Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
10210/2008-9
Relator: FÁTIMA MATA-MOUROS
Descritores: MEIOS DE PROVA
PROIBIÇÃO DE PROVA
VIDEOVIGILÂNCIA
GRAVAÇÃO ILÍCITA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 05/28/2009
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO
Sumário: 1. As proibições de prova representam meios processuais de imposição da tutela de direitos materiais, constituindo limites à descoberta da verdade que têm em si subjacentes o fim de tutela de um direito. Nesta perspectiva as proibições de prova representam, portanto, «meios processuais de imposição do direito material» que visam «prevenir determinadas manifestações de danosidade social» e garantem «a integridade de bens jurídicos prevalentemente pessoais».
2. As regras de proibição de prova constitucionalmente definidas ou concretizadas pelo legislador ordinário na legislação processual penal, mormente o CPP, servindo a tutela dos direitos fundamentais, dirigem-se em primeira mão às instâncias formais de controle, designadamente aos investigadores, ministério público e juiz de instrução.
3. Ao prescrever a proibição de prova obtida mediante intromissão na vida privada sem o consentimento do respectivo titular, o art. 126.º/3 do CPP indica o dever dos investigadores e autoridades judiciárias respeitarem normativos que, excepcionalmente, e para prossecução de outros direitos ou fins constitucionalmente contemplados, designadamente a perseguição penal, autorizam restrições aos direitos fundamentais.
4. No que respeita, por seu lado, a provas obtidas por particulares o legislador remete-nos para a tipificação dos ilícitos penais previstos no Código Penal como tutela do referido direito fundamental à privacidade de que é ilustrativo o normativo inserto no art. 167.º do CPP ao fazer depender a validade da prova produzida por reproduções mecânicas da sua não ilicitude penal.
5. A diferenciação legalmente assumida no art.º 199ºCP com a incriminação das gravações ilícitas quando confrontada com a incriminação das fotografias ilícitas, para que este último crime se verifique, não basta o não consentimento do titular do direito, é necessário que a produção das fotografias ou filmagens das imagens ou a sua utilização se faça contra a vontade do titular do direito à imagem.
6. A visualização das imagens recolhidas de forma não penalmente ilícita (já que à vista de toda a gente, e portanto sem surpresa para os filmados, de acordo com o acima explanado) só passou a poder integrar a tipicidade do ilícito previsto no art. 199.º/2b) do CP, e com ela, a anular o respectivo valor probatório para efeitos processuais penais nos termos do art. 167.º do CPP, a partir do momento em que foi instaurado o procedimento criminal contra as pessoas filmadas (ou numa visão que maximalize ao extremo a referida garantia), a partir do momento em que alguém decida usá-las, uso esse que pressupõe a respectiva visualização, pelo menos por uma vez. Antes de ser instaurado aquele procedimento criminal, nada impedia, com efeito, o dono da câmara de visualizar as imagens recolhidas.
7. Por esta via, mesmo no caso de confirmação da invalidade do uso das imagens recolhidas pela câmara de filmar colocada no portão, nada obstaria, porém, à consideração do testemunho de quem, através da visualização das filmagens captadas, identificou os autores do dano, prova esta apreciar livremente pelo tribunal nos termos do art.º 127º CPP.
8. O direito à imagem confere aos respectivos titulares a prerrogativa de impedirem a exposição das suas fotos. Não permite, porém, e muito menos impõe, a desconsideração dos depoimentos prestados no inquérito, designadamente por quem visualizou as referidas filmagens antes ainda de apresentada a queixa que deu início aos autos.
9. O uso das imagens captadas pela câmara de vídeo colocada pelo assistente na entrada do seu prédio rústico, desde que limitado à identificação do(s) autor(es) dos danos provocados na propriedade do assistente, e enquanto reportado ao momento da prática dos factos integradores dos referidos estragos, configura um meio necessário e apto a repelir a agressão ilícita da propriedade do assistente.
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na 9.a Secção (Criminal) do Tribunal da Relação de Lisboa:

I – Relatório

1. Findo o inquérito relativo ao NUIPC 1770/06.8TAPDL o Ministério acusou os arguidos A… e J…, da prática, em co-autoria material, de um crime de dano, p. e p. pelo art. 212.º, n.º 1, do C. Penal

Requerida a instrução, pelos arguidos, com fundamento na inexistência de indícios validamente adquiridos que sustentem a acusação deduzida, por decisão instrutória proferida em 20 de Junho de 2008 e constante de fls. 215 e ss. dos autos, foi decidido não pronunciar os arguidos por a acusação se sustentar essencialmente das imagens recolhidas por uma câmara de vídeo o que, no caso, consubstanciou prova inválida.

2. O assistente E…, inconformado com a mencionada decisão, interpôs recurso, pugnando pela sua revogação por acórdão que ordene o prosseguimento dos autos para julgamento, extraindo da sua motivação as seguintes conclusões:

1 – O ora recorrente colocou câmaras de videovigilância dirigidas ao portão de entrada do seu prédio por forma a prevenir novos crimes de dano contra o mesmo, o qual havia sido partido pelos arguidos, apesar de os mesmos terem chave.

2 – Apesar dessa medida preventiva, os arguidos, com plena consciência de estarem a ser filmados, continuam a optar escavacar o portão, ao invés de usarem, civilizadamente, a chave.

3 - Não podemos concordar com o douto despacho proferido pelo tribunal “a quo” quando decide não pronunciar os arguidos por um crime de dano,

4 – Nem tão pouco quando diz que tal decisão se fundamenta na proibição de utilização dos meios probatórios em causa (os dvd’s de filmagens) nos termos do disposto no artigo 167.º, n.º 1 do Código de Processo Penal.

5 – Com efeito, as 8 câmaras de videovigilância em causa estão fixas, filmam o portão do assistente, e das mesmas é dado conhecimento através de avisos colocados no local visíveis a todos quantos lá passam, incluindo os arguidos.

6 - Os arguidos tinham consciência de que estavam a praticar um acto ilícito e de que todos os seus actos e palavras estavam a ser gravados sendo que foram os próprios que se dirigiram às câmaras “falando para as mesmas”,

7 – Não se concebendo, portanto, outra interpretação para tal atitude que não o acordo presumido dos arguidos quanto às filmagens.

8 – Assim sendo, e conforme a lei n.º 67/98, de 26 de Outubro aplicável ao caso, pode haver tratamento de dados desde que haja consentimento dos titulares, o que aconteceu, embora o consentimento seja tácito ou presumido.

9 – Dispõe ainda a citada lei, que é igualmente fundamento de legitimidade de utilização dos referidos sistemas de videovigilância a necessidade de prevenir a ocorrência de novos crimes, como nos presentes autos, o que, mais uma vez, vem corroborar a legitimidade das filmagens.

