Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
947/10.6PEAMD.L1-5
Relator: LUÍS GOMINHO
Descritores: ALTERAÇÃO NÃO SUBSTANCIAL DOS FACTOS
CÓPULA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 01/31/2012
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO PARCIAL
Sumário: Iº Não é qualquer modificação da factualidade provada, em relação ao que se mostre vertido na redacção da respectiva acusação ou pronúncia, que é merecedora de ser qualificada como alteração não substancial dos factos;
IIº A prova de aspectos circunstanciais da conduta do agente, que conduzem a precisões ou concretizações dos factos imputados, que em nada alteram o objecto do processo, no sentido de constituírem uma surpresa relevante para a defesa ou de tornarem diferente os eventos fenomelógicos que são objecto da acusação, não constituem alteração que mereça o enquadramento justificativo do art.358, nº1, do Código de Processo Penal
IIIº A introdução do pénis na vagina, ainda que incompleta ou sem emissio, integra o conceito jurídico-normativo de cópula;
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na Secção Criminal (5.ª) da Relação de Lisboa:

I - Relatório:
I – 1.) No Tribunal de Comarca da Grande Lisboa-Noroeste, foi o arguido A..., com os demais sinais dos autos, submetido a julgamento em processo comum com a intervenção do tribunal colectivo, acusado pelo Ministério Público da prática, em autoria material, na forma consumada e continuada, de um crime de abuso sexual de crianças agravado, p. e p. pelos arts. 171.º, n.ºs 1 e 2, 177.º, n.º 1. al. a) e n.º 6, e 30.º, n.º 2, todos do Código Penal.

B... veio deduzir pedido de indemnização civil contra o arguido, pedindo a sua condenação no pagamento da quantia de € 50.000 (cinquenta mil euros), a título de indemnização pelos danos não patrimoniais sofridos em razão dos factos objecto dos presentes autos.

I – 2.) Proferido o respectivo acórdão, veio o arguido a ser condenado pela sobredita infracção (abuso sexual de crianças agravado, p. e p. pelos arts. 171.º, n.ºs 1 e 2, 177º, n.º 1, al. a), 30.º, n.ºs 2 e 3 e 79.º, n.º 1, todos do Código Penal), na pena de 7 (sete) anos de prisão.

E na procedência do pedido de indemnização civil formulado, foi ainda condenado no pagamento da quantia de €50.000 (cinquenta mil euros), a título de indemnização pelos danos não patrimoniais causados à menor B....

I – 3.) Inconformado com o assim decidido recorreu o arguido A... para esta Relação, deste modo concluindo, na sequência de convite inicialmente endereçado para a sua correcção, as seguintes conclusões:
1. ….
2. ….


I – 4.) Respondendo ao recurso interposto, concluiu o Digno magistrado do Ministério Público junto do Tribunal da Grande Lisboa-Noroeste:

1. ….
2. ….



II - Subidos os autos a esta Relação, a Exm.ª Sr.ª Procuradora-Geral Adjunta, após a apresentação “corrigida” das conclusões, veio ainda assim a emitir parecer no sentido da rejeição do recurso, por extemporaneidade (na medida em que se concluiu que o mesmo não tem por objecto a reapreciação da prova gravada), ou se assim não se entender, a sua improcedência.
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No cumprimento do preceituado no art. 417.º, n.º 2, do Cód. Proc. Penal, o recorrente apresentou ainda a alegação melhor constante de fls. 796/7.
*
Seguiram-se os vistos legais.
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Teve lugar a conferência.
*
Cumpre pois apreciar e decidir:

III – 1.) Conforme resulta das conclusões acima deixadas transcritas, consabidamente definidoras do respectivo objecto, com o recurso apresentado, coloca o arguido A... para apreciação desta Relação as seguintes questões:

- Nulidade do acórdão, em virtude de, na sua perspectiva, terem ocorrido diversas alterações não substanciais dos factos, para as quais não foram cumpridas previamente as exigências processuais necessárias;
- Nulidade do acórdão, por não ter sido considerada factualidade alegada na contestação do arguido, com prejuízo para a sua defesa;
- Discordância em relação à matéria de facto considerada provada;
- Incapacidade judiciária da ofendida para o pedido cível apresentado e redução do montante indemnizatório fixado;
- Incorrecto enquadramento normativo do crime apurado;
- Carácter excessivo da pena aplicada.

A estas incidências, haverá que acrescentar ainda a temática da tempestividade do recurso, colocada pelo Ministério Público em ambas as instâncias.

***

III – 2.) Como temos por habitual, vamos conferir primeiro a factualidade que se mostra definida:

