisa vendida /transferência da sua propriedade que o pactum reservati dominii encontra a sua razão de ser e daí que é perfeitamente admissível a constituição de reserva de propriedade com vista a garantir os direitos de crédito emergentes de um contrato de mútuo cuja finalidade última é a de assegurar o pagamento da coisa ao seu alienante, o que, de resto, sempre acolheria protecção na própria lei, que permite como condicionante à transferência de propriedade, qualquer outro evento futuro que não apenas o cumprimento das obrigações decorrentes do contrato de compra e venda” - cfr. Ac. RL de 5/5/2005, relator Carlos Valverde, de 20/10/2005, relatora Fátima Galante, de 26/4/2007, relatora Manuela Gomes, de 6/3/2007 relatora Graça Amaral, in www.dgsi.pt.”;
- “estamos em presença de dois contratos autónomos – um contrato de compra e venda e um contrato de mútuo – com ligação funcional entre ambos sendo certo que se encontra registada a favor da financiadora a reserva de propriedade. Os dois contratos coexistem/conexos, mantendo cada um deles a sua autonomia estrutural e formal. Estamos perante uma “relação jurídica triangular” – vendedor (vendeu o veículo em causa), ré (compradora do veículo) e a autora/financiadora (mutuante do preço devido à ré para a aquisição do veículo) – vd. Voto de vencido in Ac. STJ in www.dgsi.pt/jstj.nsf/954. A nossa lei consagra o princípio da liberdade contratual em que as partes podem fixar livremente o conteúdo dos contratos. Tendo as partes celebrado o contrato nestes termos, constituído a favor da financiadora a cláusula de reserva de propriedade, a conclusão é a de que as partes, no âmbito da liberdade contratual (art. 405 CC), visaram a tutela directa do direito de crédito da financiadora, configurado como se o pagamento do preço relativo ao contrato de compra e venda do veículo fosse fraccionado no tempo, e não já no interesse da vendedora, porquanto esta já recebeu o preço devido pela venda.”;
- a reserva de propriedade foi estatuída no âmbito do contrato de compra e venda (e não no contrato de financiamento conforme entende o Tribunal a quo), entre a vendedora do veículo e o adquirente do mesmo (ora Apelada), tendo sido o montante relativo à aquisição de tal bem financiado pela Apelante;
- para garantia do seu crédito, a Apelante viu constituída a favor do contrato de financiamento uma cláusula de reserva de propriedade até ao momento em que fossem pagas todas as prestações relativas a esse mesmo contrato;
- a reserva de propriedade foi constituída nos termos legais previstos no artigo 409.º C.C., e no âmbito do princípio da liberdade contratual plasmada no artigo 405.º C.C., e por isso é absolutamente válida;
- na pendência da venda com reserva de propriedade o vendedor pode dispor do direito de propriedade da coisa vendida, nomeadamente através da cessão da posição contratual;
- ao abrigo da liberdade contratual prevista no artigo 405.º n.º 1 do Código Civil, e explanada na Cláusula A das condições gerais do contrato de financiamento, à luz dos artigos 588º e 591º daquele diploma, a reserva de propriedade foi cedida pela vendedora do veículo F…, S.A., à Apelante, ficando esta sub-rogada nos direitos da vendedora com consentimento da aqui Apelada;
- o que subjaz aos contornos da liberdade contratual, em nada extravasando os seus limites, a Apelante adquiriu a propriedade do veículo pela cessão da reserva de propriedade e sub-rogação dos direitos que a reservatária originária detinha;
- para que a referida sub-rogação seja eficaz, nos termos do n.º 2 do artigo 591.º do Código Civil, basta que haja declaração expressa no documento do empréstimo, de que a coisa mutuada se destina ao cumprimento da obrigação e assim fica o mutuante sub-rogado nos direitos do credor, in casu nomeadamente o direito de resolução e a reserva de propriedade;
- no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14 de Novembro de 2008, republicado a 26 de Novembro de 2008 em Diário da República, I Série, N.º 230, página 8489 e seguintes, nos termos do qual “Não se desconhece que tem vindo a ser aceite a possibilidade de ocorrer sub-rogação voluntária, seja do credor seja do devedor, a favor do devedor, a favor do financiador, em situações como a dos presentes autos (artigos 589.º e 591.º do CC), como acontece no parecer publicado no Boletim dos Registos e do Notariado, n.º 5/2001, de Maio de 2001, citado no acórdão de 12 de Julho de 2007, deste Tribunal que abaixo se transcreve:
- “Assim, a lei civil permite que, por actos celebrados simultaneamente, com intervenção de todos os interessados: 1.º O vendedor aliene o veículo ao comprador, estipulando-se a reserva de propriedade a favor do primeiro até integral pagamento do preço;