10 – Após concluir pela validade da captação das filmagens, o tribunal “a quo” decide contudo que as gravações em causa não podem ser utilizadas e consideradas no âmbito do processo penal,

11 – Uma vez que tese dualista sustenta que a utilização da gravação sem consentimento é ilícita mesmo que tenha sido obtida licitamente. Interpretação com a qual não podemos concordar.

12 – É que, mesmo em situações de utilização de filmagens sem consentimento, embora não seja o caso, há que verificar da existência de causas de exclusão da ilicitude.

13 – Assim, logo em sede de tipicidade deparamo-nos com o denominado pensamento vitimodogmático que defende, para as filmagens sem consentimento, “que o comportamento censurável (porque imoral, ilícito, descuidado, etc.) da vítima das gravações ou fotografias determina a perda da dignidade penal e a caducidade da protecção jurídica. Isto porquanto aqueles que “se colocam no lado inverso do ser social” e se decidem contra a ordem jurídica, não devem contar com a sua solidariedade”.

14 – Um cidadão que se vê obrigado a colocar câmaras de videovigilância como uma atitude preventiva, para defesa do seu direito de propriedade, não pode depois ser “punido” com a impossibilidade de utilização das filmagens obtidas que comprovam a prática de um crime contra si, contra a sua propriedade, em prol de um “direito” do criminoso, resultando assim a impunidade do criminoso.

15 – Não pode o Direito Penal ser “cúmplice” de um crime, deixando o seu autor sem responsabilidade criminal. É no preciso momento da prática do crime que o criminoso renuncia, automaticamente, à defesa do seu direito, o direito à imagem, caso este esteja, efectivamente, a ser violado.

16 – Tal como é do entendimento da doutrina e jurisprudência dos E.U.A. e da Alemanha, os direitos têm limites e “quem os ultrapassa ilicitamente renuncia ao domínio exclusivo” do mesmo. Há, portanto, exclusão da ilicitude.

17 – Porém, a douta decisão de não pronúncia sustenta que “porque estão em conflito direitos passíveis de protecção – o direito de propriedade, à segurança de pessoas e bens, de um lado, e o direito à intimidade, de outro – este preceito condiciona o tratamento à necessidade de ponderação entre o interesse e finalidades legítimas dos responsáveis e os direitos, liberdades e garantias dos titulares dos dados que podem ser afectados pela recolha de imagens.”

18 – Relativamente ao alegado direito à imagem, não concordamos com a douta decisão, quando a mesma refere que o referido direito está a ser violado, e que é merecedor de prevalência em termos de tutela quando comparado com o direito de propriedade.

19 – Em primeiro lugar não entendemos, sequer, que o direito esteja a ser violado pois o n.º 3 do artigo 79.º do código civil o que refere é que se visa proteger a imagem das pessoas de forma a que as mesmas não possam ver a sua honra, reputação ou simples decoro afectadas com a reprodução, exposição ou lançamento de filmagens ou fotografias. Tal não acontece seguramente, no caso dos autos. É o “pudor” de ser visto a praticar um crime???

20 - O que presenciamos é uma atitude preventiva, uma defesa preventiva de um direito por parte do seu titular, pelo que consideramos não existir uma violação ao direito de imagem que aqui possa ser usado como fundamento da não utilização das filmagens.

21 – Até mesmo porque os arguidos dirigiam-se às câmaras, expressando o seu consentimento quanto à sua filmagem, nunca indiciando que consideravam um atentado à sua honra e reputação pois, se assim fosse, teriam optado por se afastar das mesmas, ao invés de praticarem um crime!

22 - Sem prescindir, não é menos verdade que, embora exista uma evidente apetência de princípio para reconhecer a prevalência dos direitos de personalidade, não existe nenhuma regra jurídica que a tal comportamento nos obrigue.

23 - Desde modo, e no âmbito do instituto da colisão de direitos, não podemos considerar a prevalência do eventual direito à imagem do criminoso. Perante a prática de um crime por parte de quem é filmado, é imperioso não proteger este último direito em detrimento de outro.

24 – Paralelamente, mas sempre com o mesmo objectivo de utilização das imagens captadas, outros advogam a existência de causas de justificação: a legítima defesa ou até mesmo o direito de necessidade, embora o douto despacho só se referia a este último e negue a sua existência.

25 – Nos autos, há uma agressão típica à imagem dos criminosos que são filmados, por quem os filma a praticar um crime contra si, e é a legítima defesa que legitima a gravação assim como é ela própria o fundamento da permissão da sua utilização posterior.

26 – Por seu lado, o direito de necessidade pode também configurar-se como o receio da repetição do crime. Sendo o direito de propriedade violado insistentemente, como se pode esperar que o cidadão não queira/necessite de agir na prevenção contra eventuais novos danos?

27 – É inaceitável para o cidadão comum, para o “Bonus Pater Familiae” que um criminoso pratique um crime, mesmo que não saiba que está a ser filmado, e essa filmagem não possa ser usada para o punir!

28 – O Direito não pode deixar de ser razoável. Não pode também “divorciar-se” do cidadão comum, cumpridor e respeitador da lei. Tem de haver bom senso na sua interpretação e aplicação.

29 – Desde modo, e por maioria de razão, também as filmagens com consentimento, ainda que tácito, podem ser utilizadas como meio de prova a partir do momento em que quem é filmado comete um crime.

30 – “In casu”, estamos perante um cidadão que colocou câmaras de videovigilância dirigidas ao portão de entrada do seu prédio, por forma a prevenir a eventualidade da prática de novos crimes de dano, uma vez que o seu património já havia sido alvo desse tipo de ilícito criminal, e sempre contra o portão em causa, portão do qual os arguidos têm uma chave mas que, selvaticamente, optam por partir!

31 - Não pode um cidadão ter um comportamento preventivo, como é o caso, um comportamento de defesa dos seus direitos, como o é o de propriedade, para depois as gravações não poderem ser utilizadas como meio probatório ficando os criminosos impunes por causa do seu direito à “imagem” no acto da prática de um crime, continuando ininterruptamente, e com o “parecer favorável” da Justiça, a praticar ostensivamente o mesmo tipo de crime.

32 - A Justiça não pode ficar impávida e serena perante tal quadro. Tal situação é uma afronta aos direitos dos cidadãos e o direito penal não pode tutelar/proteger quem não cumpre a lei e que deste modo invade a esfera jurídica de outrem.

33 - Pelo exposto, e sempre salvo o devido respeito, o douto despacho de que ora se recorre, violou o disposto no art. 212.º do Código Penal e o artigo 308º do Código de Processo Penal.

