Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1598/10.0TVLSB.L1-6
Relator: GILBERTO JORGE
Descritores: NULIDADE DE SENTENÇA
PROVIDÊNCIA CAUTELAR
DIREITOS DE AUTOR
OBRA COMPÓSITA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 03/31/2011
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE
Sumário: 1. O direito de autor compreende direitos de carácter patrimonial e moral.
2. Por seu turno, o direito de natureza moral compreende a reivindicação da autoria da obra e o respeito pela genuinidade e integridade da mesma.
( Da responsabilidade do Relator )
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa

I - Relatório

S.P.A.-Sociedade Portuguesa de Autores, CRL., em nome e representação dos autores António …., Luís …..que, respectivamente, também usam assinar António A…. e Luís O….. e E…..,Edições Musicais, Ld.ª, bem como em representação dos demais autores que representa e cujas obras fazem parte do seu reportório literário, musical e literário musical, intentou e fez seguir contra M…- Produção e Comunicação, S.A. e RTP- Rádio e Televisão de Portugal, S.A., todos com os sinais nos autos, o presente procedimento cautelar previsto no artigo 210.º do Código do Direito de Autor e dos Direitos Conexos, pedindo que o mesma seja julgado procedente por provado e, reconhecido o direito da requerente, em consequência decretadas as seguintes providências:
a) Impedir a requerida M…. S.A. de utilizar nos programas por si produzidos, quer directamente quer por interposta pessoa, toda e qualquer obra que pertença ao reportório de gestão da aqui requerente;
b) Impedir a requerida RTP S.A. de exibir nos seus serviços de programas todo e qualquer programa produzido pela requerida M…. S.A. que contenha qualquer obra pertencente ao reportório de gestão da aqui requerente sem que esta tenha concedido préviamente a devida autorização escrita;
c) Impedir ambas as requeridas de utilizarem em sítios de internet por si geridos todo e qualquer programa produzido pela requerida M…. S.A. denominado “Contra-Informação” que contenha obras pertencentes ao reportório de gestão da requerente sem que esta tenha concedido prévia e escrita autorização, nomeadamente o referido no artigo 38.º da petição inicial.
Para tanto e em síntese alegou que os autores acima identificados são membros da S.P.A. e autores e titulares de obras literário-musicais nomeadamente das obras “As cantigas do avô Cantigas”, “Gosto tanto de ti” e “Fantasminha Brincalhão”.
Estas obras foram utilizadas, sem autorização dos titulares dos direitos de autor sobre elas, no programa intitulado “Contra-Informação” do passado dia 08.06.2010, adiantando que tal utilização foi feita também sem estar acompanhada d identificação dos autores nessa sua qualidade.
Tendo a obra “As cantigas do avô Cantigas” sido modificada, na letra, sem que os autores tenham sido consultados.
Assim, alega ter sido modificada de forma altamente desprestigiosa para os seus autores, porquanto em lugar do verso “Eu sou o avô cantigas / E todas as crianças são minhas amigas / Eu sou o avô cantigas / Rapazes e raparigas”, surge o verso “Eu sou o avô cantigas / E todos os gays são minhas amigas / Eu sou o avô cantigas / La La La La He He He”.
Finalmente, sustenta que tal alteração afectou a honra e reputação dos autores e causou-lhes prejuízos, ocorrendo violação dos direitos dos autores, morais e patrimoniais, o que determinou o recurso ao presente procedimento cautelar.
A requerida M….- Produção e Comunicação, S.A. deduziu oposição, tendo a final pugnado pela total improcedência, por não provado, do procedimento cautelar, não devendo o mesmo ser decretado com todas as legais consequências e, caso assim não se entenda, deverá o mesmo ser considerado manifestamente excessivo, não devendo ser decretado em toda a extensão daquilo que é peticionado pela requerente, mais devendo esta ser condenada em multa e indemnização nos termos dos arts. 456.º e 457.º do C.P.C..
Para tanto e em síntese alegou não estarem verificados os pressupostos de que depende o decretamento da providência desde logo porque a utilização de obras musicais e literário-musicais no identificado programa não necessita de prévia autorização escrita já que a requerida, R.T.P., S.A., é detentora das licenças para o efeito cabendo apenas à M… confirmar que as obras que pretende utilizar são de autores representados pela S.P.A.. Caso sejam, nenhuma autorização é necessária por via do contrato celebrado entre a R.T.P. e a S.P.A..
Por fim, adianta ainda que nenhum prejuízo adveio para os autores da utilização das obras, nem sofreram quaisquer danos.
A requerida, R.T.P. S.A., também deduziu oposição pugnando pela total improcedência da pretensão da requerente, recusando o decretamento da providência cautelar requerida.
Para tanto e em síntese, alegou a existência do dito contrato celebrado entre a R.T.P. e a S.P.A., que as situações se mostram abrangidas naquele, bem como alegou não se mostrarem preenchidos os pressupostos de que depende o decretamento da providência.
Em sede de audiência, a requerente apresentou requerimento onde se pronuncia sobre as excepções invocadas pelas requeridas nas suas oposições e sobre a invocada litigância de má-fé.
Realizou-se a audiência de discussão e julgamento e decidida que foi a matéria controvertida – sem reclamações – de seguida foi elaborada a sentença que julgou o presente procedimento cautelar improcedente com o consequente não decretamento das providências requeridas.
Inconformada com tal decisão, dela a requerente interpôs recurso que foi admitido como de apelação, a subir nos próprios autos, imediatamente e com efeito suspensivo.
São as seguintes as conclusões da alegação de recurso da apelante:
1. A recorrente não se conforma com a douta decisão ora recorrida, uma vez que a sua fundamentação padece de um vício de nulidade, bem como de um vício de interpretação da norma jurídica a aplicar e de erro sobre a norma que efectivamente deve ser aplicada.
2. A requerente, aqui recorrente, propôs a presente providência cautelar contra as aqui recorridas, alegando, em síntese, que as requeridas utilizaram obras, pertencentes ao repertório de gestão da requerente, no programa intitulado “Contra-Informação”, modificando uma delas, sem que para tal tenham solicitado a respectiva autorização e sem que tenham sequer identificado os respectivos autores.
3. Na sequência dos articulados e do julgamento sobre a matéria de facto, ficaram provados factos com base nos quais veio o juiz a quo considerar que não só a utilização das obras literário-musicais estava autorizada ao abrigo da relação contratual existente entre a requerente e a requerida RTP, como ainda que a modificação da obra “As cantigas do Avô Cantigas” não afecta a honra e a reputação do autor, concluindo que o comportamento das requeridas é legítimo, não decretando assim as providências requeridas.
4. Ora, entende a recorrente que, salvo melhor opinião, a douta sentença de primeira instância padece de nulidade, uma vez que a mesma não aprecia questões que deviam ser apreciadas.