- O comprador celebre um contrato de mútuo com uma instituição de crédito, para financiamento do preço de aquisição, procedendo aquela à liquidação do preço junto do vendedor ou, em alternativa, sendo tal pagamento efectuado directamente pela instituição de crédito junto do vendedor, substituindo-se ao comprador; 3.º Em consequência, o devedor sub-rogue expressamente a instituição de crédito nos direitos do vendedor, com o assentimento e a declaração de transmissão da propriedade reservada a favor daquela, por parte do vendedor ou o vendedor sub-rogue expressamente a entidade financiadora nos seus direitos, transmitindo-lhe a propriedade reservada com conhecimento simultâneo do facto por parte do comprador;”
- e, na respectiva sequência, a ora Apelante passou assim, legitimamente, a ser titular do direito de propriedade – ainda que sob reserva – por transmissão efectuada pelo vendedor e autorizada pelo comprador (ora Apelada);
- não só a reserva de propriedade não enferma de qualquer vício de nulidade conforme entende o Tribunal a quo;
- como se verifica que a ora Apelante é a única e legítima proprietária do veículo automóvel objecto dos presentes autos;
- e acrescendo que provado e decidido se encontra o incumprimento contratual por parte da Apelada no âmbito do contrato de financiamento celebrado, deveriam os Réus, ora Apelados, ter sido condenados ainda a reconhecer que a propriedade do veículo financiado pertence à ora Apelante, bem como deviam ter sido condenados na entrega definitiva a esta do veículo em questão;
- ao não condenar os Réus a reconhecerem que a propriedade do veículo financiado pertence à Apelante e na entrega definitiva do mesmo, o Tribunal a quo violou o disposto nos artigos 409.º, 405.º n.º 1, 588.º e 591.º do Código Civil, e ainda o artigo 9.º n.º 1 do mesmo diploma, violando ainda o Decreto-Lei 54/75, de 12 de Fevereiro.
Alegações da ré
- o recurso é limitado à parte da sentença recorrida que julgou pela inadmissibilidade legal de invocação pela Ré das nulidades assacadas ao contrato celebrado com a Autora, por manifesto abuso de direito;
- a invocação pela Ré das nulidades decorrentes do contrato que celebrou com a A. não configuram a violação do art. 334º do Civil, pois tal invocação é legítima e destina-se a assegurar princípios de ordem pública e tutela dos direitos do consumidor, claramente violados pela A;
- as nulidades invocadas apenas se tornaram evidentes para a Ré na sequência da proposição da presente acção, quando ocorrendo vicissitude contratual entre a A. e a Ré, foram apresentadas à Ré os elementos documentais e contratuais em falta e foram devidamente explicitadas em sede de estatuição e consequência, os termos concretos do contrato celebrado com a A.;
- tratando-se de um contrato de adesão, que não foi negociado com a Ré e que esta se limitou a aderir, sem qualquer margem de alteração ou estipulação e não tendo sido entregue à Ré a cópia do contrato, nem sido explicitadas as condições do mesmo, não podia a Ré pôr em causa ou discutir aquilo que nem sequer conhecia;
- durante a execução do contrato, nunca se colocou a questão de apurar da legalidade das cláusulas concretas do contrato;
- quando surgiu o fim do contrato é que se colocaram as questões de interpretação e aplicação das cláusulas contratuais, designadamente as consequências decorrentes do não pagamento da última prestação, aplicação das taxas de juro ao contrato, explicitação das consequências de transmissão da propriedade do veículo, aferição da titularidade da propriedade;
- quando é chegado o momento de interpretação do clausulado contratual é que a falta do contrato e de explicitação das suas condições e termos, que pré-existia se tornam evidentes e fundamentais;
- se um contrato é regularmente cumprido pela contratante que ao mesmo adere, com o simples pagamento da prestação creditícia, nenhuma dúvida se coloca quanto à execução do mesmo;
- surgem problemas quanto à aplicação do contrato se torna evidente que a falta de explicitação das suas condições e a falta de entrega do seu duplicado ao contratante aderente, se tornam essenciais e só nesse momento são invocáveis entre as partes os vícios decorrentes dessa contratação (viciada desde o início);
- tal invocação, feita só perante o litígio instalado, em sede judicial, nunca pode ser julgada como ilegítima, violadora dos bons costumes ou da confiança da A.;
- foi a A. que deu causa a tais vícios e com eles pretende assim eximir-se ao cumprimento dos seus deveres legais de explicitação do contrato, de informação do contrato e de entrega da devida cópia à contratante aderente (estamos perante um contrato de adesão e não de livre negociação);
- verifica-se a nulidade decorrente da falta de entrega de exemplar do contrato no momento da assinatura – art. 6º, nº1 do DL 359/91 de 21/09;
- conduta, violadora do nº1 do art. 6º do DL 359/91 de 21/09, implica a nulidade do contrato, in totum, por aplicação do art. 7º, nº1 do referido diploma legal;