3. Respondeu o MP, sustentando, em conclusão, que a decisão recorrida não enferma de qualquer vício, tendo sido aplicado correctamente o direito aos factos apurados em julgamento, pelo que deve ser negado provimento ao recurso.

 

4. A Exma. Procuradora-Geral Adjunta nesta Relação emitiu parecer no sentido de dever ser negado provimento ao recurso, confirmando-se o despacho de não pronúncia, por se revelar bem fundada a referida decisão.

5. Foi cumprido o preceituado no art. 417º nº 2 do C.P.P., não tendo havido resposta.

6. Colhidos os vistos legais, cumpre agora apreciar e decidir.

II – Fundamentação

1. Conforme entendimento pacífico dos Tribunais Superiores, são as conclusões extraídas pelo recorrente, a partir da respectiva motivação, que operam a fixação e delimitação do objecto dos recursos que àqueles são submetidos, sem prejuízo da tomada de posição sobre todas e quaisquer questões que, face à lei, sejam de conhecimento oficioso e de que ainda seja possível conhecer.

A questão que se coloca a este Tribunal Superior é a de saber se existe fundamento para não pronunciar os arguidos pela acusação deduzida pelo Ministério Público por esta se fundar em prova proibida, não subsistindo prova válida que permita levar os arguidos a julgamento.

 2. Passemos, pois, ao conhecimento da alegada questão. Para tanto, vejamos, antes de mais, o conteúdo da decisão recorrida, que é do seguinte teor (transcrição):

1. Deduzida, a fls. 108 e segs., despacho de acusação imputando aos arguidos A… e J…, em co-autoria material, a prática de um crime de dano, p. e p. pelo art. 212.º, n.º 1, do C. Penal, vieram estes requerer a abertura de instrução, alegando em síntese, que não existem indícios suficientes que sustentam a predita imputação.

Não foram carreados para os autos quaisquer outros elementos de prova para além daqueles que já constavam do inquérito, com excepção da certidão do processo n.º 912/05.5TAPDL, cuja junção foi oficiosamente ordenada pelo Tribunal, designadamente por ser o mesmo o objecto do processo (são idênticas as situações, apenas que localizadas em momento temporal diverso).

Apenas de referir que, como se dirá, a junção da dita certidão teve apenas como objectivo deixar fixado o modo de funcionamento do sistema de videovigilância que é posto em causa nos presentes autos, o qual, designadamente, foi explicado nesse processo pelo próprio assistente.

2. Resulta do art. 286.º, nº1 do C.P.P., que “a instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento”.

  O art. 308.º, nº1, do C.P.P. estipula que “se até ao encerramento da instrução tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, o juiz, por despacho, pronuncia o arguido pelos factos respectivos”.

  Por sua vez, no dispositivo do art. 283.º, nº2, do Cód. de Proc. Penal, “consideram-se suficientes os indícios sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena”.

Sobre este conceito legal escreve o Prof. Figueiredo Dias (in Direito Processual Penal, 1º, 1974, pág. 133, citado no Ac. da Rel. de Coimbra, de 31.3.93, CJ, Tomo II, pág. 66) que os indícios só serão suficientes e a prova bastante quando, já em face dela, seja de considerar altamente provável a futura condenação do acusado, ou quando esta seja mais provável do que a absolvição. Acrescenta este autor que logo se compreende que a falta delas (provas) não possa de modo algum desfavorecer a posição do arguido: “um “non liquet” na questão da prova (...) tem de ser sempre valorado a favor do arguido”.

  Na jurisprudência recente, a interpretação desse conceito é resumido pela Relação de Coimbra da seguinte forma - “para a pronúncia, não é preciso uma certeza da existência da infracção, mas os factos indiciários devem ser suficientes e bastantes, por forma que, logicamente relacionados e conjugados, formem um todo persuasivo de culpabilidade do arguido, impondo um juízo de probabilidade do que é imputado”.

 Nos presentes autos consideramos:

Analisada a prova testemunhal produzida, constata-se que ninguém, para além do assistente e da sua esposa, e estes através de um sistema de videovigilância, cuja descrição consta do despacho de fls. … (de 05/03/2008) que integra a certidão ordenada juntar, viu a comissão de quaisquer actos que se subsumam ao comportamento tipificado no artigo 212.º do Código Penal.

Senão, vejamos.

Como se refere no despacho cuja junção foi ordenada e que vale, quer nos seus fundamentos de facto, quer nos de direito, para o caso aqui em apreciação:


            “1. Dos factos
            De acordo com o relatado pelo assistente (…), este mantém no interior do seu prédio, sito na Estrada ...,, n.º ..., ..., ..., ... câmaras de vídeo doméstico para assegurar a protecção do mesmo.
            Todas as câmaras são fixas, filmando o prédio do assistente, nos termos que se acham desenhados no croquis de fls. …, também junto pelo assistente.
            Designadamente, as ditas câmaras abarcam o caminho ("canada") que os arguidos utilizam para chegar ao seu prédio que não tem acesso pela via pública.
            O assistente afixou no exterior e interior do seu prédio avisos onde alertava para a circunstância de se estar a ser filmado, sendo as próprias câmaras visíveis pelo menos do interior do prédio do assistente.
            Todos os arguidos se opuseram ao visionamento das imagens em que tivessem sido filmados/fotografados [o que, atento o requerimento de abertura de instrução, se mantém no presente caso].

            2. Do Direito
            Dispõe o artigo 167.º, n.º 1, do Código de Processo Penal que "as reproduções fotográficas, cinematográficas, fonográficas ou por meio de processo electrónico e, de modo geral, quaisquer reproduções mecânicas, só valem como prova dos factos ou coisas reproduzidas se não forem ilícitas, nos termos da lei penal".
            O n.º 2 deste artigo vem, por outro lado, confirmar (escusadamente, é certo) a validade dos meios de obtenção de prova referidos no título III do livro III do Código de Processo Penal.

            Nos termos do disposto no artigo 199.º, n.º 1, do Código Penal, incorre na prática de um crime quem, sem consentimento, "gravar palavras proferidas por outra pessoa e não destinadas ao público, mesmo que lhe sejam dirigidas" ou "utilizar ou permitir que se utilizem as gravações referidas (...) mesmo que licitamente produzidas", sendo que nos termos do n.º 2 do mesmo preceito legal, no mesmo crime incorre quem, contra vontade, "fotografar ou filmar outra pessoa, mesmo em eventos em que tenha legitimamente participado" ou "utilizar ou permitir que se utilizem fotografias ou filmes referidos na alínea anterior, mesmo que licitamente obtidos".

            Vejamos.