5. Com efeito, o Tribunal a quo considera facto provado que a utilização das obras sub judice é feita sem ser acompanhada da devida identificação dos seus autores.
6. Ora, não só dispõe o artigo 56.º do CDADC que o autor goza durante toda a vida do direito de reivindicar a paternidade da sua obra.
7. Como também se encontra previsto na cláusula 4.ª n.º 3 do Contrato celebrado entre a ora recorrente e a requerida RTP que a utilização das obras em causa é feita “com expressa reserva dos direitos morais dos respectivos autores” (cfr. facto provado em alínea QQ).
8. Note-se que o Tribunal adere à tese segundo a qual a utilização das obras dos representados da requerente, ora recorrente, foi feita ao abrigo da autorização vertida no contrato celebrado entre a requerente e a 2.ª requerida.
9. É, portanto, de vital importância para a boa apreciação da presente causa que o tribunal faça o enquadramento jurídico do facto dado como provado sob a alínea DD), devendo-o fazer à luz do mencionado contrato, nomeadamente da sua cláusula 4.ª n.º 3, citada.
10. Assim sendo, a não identificação dos autores das obras em questão, configura uma violação dos direitos morais dos mesmos, sendo, assim, ilícito o comportamento das requeridas.
11. Ou seja, se se aceita que o contrato celebrado entre a requerente e a requerida RTP concede a esta, bem como, em certas circunstâncias, a produtoras externas, autorização para a utilização de obras que façam parte do reportório daquela, não é menos verdade que esta autorização é conferida, apenas, no pressuposto de que os direitos dos representados da requerente, titulares do direito de autor sobre as obras do referido repertório, são respeitada na sua dupla vertente, patrimonial e moral.
12. Se, por um lado, a contrapartida financeira da autorização garante o respeito pelos direitos patrimoniais, na medida em que “a garantia das vantagens patrimoniais resultantes dessa exploração constitui, do ponto de vista económico, o objecto fundamental da protecção legal” (artigo 67.º n.º 2 CDADC), por outro lado, o respeito pelos direitos morais – “(…) reivindicar a paternidade da obra e assegurar a genuinidade e integridade desta (…)” – tem que ser garantido por quem utiliza a obra sob pena de estar a fazer uma utilização não autorizada da mesma e em violação do direito de autor dos seus titulares.
13. Entende, portanto, a requerente, ora recorrente, que atenta a forma como a 1.ª requerida utilizou as obras dos autores – modificando uma delas e não identificando a autoria em nenhuma das obras – o contrato em que as requeridas estribam a sua argumentação, à qual o Tribunal a quo aderiu, não é suficiente para legitimar a utilização feita. Na realidade, a utilização descrita das obras foi feita em clara violação dos direitos morais dos autores representados pela requerente. Nesta medida, considera a recorrente que andou mal o Tribunal a quo.
14. Na realidade, o Tribunal a quo, apesar de considerar provado que tal utilização é feita sem identificação dos autores das obras, não aprecia tal facto não aplicando o direito ao mesmo, sendo a douta sentença omissa quanto a tal comportamento ilícito das requeridas.
15. Verificando-se, assim, a nulidade apontada, pelo que, nos termos do artigo 668.º n.º 1 alínea d) do C.P.C., a sentença do Tribunal a quo padece de vício de nulidade.
16. Acresce que, ao não pronunciar-se sobre o enquadramento jurídico a dar a este facto, o Tribunal viola, com a sentença ora colocada em crise, o CDADC, nomeadamente, os seus artigos 9.º e 56.º.
17. Assim, deverá a sentença recorrida ser considerada nula e substituída por sentença que considere violado o direito moral dos autores em questão, nos termos referidos, ou, caso assim não se entenda, deverá a mesma baixar à primeira instância para que esta se pronuncie sobre a presente questão.
18. Sucede que, na sentença ora recorrida fica expresso que a alteração da obra “As cantigas do avô Cantigas”, nos termos mencionados, é lícita pois é utilizada numa obra nova que vem “parodiar” uma certa situação político-social, sendo claro que comportamento se pretendia satirizar.
19. Perante tal utilização – inclusão de obra alheia modificada numa paródia político-social – conclui Tribunal a quo que a alteração da obra incluída não afecta a honra e a reputação dos seus autores, sendo a mesma permitida.
20. Sucede que, o fundamento para tal decisão padece de um vício de interpretação da norma jurídica a aplicar, bem como de erro sobre a norma que efectivamente deve ser aplicada.
21. Na verdade, procura o juiz a quo enquadrar a utilização feita da obra “As cantigas do avô cantigas” no conceito de paródia, integrando este no conceito de utilização livre, ao abrigo do disposto no artigo 2.º n.º 1 alínea n) do Código do Direito de Autor e dos Direito Conexos (CDADC), salvaguardando-se, contudo, que a alteração da obra, utilizada nestes termos, não afecte a honra e a reputação dos seus autores.
22. Ora, ninguém nega que o CDADC aceita como sendo obra original, portanto criação absoluta, independente de obra preexistente, a paródia, mesmo que inspirada num tema ou motivo de outra obra.
23. De facto, todos são livres de utilizar tema, assunto ou ideia de obra alheia e com base neles criar uma obra nova, quer estejamos a falar de paródias quer de qualquer outra forma de expressão criativa. O artigo 2.º do CDADC reforça, precisamente, essa ideia.
24. No entanto, situação diferente é a utilização de obra alheia em obra própria, mesmo que para parodiar uma certa situação social, política ou outra.
25. Nestes casos, estamos perante uma utilização de obra alheia para a criação de uma paródia, esta original mas onde se inclui uma obra alheia.
26. E, em boa verdade, é o que sucede no caso em apreço, uma vez que a obra “As cantigas do avô cantigas” é utilizada, com modificações, numa obra nova que pretende parodiar determinada situação.
27. Nestes casos – inserção de obra alheia em obra própria – dispõe o artigo 20.º do CDADC que há que respeitar os direitos do autor da obra incorporada (considera-se obra compósita aquela em que se incorpora, no todo ou em parte, uma obra preexistente, com autorização, mas sem a colaboração do autor desta), ou seja, há que respeitar direitos patrimoniais mas também direitos morais do autor de tal obra incorporada.
28. Conforme facto provado (Z dos factos provados), a obra incorporada foi alvo de modificação, sem que, contudo, tenha sido solicitada prévia autorização dos seus autores.
29. Pois acontece que “(…) o autor goza durante toda a vida do direito de (…) assegurar a genuinidade e integridade desta [da sua obra], opondo-se (…) a toda e qualquer mutilação, deformação ou outra modificação da mesma (…)” (cfr. artigo 56.º n.º 1).
30. Mais ainda, “não são admitidas modificações da obra sem o consentimento do autor, mesmo naqueles casos em que, sem esse consentimento, a utilização da obra seja lícita” (cfr. artigo 59.º n.º 1).