A) Factos provados

1. B... nasceu a 28 de Setembro de 1997, sendo filha do arguido, A..., e de C..., com a qual aquele manteve uma relação amorosa.
2. Depois do nascimento da B..., os seus progenitores ainda coabitaram durante alguns meses, após o que a menor e a mãe passaram a residir, de forma permanente e ininterrupta, com a avó materna, T2..., na habitação desta, sita na Rua …, e posteriormente com o seu irmão T1..., igualmente filho do arguido.
3. A mãe da B... é surda-muda mas sempre foi capaz de cuidar de si e dos filhos e sempre trabalhou.
4. Em Agosto de 2008, a avó da B..., bem como os restantes elementos do agregado familiar, com excepção dos menores B... e T1... e da sua irmã uterina, D..., deslocaram-se a Cabo Verde, local onde permaneceram durante todo o referido mês.
5. Os menores B... e T1... ficaram, então, entregues aos cuidados do arguido, com o qual passaram a residir, na residência deste, sita na Avenida ….
6. Durante o tempo em que os referidos menores residiram com o pai, dormiam todos no mesmo quarto, dormindo a B... e o arguido na única cama aí existente e o T1... no chão, sobre um colchão.
7. Nessas ocasiões, aproveitando-se do facto de partilhar a cama com a B..., em datas não concretamente apuradas e em número não concretamente apurado de vezes, o arguido abeirava-se da mesma, despia as cuecas e as calças do pijama e, acto contínuo, despia as cuecas e as calças de pijama da menor, manipulando-lhe com as suas mãos os órgãos genitais daquela.
8. Após, o arguido colocava o seu corpo sobre o corpo da menor e, não obstante a mesma dizer para parar, abria-lhe as pernas e introduzia o seu pénis erecto na vagina daquela, ainda que parcialmente, causando-lhe dor e constrangimento, friccionando-o em movimentos repetidos e contínuos, até ejacular para as pernas da B....
9. Posteriormente, quando a avó e os restantes familiares dos menores regressaram a Portugal, os menores B... e T1... voltaram a residir com os mesmos, no …..
10. Em data não concretamente apurada, situada no início do ano de 2009, o arguido deixou de residir em …, passando a pernoitar, aos fins-de-semana, na localidade de …., local onde reside a sua actual companheira.
11. Durante a semana, e devido ao seu local de trabalho se situar em Gondomar, o arguido passou a residir na Rua ….
12. Todavia, nessa mesma altura, o arguido tinha alguns dos seus pertences no sótão da casa de uma outra filha, T3..., sita na Rua ….
13. Em datas não concretamente apuradas dos anos de 2009 e 2010, sempre aos domingos, o arguido deslocava-se à residência dos filhos menores, B... e T1..., a fim de os ir buscar para almoçarem e passearem juntos.
14. Normalmente, o arguido ia buscar os filhos e posteriormente iam os três almoçar com a restante família, nomeadamente com a sua filha T3..., irmã dos menores, e com a sua irmã E..., tia dos menores.
15. Após, separavam-se da restante família, indo o arguido e os menores passear de carro, por locais não concretamente apurados.
16. Em datas não concretamente determinadas e em número não concretamente apurado de vezes, mas que ocorreram em alguns domingos dos anos de 2009 e 2010, e após passear com os filhos, o arguido, com o intuito de satisfazer os seus desejos sexuais, deslocava-se para a Rua …, junto ao n.º 12, local onde estacionava o seu veículo automóvel.
17. Aí, o arguido ordenava ao filho T1... que aguardasse no carro, levando a B... a acompanhá-lo até ao sótão existente no n.º 12 da referida rua, pertencente à fracção do rés-do-chão direito.
18. Já naquele local, o arguido despia a roupa que a menor trajava da cintura para baixo e mandava-a deitar-se na cama, apesar de aquela lhe dizer constantemente que não queria.
19. Seguidamente, o arguido despia também as cuecas e as calças que trajava e deitava-se sobre a B..., manipulando-lhe com as suas mãos os órgãos genitais daquela.
20. Após, não obstante a filha dizer para parar, o arguido abria-lhe as pernas e introduzia o seu pénis erecto na respectiva vagina, causando-lhe dor e constrangimento, friccionando-o em movimentos repetidos e contínuos, até ejacular para as pernas daquela.
21. Tais actos ocorreram em número de vezes não concretamente apurado, sempre aos domingos, quando o arguido ia visitar os filhos, tendo a última vez ocorrido em data não concretamente apurada do mês de Agosto de 2010.
22. De todas as vezes que mantinha relações sexuais com a menor, o arguido dizia-lhe para não contar a ninguém, o que aquela sempre obedeceu.
23. A ofendida B... não pediu nem consentiu nos actos descritos.
24. O arguido agiu sempre com o intuito de satisfazer os seus instintos sexuais, aproveitando-se do facto de ser pai da ofendida, tendo por isso, autoridade sobre a mesma, para com ela copular, contra a sua vontade e apesar de aquela lhe transmitir que lhe doía e que não queria.
25. Agiu sempre deliberada, livre e consciente, querendo e conseguindo manter relações sexuais com a sua filha, introduzindo o seu pénis erecto na vagina daquela, ciente de que a B... tinha apenas 10 anos de idade, o que efectivamente aconteceu, mais sabendo que o fazia sem o consentimento e contra a vontade da mesma, e que desse modo ofendia a respectiva intimidade e liberdade sexual.
26. Bem sabia o arguido que toda a sua conduta era proibida e punida por lei.
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27. A menor B... apresenta um deficit cognitivo moderado, o qual tem limitado a sua aprendizagem, sendo que apesar de se conseguir organizar em termos espaciais, não se consegue situar temporalmente, revelando dificuldades em descrever ou situar acontecimentos no tempo.
28. Ao agir como descrito, o arguido ofendeu a honra e a dignidade da menor B..., a qual se encontra numa fase crucial da vida, de desenvolvimento das faculdades cognitivas e emocionais e de construção da personalidade e do carácter.
29. Em consequência dos factos praticados pelo arguido, a menor ficou abalada e viu agravado o seu deficit cognitivo, desconhecendo-se se alguma vez recuperará da vivência sofrida.
30. Para além do apoio psicológico escolar que recebe, a B... encontra-se a ser seguida em consultas de psicologia no Hospital Amadora – Sintra, com uma periodicidade mensal.
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31. O arguido A... é o penúltimo dos quatro filhos de um casal de baixo estrato social, sendo o pai funcionário do Estado (jardineiro) e a mãe doméstica.
32. Apesar de trabalhadores e preocupados com o processo educativo dos filhos, viviam com algumas dificuldades para sustentar a família, situação que não permitiu que os filhos estudassem para além do ensino básico.
33. Neste contexto, o arguido deixou a escola após completar a 6ª classe, para ajudar os pais.
34. Durante a infância e a adolescência manteve-se junto à família de origem, ocupando-se com trabalhos de faxina em várias casas da Cidade da Praia, onde viviam.
35. Aos 19 anos abandonou o agregado de origem e veio para Portugal, para cumprir o serviço militar, ingressando inicialmente na marinha. Transitou depois para o exército, ramo militar em que se manteve até retornar a Cabo Verde.
36. Regressado a Cabo Verde, o arguido A... começou a trabalhar num órgão de comunicação social – Jornal …, onde exerceu funções de chefe de secção.
37. Durante o período que residiu em Cabo Verde o arguido teve três companheiras e sete filhos, na sua maioria entregues ao cuidado das respectivas mães, com excepção das filhas T3... e T4..., na altura com 6 e 5 anos, criadas junto do arguido e da avó paterna, as quais vieram para Portugal, algum tempo depois, integrando, juntamente com o pai, o agregado da tia, onde viveram até constituírem os seus próprios agregados familiares.
38. Em Portugal o arguido começou a trabalhar na construção civil, onde chegou a chefe de obra, situação em que se manteve, com curtos períodos de desemprego, até 2009, data em que passou a exercer a profissão de motorista de pesados e ligeiros na empresa “C...”, que acumulava com a de responsável de equipa.
39. Também desde a sua vinda para Portugal, o arguido veio a estabelecer também várias relações afectivas, uma das quais com a mãe dos menores B... e T1....
40. O arguido auferia um vencimento fixo na ordem dos € 1300 (mil e trezentos euros), quase duplicado pelas horas extraordinárias que executava, sendo referenciado, pela entidade patronal, como um dos melhores trabalhadores, responsável pela gestão das obras e dos próprios colegas, estando garantido, logo que em liberdade, o seu retorno à empresa.
41. O arguido é considerado, por alguns familiares, como uma pessoa responsável, trabalhadora, amiga da família e de confiança.
42. Como pai, o arguido sempre foi respeitado por qualquer dos filhos menores e, pelo menos com os filhos T3... e T1..., sempre teve um relacionamento normal.
43. Por queixas da avó, o arguido ficou a saber que a B... andava a portar-se mal, fosse em casa, na sua relação com a mãe e a avó, fosse na escola que frequentava, e bem assim que a mesma andava a sair de casa contra as determinações daquelas.
44. Devido às referidas queixas, o arguido viu-se na obrigação de falar várias vezes com a B....
45. O acolhimento e a atenção dispensados ao T1..., de quem vivia separado, deviam-se apenas à sua pretensão de o apoiar e orientar, no sentido do modelo de comportamento a empreender.
46. Actualmente conta com o apoio da irmã e da filha mais velha, T3..., que o visitam regularmente no estabelecimento prisional.
47. A situação em causa nos autos teve como consequência a ruptura da relação com a companheira, a qual apenas o visitou uma única vez, mostrando-se indisponível para o reatamento da relação.
48. O arguido A... foi anteriormente condenado:
48.1. Por sentença datada de 12 de Fevereiro de 1997, transitada em julgado, proferida no Processo Sumário n.º 357/97.9PULSB, do 1º Juízo do Tribunal de Pequena Instância Criminal de Lisboa, foi condenado pela prática, em 11 de Fevereiro de 1997, de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p. e p. pelos arts. 292º e 69º, n.º 1 al. a) do Código Penal, na pena de 50 (cinquenta) dias de multa, à razão diária de Esc.: 500$00, e na pena acessória de proibição de conduzir pelo período de 2 (dois) meses. As referidas penas foram já julgadas extintas, pelo cumprimento.
48.2. No Processo Comum Singular n.º 218/95.6GCLSB, do 2º Juízo Criminal de Loures, por sentença proferida a 22 de Fevereiro de 1999, transitada em julgado, foi condenado pela prática, em 17 de Setembro de 1995, de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p. e p. pelos arts. 292º e 69º, n.º 1 al. a) do Código Penal, na pena de 120 (cento e vinte) dias de multa, à razão diária de Esc.: 300$00, e na pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados pelo período de 45 (quarenta e cinco) dias.
48.3. Por sentença proferida a 8 de Maio de 2000, transitada em julgado, proferida no âmbito do Processo Sumário n.º 353/00.0SRLSB, do 2º Juízo do Tribunal de Pequena Instância Criminal de Lisboa, foi condenado na pena de 7 (sete) meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 1 (um) ano, e na pena acessória de proibição de conduzir pelo período de 5 (cinco) meses, pela prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p. e p. pelos arts. 292º e 69º, n.º 1 al. a) do Código Penal, no dia 3 de Maio de 2000. Tais penas foram já julgadas extintas.
48.4. No Processo Comum Singular n.º 529/01.3SOLSB, do 1º Juízo Criminal de Lisboa, foi condenado pela prática, em 10 de Fevereiro de 2001, de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p. e p. pelo art. 292º do Código Penal, na pena de 7 (sete) meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 2 (dois) anos. A sentença foi proferida a 13 de Janeiro de 2004 e transitou em julgado a 3 de Fevereiro de 2004. Tal pena foi já declarada extinta.
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B) Factos não provados
Não se provou, contudo, que:

a) A conduta do arguido descrita nos pontos 16.) a 20.) da matéria de facto dada como provada, e sem prejuízo, igualmente, dos factos dados como provados em 4.) a 8.), ocorreram ainda no ano de 2008.
b) A menor B... sempre obedeceu ao arguido por temer que o mesmo batesse a si e ao seu irmão.
c) A mãe dos menores B... e T1... não possuiu capacidades mentais para cuidar dos filhos.
d) A mãe da B... sempre ajudou economicamente os progenitores.
e) O arguido e a mãe dos menores nunca viveram juntos.
f) A avó dos menores não comunicou ao arguido a sua ida de férias para Cabo Verde, nem lhe pediu para levar aqueles a morar consigo.
g) O arguido respondeu, perante a escola, pelos alegados maus comportamentos da B....
h) O acolhimento e a atenção dispensados à B... deviam-se apenas à sua pretensão de a apoiar e orientar, no sentido do modelo de comportamento a empreender.
i) O arguido não tem e nem alguma vez teve casa própria em Portugal, em que, ao longo dos anos já vividos neste país, a partir de 1981, sempre se hospedou em locais diversos.