            O quadro jurídico do regime da videovigilância terá que ser encontrado na aplicação das seguintes disposições legais:

            a) DL n.º 35/2004, de 21 de Fevereiro, aplicável à utilização destes meios por parte das empresas que exercem actividade no âmbito da segurança privada;

            b) Lei 67/98, de 26 de Outubro, na medida em que – como resulta do artigo 4.º n.º 4.º - esta lei se aplica “à videovigilância e outras formas de captação, tratamento e difusão de sons e imagens” que permitem identificar pessoas sempre que o responsável pelo tratamento esteja domiciliado em Portugal;
            c) O artigo 20.º do Código do Trabalho, preceito que delimitou algumas condições em que devem ser utilizados “meios de vigilância a distância no local de trabalho”.

            Uma vez que as câmaras utilizadas são "domésticas" (cfr. declarações do próprio assistente), é no âmbito da Lei 67/98, de 26 de Outubro que se terá de buscar o regime jurídico aplicável ao presente caso.

            Assim:

            A Lei 67/98 surge como legislação geral a que deve obedecer o tratamento operado por sistemas de videovigilância e de outras formas de captação, difusão de sons e imagens.

            Por força da aplicação da Lei 67/98, os responsáveis pelo tratamento de imagem e som estão obrigados, em particular, a notificar estes tratamentos à Comissão Nacional de Protecção de Dados (CNPD) (art. 27.º n.º 1), a observar os princípios relativos à qualidade dos dados (artigo 5.º), a respeitar as “condições de legitimidade” e de licitude para poderem tratar esses dados (artigos 6.º, 7.º e 8.º) e a assegurar o direito de informação (art. 10.º).

            Os dados devem ser conservados por prazos limitados, cabendo à CNPD fixar o prazo de conservação em função da finalidade (artigo 23.º n.1 al. f). Não nos parece, igualmente, que possa ser afastado o direito de oposição quando se verifiquem os requisitos do artigo 12.º al. a).

            Em função da natureza dos dados e da forma como são recolhidos, interessa saber se as entidades têm legitimidade para proceder ao seu tratamento, continuando a realizar a captação de som e imagem.

            Por força do artigo 35.º n.º 3 da CRP – e porque estamos perante dados da «vida privada» (cf. a doutrina do Tribunal Constitucional) – o tratamento só pode ser realizado quando houver «autorização prevista em lei» ou «consentimento dos titulares». Deve-se, no caso concreto, apurar se será admissível o tratamento à luz do artigo 35.º n.º 3 da CRP e do artigo 7.º n.º 2 e 3 da Lei 67/98.

            Para além da admissibilidade legal de sistemas de videovigilância (o caso do referido DL n.º 35/2004, de 21 de Fevereiro, bem assim o da Lei 38/98, de 4 de Agosto, DL 139/2002, de 17 de Maio), importa verificar que outros «fundamentos de legitimidade» podem servir de base à autorização da CNPD.

            Perante a previsão do artigo 7.º n.º 2 e 3 da Lei 67/98 é admissível que, em abstracto, possa haver situações em que a utilização de sistemas de videovigilância pode estar fundamentada na defesa de «interesses vitais dos titulares» (n.º 3 al. a) ou para «declaração, exercício ou defesa de um direito em processo judicial» (n.º 3 al. d).

Importa saber, igualmente, se a utilização de sistemas de videovigilância pode ser fundamentada na necessidade de assegurar a prevenção de crimes ou na “documentação” da prática de infracções penais – nomeadamente no contexto da finalidade de «protecção de pessoas e bens».

            O tratamento só será, no entanto, legítimo se se apresentar como necessário à execução de finalidades legítimas do seu responsável e desde que “não prevaleçam os direitos, liberdades e garantias do titular dos dados” (artigo 8.º, n.º 2, da Lei 67/98).

            É ainda necessário, como resulta do preceito acabado de citar, que este tratamento seja autorizado pela CNPD, que verificará se foram observadas as normas de protecção de dados e de segurança da informação, sob pena, inclusivamente, de incorrer o agente em responsabilidade criminal - art. 43.º da Lei 67/98.

            Ora, estando em causa objectivos relacionados com a prevenção de crimes, entendemos que o fundamento de legitimidade poderá, nestes casos, ser encontrado na previsão do artigo 8.º n.º 2 da Lei 67/98, de 26 de Outubro. A autorização da CNPD (cf. artigo 28.º n.º 1 al. a) terá que respeitar os diversos pressupostos estabelecidos naquele preceito.

            Não obstante a eventual integração da situação em causa ao normativo deixado de aludir, não se vislumbra que, no âmbito doméstico da tomada de som e imagem, fosse dada qualquer autorização por banda da CNPD ao assistente para instalar os dispositivos em causa.

            Por isso, este problema tem que ser resolvido noutra sede, que sejam, as normas de direito penal material aplicáveis.
            Sem prejuízo de se desconhecer, neste momento, se as reproduções oferecidas têm qualquer som gravado, convém, desde já, destrinçar as gravações de som das gravações de imagens.
            No que a umas e outras dizem respeito, quer-nos parecer que os arguidos consentirem, pelo menos tacitamente, na sua gravação (ou seja, existiu uma manifestação de vontade, livre, específica e informada, nos termos da qual o titular aceita que os seus dados pessoais (imagem e voz) sejam objecto de tratamento (ou seja, recolha de dados pessoais) - notar que as definições ora ínsitas se basearam no disposto no artigo 1.º, alíneas a), b) e h), da Lei 67/98, que já tem por pressuposto, ela própria, as normas jurídico-penais que vimos de analisar). Na verdade, e no que ao registo de imagens concerne, não se oferecem dúvidas quanto à existência do "consentimento" dos arguidos, desde logo porque os mesmos se predispuseram a serem filmados: tendo em conta os avisos existentes no local, a visibilidade das câmaras e, designadamente, a verificar-se a alegação do assistente de que os arguidos - eles próprios - se dirigiram às câmaras e praticaram os factos que constam das queixas formuladas e do requerimento da abertura de instrução, é visível a manifestação inequívoca dos próprios arguidos em serem filmados.
             O mesmo vale, mutatis mutandis para as gravações, designadamente a provar-se que as palavras proferidas foram-no dirigidas contra os aparelhos de gravação (sendo, contudo, mais dúbia a questão se tais palavras não fossem proferidas nesses termos).
            Contudo, e apesar do que dito fica, o que nos é posto a conhecer não é a validade das gravações, em si mesmas, mas o uso a fazer dessas gravações.
            E, no que a esta questão concerne, importa frisar que é manifesta a oposição dos titulares no tratamento (ou seja, utilização) dos aludidos dados pessoais.
            Importa reconhecer, como alguém já referiu, que “fora da esfera íntima da sua vida privada, a pessoa física encontra-se permanentemente exposta ao exame do público” (Parecer da PGR n.º 95/2003, de 6 de Novembro de 2003 (in DR II.ª Série de 4 de Março de 2004, pág. 3703), nomeadamente se as suas condutas ocorrem em locais públicos. É fundamental salientar, por outro lado, que o facto de as imagens serem recolhidas em lugares públicos e os titulares dos dados serem previamente informados da existência de tratamento e das suas finalidades contribui, substancialmente, para afastar a ideia de que existe uma captação ou utilização arbitrária da sua imagem.