- a invocação pela Recorrente desta nulidade não pode ser julgada como abuso de direito, porque a Recorrente só toma conhecimento de tal vício quando se instala o litígio e isso apenas acontece no termo do contrato e com a acção judicial proposta pela A.;
- da leitura do contrato (Doc.1) resulta que o contrato não contempla a expressão das condições em que pode ser alterada a TAEG, conforme prevê o art.6º, nº2 c) do DL 359/91 de 21/09;
- a consequência desta omissão é a da nulidade do contrato, que resulta do nº1 do art. 7º do mesmo diploma;
- vício da exclusiva autoria deliberada da A. e como tal sancionável pelo Tribunal, julgando-se que a Ré não actuou em abuso de direito;
- fere a Constituição e os princípios consagrados de protecção do consumidor considerar que invocar a nulidade decorrente da falta de informação acerca das condições contratuais à Ré aderente constitui abuso de direito da mesma;
- o contrato que serve de causa de pedir à A foi elaborado por esta, sem prévia negociação individual do seu conteúdo com a Ré e foi-lhe presente por aquela para o subscrever aceitando integralmente todas as suas cláusulas e condições, pré-elaboradas pela A;
- não efectuou qualquer explicação à Ré sobre o conteúdo das cláusulas inscritas no contrato junto como Doc1, que a Ré assinou;
- nem a A leu ou explicou após leitura as cláusulas contratuais, nem a Ré as leu;
- não foi informada da extensão e complexidade das cláusulas pela A, nem lhe foram prestados quaisquer esclarecimentos acerca das mesmas que lhe permitisse apreender o seu conteúdo;
- estão assim feridas de exclusão as cláusulas com os nºs 11 a 14 (folha 1) das condições particulares, todas as condições gerais e as condições de adenda ao contrato (folha 3), não podendo ser invocadas pela A face à Ré;
- houve violação por parte da A dos deveres impostos pelos art. 5º e 6º do diploma antes-citado, considerando-se as cláusulas inseridas no contrato assinado como excluídas do mesmo, aplicando-se a legislação geral supletiva, nos termos dos arts. 8º a) e b), atenta a nulidade do contrato;
- não se podendo aplicar no caso dos autos as cláusulas excluídas, por força do anteriormente alegado, não pode ser julgado qualquer incumprimento contratual da Ré nos termos peticionados pela A, com recurso às cláusulas excluídas;
- não actuou a Recorrente em abuso de direito ao invocar as nulidades antes explicitadas e que a A. não pôs em causa, pois deu causa às mesmas e apenas em sede judicial compreendeu a Ré o que lhe havia sido dado a assinar pela A. e só em sede judicial tomou conhecimento das condições do contrato que celebrou com a A.;
- é legítima a invocação pela Ré de tais nulidades e não afecta a confiança de quem estando obrigada a cumprir com os deveres legais de informação ao consumidor e ao contratante aderente, deliberadamente não cumpriu com os mesmos;
- deve ser revogada a sentença recorrida, na parte afectada pelo presente recurso e substituída por outra que declare a nulidade das cláusulas contratuais afectadas pelas nulidades invocadas.
Factos
1. A Autora e a Ré celebraram entre si, por escrito particular datado de 24 de Agosto de 2007, um denominado “Contrato de Financiamento Para Aquisição a Crédito”, pelas cláusulas e termos que constam de fls. 7 a 10, e designadamente, as seguintes:
“Condições Particulares
(…)
8. Montante a reembolsar: (…) EUR 31.472,88
9. Prazo: Em 25 meses, com vencimento nos dias 24 dos meses de Setembro de 2007 a
Setembro de 2009.
(…)
11. RESERVA DE PROPRIEDADE
O presente contrato é celebrado com reserva de propriedade a favor do vendedor registado do mesmo, nos termos das Cláusulas Gerais constantes deste Contrato. O vendedor registado cedeu ou cederá à Banco… a titularidade de tal reserva de propriedade, e o comprador desde já presta o seu consentimento a tal cessão.
(…)
Condições Gerais
RESERVA DE PROPRIEDADE
Nos termos do disposto no art.º 409º do Código Civil, e até à data em que todas as prestações referidas no número 9 das condições particulares, hajam sido pagas pelo comprador à Banco…, a propriedade do veículo é inicialmente reservada para o vendedor registado, que cedeu ou cederá à Banco… a titularidade de tal reserva de propriedade. O comprador presta o seu consentimento a tal cessão. Nos termos do disposto no art.º 591º do Código Civil o comprador sub-roga a Banco… nos direitos do vendedor registado, decorrentes da reserva de propriedade (…) ”
2. A reserva de propriedade sobre o veículo de matrícula encontra-se registada a favor da Autora desde 8/10/2007 (documento de fls. 11).
3. A Ré não pagou a 25ª e última prestação do contrato.
4. A Autora endereçou à Ré uma carta registada com aviso de recepção, com data de 16/11/2009, através da qual notificou a Ré do termo do contrato e concedeu-lhe um prazo de oito dias para que pusesse termo à situação de incumprimento.
