Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1979/09.2TBTVD-A.L1-1
Relator: RIJO FERREIRA
Descritores: FIANÇA
FIADOR
RESPONSABILIDADE
NULIDADE
OPOSIÇÃO À EXECUÇÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 01/31/2012
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: 1. - É nula parcialmente a fiança na parte em que a fiadora de obrigações resultantes de empréstimo, se assume desde logo como garante outrossim de responsabilidades resultantes de posteriores alterações que, sem sua intervenção, venham a ser convencionadas entre os adquirentes de fracção autónoma e o banco ( v.g. modificações da taxa de juro ).
2 – Daí que, resultando a quantia exequenda , não dos termos do contrato inicial validamente afiançado pela executada, mas antes da configuração contratual decorrente de posterior aditamento, não pode considerar-se a mesma abrangida pela fiança, ficando assim excluída a responsabilidade da oponente/executada pelo respectivo pagamento.
3- Concluindo, a responsabilidade da fiança não se estende às obrigações moldadas pela versão contratual resultante de aditamento celebrado sem a intervenção da fiadora.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: ACORDAM OS JUÍZES DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA:

I – Relatório
A ( Banco …. SA ) intentou acção executiva contra, entre outros, B (esta na qualidade de fiadora) para cobrança de € 81.615,95, de capital em dívida proveniente de mútuo com hipoteca e fiança nas condições estabelecidas no aditamento contratual posteriormente celebrado entre si e os mutuários, e juros.
A executada deduziu oposição à execução invocando não ser responsável pela dívida uma vez que não teve qualquer intervenção nas alterações ao contrato que vieram a ser feitas ao contrato inicial, que constituíram novação daquele.
O exequente contestou alegando que as alterações posteriores não constituíram novação e que a executada havia, nos termos da fiança prestada, dado o seu acordo às alterações que vieram a ser introduzidas.
A final veio a ser proferida sentença que, considerando inexistir novação e que a oponente deu o seu acordo à alteração contratual, julgou a oposição improcedente.
Inconformada, apelou a oponente concluindo, em síntese, por erro de julgamento.
Não houve contra-alegação.
II – Questões a Resolver
Consabidamente, a delimitação objectiva do recurso emerge do teor das conclusões do recorrente, enquanto constituam corolário lógico-jurídico correspectivo da fundamentação expressa na alegação, sem embargo das questões de que o tribunal ad quem possa ou deva conhecer ex officio.
De outra via, como meio impugnatório de decisões judiciais, o recurso visa tão só suscitar a reapreciação do decidido, não comportando, assim, ius novarum, i.e., a criação de decisão sobre matéria nova não submetida à apreciação do tribunal a quo.
Ademais, também o tribunal de recurso não está adstrito à apreciação de todos os argumentos produzidos em alegação, mas apenas – e com liberdade no respeitante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito – de todas as “questões” suscitadas, e que, por respeitarem aos elementos da causa, definidos em função das pretensões e causa de pedir aduzidas, se configurem como relevantes para conhecimento do respectivo objecto, exceptuadas as que resultem prejudicadas pela solução dada a outras.
Assim, em face do que se acaba de expor e das conclusões apresentadas, a única questão a resolver por este Tribunal é a de saber se a oponente é fiadora da obrigação exequenda.
III – Fundamentos de Facto
Porque não impugnada, a factualidade relevante é a fixada em 1ª instância (fls 50-53), para a qual se remete nos termos do artº 713º, nº 6, do CPC.