Porque tal matéria releva igualmente para a apreciação do recurso, confiramos também o que se deixou exarado para a fundamentação do veredicto assim alcançado:

O Tribunal fundou a sua convicção, no que diz respeito à matéria de facto dada como provada e não provada, na análise crítica e conjugada de toda a prova produzida em audiência de julgamento, bem como na prova documental e pericial, todas constantes dos autos e consideradas igualmente analisadas naquela sede, com apelo ainda às regras da vida e da experiência comum, em obediência ao princípio da livre apreciação da prova ínsito no art. 127º do Código de Processo Penal.
Designadamente:

I - Prova por declarações do arguido A..., que negou, na sua totalidade, os factos que lhe vêm imputados.
Com efeito, começou por referir o relacionamento afectivo que manteve com a mãe da B... e do T1..., esclarecendo que a mesma é surda – muda mas não tem qualquer incapacidade mental, sendo certo que quando a conheceu, a mesma trabalhava numa fábrica, a fim de sustentar as suas duas filhas mais velhas e os próprios pais, que se encontravam reformados.
Em 2008 residia em O..., sendo habitual ir buscar os filhos menores para passear, levando-os inclusivamente à sua casa, embora aí não pernoitassem.
Numa ocasião, recebeu um telefonema da B..., pedindo-lhe para a ir buscar, bem como ao irmão menor, e levá-los para a sua casa, em virtude da avó ter ido a Cabo Verde, o que fez, tendo aqueles permanecido ao seu cuidado durante apenas uma semana, altura em que os devolveu à mãe. Negou, no entanto, que a avó lhe tivesse comunicado antecipadamente a referida viagem ou que lhe tivesse pedido para ficar com os filhos, até porque, na sua versão, a mãe permaneceu em Portugal.
Durante a permanência da B... e do T1... na casa de O..., dormiram todos no mesmo quarto, na medida em que os outros dois quartos da casa se encontravam habitados por terceiros, em duas camas, ocupando ele uma delas e dividindo os menores a outra.
Em 2009 foi trabalhar para o Porto, deixando a casa de O..., tendo guardado alguns dos seus pertences no sótão da casa da sua filha T3..., designadamente, malas e alguns objectos de mobiliário. Negou, no entanto, a existência de qualquer cama no referido sótão, local onde havia apenas um colchão, propriedade da T3..., que ali se encontrava arrumado, nunca tendo pernoitado nesse local.
Deslocava-se a Lisboa de 15 em 15 dias, ou uma vez por mês, na medida em que as deslocações eram dispendiosas, pernoitando em casa da namorada, no Seixal. Aos domingos ia buscar os menores para almoçar, normalmente com outros familiares, e passear, nomeadamente ao Centro Comercial Colombo, a feiras e a outros locais.
O arguido referiu que a única vez que a B... esteve consigo no aludido sótão foi depois de um passeio ao Colombo, onde fizeram compras, tendo-se ali deslocado para deixar os sacos. Nessa ocasião o T1... permaneceu no interior do veículo e não chegaram sequer a demorar-se cinco minutos.
Tendo o arguido negado, na totalidade, os factos que lhe são imputados, apresentou como justificação para tal acusação o facto de a B... ter sido manipulada, para tanto, por alguém, ao que julga pela sua filha T4..., por ressentimentos antigos desta em relação a si, e também pelo facto de ter repreendido várias vezes a B..., devido ao mau comportamento desta na escola e em casa, do qual tomou conhecimento através de queixas da própria mãe e avó e de chamadas àquela instituição.