Houve contra alegações defendendo a manutenção da decisão
Corridos os vistos legais, nada obsta ao conhecimento
II – Apreciando
Temos dois recursos interpostos: um da autora e, outro da ré e aí encontramos para decisão as seguintes questões:
a) – saber se o contrato de mútuo celebrado é nulo por não estar provado que à Recorrente, como consumidora, foi entregue um exemplar/cópia do contrato, ou se – como decidiu na decisão recorrida – a ré-Recorrente está a agir com abuso do direito, na modalidade de “venire contra factum proprium”, que obsta a que se declare essa nulidade;
b) – tendo sido constituída reserva de propriedade a favor da Autora como financiadora/mutuante, para aquisição de um veículo automóvel, pode esta, em caso de incumprimento da mutuária/financiada, pedir a restituição do veículo.
A - Recurso da Autora
A questão que se suscita é a de saber se é válida a cláusula de reserva de propriedade constituída a favor do mutuante.
Não o admite o art. 409.º do Código Civil que limita a oponibilidade da cláusula aos contratos de alienação e, por conseguinte, não releva o argumento extraído do princípio da liberdade estipulação a que se refere o artigo 405.º/1 pois a liberdade de estipulação não é absoluta, há-de ceder se afrontar norma que condicione a estipulação de certa cláusula a determinados contratos.
A circunstância de o mutuante ter introduzido no contrato de financiamento uma cláusula que não lhe seria lícito apor poderá levar a considerar-se, dado o princípio da incindibilidade do negócio condicional, que o negócio padece de nulidade (Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, 3ª edição, pág. 559).
A nossa lei não admite a cláusula de reserva de propriedade a favor do mutuante, mas apenas em benefício do alienante (artigo 409.º/1 do Código Civil). Ou, por outras palavras, não parece admissível a constituição de uma reserva de propriedade a favor de terceiro.

Não será, portanto, admissível que uma instituição de crédito outorgue contrato de mútuo com reserva de propriedade a seu favor simultaneamente com a compra e venda do imóvel a favor do comprador de tal sorte que a propriedade ficaria no mutuante (instituição de crédito) e não no mutuário/comprador, como acontece sempre que se procede à compra e venda com mútuo com garantia real (hipoteca) a favor do mutuante.

A reserva de propriedade passaria então a garantir o mutuante, não o vendedor; a nossa lei não tomou ainda uma tal opção que teria, como é fácil de ver, a maior das repercussões no plano do crédito, designadamente imobiliário. Admite-se que as entidades mutuantes ficassem, assim sendo, numa posição muito mais confortável do que actualmente, garantidas por hipoteca; mas também é verdade que uma tal solução traria outros problemas, designadamente os que resultam de o comprador não aceder à propriedade com todos os efeitos daí decorrentes, sujeitando-se ao império do mutuante que consolidaria a propriedade em caso de incumprimento, resolvendo o contrato, podendo criar-se situações em que o comprador, reconhecida a invalidade da resolução, não a poderia invocar diante de terceiro (artigo 435.º/1 do Código Civil: “ a resolução...não prejudica os direitos adquiridos por terceiro) salvo se diligenciasse accionar o mutuante com registo prévio da acção ao registo do direito de terceiro (artigo 435, n.º2, do Código Civil).
E nem estamos a considerar os efeitos decorrentes do entendimento que tem merecido algum acolhimento judicial de o titular do registo de reserva de propriedade conseguir penhorar o bem sobre o qual incide o registo e fazer prosseguir a execução sem cancelamento da reserva de propriedade, conseguindo, assim, situação substantiva que lhe proporciona as vantagens do credor hipotecário sem as correlativas desvantagens.

O recorrente sustenta, como se disse, a admissibilidade da referida cláusula face ao disposto no artigo 6.º/3, alínea f) do Decreto-Lei n.º 359/91, de 21 de Setembro onde se refere o seguinte:
3- O contrato de crédito que tenha por objecto o financiamento da aquisição de bens ou serviços mediante pagamento em prestações deve indicar ainda:
f) O acordo sobre a reserva de propriedade.
No entanto, a circunstância de a lei prescrever que a referida cláusula conste do contrato de crédito não significa que a cláusula se traduza em acordo sobre a reserva de propriedade a favor do mutuante; o referido acordo, precisamente porque o contrato tem por objecto um financiamento para aquisição de bens ou serviços em prestações, há-de respeitar ao contrato de alienação e a sua utilidade é a de o mutuante ver precludida a possibilidade de “ exigir ulteriormente a constituição dessas garantias (artigo 7.º/3” (FERNANDO DE GRAVATO MORAIS “ Do Regime Jurídico do Crédito ao Consumo”, Scientia Iuridica, Jul. /Dez 2000, Tomo XLIX, pág. 394/395).
Aliás, refere expressamente este autor, como se salientou na decisão recorrida, que “quanto às menções remanescentes a indicação das garantias exigidas, nos contratos de crédito em geral, e do acordo sobre a reserva de propriedade, no caso de venda a prestações, a sua falta não prejudica a validade e eficácia do contrato de crédito”.