IV – Fundamentos de Direito
De acordo com o quadro factual fixado:
- em 19FEV2002, por escritura pública de compra e venda e mútuo com hipoteca e fiança foram estabelecidos os termos contratuais de um empréstimo para aquisição de uma fracção autónoma para habitação sob o regime do crédito bonificado jovem, designadamente o prazo do empréstimo e o respectivo juro;
- a executada, outorgando nessa mesma escritura constituiu-se fiadora e principal pagadora das obrigações resultantes daquele empréstimo, renunciando ao benefício da excussão prévia e ao benefício do prazo e dando desde logo o seu acordo a quaisquer modificações da taxa de juro, prazo do empréstimo e outras alterações que venham a ser convencionadas entre os adquirentes da fracção autónoma e o banco;
- por escrito particular de 10JAN2008, foi convencionado entre os adquirentes da fracção e o banco exequente um aditamento ao contrato de empréstimo celebrado pela escritura realizada em 19FEV2002 segundo o qual o empréstimo se passava a reger pelo regime geral do crédito à habitação, foi alterada a taxa de juro e alargo o prazo do empréstimo, mantendo-se o primitivo contrato em vigor em tudo o que não fosse alterado por tal aditamento;
- a obrigação exequenda decorre e foi liquidada em função da configuração contratual resultante do referido aditamento de 10JAN2008.
O aditamento de 10JAN2008 é expresso em revelar a intencionalidade das partes em introduzir alterações a um contrato previamente celebrado mas que continua em vigor, excluindo a possibilidade de novação, como bem se refere na sentença recorrida, e para cuja fundamentação se remete.
Não obstante não ser de considerar extinta a fiança em função de novação, importa analisar se a mesma abrange a dívida exequenda; ou seja, se a responsabilidade da fiança se estende às obrigações moldadas pela versão contratual resultante do aditamento celebrado sem intervenção da fiadora.
A sentença recorrida respondeu afirmativamente a essa questão baseando-se no facto de a aquando da constituição da fiança a fiadora tenha afirmado dar o seu acordo a quaisquer modificações da taxa de juros, prazo do empréstimo e outras alterações que viessem a ser convencionadas entre os beneficiários do empréstimo e o banco.
Não se nos afigura, porém, que tal entendimento seja de sufragar.
Com efeito, pelo acórdão uniformizador de jurisprudência de 23JAN2001 (Jurisprudência 4/2001, Diário da República, I-A, 8MAR2001) foi decidido:
“É nula, por indeterminabilidade do seu objecto, a fiança de obrigações futuras, quando o fiador se constitua garante de todas as responsabilidades provenientes de qualquer operação em direito consentida, sem menção expressa da sua origem ou natureza e independentemente da qualidade em que o afiançado intervenha”.
E no desenvolvimento da doutrina desse acórdão, relativamente a cláusula de teor idêntico à da cláusula em causa nestes autos, o mesmo STJ afirmou, bem recentemente (ac. 6DEZ2011, proc 669/07.5TBPTM-A.E1.S1):
O art. 280.º, nº 1 do CC considera nulo o negócio cujo objecto seja indeterminável.
Assim, o objecto do negócio pode ser indeterminado, se bem que, por força da lei, não possa ser indeterminável.
Sendo a prestação indeterminada mas determinável quando, embora não se sabendo, num momento anterior, qual o seu teor, exista, no entanto, um critério que possibilite determiná-la.
Sendo a mesma, ao invés, indeterminada e indeterminável quando inexiste qualquer critério para proceder à sua determinação. Sendo, então, a obrigação nula, nos termos do atrás citado preceito legal.
A prestação precisa, pois, de ser determinável, ou seja, concretizável no seu conteúdo, não impondo, contudo, a lei que ela seja determinada no momento da sua constituição, se bem que exigido seja que ela então seja determinável, que possa ser concretizada de harmonia com os critérios estipulados pelas partes ou fixados na lei (cfr., ainda art. 400.º do CC).
Tais considerações e tendo em conta que se admite a fiança por débitos futuros (art. 628.º, nº 2 do CC) são aplicáveis a esta garantia das obrigações.
Com efeito, a atrás falada exigência da determinabilidade é aplicável à fiança: não pode alguém declarar-se fiador de todas as dívidas, incluindo as futuras, sem critério nem limite.
Sendo certo que, no comércio bancário, essa determinabilidade é ainda reforçada pela inviabilidade de “contratos bancários gerais” de conteúdo indeterminável .