31. Desta forma, verifica-se que a utilização da obra “As cantigas do avô cantigas” com as modificações a que foi sujeita, teria que ter sido precedida de autorização do seu autor, pelo que, as requeridas ao não terem solicitado tal autorização, violaram direitos morais do titular do direito de autor aqui representado pela recorrente, sendo assim ilícito o seu comportamento.
32. Face ao supra exposto e mesmo na tese a que o Tribunal aderiu de que o contrato celebrado entre a recorrente e a RTP recorrida confere à M... autorização para a utilização de obras do reportório da requerente, sempre deveria a douta sentença recorrida ter considerado provada a violação dos direitos dos titulares do direito de autor dos autores aqui representados pela recorrente, julgando procedente a presente providência cautelar e decretando as providências requeridas.
33. O que não fez. E não o tendo feito, violou o CDADC nomeadamente os seus artigos 9.º, 20.º, 56.º, 59.º e 68.º.
34. Nesta medida, entende-se que a sentença ora colocada em crise deverá ser substituída por outra que, apreciando correctamente a questão e aplicando devidamente o direito, condene as requeridas no cumprimento das providências requeridas.
Nestes termos, deve o presente recurso ser julgado procedente, por provado, e ser revogada a decisão recorrida, sendo substituída por outra que julgue totalmente procedente a presente providência cautelar.
Na contra alegação apresentada pela apelada, M…- Produção e Comunicação, S.A., formularam-se as seguintes conclusões:
1.ª – Por ser do conhecimento geral, notório e público, o termo da transmissão pela RTP do programa Contra-Informação produzido pela ora apelada, no entendimento desta estamos perante uma completa inutilidade superveniente do presente recurso, bem como do procedimento cautelar requerido pela apelante. Porquanto,
2.ª – Como é do perfeito conhecimento da apelante, sob pena de mais uma vez litigar de má-fé, a alegada violação dos direitos de autor que fundamentaram o procedimento cautelar, bem como as providências nele requeridas que respeitavam a essa alegada violação e que tinham a ver com o programa Contra-Informação em concreto cessou. Isto é,
3.ª – Não se verifica mais sequer a alegada violação que levou a ora apelante a requerer as providências pedidas nos autos, não falando obviamente daquelas que excessivamente aproveitou para requerer e que nada tinham a ver com o caso em concreto que as fundamentou e como tal nem sequer foram apreciadas nos autos, nem o deveriam ser por razões óbvias. Por outro lado,
4.ª - Ainda que viesse a merecer algum provimento o presente recurso, o que não se concebe, pelas razões que adiante se alegarão, as providências requeridas pela apelante não poderiam ser efectivadas nem aplicadas. Porquanto,
5.ª - Os pressupostos dos quais as mesmas dependem não se verificam mais em virtude do programa “Contra-Informação” ter terminado. Donde resulta que,
6.ª - No entendimento da ora apelada verifica-se uma inutilidade superveniente da lide claramente objectiva e que é causa de extinção da instância nos termos da alínea e) do art. 287.º do C.P.C.
7.ª - Devendo ser declarada a extinção da instância de recurso, com todas as consequências legais. Mas ainda que assim não se entenda, sem conceder, dir-se-á:
8.ª - A ora apelante fez assentar o seu pedido numa alegada violação dos direitos de autor por parte das requeridas no que respeita às obras “As cantigas do avô Cantigas”, “Gosto tanto de ti” e “Fantasminha brincalhão”.
9.ª- Contráriamente ao entendimento da apelante e expendido nas suas, aliás doutas, alegações apesar de ter logrado provar que os autores em nome e em representação de quem actua, são titulares dos direitos de autor das obras em causa, sendo que nos termos do art. 9.º n.ºs 1 e 2 do CDADC, no qual se dispõe que o direito de autor abrange, além do mais, direitos de carácter patrimonial, no exercício dos quais o autor tem o direito exclusivo de dispor da sua obra e de a fruir e utilizar, ou autorizar a sua fruição ou utilização por terceiros, total ou parcialmente, sendo que a garantia das vantagens patrimoniais constitui do ponto de vista económico, o objectivo fundamental da protecção legal, não resultou provado nos autos qualquer violação dos direitos de autor por parte das recorridas. Bem como,
10.ª - Resulta dos autos que a utilização que as requeridas, ora recorridas, fizeram das obras literário-musicais foi legítima.
11.ª - Apesar de a utilização das obras referidas supra não ter sido precedida de pedido de autorização dirigido aos autores, o certo é que face ao contrato junto aos autos não tinha de o ser. Na medida em que,
12.ª - Tal autorização para utilização nos respectivos programas radiofónicos e televisivos de todas as obras musicais e literário-musicais da autoria de autores representados pela SPA, encontra-se genericamente concedida no contrato celebrado em Outubro de 2008, a versão actualmente vigente de tal contrato, entre a RTP e a apelante. Aliás,
13.ª - Conforme resultou provado nos autos a RTP dispõe de uma autorização genérica para utilizar aquelas obras, autorização que abrange o programa produzido pela ora apelada, porque produzido para a RTP, conforme se alcança dos contratos celebrados e juntos aos autos.
14.ª - Como contrapartida de tal autorização a RTP paga à SPA anualmente vários milhões de euros, que esta distribui pelos autores que representa, abrange a referida autorização as produções externas, como aquelas levadas a efeito pela ora apelante e especificamente em relação ao programa “Contra-Informação”. Assim sendo,
15.ª - Como bem decidiu a Mm.ª Juiz a quo e contrariamente ao entendimento da apelante, a utilização das indicadas obras no programa do “Contra-Informação” em apreço nos autos não tinha de ser prévia e especificamente autorizada por esta ou pelos titulares dos direitos de autor. Além disso,
16.ª - A ora apelada estava apenas obrigada a informar a RTP das obras que ia utilizar e se as mesmas eram ou não da titularidade de autores representados pela SPA. Sendo certo que,
17.ª - Se se tratasse de obras que coubessem nesta categoria, ou seja, repertório da SPA, a ora apelada não tinha que pedir autorização à SPA, ou aos autores que esta representa, para as utilizar. Pelo que,
18.ª - Contrariamente ao entendimento da apelante, tal como configura a questão na providência cautelar, a utilização daquelas obras literário-musicais foi legítima. Acresce que,
19.ª - No que respeita à alteração/modificação que resultou provada nos autos, também bem andou a decisão recorrida quando entendeu que relativamente às “Cantigas do avô Cantigas” porque se substituiu a palavra “crianças” do refrão, por “gays”, tal alteração não configura uma infracção ao direito dos autores em não verem desvirtuada a sua obra nem a mesma é susceptível de afectar a honra e reputação do autor. Porquanto,
20.ª - Considerando o programa em causa, o “Contra-Informação”, aliás, o qual já terminou, era um programa humorístico de sátira e crítica social e politica, dirigido a adultos, com um público fiel, perfeitamente capaz de distinguir o Boneco que canta a cantiga, da cantiga e autor originais.