II – Prova testemunhal
- Depoimento da menor B..., a ofendida, prestado em sede de audiência de julgamento, por serem inaudíveis as declarações para memória futura anteriormente prestadas, que se afigurou ao Tribunal absolutamente coerente e credível, aliás, com as vantagens advenientes da imediação.
A menor apresentou um discurso introvertido e algo envergonhado, relatando ao Tribunal as circunstâncias em que ficou a residir com o pai e com o irmão na casa daquele, em Agosto de 2008, pelo período de um mês, o que foi combinado previamente com a avó. Referiu que dormiam todos no mesmo quarto, ela na cama com o pai e o T1... num colchão, pelo que de noite o pai tirava-lhe as calças do pijama e as cuecas, após o que retirava também as suas calças do pijama, começando a acariciar-lhe a vagina (nas suas palavras, o “pipi”) com as mãos. Dizia que não queria aquilo e pedia-lhe para parar, mas ele não o fazia. Nessas ocasiões, o pénis (a “pilinha”) estava “duro” e o pai colocava-se em cima de si e introduzia-o na vagina, não chegando a introduzi-lo na totalidade porque não deixava, o que lhe causava dor, e até ejacular para as suas pernas. Tais factos aconteceram mais do que uma vez, mas não todos os dias desse mês, dizendo-lhe ainda o pai para não os contar a ninguém.
Depois de o pai ir viver para o Porto, a menor confirmou que ele os visitava aos domingos, levando-os a almoçar e a passear, após o que, em muitas dessas ocasiões, se deslocavam até ao sótão da casa da irmã T3.... O T1... permanecia no carro, por indicação do pai, enquanto ela e o pai iam ao sótão, local onde este praticava os actos anteriormente descritos, acrescentando que destas vezes introduzia totalmente o pénis na sua vagina, o que lhe causava igualmente dor.
Esclareceu que no aludido sótão existia uma cama, sobre a qual tais actos eram perpetrados.
Por fim, a menor B... confirmou que o pai já ralhou consigo por diversas vezes, por não gostar de estudar, o que nada tem a ver com os factos relatados, confirmando ainda, embora sem grande relevância para o caso em apreciação, ter mantido um relacionamento com os menores F... e J..., embora posterior aos contactos sexuais com o pai.
- Depoimento da testemunha T2..., avó da menor B..., que de relevante reportou a sua ida e permanência em Cabo Verde, durante o mês de Agosto, juntamente com os restantes elementos do agregado familiar, com excepção dos netos D..., B... e T1..., que ficaram em Portugal, a primeira em casa de uns familiares e os restantes, a seu pedido, em casa do pai, ora arguido. Neste preciso aspecto, a testemunha confirmou que tudo foi combinado antecipadamente entre ambos, negando, assim, a versão trazida pelo arguido.
Depois disso, era habitual o arguido ir buscar os meninos aos domingos, para almoçar e passear, nunca se tendo apercebido de nenhuma situação anormal, apenas tomando conhecimento dos factos através da filha daquele, a T4....
Confirmou ainda que a sua filha, mãe da B... e do T1..., é surda-muda, devido a uma queda, não sofrendo, no entanto, de quaisquer distúrbios mentais. Sempre trabalhou e cuidou dos filhos e viveu ainda durante alguns meses com o arguido.
Por último, a testemunha T2... referiu-se aos problemas de aprendizagem da B..., contando com duas retenções, e bem assim que legalmente tem a guarda da mesma e do irmão T1....
- Depoimento da testemunha T1..., filho do arguido, menor de 10 anos de idade, que com relevância contou ao Tribunal que em data que não pode precisar, toda a família viajou para Cabo Verde, com excepção da irmã D..., que ficou em Chelas, e dele próprio e da irmã B..., que ficaram com o pai, na casa deste, sita em O.... A casa é composta por três quartos, cabendo ao pai somente um deles, no qual existe apenas uma cama. Assim, durante o referido período, dormiram os três no referido quarto, o pai e a B... na cama e ele num colchão, no chão.
Após o pai ter ido trabalhar para o Porto, era habitual visitá-los aos fins-de-semana, levando-os a passear, nomeadamente a casa da irmã T3..., ao Centro Comercial Colombo e a outros locais.
Já foi ao sótão em questão, juntamente com o pai e a B..., local onde existem várias coisas espalhadas, aí existindo igualmente uma cama – montada - e uma televisão.
Noutras ocasiões, deslocavam-se de carro até à porta da casa da T3..., onde o pai o estacionava, dizendo-lhe que permanecesse no seu interior, o que ele fazia, por obediência, enquanto aquele e a B... entravam no prédio, desconhecendo, então, o que aí se passava. Negou, no entanto, que os mesmos levassem consigo quaisquer sacos, que aí pudessem deixar. Desconhece quantas vezes estes factos ocorreram, dizendo, porém, que não era todos os fins-de-semana, não sabendo ainda concretizar quando foi a última vez em que tal sucedeu.
Nas ocasiões em que ficou sozinho no carro, referiu nunca ter sido visto pela irmã T3... ou pelos familiares desta, acrescentando, porém, que dessas vezes haviam estado anteriormente com aqueles, embora noutros locais.
- Depoimento da testemunha T4..., filha do arguido, que referiu, por sua vez, ter sido alertada pela sua própria filha para o facto de a B... estar a manter sexuais com dois rapazes, o J... e o F.... Em consequência, foi falar com os seus irmãos, T3... e U..., contando-lhes o sucedido, após o que uns dias mais tarde decidiram confrontar a B.... Ao fazê-lo, a menor começou a chorar, pelo que, a sós com a mesma, ela contou-lhe que desde há muito tempo vinha mantendo relações sexuais com o pai, por imposição do mesmo, primeiro na casa de O... e depois no sótão da casa da T3..., quando aquele vinha do Porto aos fins-de-semana.
Com relevância, a testemunha referiu que tais revelações afiguraram-se-lhe absolutamente credíveis, e bem assim que o facto de ela própria ainda se encontrar ressentida com o pai por questões ocorridas na sua adolescência, tal, de modo algum, invalida a veracidade do respectivo depoimento.
- Depoimento da testemunha T3..., filha do arguido, que corroborou o depoimento da testemunha anterior no que concerne à forma como toda a situação foi despoletada. Contrariamente, porém, a testemunha T3... disse não acreditar minimamente na veracidade dos factos relatados pela B..., sendo sua convicção que a mesma foi manipulada pela irmã T4..., que desde há muito tempo vem referindo pretender ver o pai preso, por questões do passado.
A testemunha referiu-se igualmente às deslocações do pai, desde o Porto, onde trabalhava, e às visitas que fazia aos filhos menores, levando-os a almoçar com a restante família, ou na sua casa, ou em casa de uma tia.
No que diz respeito ao sótão da sua casa, ao qual todos os elementos do agregado familiar têm acesso, referiu que o pai aí guardava alguns objectos, tais como utensílios de trabalho e roupas, negando, porém, que aí existissem quaisquer mobílias, nomeadamente uma cama. Existiu no local um colchão, que era seu, mas que daí foi retirado cerca dos anos de 2009 ou 2010, muito antes de esta situação ter sido despoletada.
- Depoimento da testemunha T6..., psicóloga do Hospital Amadora – Sintra que vem seguindo a B... desde o dia 26 de Outubro de 2010, após a denúncia dos factos em causa nos presentes autos e o episódio de urgência de 17 de Setembro do mesmo ano.
Da observação realizada concluiu que do ponto de vista do desenvolvimento, o mesmo não corresponde ao da respectiva faixa etária, estando a menor, inclusivamente, integrada numa turma de curso curricular alternativo, destinado a crianças com dificuldades de aprendizagem.
Dessa mesma avaliação, pôde constatar que a B... tem um deficit cognitivo, conseguindo orientar-se minimamente em termos espaciais, mas tem lacunas importantes ao nível da organização temporal.
Após, contactou a psicóloga da escola, com a qual vem articulando o trabalho desenvolvido, tendo chegado à conclusão de que embora as dificuldades de aprendizagem da B... sejam anteriores a 2008, as mesmas agravaram-se substancialmente desde há cerca de três anos, demonstrando actualmente dificuldades também do ponto de vista emocional, o que poderá, sem dúvida, estar relacionado com os abusos sexuais de que foi vítima. Neste ponto, afirmou ainda que a menor sempre foi muito coerente nas descrições que fez, sendo de salientar que na consulta do passado dia 4 de Maio, a única coisa que a B... verbalizou foi não ter saudades do pai.
- Depoimento da testemunha T7..., psicóloga, membro da Comissão de Protecção de Crianças e Jovens da Amadora, que tomou conhecimento dos factos em Setembro de 2010, encaminhando a menor, de imediato, para o Hospital Amadora – Sintra.
Descreveu o ambiente familiar da menor, no sentido de que o papel principal, de “mãe”, é assumido pela avó, a qual, aliás, tem a guarda dos menores, referindo igualmente que a curto prazo, face à idade avançada desta última, se perspectiva o acolhimento institucional da B... e do T1....
Referiu-se, por fim, às dificuldades cognitivas que aquela denota e bem assim à forma como ela foi assumindo os abusos sexuais por parte do pai, como uma questão de obediência, até porque o mesmo lhe dizia para não contar a ninguém o que se passava.
- Depoimento da testemunha T5..., conhecido por “J...”, enteado da testemunha T3... e com ela residente, que de relevante referiu a existência, no sótão da respectiva casa, de uma cama de ferro, pronta a ser utilizada, e que daí foi retirada no ano passado. Afirmou ter conhecido a B... em 2008, quando veio de Cabo Verde, e bem assim que a mesma manteve um relacionamento sexual com um menor chamado F....
- Depoimento da testemunha D..., irmã uterina da B..., que de relevante referiu ao Tribunal que a sua mãe e o arguido ainda viveram juntos durante algum tempo, logo após o nascimento da B..., numa casa sita em O..., o que sabe em virtude de ter chegado a passar fins-de-semana com os mesmos.
Posteriormente, no Verão de 2008, os avós, a mãe e a sua irmã Joana foram para Cabo Verde, durante cerca de um mês, altura em que ficou a residir com uma tia, em Chelas, ficando os irmãos B... e T1... a residir com o pai, o que foi combinado previamente entre aquele e a avó.
A B... foi sempre uma criança muito fechada e com dificuldades de aprendizagem, sendo habitual a avó falar com o pai sobre este último assunto. No entanto, depois de despoletada e conhecida a situação ora em causa, a B... ficou muito mais liberta.
Com muita relevância, a testemunha D... revelou uma conversa mantida com a irmã, quando a mesma tinha 11 anos, em que a questionou sobre o local onde a mesma dormiu em casa do pai, referindo-lhe a B... para acabar de imediato com o assunto.
Por último, esclareceu que a sua mãe é surda-muda mas não tem qualquer incapacidade mental, pelo que sempre trabalhou e cuidou de si e dos irmãos.
- Depoimento da testemunha JA, Inspector da Polícia Judiciária, que no dia imediatamente a seguir à denúncia procedeu à inquirição, designadamente, da menor e ofendida B....
- Depoimento da testemunha JM, Agente da Polícia de Segurança Pública, que recebeu a denúncia e que de imediato contactou o Inspector JA, dada a competência exclusiva da Polícia Judiciária para a investigação dos crimes de natureza sexual, maxime contra menores.
- Depoimento da testemunha T8..., psicóloga educacional, que acompanhou a menor B... dos 7 aos 9 anos de idade, cerca do 2º ano de escolaridade, por dificuldades de aprendizagem, tendo voltado a acompanhá-la no presente ano lectivo 2010/2011, quando aquela transitou de escola. Com relevância, referiu que a menor estava mais dentro da normalidade cognitiva aos 8/9 anos de idade do que actualmente, apresentando-se ainda como uma criança muito introvertida e cada vez mais triste e com maiores dificuldades na sua relação com os outros.
- Depoimento da testemunha T9…, educadora social, que tomou conhecimento dos factos pela própria menor, que lhe referiu, sintomaticamente, entre outros, que consoante o trajecto de automóvel que faziam, já sabia para aquilo a que ia, datando ainda os últimos acontecimentos do mês de Agosto de 2010, por referência a um casamento na família.
Por último, e com relevância, disse ainda que o pai, ora arguido, nunca foi uma figura presente na escola, nunca o tendo chegado a ver nesse mesmo contexto.

III - Prova pericial
- Perícia de natureza sexual em direito penal, cujo relatório consta de fls. 168 a 172.
- Perícia de natureza sexual em direito penal, cujo relatório consta de fls. 346 a 350, com os esclarecimentos prestados pela Sra. Perita em audiência de julgamento.