            Porque estão em conflito direitos passíveis de protecção – o direito de propriedade, à segurança de pessoas e bens, de um lado, e o direito à intimidade, de outro – este preceito condiciona o tratamento à necessidade de ponderação entre o interesse e finalidades legítimas dos responsáveis e os direitos, liberdades e garantias dos titulares dos dados que podem ser afectados pela recolha de imagens.

            O tratamento a realizar e os meios utilizados devem ser considerados os necessários, adequados e proporcionados com as finalidades estabelecidas: a protecção de pessoas e bens. Ou seja, para se poder verificar se uma medida restritiva de um direito fundamental supera o juízo de proporcionalidade importa verificar se foram cumpridas três condições: se a medida adoptada é idónea para conseguir o objectivo proposto (princípio da idoneidade); se é necessária, no sentido de que não exista outra medida capaz de assegurar o objectivo com igual grau de eficácia (princípio da necessidade); se a medida adoptada foi ponderada e é equilibrada ao ponto de, através dela, serem atingidos substanciais e superiores benefícios ou vantagens para o interesse geral quando confrontados com outros bens ou valores em conflito (juízo de proporcionalidade em sentido restrito).

            Na linha do que referimos, será admissível aceitar que – quando haja razões justificativas da utilização destes meios – a gravação de imagens se apresente, em primeiro lugar, como medida preventiva ou dissuasora tendente à protecção de pessoas e bens e, ao mesmo tempo, como meio idóneo para captar a prática de factos passíveis de serem considerados.

            Estamos perante a aplicação do princípio da proporcionalidade que “implica, em cada caso concreto, a idoneidade do meio utilizado – a videovigilância – bem como, e também, o respeito pelo princípio da intervenção mínima”.

            O princípio da intervenção mínima obriga, necessariamente, que, em cada caso concreto, se pondere entre a finalidade pretendida e a necessária violação de direitos fundamentais, aqui concretamente o direito à privacidade e à imagem.

            Deverá mesmo pressupor-se que, no caso concreto, o risco a prevenir deverá ser de todo razoável” e proporcionado quando comparado com os direitos fundamentais de terceiros que são afectados com a utilização destes meios.

            Como ensina Vieira de Andrade (Os Direitos Fundamentais na Constituição de 1976, 1983, pág. 221), “não pode ignorar-se que nos casos de conflito, a Constituição protege diversos valores ou bens em jogo e que não será lícito sacrificar pura e simplesmente um deles ao outro”. Adianta este autor que “a medida em que se vai comprimir cada um dos direitos (ou valores) pode ser diferente, dependendo do modo como se apresentam e das alternativas possíveis de solução de conflito”.

            Contudo, como se deixou dito, esta ponderação não pode ser feita, nem foi, deixada à decisão dos particulares (pela Lei 67/98).

            Suposto do acolhimento dos registos em causa seria que os mesmos fossem autorizados, pelo menos, pela CNPD.

            Na verdade, e como já se disse, não fosse a circunstância de haver um consentimento dos titulares dos direitos subjectivos em causa, a própria recolha das imagens - nos moldes em que o foram - seria ilícita, pelo que, só fazendo actuar uma verdadeira causa de exclusão da ilicitude que recuperasse a validade dos dados recolhidos da maneira descrita poderiam os mesmos ser utilizados em processo penal.

  Ora, porque tal causa da exclusão da ilicitude inexiste, não se verificando na situação em apreço estarmos perante um direito de necessidade que faça prevalecer os interesses probatórios e de investigação dos crimes de ameaça sobre os interesses dos particulares à sua imagem e palavra (sendo que os direitos em presença são, pelo menos, de igual valor - art. 26.º, n.º 1, da C.R.P.), não podem as gravações em causa serem utilizadas e consideradas no âmbito do presente processo penal.”

Na verdade, e de acordo com a doutrina do efeito-à-distância (a tender para a ‘fruit of the poisonous tree doctrine’ originariamente aceite no direito anglo-saxónico), porque se mostram associadas às proibições de prova o regime das nulidades (cfr. art. 32.º, n.º 6, da CRP “são nulas todas as provas obtidas mediante…”), nos termos do n.º 1 do artigo 122.º do C. Processo Penal, são invalidas (porque nulas) as provas (os actos) que dependerem de outras provas nulas e possam por estas ser afectadas (Cfr. Costa Andrade, Sobre as proibições de prova em Processo Penal, Coimbra Editora, pp. 312 e 313).

Citando Costa Andrade “tudo se conjuga para impor aqui a comunicação da proibição de valoração à prova mediata. Resumidamente, estão em causa proibições de prova preordenadas a prevenir o que a lei prefigura como os atentados mais intoleráveis tanto à dignidade pessoal como os transcendentes valores institucionais que numa perspectiva de Estado de Direito lhe andam associados”. Assim, “o princípio não deverá ser essencialmente outro quanto às proibições de prova ditadas pelo regime processual das gravações e fotografias ilícitas. Além do mais, pela circunstância de a proibição de valoração estar sistematicamente ligada à ilicitude penal (substantiva) da utilização processual da gravação ou fotografia. Dificilmente se compreendendo que, do ilícito penal cometido por via da valoração processual, sempre pudessem, afinal, colher-se os frutos indirectos ou mediatos”  (ob. cit. pp. 314 e 315 e 318, itálico no original).

No mesmo sentido, mas fundando esta contaminação da prova no disposto no artigo 32.º, n.º 8, da CRP se pronuncia Helena Morão (“O efeito-á-distância das proibições de prova no Direito Processual Penal português, RPCC, 16 (2006), 4, p. 596 e ss).

Ora, como já entendeu por mais do que uma vez este Tribunal, mesmo em situações em que os intervenientes neste processo são partes, (e, na sequência do despacho de 05/03/2008, que integra a certidão ordenada juntar), as imagens e sons recolhidos pelo assistente (e cujos DVD’s e fotografias se encontram juntos aos autos), não podem ser usados como meios de prova, nos termos do disposto no art. 167.º, n.º 1, do C. Processo Penal (remetendo-se para aquele despacho a razão de ser do nosso entendimento, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido).