Ora não foi alegado e não resulta do contrato que o mutuante tenha sido sub-rogado pelo vendedor, pois, como se referiu, o que houve foi uma constituição de reserva de propriedade a favor do mutuante.
A resposta a esta questão tem seguido duas orientações, uma que segue a decisão tomada na primeira instância e outra a que se resulta dos acórdãos citados nas alegações.
Seguimos a corrente a que subjaz ao despacho impugnado, conforme decisões por nós proferidas, tal posição tem tido acolhimento no STJ, e na Relação, citamos entre muitos o n.º 9327/2002, do Dr. Casanova, onde se escreveu: dispõe o art. 409 do CC.
1- Nos contratos de alienação é lícito ao alienante reservar para si a propriedade da coisa até ao cumprimento total ou parcial das obrigações da outra parte ou até à verificação de qualquer outro evento.
2- Tratando-se de coisa imóvel, ou de coisa móvel sujeita a registo, só a cláusula constante do registo é oponível a terceiros.
A reserva de propriedade é expressamente prevista no caso de venda a prestações (artigo 934º do Código Civil).
Considera-se que a venda sob reserva de propriedade é realizada sob condição suspensiva, quanto à transferência da propriedade, que assim se mantém na titularidade da vendedora: ver Código Civil Anotado, Antunes Varela, Vol. 1º, 4ª edição, pág. 376; Revista de Legislação e Jurisprudência, Ano 103º, pág. 380/383, anotação de Vaz Serra ao Ac. do S.T.J. de 27-5-1969, B.M.J. 187-107, Ac. do S.T.J. de 24-6-1982 (Pedro Cluny), B.M.J. 318-396, Ac. do S.T.J. de 8-1-1991 (Simões Ventura) B.M.J. 403-334.
O comprador adquire uma expectativa de propriedade “que é considerada pela doutrina jurídica como um direito patrimonial actual, como um direito de expectativa. Com a verificação da condição ela reforça-se tornando-se ipso jure um direito pleno e, assim, uma propriedade não condicionada (Vaz Serra, loc. cit, pág. 383 in nota 2 iniciada na pág. 382); de expectativa com eficácia real, atento o disposto no artigo 9/2 do C.C., fala o Prof. Antunes Varela (ver R.L.J., Ano 122º, pág. 318) que considera o comprador investido numa verdadeira posse (ver hoje sobre penhora de expectativas de aquisição o artigo 860º-A do C.P.C.).
Houve quem defendesse que, face ao disposto no artigo 18º/1 e 3 do decreto-lei n.º 54/75, de 12 de Fevereiro, a venda, no ramo automóvel, seria feita sob condição resolutiva (ver voto de vencido no Ac. de 24-6-1982 e também no Ac. do S.T.J. de 24-1-1985 - Solano Viana -B.M.J. 343-309). No entanto, como salientou o Prof. Almeida Costa na R.L.J., Ano 118º, pág. 384, no referido nº3 do DL 54/75 “ claramente se alude a resolução do contrato por incumprimento e não a resolução do direito de propriedade.
Remetendo para o último Ac. do STJ aí se escreveu: “ Reportando-se o referido art. 409º – aliás na sequência do anterior art. 408º, que consagra a regra de que a transferência da propriedade se opera por mero efeito do contrato – aos contratos reais ou com eficácia real, de que resultam não apenas efeitos obrigacionais mas também efeitos reais (constituição ou transferência do domínio) inequívoco se mostra que "a função económica da reserva de propriedade é a de garantir o crédito do vendedor pelo preço da compra. A reserva de propriedade substitui o direito de penhor sem posse do vendedor, inadmissível em face do nosso Código Civil (art. 669º e 677º). Com a reserva de propriedade visa o vendedor precaver-se de uma eventual inexecução do contrato ou insolvência por parte do comprador, caso em que o vendedor deseja obter a restituição da coisa, fazendo valer os seus direitos quer em face do comprador, quer de terceiros, credores do comprador, ou que por ele tenham sido investidos em direitos sobre a coisa. Consegue-o convencionando que a titularidade do direito de propriedade permaneça na sua esfera jurídica até ao integral pagamento do preço".
Certo que, assim sendo, não pode, desde logo, deixar de se estranhar que a cláusula de reserva de propriedade se encontre registada a favor da exequente, não vendedora mas apenas financiadora da aquisição feita pelos executados, consequentemente associada a um contrato de mútuo que tão só traduz a transferência para o mutuário do montante pecuniário a ele entregue, e desse modo, até certo ponto incompatível com a norma do art. 409º, n.º 1, do C.Civil, sede principal da reserva de propriedade, que prevê apenas a sua inserção, em benefício do alienante de qualquer contrato de alienação. Ty6
Naturalmente que os autos evidenciam a existência de uma relação triangular, cujo conteúdo suporta a ideia de contratos coligados: a fornecedora do automóvel vendeu-o à ré esta, para conseguir o correspondente pagamento, obteve da exequente um financiamento (empréstimo) da quantia necessária; finalmente, como é usual – e aqui outra coisa se não passou – a financiadora entregou a quantia correspondente ao preço directamente à vendedora.