IV – Prova documental
- Relatório do episódio de urgência do Hospital Amadora – Sintra, de fls. 273 a 275.
- Documentos de fls. 379 e 462 a 463 (relatórios sobre o acompanhamento psicológico da menor).
- Relatório social elaborado pela D.G.R.S., constante de fls. 544 e seguintes, do qual resultou a prova das condições pessoais, familiares e sociais do arguido.
- Certificado de registo criminal de fls. 569 e seguintes, do qual resultam as anteriores condenações sofridas pelo arguido A....
- Print de cópia do pedido de B.I. da menor B....
*
Ora, explanados deste modo os meios de prova considerados, cumpre uma breve análise crítica acerca dos mesmos.
Em primeiro lugar, de referir que a versão trazida pelo arguido, de absoluta negação dos factos que lhe vêm imputados, foi absolutamente contraditada pela única prova directa que acerca dos mesmos foi produzida – o depoimento da própria ofendida, a menor B..., corroborada, depois, por outros depoimentos, em aspectos meramente circunstanciais mas que lhe acrescentam verosimilhança.
O depoimento prestado pela menor em audiência de julgamento foi, apesar da introversão que caracteriza a sua personalidade e do deficit cognitivo moderado de que padece, absolutamente coerente e sincero, revelando, ao mesmo tempo, vergonha, por ter sido alvo dos comportamentos sexuais do pai, que igualmente descreveu com toda a propriedade e que fundamentaram a convicção do Tribunal no que respeita à matéria de facto dada como provada.
Depois, a tese do arguido no sentido de que os menores apenas permaneceram na sua casa durante uma semana, no ano de 2008, a pedido da própria B..., após a avó se encontrar já em Cabo Verde, e encontrando-se a mãe em Portugal, foi veementemente negada pelo depoimento da própria B..., mas também pelos depoimentos das testemunhas T2..., D... e T1..., do mesmo modo que a alegada existência de duas camas no quarto que ocupavam, uma destinada ao arguido e a outra destinada aos menores, foi infirmada pelos depoimentos destes últimos, em moldes que fazem absoluto sentido, sendo premente e visível a necessidade de o arguido vir alegar o facto contrário, só por si sintomático das suas verdadeiras intenções.
Já quanto à existência, ou não, de uma cama no sótão da casa da testemunha T3..., se o arguido e esta última tentaram negá-la, certamente como forma de infirmar as relações sexuais aí mantidas com a menor, tal versão foi uma vez mais absolutamente contraditada pela prova testemunhal produzida, designadamente, pelos depoimentos das testemunhas B... e T1..., mas também pela testemunha arrolada pela própria defesa, T5..., vulgo “J...”, enteado da T3... e, como tal, conhecedor do aludido sótão, que afirmou peremptoriamente a existência de uma cama, pronta a ser utilizada, nesse local.
Determinante foi, outrossim, o depoimento da testemunha T1..., quando referiu as vezes que o pai o mandou ficar no interior do carro, enquanto ia com a B... até ao sótão, onde permaneciam algum tempo, negando que fossem apenas levar alguns sacos, conforme havia pretendido o arguido nas suas declarações.
Por todo o exposto, corroborado ainda pelos depoimentos das testemunhas T6..., T7..., T8... e T9..., pessoas especializadas, designadamente em psicologia, que contactaram directamente com a B... e para as quais a versão desta sempre foi verdadeira, não ficaram quaisquer dúvidas ao Tribunal acerca da veracidade dos factos imputados pela acusação ao arguido e bem assim das consequências de tais actos no desenvolvimento e na saúde psíquica da menor, nos termos que ficaram vertidos na matéria de facto dada como provada.


III - 3.1.) Como se vem tornando frequente após as alterações operadas ao art. 411.º do Código Processo Penal, pela Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto, a questão da tempestividade da respectiva apresentação, aliada à problemática da correcta impugnação de facto, volta a estar presente, uma vez mais, como incidência prévia de natureza prejudicial ao conhecimento de mérito do próprio recurso.

Em face do tempo entretanto decorrido e as indicações Jurisprudenciais emitidas pelas Relações, era pressuposto encontrar-se já uma maior sedimentação no cumprimento dos aspectos formais decorrentes do art. 412.º e dos ónus aí contemplados, maxime, na hipótese da irresignação apresentada versar matéria de facto.
É que, com efeito, o prazo de 30 dias referido no n.º 4 daquele art. 411.º, destina-se apenas aos recursos que tiverem “por objecto a reapreciação da prova gravada” e não quando nos mesmos se pretenda discutir a matéria de facto.

Tais conceitos não são totalmente coincidentes. A reapreciação da prova é uma via adjectiva que se abre na decorrência da impugnação de facto operada com observância do respectivo ritualismo legal, que por sua vez é uma das formas de legitimar a sua modificação, nos termos do art. 431.º

O escopo essencial para que aponta aquele art. 412.º, tem em vista, como é sabido, tornar facilmente apreensível às partes e ao tribunal ad quem, o que o recorrente entende estar mal julgado e as razões pelas quais considera que assim aconteceu.

Nesse particular, convenha-se, houve um progresso apreciável entre a versão originária das conclusões e as ora apresentadas.
Em bom rigor, as iniciais eram totalmente omissas nesta matéria…

Ainda assim, não poderão considerar-se totalmente modelares. Omite-se a identificação especificada dos concretos pontos de facto que se entende estarem mal julgados; por outro lado, a indicação das provas que impõem decisão diversa da recorrida é quase evanescente.
Em alguns passos, não se chega mesmo a perceber se o que se coloca em itálico são na realidade declarações das testemunhas, se conclusões retiradas a partir das mesmas pelo recorrente.

Pergunta-se então: deverá daí concluir-se que o arguido não pretendeu reapreciar a prova gravada?
Julgamos que não.

Como é sabido mantemos uma posição de alguma abertura nesta matéria, posto que se aceite que tal benevolência possa não ser a melhor forma de ajudar à estabilização do cumprimento daquelas mesmas exigências, observação tanto mais pertinente, quando, como no caso presente, até houve convite ao aperfeiçoamento.

Em função da centralidade do direito ao recurso no nosso sistema adjectivo, entendemos no entanto ser de conceder mais algum tempo para a interiorização do funcionamento daquele mecanismo, sancionando apenas com a rejeição as situações em que manifestamente tal actividade recursória esconde a simples intenção de beneficiar indevidamente de um alongamento de prazo e daquelas outras, em que minimamente não se foi capaz de cumprir o essencial da processualização das razões porque se discorda do julgamento de facto.

Ora conforme decorre da motivação, e em menor grau, das conclusões apresentadas, houve pelos menos a preocupação de reproduzir alguns excertos do que se entendeu serem as declarações (e a sua localização nos suportes técnicos) que abonarão a alternativa de perspectiva que se adianta sobre a prova.
Também se consegue alcançar com algum facilidade o que se pretende contrapor ao considerado provado…
Se isso basta para a procedência da impugnação é outra questão.
Por ora vai bastando para assegurar a tempestividade do recurso interposto, ainda que, mesmo assim, interposto no próprio limite do art. 411.º, n.º 4.

III – 3.2.) No que concerne às invocadas alterações não substanciais detectadas nos pontos 2, 3, 4, 6, 7, 8, 11, 13, 14, 29 e 30 da matéria de facto provada, com os quais se pretende cominar a nulidade do acórdão, por omissão do ritualismo contido no art. 358.º, n.º 1, do Cód. Proc. Penal, haveremos primeiro que operar alguma clarificação de conceitos.

Como se retira por antinomia da definição legal constante da al. f) do n.º 1 do art. 1.º do Cód. Proc. Penal, a alteração não substancial dos factos é “aquela que não tem por efeito a imputação de um crime diversos ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis”.

Em todo o caso, não se conclua sem mais discussão, que qualquer modificação da factualidade provada em relação ao que se mostre exactamente vertido na redacção da respectiva acusação ou pronúncia, seja merecedora desse qualificativo.

Como se deixou afirmado no acórdão do STJ de 24/01/2002, no processo n.º 1298/99 da 5.ª Secção (SASTJ, n.º 57, pág.ª 93), a alteração não substancial “pressupõe uma modificação com relevância para a decisão da causa, não bastando para tal que matéria de facto provada não seja inteiramente coincidente com a vertida na acusação”.