21.ª - Entendeu e bem a Mm.ª Juiz a quo que o seu público é perfeitamente capaz de associar a alteração a quem a produziu e perceber o alcance da alteração e que, no caso dos autos, não se descortina qualquer possibilidade de se entender a alteração como dirigida aos autores da obra ou de lhe ser atribuída. Pelo que,
22.ª - Não se vislumbra qualquer ofensa à honra ou reputação dos seus autores.
23.ª - No contexto da sua utilização é perceptível quem se pretendia “atingir” com a sátira; que comportamento se pretendia parodiar.
24.ª - Inexiste qualquer possibilidade de confusão ou desprimor para os autores da obra original, que, aliás, foi alterada num único verso, numa actuação de 10 segundos. Em suma,
25.ª - Como bem se decidiu na sentença, ora recorrida, a actuação das requeridas não configura qualquer tipo de ofensa à honra ou reputação dos autores da obra. Sendo certo que,
26.ª - De tudo o que se deixa exposto resulta que a apelante não logrou provar a invocada violação do direito dos autores, em qualquer das suas vertentes ou seja, utilização não autorizada de obra literário-musical ou afectação da honra e reputação daqueles autores. Pelo exposto,
27.ª - Na douta sentença recorrida se decidiu e muito bem julgar-se improcedente a providência.
28.ª - Devendo manter-se a decisão ora recorrida e não decretamento das providências nela requeridas pela ora apelante, até porque inúteis atendendo a que o programa Contra-Informação já terminou. Uma vez que,
29.ª - Com a douta decisão recorrida, a Mm.ª Juiz a quo fez uma correcta aplicação da lei, não assistindo qualquer razão à ora apelante nas suas alegações.
Nestes termos, deve ao recurso ser negado provimento, mantendo-se a douta decisão recorrida, nos termos das conclusões que se deixam formuladas.
Colhidos os vistos legais dos Exm.ºs Juízes Desembargadores Adjuntos cumpre agora apreciar e decidir.

II – Fundamentação de facto
São os seguintes os factos provados tal como descritos na decisão recorrida:
A) A autora é uma cooperativa de responsabilidade limitada, pessoa colectiva de utilidade pública, que exerce a sua acção em conformidade com o disposto no Código do Direito de Autor e dos Direitos Conexos (CDADC), competindo-lhe, como tal, a defesa dos interesses dos autores seus membros, nos termos do artigo 73.º do CDADC e demais legislação interna e internacional em vigor.
B) De acordo com os seus Estatutos, compete à autora “agir, em representação dos seus cooperadores e beneficiários (…), perante as autoridade judicias, policiais e administrativas competentes, no exercício e na defesa dos direitos de autor de que eles sejam titulares, tanto de carácter patrimonial como moral, nos casos de usurpação, contrafacção ou todos aqueles em que esses direitos hajam sido ameaçados, requerendo a adopção de todas as medidas conducentes à sua eficiente protecção e ao seu integral respeito, designadamente através da propositura e acompanhamento de acções judiciais, providências cautelares, processos de natureza criminal, recursos administrativos ou quaisquer outros adequados, para o que goza de capacidade judiciária activa e legitimidade processual”.
C) A autora encontra-se inscrita na Inspecção-Geral das Actividades Culturais (IGAC) como sociedade constituida sob a forma de cooperativa para a gestão dos direitos de autor.
D) Os autores António …., Luís …., Carlos A…. e a sociedade E….., Ld.ª são membros da S.P.A.
E) A S.P.A. representa igualmente muitos outros autores nas categorias de criação literária, musical e literário-musical, o que faz quer directamente, quer através da representação das entidades de gestão colectiva estrangeira com quem tem acordos de representação recíproca.
F) O autor António A… é autor de obras musicais e literário-musicais, estando inscrito na aqui autora nessa qualidade há mais de quarenta anos, sendo, nomeadamente, autor e titular do direito de autor das seguintes obras: a) “As cantigas do avô cantigas”; b) “Gosto tanto de ti”; c) “Fantasminha brincalhão”.
G) O autor Luís … é autor de obras musicais e literário-musicais, estando inscrito na aqui autora nessa qualidade há cerca de trinta anos, sendo, nomeadamente, autor e titular do direito de autor das seguintes obras: a) “Gosto tanto de ti”; b) “Fantasminha brincalhão”.
H) O autor Carlos …é autor de obras musicais e literário-musicais, estando inscrito na aqui autora nessa qualidade há cerca de trinta e cinco anos, sendo, nomeadamente, autor e titular do direito de autor da obra intitulada “As cantigas do avô cantigas”,
I) A E….., Ld.ª é titular do direito de autor das obras intituladas “Gosto tanto de ti” e “Fantasminha Brincalhão”.
J) A requerida M…- Produção e Comunicação, S.A. é uma sociedade comercial que tem por objecto social a produção e comercialização de vídeos, actividade de comunicação, agência de publicidade, marketing e actividades conexas.
L) No âmbito da sua actividade comercial, a requerida M…. S.A. produz o programa televisivo intitulado “Contra-Informação”.
M) Programa este que é radiodifundido através dos serviços de programas televisivos da titularidade da requerida RTP – Rádio e Televisão de Portugal, S.A. denominados, nomeadamente, RTP 1, RTP Internacional, RTP África, RTP Açores, RTP Madeira e RTPN.
N) A requerida RTP S.A. é uma sociedade comercial de capitais exclusivamente públicos que explora o serviço público de rádio e televisão.
O) Na prossecução do seu objecto social, nomeadamente na produção do programa referido em L), a requerida M… S.A. inclui várias obras musicais e literário-musicais pré-existentes.
P) Algumas dessas obras são interpretadas pelos personagens do referido programa.
Q) Acontece que as letras das obras utilizadas são, em alguns casos, transformadas pela requerida M… S.A., mantendo a composição musical inalterada.
R) Outras vezes são usadas na sua versão original.
S) No episódio 22 do programa “Contra-Informação” da requerida M…. S.A. e que foi transmitido pela requerida RTP S.A., no dia 08 de Junho de 2010, a M…. S.A. utilizou as obras referidas supra, a saber: a) “As cantigas do avô cantigas”; b) “Gosto tanto de ti”; c) “Fantasminha brincalhão”.
T) Nesse período aos minutos 16.20 o Boneco do José R…. na sua fala cita um refrão da obra “Fantasminha Brincalhão”.
U) Tal personagem cita a 1.ª estrofe da referida obra.