O certo, é que, a apelante – detém o registo da reserva de propriedade a seu favor. Como se escreveu no Ac. do STJ de 12.5.2005 – “Tradicionalmente (com raras excepções a reserva de propriedade era encarada como uma condição suspensiva do negócio de alienação, mantendo-se a propriedade na titularidade do alienante até integral pagamento do preço.
É bem verdade que diversas tentativas foram ensaiadas no intuito de, por forma mais consentânea com as suas características, qualificar a natureza da reserva de propriedade, sem que, todavia, qualquer delas tenha passado a prevalecer sobre a qualificação tradicional houve quem a considerasse um direito real de garantia do vendedor, na medida em que reveste a natureza de uma garantia real do crédito e, assim, uma hipoteca mobiliária pelo preço em dívida, ou finalmente que na sequência do reconhecimento ao comprador de um direito real de expectativa e da posse em nome próprio, tanto o alienante como o adquirente detêm um pedaço da propriedade. Em qualquer dos casos, uma coisa é certa: o adquirente não tem a propriedade plena sobre o veículo.
Mais afirmando que, a não ser assim, no caso de opção pelo pagamento da quantia em dívida, a constituição de reserva de propriedade não só não beneficiaria o respectivo titular, como até o prejudicaria, inclusivamente em relação aos outros credores do devedor.
No citado Ac. do STJ de 12.5.2005 escreveu-se: - “Por outro lado, atenta a fonte contratual de que a reserva de propriedade deriva, não é um direito a que se possa renunciar livremente, porque se traduz no diferimento contratual de um dos efeitos do contrato de compra e venda acordado entre as partes. De contrário, estar-se-ia perante uma situação que significaria a extinção da expectativa (direito real de aquisição?) do comprador de adquirir o direito de propriedade por sua exclusiva vontade, o que se revela contrário ao princípio do consenso contratual que decorre do art. 406º, n.º 1, do C. Civil.
Acresce que se algum prejuízo lhe advém do facto de a reserva de propriedade lhe não permitir reaver o veículo (tratando-se da resolução de um contrato de mútuo, naturalmente o que haverá a restituir é a quantia emprestada) essa situação apenas é imputável a si próprio, porquanto se serviu da convenção de reserva de propriedade em negócio jurídico para o qual a mesma não era adequada.
Teria sido isso que se passou no caso sub judicie em que a reserva da propriedade sobre o veículo foi estabelecida, não a favor do vendedor, mas em benefício do mutuante, justamente porque o primeiro recebeu, mercê do contrato de mútuo outorgado pelo comprador, o preço convencionado no âmbito da compra e venda do veículo.
Dir-se-á, antes de mais, que o facto de a reserva de propriedade ter sido (eventualmente) constituída para garantia do direito de crédito do recorrente, advindo do financiamento destinado à aquisição do veículo, de nada releva no sentido da sua pretensão, uma vez que na reserva de propriedade, conquanto direito real de gozo, a função de garantia está sempre presente.
Temos em rigor, uma condição suspensiva aposta com respeito à transmissão da propriedade. Por isso, sempre se mantém a obrigação imposta à recorrente soçobrando, desta forma, todo o fundamento do recurso, neste sentido o Ac. do STJ de 18 de Maio de 2006,in www.dgsi.pt.
E no Ac.de 27.92007 escreveu-se: - A nosso ver, a estipulação de reserva de propriedade, em situações como a presente, em que o financiador não é o vendedor, é inadmissível, sendo nula a cláusula contratual que a estabeleça. Abonamo-nos, para assim concluir, nas razões de Gravato Morais – que aborda a questão, em anotação ao acórdão da Relação de Lisboa, de 21.02.2002, expendendo argumentação que nos parece convincente e para a qual remetemos – e na fundamentação dos acórdãos supra aludidos.
Seja como for, a doutrina e a jurisprudência nacionais têm entendido que o beneficiário da reserva de propriedade só pode exigir a restituição da coisa quando exerça o direito de resolução, e que o adquirente só deve abrir mão dela em caso de resolução do contrato.
Seria, na verdade, um sacrifício excessivo dos interesses do comprador – e até um desvio da finalidade típica visada pelo contrato – admitir que o comprador pudesse ser privado do gozo da coisa e, ao mesmo tempo, continuasse obrigado ao pagamento integral do preço.
Face ao incumprimento do adquirente sob reserva de propriedade, o contratante beneficiário da reserva tem de optar por uma de duas vias: ou exige o pagamento de todas as prestações em dívida ou resolve o contrato.
Nada mais do que isso; nada, pelo menos, de que o ora recorrente possa valer-se.
A liberdade das partes estipularem cláusulas diferentes das legalmente previstas (art. 405º, do C.C.) tem os limites impostos no art. 280º, do C.C., designadamente a impossibilidade jurídica do seu objecto.