Basicamente estão presentes nesta matéria duas distintas ordens de preocupações que correspondem a outros tantos princípios de processo penal: o princípio acusatório e o da total garantia de defesa do arguido.
De permeio fica a questão do objecto do processo, conceito nuclear no funcionamento de diversos institutos adjectivos v. g. os poderes de cognição do tribunal, a extensão do caso julgado, ou avaliar a excepção da litispendência, mas que não tem, nem pode ter, uma delimitação conformativa absolutamente milimétrica.

Haja-se em vista desde logo, que sobre o Tribunal recai um princípio de investigação (cfr. nomeadamente art. 340.º, n.º 1, do Cód. Proc. Penal), e por isso, como o ensina Castanheira Neves, a identidade do objecto do processo ainda que não deva “ter limites tão largos ou tão indeterminados que anule a garantia implicada pelo princípio acusatório e que a definição do objecto do processo se propõe justamente realizar”, não poderá “definir-se tão rígida e estreitamente que impeça o esclarecimento suficientemente amplo e adequado da infracção imputada e da correlativa responsabilidade”.

Note-se, que nem mesmo o princípio da identidade que o conforma, postula uma sua igualdade “euclideana”, para usar a afirmação sugestiva de Simas Santos Leal-Henriques (Código de Processo Penal Anotado - Editora Rei dos Livros, 2.ª Ed., II Vol., pág.ª 413).

O que é necessário, é que estejamos perante uma alteração que efectivamente “mexa” com os direitos do arguido (como se refere no acórdão desta Relação de 29/11/2007, no Processo n.º 7223/07- 9.ª, consultável no endereço electrónico www.dgsi.pt/jtrl), que postule essa necessidade de defesa.

Assim não acontece, “quando aos factos da acusação se retiram algum ou alguns, isto é se reduz o objecto do processo já que aqueles direitos permanecem intocáveis” (acórdão da Relação de Lisboa já indicado e Ac. do STJ de 08/11/2007, no processo 07P3164, consultável em www.dgsi.pt/jstj), ou “quando os factos são meramente concretizadores ou esclarecedores dos constantes primitivamente da acusação e pronúncia” (v.g. acórdão da Relação do Porto de 19/01/2008, no processo 0815244, consultável em www.dgsi.pt/jtrp).

III – 3.3.) Como abaixo melhor iremos examinar, a integralidade das alterações apontadas pelo recorrente acabam sempre por recair numa ou mais das categorias acima deixadas referenciadas.

Ou são resultantes de não demonstração de um qualquer facto que assim impõe uma adaptação de redacção, ou são precisões e concretizações decorrentes do apuramento alcançado em audiência, ou têm em vista por em conformidade com a prova produzida aquilo que na acusação era dito de forma ligeiramente diferente ou utilizando outras palavras.

Em qualquer dos casos, nada alteram o objecto do processo, no sentido de constituírem uma surpresa relevante para a Defesa ou de tornarem diferente os eventos fenomelógicos que são objecto da acusação.

Assim:

Dizia a acusação no seu n.º 2 que: “O arguido e a mãe da menor nunca coabitaram juntos, tendo a menor residido desde sempre com a avó materna, T2..., na habitação desta, sita na Rua do na Rua do …, juntamente com o seu irmão T1... e mãe, que não fala e não ouve”.

O que agora se mostra vertido no mesmo número da matéria de facto provada, é que: “Depois do nascimento da B..., os seus progenitores ainda coabitaram durante alguns meses, após o que a menor e a mãe passaram a residir, de forma permanente e ininterrupta, com a avó materna, T2..., na habitação desta, sita na Rua do …, e posteriormente com o seu irmão T1..., igualmente filho do arguido.”

E no respectivo n.º 3 “A mãe da B... é surda-muda mas sempre foi capaz de cuidar de si e dos filhos e sempre trabalhou.”

Como se vê, estamos perante meros aspectos circunstanciais de enquadramento resultantes da prova produzida, que têm que ser articulados com o que mais à frente se veio a consignar como factualidade não provada: “que o arguido e a mãe dos menores nunca viveram juntos” (cfr. al. e), e que “a mãe da B... e dos T1... não possui capacidades mentais para cuidar dos filhos” (al. c), facto este que correspondia ao trecho inicial do art. 4.º da acusação.

Como é óbvio, daqui não resulta qualquer alteração a merecer o enquadramento justificativo do art. 358.º, n.º 1, do Cód. Proc. Penal.
*
O ponto seguinte da crítica formulada tem a ver precisamente com aquela última circunstância.
Como já se disse, decorria do art. 4.º da acusação que “a mãe da ofendida não possuía capacidades mentais para cuidar dos filhos.”
O Colectivo não considerou tal facto verdadeiro e deu como demonstrado o que consta do actual facto n.º 3.

O que é isso altera, no mínimo que seja, o crime imputado, o modo do seu cometimento ou as condições da sua realização?
Absolutamente nada!
*
Nos art.ºs 3.º e 4.º da acusação figurava, respectivamente, o que a seguir se transcreve: “Em data não concretamente apurada mas que ocorreu no ano de 2008, a avó da menor B..., T2..., deslocou-se a Cabo Verde, local onde permaneceu cerca de um mês”, e que “Durante este período de tempo, devido ao facto de a mãe dos menores não possuir capacidades mentais para cuidar dos mesmos, a menor e o seu irmão T1..., também filho do arguido, passaram a residir com o arguido na sua residência, sita na Av. …”.

Sobre as capacidades mentais daquela T2... nada mais carece ser acrescentado.

Em termos de factos provados, o que se diz agora no respectivo n.º 4, é que: “Em Agosto de 2008, a avó da B..., bem como os restantes elementos do agregado familiar, com excepção dos menores B... e T1... e da sua irmã uterina, D..., deslocaram-se a Cabo Verde, local onde permaneceram durante todo o referido mês”, consignando o n.º 5, que ficaram entregues ao cuidado do arguido na sua residência já acima mencionada sita em O....
No fundo, fica mais uma irmã, a D..., e onde se dizia ficaram a residir, precisou-se, que ficaram entregues aos cuidados do arguido, com o qual passaram a residir, que no fundo era uma ideia que já ali estava implícita.

Como é bom de ver, as qualificativas agravantes apontadas na acusação decorriam do parentesco (a vítima era sua descendente) ou da menoridade; nunca do simples facto da menor lhe estar confiada.
Donde, também não foi por aqui que algo de criminalmente relevante se acrescentou.
*
Segundo os art.ºs 5.º e 6.º da acusação “Durante o tempo em que a ofendida residiu em O... na residência do arguido, aquela dormia num quarto juntamente com o seu irmão T1..., sendo que aquela dormia numa cama e o seu irmão dormia no chão sobre um colchão”. “Aproveitando-se do facto de a ofendida se encontrar a residir consigo, em datas não concretamente apuradas, mas que ocorreram no ano de 2008, durante cerca de um mês, enquanto a menor se encontrava deitada na sua cama e o seu irmão T5... deitado num colchão ao seu lado a dormir, o arguido, entrava no quarto de ambos, abeirava-se da ofendida e deitava-se na cama daquela”.

O facto provado sob o n.º 6, diz, com efeito, algo ligeiramente diferente. Que: “Durante o tempo em que os referidos menores residiram com o pai, dormiam todos no mesmo quarto, dormindo a B... e o arguido na única cama aí existente e o T1... no chão, sobre um colchão”; “Nessas ocasiões, aproveitando-se do facto de partilhar a cama com a B..., em datas não concretamente apuradas e em número não concretamente apurado de vezes, o arguido abeirava-se da mesma, despia as cuecas e as calças do pijama e, acto contínuo, despia as cuecas e as calças de pijama da menor, manipulando-lhe com as suas mãos os órgãos genitais daquela”.

Mas convém não esquecer o que constava do respectivo ponto 7.º. “Após, o arguido despia as cuecas e as calças do pijama e, acto contínuo, usando do seu poderio físico bastante superior ao da menor, despia as cuecas e as calças de pijama que a menor trajava, manipulando-lhe com as suas mãos os órgãos genitais daquela”.

Ou seja, se melhor o verificarmos, esta redacção até é mais benéfica para o recorrente. A parte descritiva da abordagem passa quase incólume para o facto provado n.º 6.º. E o que foi retirado realmente, em termos essenciais, é que já não é em função do uso do seu poderio físico, mas em razão da partilha de uma mesma cama, que a actuação criminosa se concretiza.