V) No mesmo episódio, no videoclip denominado Prantos foi reproduzida a nova música do Avô Cantigas intitulada “Gosto tanto de ti”.
X) Esta obra, “Gosto tanto de ti”, foi utilizada na sua versão original, neste caso na versão fixada em fonograma, sendo utilizado um excerto de cerca de 2 minutos (tendo a obra um total de 3 minutos e 14 segundos).
Z) A obra “As cantigas do Avô Cantigas” foi alterada e, em lugar do verso “Eu sou o avô cantigas / E todas as crianças são minhas amigas / Eu sou o avô cantigas / Rapazes e raparigas”, surge o verso “Eu sou o avô cantigas / E todos os gays são minhas amigas / Eu sou o avô cantigas / La La La La He He He”.
AA) Durante cerca de 10 segundos, a personagem “regressado Silva”, mascarado de Avô Cantigas, “canta” tal obra literário-musical, modificando-a nos termos referidos na alínea anterior.
BB) No total são cantados três versos, sendo o quarto e último apenas trauteado.
CC) A modificação do segundo verso tem por objectivo parodiar uma decisão política do Presidente da Republica (a promulgação do diploma legislativo que permite o casamento entre pessoas do mesmo sexo).
DD) A utilização destas obras foi feita sem estar acompanhada da identificação dos autores nessa sua qualidade.
EE) A utilização destas obras não foi precedida de pedido de autorização dirigida aos autores.
FF) Em relação à obra intitulada “As cantigas do avô cantigas”, a letra da obra utilizada foi modificada sem que para tal os autores tenham sido consultados.
GG) O programa “Contra-Informação” foi produzido pela requerida M…S.A. e exibido através dos serviços de programas da requerida RTP S.A. e encontrava-se colocado à disposição do público no sítio de internet com o seguinte domínio www.rtp.pt.
HH) A requerida M…S.A. produz o Contra-Informação para a requerida RTP S.A. desde Abril de 1996.
II) Que o transmitiu durante todos esses anos.
JJ) A requerida M…. S.A. para produzir o programa “Contra-Informação” para a requerida RTP S.A. difundi-lo nos seus canais de televisão celebrou com esta um contrato em 29 de Janeiro de 2010.
LL) Nos termos do mencionado contrato a requerida M…. S.A. obrigou-se a produzir 37 programas ou episódios com o título genérico “Contra-Informação” para a requerida RTP. S.A. com a duração de 25 minutos cada.
MM) Nos termos da alínea a) do n.º 5 da cláusula 6.ª do citado contrato, “Se os respectivos autores forem representados pela Sociedade Portuguesa de Autores (SPA), cabendo à segunda outorgante (requerida M…. S.A.) o ónus da respectiva confirmação, o custo da autorização para a utilização das obras em causa exclusivamente para fins de radiodifusão pela RTP S.A. já se encontra incluído no presente contrato, sendo a respectiva remuneração encargo da RTP S.A.”.
NN) A requerida RTP S.A. já é detentora das licenças para as obras musicais e literário-musicais.
OO) A requerida RTP. S.A. e a requerente mantêm desde há vários anos uma relação contratual nos termos da qual a requerente concede à requerida RTP. S.A. autorização para utilização nos respectivos programas radiofónicos e televisivos de todas as obras musicais e literário-musicais da autoria de autores representados pela requerente.
PP) Em 21 de Outubro de 2008, foi celebrado entre a requerente e a requerida RTP. S.A. a versão actualmente vigente de tal contrato.
QQ) Nos termos do n.º 3 da cláusula 4.ª de tal contrato, “Todas as restantes obras, musicais e literário-musicais, cujos autores ou outros titulares de direitos de autor são representados pela SPA (…) podem ser transmitidas, retransmitidas e utilizadas pela RTP sem necessidade de prévia e específica autorização da SPA, com expressa reserva dos direitos morais dos respectivos autores”.
RR) Em contrapartida de tal autorização, a requerida RTP S.A. paga à requerente um valor anual da ordem dos milhões de euros que esta última distribui pelos autores que representa.
SS) A autorização conferida através do referido contrato abrange igualmente as produções externas.
TT) A requerida RTP S.A. concluiu igualmente um contrato com os titulares de direitos conexos relativos a obras fixadas em fonogramas.
UU) De tal contrato resulta que também os titulares de direitos conexos, no que respeita a obras fixadas em fonograma, estão a ser remuneradas pela requerida RTP S.A.
VV) Sendo a única excepção a denominada “sincronização”, que as partes no referido contrato definiram como “a associação, continuada e recorrente, destas obras a uma marca, um produto, uma personagem, um serviço e ao genérico de um programa”.
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III - Fundamentação de direito
Atento o teor das conclusões formuladas pela recorrente – como é sabido o objecto do recurso é por elas definido de harmonia com as regras previstas nos arts. 684.º n.º 3 e 685.º-A n.º 1 do C.P.C. – estão em causa, no âmbito desta apelação, o conhecimento das seguintes questões:
- Nulidade da sentença a que alude o art. 668.º n.º 1 alínea d) do C.P.C.;
- Erro de julgamento/mérito da decisão.
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Sustenta a apelante que a sentença do Tribunal a quo padece de vício de nulidade – nos termos do art. 668.º n.º 1 alínea d) do C.P.C. – por, em síntese, «… apesar de considerar provado que tal utilização é feita sem identificação dos autores das obras, não aprecia tal facto não aplicando o direito ao mesmo…».
Vejamos, adiantando, desde já, não existir a invocada omissão de pronúncia.
Preceitua o art. 668.º n.º 1, alínea d), do C.P.Civil, que é nula a sentença quando o Juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar (…).
De acordo com o art. 156.º n.º 1, do mesmo diploma legal, o Juiz tem o dever de administrar justiça, proferindo sentença sobre as matérias pendentes, (…).
Tal nulidade trata-se da sanção para a violação do dever processual previsto no art. 660.º n.º 2 do C.P.C. que manda o julgador na sentença e nos próprios despachos (art. 666.º n.º 3 do C.P.C.) resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, exceptuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras.
Ora, o pressuposto do processo é a existência de um conflito real de interesses. Digamos que a demandante há-de querer pôr fim a uma situação concreta que a prejudica. Os limites da actividade do Tribunal são definidos pelo fim que prossegue: a solução desse conflito.
No entanto, impõe-se referir, à luz do preceituado no art. 664.º do C.P.Civil, que o Juiz não está sujeito às alegações das partes no que concerne à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito, ou seja, o Juiz não se encontra limitado, na escolha do direito aplicável, ao caso concreto, pelos erros e omissões das partes.
Como escreveu o Prof. Alberto dos Reis, in C.P.Civil Anotado, 5.º vol., pág. 453, “… O Juiz pode ir buscar regras diferentes daquelas que as partes invocaram; pode atribuir às regras invocadas pelas partes sentido diferente do que estas lhe deram; pode fazer derivar das regras de que as partes se serviram efeitos e consequências diversas das que estas tiraram …”.