Face à inutilização desse material probatório, por ilícito, todos os depoimentos das testemunhas inquiridas (especialmente da esposa do assistente), e as próprias declarações do assistente, quando se fundarem nas preditas gravações, não podem servir de prova, sob pena de se colherem os tais frutos contaminados a que Costa Andrade se referia (e dando azo a que, na recolha de prova, se contemporize com actos ilícitos).

Diga-se, aliás, que relativamente à testemunha F, é nítido que (atenta desde logo a formulação da própria queixa), a mesma não assistiu presencialmente ao que se passou, sendo o seu conhecimento indirecto, defluindo da visualização das imagens em causa (Acrescente-se, aliás, que a localização temporal dos factos é, de resto, feita por remissão para o que consta da queixa e para as filmagens que o seu marido entregou – cfr. fls. 60 a 62).

Já relativamente aos agentes da autoridade também arrolados como testemunhas, é manifesto que os mesmos não assistiram à imputada actuação dos arguidos, sendo que o conhecimento que têm dos factos é de ouvir dizer e da conversa que tiveram com os próprios acusados que, obviamente, e nos termos do disposto nos arts. 356.º, n.º 7 e 357.º, ambos do C.P.P., não pode ser valorada por não servir como prova válida em sede de julgamento.

Mais nenhuma testemunha foi apresentada.

            Pelo exposto, não pronuncio os arguidos A. e J. pela prática do crime de dano, p. e p. pelo art. 212.º, nº 1, do C. Penal que lhes é imputado na acusação que antecede, mais determinando a extinção do procedimento criminal quanto a tal crime e aos referidos arguidos (art. 308.º, nº1, do Cód. de Proc. Penal).

3. Apreciando e decidindo

Na esteira da doutrina alemã, as proibições de prova representam meios processuais de imposição da tutela de direitos materiais, constituindo limites à descoberta da verdade que têm em si subjacentes o fim de tutela de um direito. Nesta perspectiva as proibições de prova representam, portanto, «meios processuais de imposição do direito material» que visam «prevenir determinadas manifestações de danosidade social» e garantem «a integridade de bens jurídicos prevalentemente pessoais», como entre nós tem sido defendido pelo Professor Manuel da Costa Andrade (Sobre as proibições de prova em processo penal, Coimbra Editora, 1992, p. 83).

Dito de forma simples e sucinta: as proibições de prova assumem, na prática, um papel de tutela dos direitos fundamentais.

A nossa Constituição adoptou uma concepção dos direitos fundamentais diferente da concepção liberal que via naqueles direitos exclusivamente direitos subjectivos de defesa perante o Estado, considerando, nos termos do seu art. 18.º/1, estes direitos relevantes não apenas nas relações entre os particulares e o Estado, como também nas relações entre os particulares (v. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, Coimbra Editora, 2007, em anotação ao art. 18.º).

Sem se por em causa a sua eficácia vinculativa abrangendo poderes públicos e entidades privadas, nem todas as normas constitucionais atinentes a direitos, liberdades e garantias são, porém, exequíveis por si mesmas. Exemplo de normas daquele tipo que não são exequíveis por si mesmas, podemos encontrar no art. 26.º/2 e 35.º (garantias contra a utilização abusiva de informações) da CRP (neste sentido, v. Jorge Miranda, in Constituição da República Portuguesa Anotada, de Jorge Miranda e Rui de Medeiros, Coimbra Editora, 2005, em anotação ao art. 18.º).

É frequente a necessidade de recurso às soluções assumidas pelo legislador ordinário em concretização dos direitos, liberdades e garantias constitucionalmente consagrados para apreciar a conformidade da vinculação dos particulares aos mesmos.

Por outro lado, importa ainda reter que na vinculação das entidades privadas às normas constitucionais atinentes a direitos, liberdades e garantias não estão em causa «direitos que apenas podem ter por destinatário passivo o Estado, como as garantias de Direito e de processo penal» como ensina ainda o mesmo ilustra constitucionalista (ob. cit., p. 156).

Transpondo estes ensinamentos para o processo penal («direito constitucional aplicado», como de há muito classificado), temos assim que as regras de proibição de prova constitucionalmente definidas ou concretizadas pelo legislador ordinário na legislação processual penal, mormente o CPP, servindo a tutela dos direitos fundamentais, dirigem-se em primeira mão às instâncias formais de controle, designadamente aos investigadores, ministério público e juiz de instrução. São eles, por exemplo, os destinatários expressamente eleitos das normas contidas no art. 34.ª/4 da CRP e 187.º e 188.º do CPP. São também eles, os destinatários da norma contida no art. 6.º da Lei 5/2002, de 11.1 que faz depender da prévia autorização judicial o registo de voz ou imagem sem consentimento do visado, para a investigação de determinados crimes.

No caso dos autos, as imagens recolhidas não o foram, porém, pelos órgãos de polícia criminal, antes por uma câmara de videovigilância particular.

Significará o que acima se deixou dito que os particulares não devem respeito pelo direito à imagem dos seus concidadãos? Certamente que não. Simplesmente, os seus deveres de respeito pelos referidos direitos pessoais constitucionalmente consagrados (art. 26.º da CRP) encontram-se concretizados na legislação ordinária, não decorrendo de nenhuma norma processual penal em particular. Estas visam disciplinar a investigação e o procedimento penal, indicando aos agentes de investigação e às autoridades judiciárias, bem como aos sujeitos processuais, os instrumentos de que se podem valer e os procedimentos que devem respeitar para sustentar a sua posição nos autos. Não regulam os direitos e deveres dos particulares.

Assim, ao prescrever a proibição de prova obtida mediante intromissão na vida privada sem o consentimento do respectivo titular, o art. 126.º/3 do CPP indica o dever dos investigadores e autoridades judiciárias respeitarem normativos que, excepcionalmente, e para prossecução de outros direitos ou fins constitucionalmente contemplados, designadamente a perseguição penal, autorizam restrições aos direitos fundamentais. É o caso de normativos como os já acima referidos arts. 187. CPP ou 6.º da Lei 5/2002, em concretização ainda do respeito pelos direitos fundamentais contemplados nos arts. 26.º e 34.º da CRP. No que respeita, por seu lado, a provas obtidas por particulares o legislador remete-nos para a tipificação dos ilícitos penais previstos no Código Penal como tutela do referido direito fundamental à privacidade.

Bem ilustrativo desta linha de concretização legislativa se revela o normativo inserto no art. 167.º do CPP ao fazer depender a validade da prova produzida por reproduções mecânicas da sua não ilicitude penal.