A culpa é pois claramente menos grave.
Pelo que não conseguimos descortinar qual o fundamento para o criticismo do recorrente.
*
Em relação aos pontos 7.º e 8.º da acusação mantemo-nos no mesmo terreno: Sai, como se disse, o “usar do seu poderio físico”, a penetração passa a ser parcial, e onde antes de dizia “pernas da menor”, diz-se agora “pernas da B...”.
O que é que tal circunstância prejudica o recorrente?
*
No artigo 11.º o padrão não varia:
Dizia-se que: “Em data não concretamente apurada, o arguido deixou de residir em O..., passando a residir, aos fins-de-semana, na localidade de Ar..., em morada também não concretamente apurada, local onde reside a sua actual companheira”.
Diz-se agora no ponto 10 da matéria de facto que: “Em data não concretamente apurada, situada no início do ano de 2009, o arguido deixou de residir em O..., passando a pernoitar, aos fins-de-semana, na localidade de Ar..., local onde reside a sua actual companheira”.

Operou-se assim uma precisão temporal em relação àquele deixar de residir em O..., e substitui-se residir, por pernoitar.
*
No que tange ao art. 14.º da acusação dispunha-se assim: “Destarte, em datas não concretamente apuradas, mas que ocorreram durante os anos de 2008, 2009 e 2010, o arguido ao Domingo, deslocava-se a residência onde a ofendida, menor, residia com a sua avó, a fim de ir buscar a ofendida e o seu irmão para passearem”.

O art. 13.º dos factos provados enuncia agora o seguinte: “Em datas não concretamente apuradas dos anos de 2009 e 2010, sempre aos domingos, o arguido deslocava-se à residência dos filhos menores, B... e T1..., a fim de os ir buscar para almoçarem e passearem juntos”.
Sai o ano de 2008 e junta-se o almoço.
Mas note-se, que a referência a este almoço continha-se no art. 15.º da acusação.
Está basicamente igual: “Normalmente, o arguido ia buscar os filhos e posteriormente iam os três almoçar com a restante família, nomeadamente com a sua filha T3..., irmã dos menores, e com a sua irmã E..., tia dos menores”.
No fundo, juntou-se também aqui uma tia!

*
Já quanto aos trechos “Em consequência dos factos praticados pelo arguido, a menor ficou abalada e viu agravado o seu deficit cognitivo, desconhecendo-se se alguma vez recuperará da vivência sofrida”, “Para além do apoio psicológico escolar que recebe, a B... encontra-se a ser seguida em consultas de psicologia no Hospital Amadora - Sintra, com uma periodicidade mensal”, que constituem os art.ºs 29.º e 30.º, não provêem da acusação, mas sim do pedido de indemnização cível. É pois inútil procurar aí a sua ressonância.
A ele tornaremos.

Podemos admitir que no art. 30.º o Colectivo tenha sentido a necessidade de usar de alguma elaboração para retirar tal facto da sua alegação, pois o que se invocava realmente era que: “Chama-se de Danos Patrimoniais, a pensar num acompanhante que a ofendida B..., possa vir a ter, quer a nível de uma escolaridade especial e frequência de consultas ou de apoio psicológico, que ajude a desenvolver as faculdades, estrutura pessoal e social”.

Ainda assim não se trata de nada estranho ao objecto do processo.

Logo, em conclusão, não existe qualquer alteração não substancial a que houvesse necessidade de acudir com o cumprimento do preceituado no art. 358.º, n.º 1, do Cód. Proc. Penal, razão pela qual inexiste a nulidade pretendida.

III – 3.4.) Quanto à nulidade tirada do art. 379.º, n.º 1, al. c), do mesmo Diploma, ou seja, a não pronúncia sobre factos alegados na contestação com prejuízo para a defesa do arguido, é vício do acto de que realmente a decisão final proferida não padece.

Basta conferir, os “factos” que se omitiram:

As ideias e palavras que compõem o depoimento da menor B... de fls 8 a 10 e as declarações para a memória futura referida pela acusação não têm a ver com as ideias, as palavras e o discurso por ela produzidos. E a mesma só consegue reproduzi-las depois de previamente instruída, nesse sentido; Tal como configurados pela acusação, os factos da acusação referidos em I não passam de uma criação da testemunha T4..., passada para a menor B... e para a testemunha T2..., industriadas para o efeito da sua repetição; Como pai, trouxe qualquer das filhas e testemunhas T3... e T4... de Cabo Verde, ainda crianças, e, como pai, levou-as a morar consigo e, sozinho, as cuidou até ao momento da autonomização de cada uma delas, sendo completamente falso que alguma vez tivesse molestado qualquer filha e foi na situação de denúncia e de conhecimento de que a B... andava a praticar relações sexuais, de cópula completa, com dois rapazes é que, por sugestão ou engenho da testemunha T4... a mesma terá sido levada a admitir ter sido molestada sexual pelo pai e a subscrever os ditos depoimentos”.

Realmente não são factos. São simples opiniões sobre o que aqueles intervenientes processuais disseram a processo, a sua contestada razão de ciência ou a sua eventual falta de credibilidade.

III – 3.5.) No que concerne à impugnação de facto que é dirigida pelo recorrente, temo-la como improcedente em face da sua alegação.

Conforme decorre da fundamentação exarada pelo Colectivo para o veredicto a que chegou neste campo, o resultado probatório alcançado fundou-se não só na imediação encontrada pelas declarações prestadas pela ofendida, como pela articulação plural de outros contributos que de forma sectorial as corroboraram, maxime, de natureza testemunhal.

É pois, um todo complexo, a pressupor uma contra-argumentação robusta de modo a evidenciar o real desacerto da decisão.
Nada de aproximado se apresentou.

Que o arguido negou os factos todos o sabemos.
Que a testemunha T4... tenha sido alertada pela sua própria filha para o facto da B... estar a manter relações sexuais com dois rapazes, o tal J... e o F..., está escrito na própria fundamentação do acórdão.

O que já não se refere é o demais ali também condensado: “uns dias mais tarde decidiram confrontar a B.... Ao fazê-lo, a menor começou a chorar, pelo que, a sós com a mesma, ela contou-lhe que desde há muito tempo vinha mantendo relações sexuais com o pai, por imposição do mesmo, primeiro na casa de O... e depois no sótão da casa da T3..., quando aquele vinha do Porto aos fins-de-semana.

E cumpre perguntar, a circunstância da B... ter tido relações com o tal F... e/ou com o tal T5... (J...) impede que não pudesse ser abusada sexualmente pelo pai?

A tese de que tudo não passou de uma manobra orquestrada pela T4... não impressionou o Tribunal recorrido. E este não deixou sequer de exarar, note-se bem, em recensão ao depoimento da testemunha T3..., que esta embora confirmando o modo como a situação foi despoletada, não acreditava minimamente na veracidade dos factos relatados pela B... sendo sua convicção que a mesma foi manipulada pela irmã T4..., que desde há muito tempo vem referindo pretender ver o pai preso, por questões do passado.”

Ainda assim, de forma lógica, coerente e acertiva, o Colectivo decidiu como decidiu.
A afirmação genérica eventualmente proferida por aquela, agora transcrita, em como “… (da T4...) tudo poderia ser esperado”, nada de impressivo acrescenta a este quadro.

Ora era a esse discurso e a essa fundamentação que era preciso apresentar uma contraposição devidamente estruturada e convincente, de modo a que, nos termos do art. 412.º, n.º 3, al. b), do Cód. Proc. Penal, se impusesse uma decisão diversa da recorrida.

Aqui, uma vez mais, a estratégia perfilhada pelo recorrente não passa tanto por fazer acreditar numa factualidade alternativa, mas no desacreditar das provas que o Tribunal utilizou para fundamentar aquela que considerou demonstrada.

Porém, como fazer derrogar todo um veredicto assente na imediação com umas quantas simples frases cujo sentido declarativo o Colectivo claramente não ignorou?
Seguramente que não com um discurso assente, por exemplo, na descredibilização das declarações da B... porque é “apoucada” e não se consegue situar no tempo.
As situações de abuso sexual em menores ou maiores, do sexo feminino ou até, em termos mais recentes, do sexo masculino, com deficit cognitivo ou de desenvolvimento mental, são uma realidade recorrente ao longo destas quase três décadas que levamos de funções.

Consigne-se também, que em termos de “experiência comum”, não encontramos qualquer ilogicidade ou impossibilidade natural na circunstância da ofendida relatar (o que o Colectivo aceitou), que a penetração vaginal era somente parcial e a ejaculação se produzia nas pernas.