Ou, como escreveu o Prof. Castro Mendes, “Direito Processual Civil”, I Vol., págs. 218 e segs. «… Estabelece-se que o Juiz não está sujeito à vontade das partes quanto às soluções de direito (art. 664.º). Isto porque, em princípio, se pretende que a solução dada à hipótese presente ao Tribunal seja a realmente verdadeira (princípio da verdade material) e não apenas aquela que se justifica em face da maneira como decorreu o processo (princípio da verdade formal). Neste campo o Juiz só é limitado pela lei, não pela vontade das partes…».
Decorre ainda da articulação do preceituado nos arts.668.º n.º 1, alínea d) e 660.º n.º 2, ambos do C.P.C., que o Tribunal não está obrigado a apreciar todas as razões invocadas pelas partes em defesa do que julgam ser o seu direito.
Ponto é que decida as questões que lhe são postas e justifique as suas decisões. Se tal acontecer, não comete erro algum de actividade jurisdicional, designadamente, aquele que constitui causa de nulidade da sentença prevista na citada alínea d) do n.º 1 do art. 668.º, do C.P.Civil.
O que poderá suceder é erro de julgamento, isto é, quando embora mal, o juiz entende que dos factos apurados resulta determinada consequência jurídica e este seu entendimento é expresso na fundamentação, ou dela decorre.
Finalmente, esta norma processual reporta-se exclusivamente às causas de nulidade de sentença, taxativamente indicadas no citado art. 668,º n.º 1 do C.P.Civil.
E as questões a que se refere a alínea d) do n.º 1 deste preceito legal são as respeitantes ao pedido e causa de pedir e não aos motivos, argumentos ou razões invocados pelas partes em sustentação do seu ponto de vista.
A este propósito escreveu o Prof. Lebre de Freitas, in Código de Processo Civil Anotado, vol. 2.º, pág. 670: “… Devendo o juiz conhecer de todas as questões que lhe são submetidas, isto é, de todos os pedidos deduzidos, todas as causas de pedir e excepções invocadas e de todas as excepções de que oficiosamente lhe cabe conhecer, …, não podendo o juiz conhecer de causas de pedir não invocadas, nem de excepções na exclusiva disponibilidade das partes…”.
Como se decidiu no acordão do S.T.J. de 11.01.2000, in BMJ 493.º-385, “… Questões para este efeito são, desde logo, as que se prendem com o pedido e a causa de pedir. São, em primeiro lugar, todas as pretensões formuladas pelas partes, que requerem decisão do juiz, qualquer que seja a forma como são deduzidas (pedidos, excepções, reconvenção) …”.
Regressando aos autos, constata-se que o pedido formulado pela requerente, na petição inicial, consiste em que se lhe reconheça o direito e, em consequência, se decrete as seguintes providências:
a) Impedir a requerida M... S.A. de utilizar nos programas por si produzidos, quer directamente quer por interposta pessoa, toda e qualquer obra que pertença ao reportório de gestão da requerente;
b) Impedir a requerida RTP S.A. de exibir nos seus serviços de programas todo e qualquer programa produzido pela requerida M… S.A. que contenha qualquer obra pertencente ao reportório de gestão da aqui requerente sem que esta tenha concedido préviamente a devida autorização escrita;
c) Impedir ambas as requeridas de utilizarem em sítios de internet por si geridos todo e qualquer programa produzido pela requerida M… S.A. denominado “Contra-Informação” que contenha obras pertencentes ao reportório de gestão da requerente sem que esta tenha concedido prévia e escrita autorização.
Na sentença recorrida, discreteou-se do seguinte modo:
«(…)
E mostra-se verificada, nestes autos, esta violação dos direitos de autor, esta utilização ilegítima de obras literário-musicais pelas requeridas?
Em face da matéria de facto apurada impõe-se uma resposta negativa.
Na verdade, a utilização das obras referidas supra não foi precedida de pedido de autorização dirigido aos autores. Mas, não tinha de o ser.
(…)
Assim sendo, como efectivamente é, a utilização das indicadas obras no programa do “Contra-Informação” referido nos autos não tinha de ser prévia e especificamente autorizada pela requerente ou pelos titulares dos direitos de autor.
(…)
No caso dos autos, não se descortina qualquer possibilidade de se entender a alteração como dirigida aos autores da obra ou de lhe ser atribuída.
Não se vislumbra qualquer ofensa à honra ou reputação dos seus autores. No contexto da sua utilização é perceptível quem se pretendia “atingir” com a sátira; que comportamento se pretendia parodiar.
Inexiste qualquer possibilidade de confusão ou desprimor para os autores da obra original que, aliás, foi alterada num único verso, numa actuação de 10 segundos.
Em suma: a actuação das requeridas não configura ofensa à honra ou reputação dos autores da obra.
(…)».
Tendo a final decidido como decidiu – julgando a presente providência cautelar improcedente e, consequentemente, não decretando as providências requeridas – conclui-se claramente que o Mm.º Juiz a quo não deixou de se pronunciar sobre as questões que devia apreciar.
Assim sendo, atentas as regras e princípios de direito acima mencionados e ao modo como o Tribunal recorrido apreciou as questões que lhe foram colocadas é manifesta a inexistência da invocada nulidade prevista no art. 668.º n.º 1 alínea d), do C.P.Civil.
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Erro de julgamento/mérito da decisão
O procedimento cautelar é um meio processual de natureza transitória, sempre dependente da causa que tenha por fundamento o direito acautelado e caducando se ela não for proposta; caracterizando-se ainda pela rápida tramitação processual (no caso, requerimento inicial, oposição, produção de prova e decisão), basta-se que sumariamente se conclua pela séria probabilidade da existência do direito (aparência do direito) invocado pela requerente e pelo justificado receio de que a natural demora na resolução definitiva do litígio cause prejuízo irreparável ou de difícil reparação (perigo de insatisfação desse direito).
O procedimento cautelar constitui, pois, simples instrumento jurídico, de natureza incidental, destinado a acautelar o efeito útil da acção de que depende – art. 2.º n.º 2, parte final, e 383.º n.º 1, ambos do C.P.Civil.
Como refere o Prof. Manuel Rodrigues, in Lições de Processo Preventivo e Conservatório, «As providências cautelares são acto preparatório da acção em que se há-de definir e reconhecer o direito posto em foco pelos factos ou pelas ameaças que determinaram as providências».
Os procedimentos cautelares não são meios adequados para definir direitos, mas apenas para os acautelar e proteger, através de uma investigação sumária tendo em vista precaver os efeitos práticos da decisão definitiva que será proferida na acção principal, onde o litígio ser resolverá em definitivo.