E que a fiança, a que se poderá chamar de fiança genérica ou fiança omnibus, tendo por objecto os direitos de crédito que visa garantir, tanto se pode referir a obrigações já constituídas como a obrigações futuras, caracterizando-se por apresentar um conteúdo genérico, muito amplo, com variável grau de determinabilidade, suscitando fortes dúvidas a conclusão acerca da sua validade, justamente por vincular quem a presta de forma quase ilimitada, ou, pelo menos, subsistindo dificuldades para a definição dos limites da determinabilidade do seu objecto.
Tendo este Supremo Tribunal de Justiça decidido, em uniformização de jurisprudência, que “é nula, por indeterminabilidade do seu objecto, a fiança de obrigações futuras, quando o fiador se constitua garante de todas as responsabilidades provenientes de qualquer operação em direito consentida, sem menção expressa da sua origem ou natureza e independentemente da qualidade em que o afiançado intervenha”.
Passando o problema da determinabilidade/indeterminabilidade do objecto de obrigações futuras pela interpretação do termo constitutivo da garantia.
Ora, in casu, verifica-se, sem dificuldade, que a fiança prestada, no momento da sua constituição, ficou com o seu objecto determinado.
Constituindo-se a ora recorrente, alem de outros (os quartos outorgantes), fiadora perante o CEMG das obrigações pecuniárias assumidas pela S.C.O. no contrato.
Sendo certo que, nos termos deste, a CEMG comparticiparia, como comparticipou, no financiamento em questão, até ao montante de 33.000.000$00, sendo 23.612.000$00 a parcela com bonificação de juros, sendo de 9.388.000$00 a parcela não comparticipada (artigo segundo, nº 5).
Estando a taxa de juro e a eventual capitalização de juros descritas nos artigos quinto e oitavo, respectivamente, do referido contrato.
As consequências da mora estão contempladas no artigo sétimo.
As despesas e encargos estão contemplados no artigo nono.
As prestações, respectivo montante e início do vencimento estão descritas no artigo décimo.
Constando a garantia da CEMG ao ICEP e seu montante limite do artigo décimo quarto.
Sendo, assim, o objecto da fiança prestada, bem determinado, não incorrendo a mesma na pretendida nulidade.
Mas, diz a recorrente que a indeterminabilidade da fiança a seu tempo prestada está na parte final da dita cláusula, ou melhor, artigo décimo sexto, quando aí se diz que os fiadores “dão desde já o seu acordo a quaisquer alterações ao contrato designadamente da taxa de juro, prazo, moratórias ou outras que venham a ser fixadas ou convencionadas”.
Ora, não restarão dúvidas que esta parte da dita cláusula tornaria a fiança indeterminável, não permitindo a quem a presta avaliar no futuro o conteúdo da sua obrigação, conhecer os seus limites ou, pelo menos, os critérios objectivos que lhe facultem tal conhecimento.
Aqui, sim, poder-se-á concluir estarmos perante uma fiança com objecto indeterminável, sem conteúdo previsível no momento da sua estipulação.
Por isso, e nesta parte, nula.
Havendo que se admitir tal nulidade parcial, nos termos do disposto no art. 292.º do CC, que consagra a presunção da divisibilidade do negócio.
Aderindo integralmente a tal entendimento haverá de concluir pela nulidade parcial da fiança da recorrente na parte em que tal fiança abrange as posteriores alterações que, sem sua intervenção, venham a ser inseridas no contrato.
E porque a quantia exequenda resulta, não dos termos do contrato inicial validamente afiançado pela recorrente, mas antes da configuração contratual decorrente de posterior aditamento, não pode considerar-se a mesma abrangida pela fiança, ficando excluída a responsabilidade da oponente pela mesma.

V – Decisão
Termos em que, na procedência da apelação, se revoga a sentença recorrida e, em substituição, se declara extinta a execução relativamente à oponente B .
Custas, em ambas as instâncias, pelo exequente.

Lisboa, 31 de Janeiro de 2012

Rijo Ferreira
Afonso Henrique
Rui Vouga