Sendo legalmente impossível o objecto da estipulação em análise, a mesma é nula, nos termos do art. 280º, nº 1, do C.C.
E não é defensável pretender-se, neste caso, que, apesar da terminologia utilizada, tal cláusula possa ser interpretada (art. 236º, nº 1, do C.C.), ou convertida (art. 293º, do C.C.), numa alienação fiduciária em garantia, cuja admissibilidade no nosso sistema jurídico é defendida por alguns.
Na verdade, exigindo esta figura uma primeira transmissão do bem em causa da esfera patrimonial do mutuário para o mutuante e uma segunda transmissão do mesmo bem da esfera deste para aquele, após o cumprimento da obrigação garantida, não resulta dos elementos apurados nesta acção que essa tenha sido a vontade real, hipotética ou presumível das partes, até porque tais transmissões estavam obrigatoriamente sujeitas a registo de transmissão e não de simples reserva de propriedade, como foi efectuado.
Pelo que improcede tudo quanto, vem sustentado pelo recorrente.
B- Recurso da ré
1.2 Estamos perante um contrato de crédito ao consumo, definido no art. 2º, nº1, a), do DL nº 359/91, de 21/9 como sendo “ ...o contrato por meio do qual um credor concede ou promete conceder a um consumidor um crédito sob a forma de diferimento de pagamento, mútuo, utilização de cartões de crédito ou qualquer outro acordo de financiamento semelhante”, e tendo a Ré invocado a nulidade do contrato de crédito por não lhe ter sido entregue a cópia dele, a autora tem, na presente acção, o ónus de provar que deu cumprimento ao disposto no nº1 do art. 6º daquele mesmo diploma legal, que torna obrigatória a entrega de um exemplar ao consumidor no momento da respectiva assinatura, e culmina de nulo, pelo seu art. 7º, nº1, o contrato de crédito em que essa disciplina não haja sido observada, sendo que essa inobservância se presume imputável ao credor, e a nulidade só pode ser invocada pelo consumidor, de harmonia com o nº 4 deste mesmo art. 7º.
O contrato escrito assinado pela Ré ( a fls.7) e antes dessa assinatura, sob a epígrafe de “declarações do cliente”, consta escrito que “ O cliente declara conhecer e aceitar integralmente as condições expressas neste contrato, incluindo as presentes condições particulares e as condições gerais inscritas no verso”. No mesmo dia assinou um mapa do plano de pagamentos das 25 prestações e montante de cada uma. (fls. 9).
Não se sabe se a cópia do contrato foi entregue à Ré. E também não será porque entre a data da assinatura do contrato e a do seu incumprimento já ocorreu muito tempo que, só por isso, a alegada nulidade do contrato não deve ser declarada, pois a nulidade é invocável a todo o tempo – art. 286 do CC. Se o legislador pretendesse a sanação do vício pelo decurso do tempo tê-lo-ia provavelmente sancionado com a anulabilidade, como o fez nos casos previstos no nº2 do art. 7º do citado DL nº 359/91, como se referiu no Ac. STJ, de 07-01-2010, in www.dgsi.pt.
Mas, durante todo esse tempo, mais de dois anos, a Ré nunca solicitou à Autora cópia do contrato ou qualquer outra informação sobre o seu clausulado, nem mesmo quando esta por carta de 16-11-2009 fls.19, reclamou o valor em dívida da última prestação, pagou todas as prestações ate à 24ª e apenas não pagou a últimas prestação sem efectuar qualquer reclamação e foi utilizando o veículo financiado, não deixou a Ré, de considerar como eficaz o contrato celebrado e que da sua parte o iria cumprir, com base na confiança gerada pelo decurso do tempo.
Alega a apelante, que só com a acção deu conta do montante da última prestação. No entanto, foi interpelada para pagar o montante em dívida da última prestação e nada fez, nem pediu qualquer explicação por entender que houve erro, por exemplo. Na verdade, assinou um mapa, não sabemos se lhe entregaram cópia, com a descriminação da cada uma das prestações em causa.
Numa abordagem sumária até podemos perceber a sua posição. Pediu €27.004,00, com encargos de €4.166,52 num total de €31.42,88. O pagamento deste montante foi acordado em 24 prestações de €422,52 e a 25ª de €21.332,40. Mas, se multiplicarmos a importância paga nestas 24 prestações encontramos o valor total de €10.140,48. Com o valor da última prestação ficava esgotado o valor do mútuo. Seria mais defensável a sua posição se quando interpelada para pagar tivesse pedido explicações do que se estava a passar e inclusivamente a cópia do contrato se não lhe foi entregue. Mas continuou como se nada se passasse a usar o veículo e sem nada pagar. Na verdade, tinha obrigação de fazer contas ao total do montante pedido e ao que já tinha liquidado. Não pode defender que estava surpreendida, apesar de ter assinado os encargos totais e montantes de cada prestação
Nada fez e, só na contestação da acção, depois de se atrasar no pagamento da última prestação do contrato, invocou a falta da entrega da respectiva cópia ou exemplar e a correspondente nulidade, como se durante todo este tempo (mais de dois anos) andasse enganada sobre os seus direitos de consumidora, sem dúvida que representa uma atitude de abrupta e flagrante contradição com o comportamento que teve, como tendo conhecimento e de objectiva confiança – um “Venire contra factum proprium”.