Tais procedimentos não se destinam, pois, a resolver questões de fundo, nem a decisão neles proferida se reflecte na acção principal, conforme resulta do disposto no art. 383.º n.º 4 do C.P.Civil.
Com efeito, é na acção que a causa é discutida e apreciada em toda a sua plenitude. É, nessa sede, que a matéria questionada pelas partes assume dignidade de debate entre elas e não em sede de procedimento cautelar, em face de todas as reservas, limitações e características decorrentes do quadro legal processual.
Donde, o procedimento cautelar não produz efeitos irreversíveis na esfera jurídica das requeridas, nem proporciona à requerente, ora apelante, uma tutela imediata do seu direito; permitindo, no entanto, que, proferida a decisão na acção principal possa revelar-se útil a actividade jurisdicional subsequente. Ao fim e ao cabo, porque não satisfaz, nem resolve definitivamente o litígio, o procedimento cautelar limita-se a preparar terreno, a tomar precauções para que o processo principal possa realizar completamente o seu fim.
A concluir estas considerações importa ainda salientar que deve existir proporcionalidade entre as medidas a adoptar e os interesses que se visam acautelar – princípio da proporcionalidade que resulta, desde logo, do disposto no art. 381.º n.º 1, do C.P.Civil quando determina que a medida requerida deve ser adequada a assegurar a efectividade do direito ameaçado.
Regressando aos autos e às conclusões da alegação que, como se disse, delimitam o objecto do recurso e, nessa medida, o poder cognitivo deste Tribunal, constata-se que a apelante pretende a revogação da decisão recorrida e sua substituída por outra que julgue totalmente procedente a presente providência cautelar.
Em síntese, o Tribunal a quo entendeu que foi lícita a modificação – em lugar do verso “Eu sou o avô cantigas / E todas as crianças são minhas amigas / Eu sou o avô cantigas / Rapazes e raparigas” surge o verso “Eu sou o avô cantigas / E todos os gays são minhas amigas / Eu sou o avô cantigas / La La La La He He He” – e a utilização da obra “As cantigas do avô cantigas”, do autor António ..., representado pela S.P.A., apesar de não precedida de autorização do seu autor.
Discorda a apelante para quem o procedimento cautelar deveria ter sido julgado procedente e consequentemente decretadas as providências peticionadas.
Ora, afigura-se-nos assistir razão à apelante excepto quanto à extensão das providências requeridas.
Quanto ao conteúdo do direito de autor.
Dispõe o art. 9.º do Código do Direito de Autor e dos Direitos Conexos (C.D.A.D.C.) que o direito de autor abrange direitos de carácter patrimonial e direitos de natureza pessoal, denominados direitos morais (n.º 1); no exercício dos direitos de carácter patrimonial o autor tem direito exclusivo de dispor da sua obra e de fruí-la e utilizá-la, ou autorizar a sua fruição ou utilização por terceiro, total ou parcialmente (n.º 2); independentemente dos direitos patrimoniais, e mesmo depois da transmissão ou extinção destes, o autor goza de direitos morais sobre a sua obra, designadamente o direito de reivindicar a respectiva paternidade e assegurar a sua genuinidade e integridade (n.º 3).
Por seu turno, prescreve o art. 56.º n.º 1 do mesmo diploma legal que independentemente dos direitos de carácter patrimonial e ainda que os tenha alienado ou onerado, o autor goza durante toda a vida do direito de reivindicar a paternidade da obra e de assegurar a genuinidade e integridade da obra, opondo-se à sua destruição, a toda e qualquer mutilação, deformação ou outra modificação da mesma e, de um modo geral, a todo e qualquer acto que a desvirtue e possa afectar a honra e reputação do autor.
O direito moral – segundo Rui Moreira Chaves, in Regime Jurídico da Publicidade, Almedina, pág. 226 – “(…) consiste no reconhecimento do carácter eminentemente pessoal da criação literária, artística e científica, com todas as consequências que daí derivam em relação à obra intelectual, como reflexo da personalidade do seu criador. O direito moral compreende duas vertentes fundamentais: a) a reivindicação da paternidade da obra, que consiste num direito à menção do nome do autor na obra e a consequente reacção contra violações praticadas; b) o respeito pela genuinidade e integridade da obra, reflectindo-se na oponibilidade à sua destruição, mutilação, deformação ou outra qualquer modificação e, de um modo geral, a todo e qualquer acto que a desvirtue e possa afectar a honra e reputação do autor (…)”.
Sobre as modificações da obra, preceitua o art. 59.º n.º 1 do citado Código que não são admitidas modificações da obra sem o consentimento do autor, mesmo naqueles casos em que, sem esse consentimento, a utilização da obra seja lícita.
A este propósito escreveu Sá e Mello, in O Direito Pessoal de Autor no Ordenamento Jurídico Português, Temas de Direito de Autor, SPA, pág. 125, “(…) Ao consentir que terceiro modifique a obra, não transmite o autor o direito de autorizar modificações, nem renuncia ao direito de se opôr a qualquer outras alterações que se pretendam introduzir. Entendemos, de resto, que deve o pedido de autorização – feito por carta registada, nos termos no n.º 3 do citado art. 59.º – ser necessáriamente acompanhado de um projecto das modificações pretendidas: a autorização é dada para modificações precisamente determinadas e só conhecendo-as pode o autor nelas consentir, conservando o direito (que exerce ao autorizar) de se opôr ou não a quaisquer outras (…)”.
Ora, de acordo com a factualidade provada, nem a alteração introduzida na obra intitulada “As cantigas do avô cantigas” foi precedida de autorização do autor da obra, nem a sua utilização foi consentida pelo autor, nem mesmo tal utilização se fez acompanhar da identificação do seu autor (pontos Z, DD, EE, FF da fundamentação de facto).
Não colhendo o argumento utilizado pela sentença recorrida de que a requerida RTP mantém uma relação contratual com a requerente SPA/ora apelante, desde há vários anos – nos termos da qual esta concede àquela autorização para utilização nos respectivos programas radiofónicos e televisivos de todas as obras musicais e literário-musicais da autoria de autores representados pela SPA, em troca desta autorização a RTP paga à SPA anualmente vários milhões de euros que esta distribui pelos autores que representa – e assim sendo a utilização das indicadas obras no programa “Contra-Informação” não tinha de ser prévia e especificamente autorizada pela SPA ou pelos titulares dos direitos de autor.
Com efeito, a existência de tal contrato e seu aproveitamento económico não faz do direito de autor um bem patrimonial porque quando negociado, não se opera uma transferência da titularidade sobre ele. É sempre um bem pessoal, o que justifica a possibilidade de revogação a todo o tempo, do consentimento prestado ainda que, com direito a ressarcimento dos prejuízos causados à contraparte.