Como o Digno magistrado do Ministério Público junto da Comarca da Grande Lisboa-Noroeste o enfatiza na sua resposta, a diferença de idades e de estaturas físicas pode justificar a primeira asserção, da mesma maneira que o intuito de não produzir a gravidez na ofendida pode justificar a segunda.

*
Concluindo então, a impugnação apresentada é desde logo improcedente perante os próprios termos e fundamentos que se adiantam para a justificar.

Ainda assim, perguntar-se-á: sem embargo dessa insuficiência não seria caso de fazer intervir o princípio in dubio pro reo que também não se deixou de invocar?

Julgamos que não. Na ortodoxia da Jurisprudência que maioritariamente se vem seguindo, aquele só será de actuar quando da decisão recorrida resultar que o Tribunal a quo haja chegado a um estado de dúvida insanável e que, perante ela, tenha acabado acolher a tese desfavorável ao arguido.

Não é essa a situação que se patenteia nos autos: o que o acórdão nos diz, é que “não ficaram quaisquer dúvidas ao Tribunal acerca da veracidade dos factos imputados pela acusação ao arguido e bem assim das consequências de tais actos no desenvolvimento e na saúde psíquica da menor, nos termos que ficaram vertidos na matéria de facto dada como provada.

III – 3.6.) No domínio do enquadramento jurídico-normativo da sua conduta, entende o recorrente que a mesma deveria conter-se nos limites previsivos do art. 177.º, n.º 1, do Cód. Penal (acto sexual de relevo), que não também do seu n.º 2 (cópula), o que levaria a moldura penal da infracção a conhecer uma significativa diminuição.

Não o acompanhamos nessa crítica.

Não há dúvida que matéria de facto provada não espelha que nas situações de relacionamento sexual havidas aquele tivesse ejaculado no interior do corpo da sua filha menor.
Diz tão-somente no ponto 8.º que:

Após, o arguido colocava o seu corpo sobre o corpo da menor e, não obstante a mesma dizer para parar, abria-lhe as pernas e introduzia o seu pénis erecto na vagina daquela, ainda que parcialmente, causando-lhe dor e constrangimento, friccionando-o em movimentos repetidos e contínuos, até ejacular para as pernas da B....

E no ponto 20.º que: Após, não obstante a filha dizer para parar, o arguido abria-lhe as pernas e introduzia o seu pénis erecto na respectiva vagina, causando-lhe dor e constrangimento, friccionando-o em movimentos repetidos e contínuos, até ejacular para as pernas daquela.

A definição do conceito jurídico-normativo de cópula, como é sabido, foi um dos temas mais longamente debatidos pela nossa Doutrina e Jurisprudência penal.
Acabou por se alcançar alguma estabilização no entendimento de que envolveria “a introdução do pénis na vagina, ainda que incompleta ou sem emissio, como o coito vulvar com emissio” (Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo I, pág.ª 472).

Ainda que esta última modalidade continue a encontrar algumas resistências, para o caso dos autos é indiferente.
Como o esclarece o Prof. Figueiredo Dias (que nessa parte assegura tal comentário), a nota essencial do conceito de cópula é a penetração da vagina pelo pénis.
O que de forma parcial se verificou, de forma repetida.

Donde, nada haver a censurar à integração operada de tal conduta no n.º 2 do art. 171.º do Cód. Penal.

III – 3.7.) Em relação ao excesso que afirma existir em relação à pena que lhe foi aplicada, e sem embargo da correcção operada nas conclusões, o arguido continua sem fornecer outra fundamentação para a sua redução que não seja o daquela indevida subsunção.

Já vimos que assim não aconteceu.

Fixando-se a moldura penal abstracta correspondente à infracção entre os 4 anos e os 13 anos e 4 meses de prisão (arts. 171.º, n.ºs 1 e 2, 177.º, n.º 1, al. a), naturalmente que a pretensão de ser sancionado na pena de 2 anos, sem outra qualquer argumentação, é deslocada.

A este propósito, o Tribunal Colectivo para atingir a medida concreta que alcançou, louvou-se nos seguintes considerandos.

No caso presente, são de sopesar as elevadas exigências de prevenção geral, no sentido de repor a confiança dos cidadãos na validade da norma jurídica violada com o comportamento lesivo do bem jurídico protegido, porquanto o crime de abuso sexual de crianças tem ganho avanços preocupantes na nossa sociedade, gerando justificado alarme social nos mais diversos estratos populacionais.
Por outro lado, são ainda relevantes as necessidades de prevenção especial, não tanto pelos antecedentes criminais do arguido, que são bastante antigos e pela prática, na sua totalidade, de crimes de condução de veículo em estado de embriaguez, mas sobretudo pela não assunção dos factos em causa, que poderá levar à sua reincidência.
No que concerne aos elementos elencados no art. 71º, n.º 2 do Código Penal, há ainda que considerar:
- O elevado grau de ilicitude, moldando-se o dolo do arguido num dolo directo e intenso;
- A culpa, que é bastante elevada;
- O lapso temporal em que os factos decorreram – cerca de três anos;
- A grave violação dos deveres impostos ao agente, sobretudo dos resultantes da relação de paternidade, não só no que respeita à B..., já contemplada pela agravante do art. 177º, n.º 1 al. a) do Código Penal, mas também relativamente ao menor T1..., a quem o arguido obrigava a permanecer no interior de um veículo automóvel, sozinho, enquanto ia ao sótão praticar relações sexuais com a menor, facto que demonstra ainda uma energia criminosa muito elevada da parte do arguido e uma quase impossibilidade de resistência aos seus impulsos sexuais;
- As consequências para o desenvolvimento psíquico e sexual da menor, com o eventual comprometimento do seu desenvolvimento emocional e necessidade de acompanhamento psicológico, já efectivo;
- A total ausência de arrependimento, manifestada na não assunção dos factos;
- A existência de um entorno e apoio familiar, sobretudo da parte da filha T3... e de uma irmã, e de uma adequada inserção profissional, pelo menos anterior à situação de reclusão.
- A existência de antecedentes criminais, embora quase irrelevantes para a situação em análise.
Assim, pelo que ficou dito, entendemos adequada e proporcional a aplicação ao arguido da pena de 7 (sete) anos de prisão.

Podemos não concordar integralmente com esta fundamentação, mas ainda assim, em qualquer caso, não se detecta o excesso criticado.

III – 3.7.) Apenas na situação conexa com o pedido de indemnização cível o recurso interposto conhece melhor merecimento.

Com efeito, não se terá atentada na situação de menoridade da ofendida ao momento da sua dedução e que a mesma impunha algumas condicionantes adjectivas no sentido de suprir a referida incapacidade – art. 10.º do Cód. Proc. Civil.

Possivelmente a sua representação pelo Ministério Público, facultada pelo art. 17.º do mesmo Código, teria sido a melhor solução.

Aqui chegados, a verdade é que estamos perante uma excepção dilatória (art. 494.º, al. c), que embora devesse ter sido alegada em momento anterior, pode ainda neste momento ser conhecida nos termos do art. 495.º do Cód. Proc. Civil.

Assim, nesta parte, nada mais nos resta que absolver o arguido da instância, ex vi do art. 493.º, n.º 2, do referido Diploma.


IV – Decisão:

Nos termos e com os fundamentos acima indicados, na parcial procedência do recurso interposto pelo arguido A..., acorda-se em o absolver da instância relativamente ao pedido de indemnização civil formulado pela sua filha B..., no mais se confirmando o douto acórdão proferido.

Por haver decaído integralmente na parte crime, ficará o arguido sancionado em 4 (quatro) UCs de taxa de justiça, ex vi dos art.ºs 513.º, n.ºs 1 e 2, 514.º, n.º1 do CPP, e Tabela III referente aos art. 8.º, n.ºs 4 e 5 do Reg. das Custas Processuais.

Sem custas na parte cível, porquanto as que poderiam ser da responsabilidade da menor, em função da regra geral da sucumbência, decorrente do art. 446.º do Cód. Proc. Civil, aplicável por força do art. 323.º do Cód. Proc. Penal, não recaem sobre a mesma, nos termos do preceituado no art. 458.º daquele primeiro Código, e inexiste, no caso, qualquer representante legal, para mais de má fé, que lhes tenha dado causa.

Lisboa, 31 de Janeiro de 2012

Relator: Luís Gominho;
Adjunto: José Adriano;