É para situações como essas que deverá funcionar o chamado instituto ou figura do “abuso do direito”, que entre nós tem a sua enunciação no art. 334º do Código Civil – “É ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito”.
A situação de abuso do direito, segundo a concepção objectivista aceite no artigo 334°, caracteriza-se quando o titular o exerce com manifesto excesso dos limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.
Para que o exercício do direito seja abusivo, é preciso que o titular, observando embora a estrutura formal do poder que a lei lhe confere, exceda manifestamente os limites que lhe cumpre observar, em função dos interesses que legitimam a concessão desse poder.
Como explicam Pires de Lima/ Antunes Varela, os tribunais só podem fiscalizar a moralidade dos actos praticados no exercício de direitos ou a sua conformidade com as razões sociais ou económicas que os legitimam, se houver manifesto abuso.
Manuel de Andrade refere-se aos direitos exercidos em termos clamorosamente ofensivos da justiça e às "hipóteses em que a invocação e aplicação se um preceito de lei resultaria, no caso concreto, intoleravelmente ofensiva do nosso sentido ético -jurídico, embora lealmente se aceitando como boa e valiosa para o comum dos casos a sua estatuição".
Também Vaz Serra se refere à "clamorosa ofensa do sentimento jurídico socialmente dominante". Para a determinação dos limites impostos pela boa fé há que atender de modo especial às concepções ético – jurídicas dominantes da colectividade.
Para que haja lugar ao abuso do direito é necessária a existência de uma contradição entre o modo ou o fim com que o titular exerce o direito e o interesse ou interesses a que o poder nele consubstanciado se encontra adstrito.
O abuso do direito serve, além do mais, para dar cobertura à reprovação do venire contra factum proprium, bem como às ininvocabilidades de certas nulidades formais. Trata-se de regulações típicas de comportamentos abusivos, de cujas existência e possibilidade no nosso ordenamento cabe agora cuidar.
A locução «venire contra factum proprium» traduz o exercício de uma posição jurídica em contradição com o comportamento assumido anteriormente pelo exercente. Tal exercício é tido como inadmissível. Como expressão da confiança, o venire contra factum proprium situa-se já numa linha de concretização da boa fé. É o que acontece com a recondução do "venire" à doutrina da confiança, que revela um estádio elevado nessa tarefa da concretização da boa fé.
A confiança dá, um critério para a proibição de venire contra factum proprium.
É manifesto que a actuação da A, nos precisos termos supra referidos, enquadra-se perfeitamente nesta situação, isto é, na de abuso de direito, na de modalidade de "venire contra factum proprium".
Improcedem, também deste modo, as demais conclusões dos apelantes
Concluindo
1. O art. 6.º, n.º 3, al. f), do DL n.º 359/91, de 21-09 (diploma que estabelece o regime jurídico do crédito ao consumo) nada modifica os contornos da questão, pois o facto de no contrato de crédito para financiamento da aquisição de bens ou serviços dever constar “o acordo sobre a reserva de propriedade”, refere-se, de harmonia com o determinado no art. 409.º, n.º 1, do CC, ao alienante e não ao financiador/mutuante
2-Os contratos de crédito ao consumo são contratos de adesão, já que, a par de cláusulas específicas que exprimem a particularidade de cada negócio, contêm cláusulas pré-determinadas destinadas à massa dos consumidores e que não são passíveis de negociação individualizada, aplicando-se-lhe o regime das cláusulas contratuais gerais (ccg).
3- Neste tipo de contrato em que existe uma aceitação, não particularmente negociada pelo aderente, a lei visa a sua protecção, como parte contratualmente mais débil, assegurando de modo efectivo um “dever de informação” a cargo do proponente.

4.Essa comunicação dever abranger a totalidade das cláusulas e ser feita de modo adequado e pessoal e com antecedência compatível com a extensão e complexidade do contrato, de modo a tornar possível o seu conhecimento “completo e efectivo por quem use de comum diligência”.

III – Decisão: em face do exposto, julga-se improcedente:
- a apelação do autor;
- a apelação da ré;
- mantendo-se a decisão impugnada.

Custas pelos apelantes das respectivas apelações

Lisboa, 1 de Março de 2012

Maria Catarina Manso
Maria Alexandrina Branquinho
Ana Luísa Geraldes (vencida, porquanto tenho defendido a tese contrária quanto à reserva de propriedade – por todos os Ac. desta Relação de 28.06.2007 e 31.01.2008, este último no processo nº 10350/07)