Comentando o art. 59.º n.º 1 do mesmo Código segundo o qual é vedada a introdução de modificações na obra, sem consentimento do autor e ainda que a utilização livre desta seja admitida, escreveu-se na citada obra de Sá e Mello, pág. 124, “(…) O facto de este consentimento ser exigido, mesmo quando foi já autorizada a publicação/ utilização económica da obra por terceiro, demonstra claramente que, pelo menos quanto a esta faculdade, a cessão de direitos patrimoniais relativos à obra não implica a transferência deste direito pessoal (…)”.
Também não sufragamos o entendimento seguido na sentença impugnada de que a referida alteração da obra “As cantigas do avô cantigas” é lícita pois foi utilizada numa obra nova que vem parodiar uma certa situação político-social, sendo claro que comportamento que se pretende satirizar.
Com efeito, as criações intelectuais do domínio literário, científico e artístico, quaisquer que sejam o género, a forma de expressão, o mérito, o modo de comunicação e o objectivo compreendem paródias e outras composições literárias ou musicais, ainda que inspiradas num tema ou motivo de outra obra – art. 2.º n.º 1 alínea n) do C.D.A.D.C.
Chamando-se obra-se compósita aquela em que se incorpora, no todo ou em parte, uma obra preexistente, com autorização, mas sem a colaboração, do autor desta; sendo que ao autor de obra compósita pertencem exclusivamente os direitos relativos à mesma, sem prejuízo dos direitos do autor da obra preexistente – art. 20.º n.ºs 1 e 2 do mesmo Código.
Como refere a apelante nas conclusões da alegação de recurso, “… todos são livres de utilizar tema, assunto ou ideia de obra alheia e com base neles criar uma obra nova, quer estejamos a falar de paródias quer de qualquer outra forma de expressão criativa. No entanto, situação diferente é a utilização de obra alheia em obra própria, mesmo que para parodiar uma certa situação social, política ou outra.
Nestes casos, estamos perante uma utilização de obra alheia para a criação de uma paródia, esta original mas onde se inclui uma obra alheia. Em boa verdade, é o que sucede no caso em apreço, uma vez que a obra “As cantigas do avô cantigas” é utilizada, com modificações, numa obra nova que pretende parodiar determinada situação (…)”.
Prosseguindo nas referidas conclusões “(…) nestes casos – inserção de obra alheia em obra própria – dispõe o artigo 20.º do CDADC que há que respeitar os direitos do autor da obra incorporada, ou seja, há que respeitar direitos patrimoniais mas também direitos morais do autor de tal obra incorporada (…)”.
Afigura-se-nos, pois, que a alteração introduzida na referida obra – no caso sub judice sem prévia autorização do autor da mesma – desvirtuou-a dando um outro sentido às palavras inocentes contidas nos versos originais, a par de que a carga de humor ou de paródia que lhe foi introduzida não chega a descaracterizar a obra criada pelo autor António ….; sendo certo que a lei não consagra – citando Sá e Mello na mencionada obra a págs. 130 – “… qualquer direito de modificação (livre) por terceiro e consagra o de defesa da integridade; existindo uma “quase presunção” de que as alterações não desejadas pelo autor desvirtuam a sua obra: se as quisesse, tinha-as introduzido antes de divulgar, se lhe não tivesse ocorrido ou se entendesse justificarem-se por circunstâncias novas, consentia nelas…”.
Como vimos, a requerente, ora apelante, alegou e logrou provar perfunctóriamente, a mais não era exigido atenta a natureza do processo, os factos demonstrativos de que é titular do direito invocado a par da demonstração de que é a representante daqueles titulares e de que se verifica a violação desses direitos de autor: não admissão da modificação da obra nem a utilização e transporte da obra alterada para outros contextos sem o consentimento dos detentores dos seus direitos, no caso da requerente a quem compete a defesa dos interesses dos autores seus membros, conforme consta da matéria de facto provada e descrita nas alíneas A), B), C) e D) da fundamentação de facto.
É natural, pois, que a requerente exija a abstenção das requeridas de praticar os actos que possam violar ou constituir infracção ao exercício do direito dos autores seus membros, nos termos do art. 73.º n.ºs 1 e 2 do C.D.A.D.C.
A não admissão da modificação da obra sem o consentimento do autor e posterior utilização/divulgação através do programa, na altura, “Contra-Informação”, produzido pela requerida M… S.A. e exibido através dos serviços de programas da requerida RTP S.A. e colocado à disposição do público no sito de internet com o seguinte domínio www.rtp.pt, equivale a uma intimação para que as requeridas se abstenham de violar o direito dos autores membros da requerente.
Dito isto, afigura-se-nos que tal proibição mantém interesse para prevenir a continuação da violação do direito desses autores, não colhendo o argumento da apelada – 1.ª conclusão da contra alegação de recurso – de que o programa “Contra-Informação” terá terminado, sendo tal situação do conhecimento geral, notório e público e, por isso, estaríamos perante uma completa inutilidade superveniente do presente recurso, bem como do procedimento cautelar requerido pela apelante.
Ora, tal facto não é nem notório – pois se assim fosse considerado pelo Tribunal não careceria de ser alegado nem provado pelas partes – nem foi alegado na oposição, sendo invocado pela primeira vez em sede de contra alegações, pelo que a sua apreciação, em última análise, iria contra o princípio de que os recursos são meios de obter a reforma de decisões dos tribunais inferiores e não como vias jurisdicionais para alcançar decisões novas - cfr. se infere das disposições conjugadas nos arts. 676.º n.º 1, 680.º n.º 1 e 685.º-A todos do C.P.C.
Porém, atento os princípios da proporcionalidade e da adequação, afigura-se-nos – na mesma linha sustentada, em parte, pela requerida M… S.A., na oposição (fls. 82), nos termos da qual, caso o procedimento cautelar não seja julgado totalmente improcedente, deverá o mesmo ser considerado manifestamente excessivo, não devendo ser decretado em toda a extensão daquilo que é peticionado pela requerente – que as providências se deverão cingir à utilização ou exibição das obras dos autores em causa.
Tudo visto e ponderado, procedem, pois, no essencial, as conclusões da alegação de recurso, impondo-se por isso a revogação da sentença recorrida.

IV - Decisão.
Em face do exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar parcialmente procedente a apelação, pelo que revoga-se a sentença recorrida e, em consequência, defere-se parcialmente o procedimento cautelar, reconhecendo-se o direito da requerente e consequentemente decreta-se a proibição de utilização das obras dos autores, em causa sem a sua devida identificação, em termos de autoria e, para o caso da sua modificação, sem consentimento prévio dos autores.

Custas pelas apeladas em ambas as instâncias.

Lisboa, 31 de Março de 2011

Gilberto Martinho dos Santos Jorge
José Eduardo Miranda Santos Sapateiro
Maria Teresa Batalha Pires Soares