Aqui chegados cumpre verificar se a conduta traduzida na captação das imagens que o tribunal de instrução criminal desconsiderou, em resultado do que não pronunciou os arguidos pelos factos e crime que lhes eram imputados na acusação deduzida, configura, ou não, um ilícito penal. É essa, com efeito, a apreciação que traz em si a resolução da questão suscitada neste recurso. A verificação da existência, ou não, de licença concedida pela CNPD para a colocação da(s) câmara(s) de videovigilância no prédio do assistente, que tanto preocupou o tribunal a quo na decisão recorrida, poderá, eventualmente, integrar desrespeito pela legislação de protecção de dados, designadamente a Lei 67/98, aplicável à videovigilância nos termos do seu art. 4.º/4. Mas não define a licitude ou ilicitude penal a recolha ou utilização das imagens. É o art. 199.º do CP que tipifica o crime de gravações ou fotografias ilícitas.

Ora, nos termos do artigo 199.º, n.º 1, do Código Penal deve ser punido «quem, sem consentimento, gravar palavras proferidas por outra pessoa e não destinadas ao público, mesmo que lhe sejam dirigidas; ou utilizar ou permitir que se utilizem as gravações referidas (...) mesmo que licitamente produzidas». Nos termos do n.º 2 do referido artigo, no mesmo crime incorre ainda quem, «contra vontade fotografar ou filmar outra pessoa, mesmo em eventos em que tenha legitimamente participado; ou utilizar ou permitir que se utilizem fotografias ou filmes referidos na alínea anterior, mesmo que licitamente obtidos».

Como referido na decisão do tribunal a quo, o assistente mantém no interior do seu prédio, sito na Estrada …, n.º…, …, …, … câmaras de vídeo doméstico para assegurar a protecção do mesmo. Todas as câmaras são fixas, filmando o prédio do assistente. As ditas câmaras abarcam o caminho ("canada") que os arguidos utilizam para chegar ao seu prédio que não tem acesso pela via pública. O assistente afixou no exterior e interior do seu prédio avisos onde alertava para a circunstância de se estar a ser filmado, sendo as próprias câmaras visíveis pelo menos do interior do prédio do assistente.

Mais se considerou ainda na decisão recorrida que «todos os arguidos se opuseram ao visionamento das imagens em que tivessem sido filmados/fotografados» fundamentando esta asserção no teor do requerimento de abertura de instrução apresentado.

Com base nestes elementos, considerou o Mm. Juiz a quo que, no que ao registo de imagens concerne, não se ofereciam dúvidas «quanto à existência do "consentimento" dos arguidos, desde logo porque os mesmos se predispuseram a serem filmados: tendo em conta os avisos existentes no local, a visibilidade das câmaras e, designadamente, a verificar-se a alegação do assistente de que os arguidos - eles próprios - se dirigiram às câmaras e praticaram os factos que constam das queixas formuladas e do requerimento da abertura de instrução, é visível a manifestação inequívoca dos próprios arguidos em serem filmados».
Contudo, fazendo notar que o que importava apreciar não era a validade das gravações, em si mesmas, mas o uso a fazer dessas gravações, no que a esta última questão concerne, considerou «manifesta a oposição dos titulares no tratamento (ou seja, utilização) dos aludidos dados pessoais». E isto, como antes referido, com base no requerimento pelos arguidos oferecido à instruçao.
            Apesar de a decisão recorrida começar por se propor empreender uma destrinça entre as gravações de som e as gravações de imagens, o certo é que no raciocínio subsequentemente desenvolvido acaba por negligenciar uma das diferenças essenciais estabelecida pelo legislador na definição do tipo incriminador entre as gravações ilícitas e as fotografias ilícitas. Tal como sublinhado por Costa Andrade (in Comentário Conimbricense do Código Penal, em anotação ao art. 199.º): «o art. 199.º contém duas incriminações autónomas – a saber: gravações e fotografias ilícitas – preordenadas à tutela de dois bens jurídicos distintos: o direito à palavra e o direito à imagem. Trata-se de duas incriminações homólogas, mas não inteiramente sobreponíveis». E entre as diferenças que é possível encontrar nas duas incriminações em referência, destaca o ilustre Professor, desde logo, que a gravação da palavra é ilícita logo que obtida “sem consentimento”, enquanto que a fotografia só será ilícita desde que produzida “contra a vontade”, o que traduz uma redução significativa da dimensão da tutela penal do direito à imagem relativamente à dimensão conferida à tutela penal do direito à palavra, diferenciação que deve ser compreendida face à maior externalidade da imagem que torna este direito necessariamente mais incontornavelmente exposto à ofensa.   
            Recordada esta importante diferenciação legal da tutela penal conferida aos dois direitos de personalidade em referência, verifica-se que a decisão a quo trata, porém, a questão sempre no pressuposto de ter sido, ou não, prestado pelos arguidos o consentimento à captação das imagens através da câmara de filmar. Assim, enquanto no que respeita à captação das imagens presume o consentimento dados pelos arguidos, presunção assente no facto de, apesar dos avisos registados no local referentes à existência de câmaras, e da visibilidade das câmaras, se terem deixado filmar, já no que respeita à utilização das imagens, o tribunal a quo, socorrendo-se do facto de ter sido requerida instrução (bem como do teor do mesmo), considera manifesta a verificação de oposição dos arguidos. E, daqui, parte para a conclusão de se revelar ilícito o uso das referidas imagens, uma ilicitude que considera não excluída por qualquer causa de justificaçao ou estado de necessidade e que, em última análise, contamina todas as demais provas recolhidas no inquérito, razão pela qual se impõe a não pronúncia dos arguidos pelos factos relatados na acusação.
            Não deve, no entanto, acolher-se este raciocínio.
            Com efeito, e retomando a diferenciação legalmente assumida na incriminação das gravações ilícitas quando confrontada com a incriminaçao das fotografias ilícitas, para que este último crime se verifique, não basta o não consentimento do titular do direito, é necessário que a produção das fotografias ou filmagens das imagens ou a sua utilização se faça contra a vontade do titular do direito à imagem.
            Certo que a referida vontade contrária ao uso da própria imagem se pode, e deve, presumir, designadamente quando, como no caso dos autos, conduzem à acusação do respectivo titular do direito sobre a mesma. Mas a verdade é que só com a instauração do inquérito é possível estabelecer uma tal presunção. Até esse momento, nada permite presumi-la. Significa isto que a visualização das imagens recolhidas de forma não penalmente ilícita (já que à vista de toda a gente, e portanto sem surpresa para os filmados, de acordo com o acima explanado) só passou a poder integrar a tipicidade do ilícito previsto no art. 199.º/2b) do CP, e com ela, a anular o respectivo valor probatório para efeitos processuais penais nos termos do art. 167.º do CPP, a partir do momento em que foi instaurado o procedimento criminal contra as pessoas filmadas (ou numa visão que maximalize ao extremo a referida garantia), a partir do momento em que alguém decida usá-las. Ora esse uso pressupõe a respectiva visualização, pelo menos por uma vez. Antes de o fazer, nada impedia, com efeito, o dono da câmara de visualizar as imagens recolhidas.     
Aqui chegados, facilmente se compreenderá, que, mesmo no caso de confirmação da invalidade do uso das imagens recolhidas pela câmara de filmar colocada no portão, nada obstaria, porém, à consideraçao do testemunho de quem, através da visulalização das filmagens captadas, identificou os autores do dano. Naturalmente que essa será uma prova a apreciar livremente pelo tribunal, mas, para o que neste momento interessa, não pode deixar de ser ponderada em sede de instrução. Esta é também uma decorrência necessária do respeito pela teoria dualista sufragada pelo legislador na tipificação do crime de fotografias ilícitas que impõe a autonomização da captação das imagens da sua futura utilização e que não deixa de encontrar algum reflexo na decião recorrida. Tal como exemplificado por Costa Andrade (Comentário ... cit.), em anotação ao crime de gravações ilícitas, mas logo especificando que as mesmas considerações se aplicam ao crime de fotografias ilícitas, impõe-se exluir da tipicidade «os possíveis atentados à palavra que não suponham a mediação do gravador. Não pode ser punido pelo crime de gravações ilícitas o jornalista que, sem consentimento, reproduz oralmente (na rádio ou televisão) ou por escrito, no todo ou em parte, o teor de uma gravaçao (...). A responsabilidade criminal do jornalista está afastada desde logo a nível da tipicidade. Já seria diferente se o jornalista fizesse ouvir a gravação “passando-a” aos microfones da rádio ou da televisão». O mesmo vale para o depoimento em julgamento. Desde que não se recorresse à visualização das imagens captadas, nada invalidaria o testemunho produzido com base numa anterior visualização das mesmas. 
            A aparente subtileza da referida diferenciação nada tem, afinal, de artifício. Pelo contrário, só uma tal diferenciação de situações permite repor a consideração da dimensão devida do bem juridico protegido pelo crime de fotografias ilícitas: o direito à imagem tutelado em si e de per si, enquanto direito de personalidade. Isto é, o direito de definir a sua própria auto-exposição, ou dito de outro modo ainda, o direito de cada um a não ser fotografado, e sendo-o, a não ver a sua fotografia exposta em público ou manipulada por confronto com a identidade pessoal. Este o conteúdo do direito à imagem, enquanto direito fundamental a respeitar e fazer respeitar. Mas não mais do que isto.
            Revertendo ao caso em apreço, o direito à imagem confere aos respectivos titulares a prerrogativa de impedirem a exposição das suas fotos Não permite, porém, e muito menos impõe, a desconsideração dos depoimentos prestados no inquérito, designadamente por quem visualizou as referidas filmagens antes ainda de apresentada a queixa que deu início aos autos.
            Esta uma primeira conclusão a retirar do raciocínio expendido até aqui e que pareceria, conduzir, à conclusão de, perante a não aceitação pelo respectivo titular do uso no presente processo das fotografias e filmagens recolhidas com a câmara de vídeo do assistente, se impor a determinação do respectivo desentranhamento, sem prejuízo da validade da demais prova compilada no inquérito e que se impõe fazer em primeira instância.
            Importa, porém, levar um pouco mais longe a apreciação da verificação, ou não, de conduta penalmente relevante, configurada na recolha e utilização das imagens sempre em referência.
            Na verdade, ao estabelecer-se, no art. 167.º do CPP, que as reproduções fotográficas ou cinematográficas só valem como prova dos factos ou coisas reproduzidas se não forem ilícitas, nos termos da lei penal, não se estabeleceu uma condicionante de validade da prova assente na mera verificação da tipicidade de uma conduta como crime. Exigiu-se mais: exigiu-se a não ilicitude das mesmas. Ora a ilicitude não se esgota no preenchimento de um tipo legal de crime. Para que um comportamento seja punido como crime exige-se que, além se encontrar tipificado na lei penal, configure também um acto ilícito e culposo. Não sendo necessário ir tão longe quanto o foi a teoria da redução teleológica do tipo de sentido vitimodogmático (construção que funda a exclusão da responsabilidade penal das fotografias, ou gravações, feitas sem consentimento, pelas vítimas de crimes com base na dogmática dos limites imanentes dos direitos fundamentais), por via da qual o comportamento indigno do titular do direito à palavra e imagem determina a perda da dignidade penal dos referidos direitos, afastando, desde logo a verificação de crime ao nível dos elementos do tipo, importa, porém, não perder de vista a possibilidade de verificação de alguma causa de justificação da ilicitude ou mesmo da culpa configuráveis no caso. Tal como salientado por Costa Andrade (Comentário cit.), a razão para algumas controvérsias suscitadas em torno da justificação nos crimes de gravações e fotografias ilícitas radicam sobretudo na necessidade de aplicar velhas causas de justificação (historicamente vinculadas a factos como homicídio, ofensas corporais, dano, etc.)  novas expressões de comportamento penalmente relevante», concluindo mais adiante que não há razão nenhuma para não se aplicar a figura da legítima defesa, por exemplo, à gravação da palavra no crime de extorsão, não cabendo o argumento que por vezes costuma contrapor-se da falta de verificação de pressupostos como a actualidade da agressão ou a idoneidade e necessidade do meio. 
            Conclui-se, assim, que o uso das imagens captadas pela câmara de vídeo colocada pelo assistente na entrada do seu prédio rústico, desde que limitado à identificação do(s) autor(es) dos danos provocados na propriedade do assistente, e enquanto reportado ao momento da prática dos factos integradores dos referidos estragos, configura um meio necessário e apto a repelir a agressão ilícita da propriedade do assistente. Não será a circunstância de, no caso, os autores dos estragos não se terem abstido de o fazer, apesar de saberem que o seu comportamente estava a ser filmado, que permite afastar a verificação de todos os requisitos de que a lei faz depender a actuação em legítima defesa e, nessa medida, a exclusão da ilicitude na recolha das imagens  (ilicitude que no caso, conforme acima já explanado nem se verificou, já que se presume o consentimento dos filmados) e na sua utilização exclusivamente para esse fim: identificação dos autores dos danos. Atente-se que a imagem, no caso em presença, será usada apenas com o fim da identificação, confinando-se, pois, à estrita ligação à identidade do titular do direito, o que exclui, pois qualquer exposição arbitrária da imagem e muito menos qualquer manipulação da mesma.
            Por tudo o que fica exposto, é patente que no caso se impõe a revogação da decisão instrutória proferida e sua substituição por outra que, considere como válida toda a prova recolhida no inquérito com base nas imagens captadas.

        

III – Decisão

Pelo exposto, acordam os juízes da 9ª secção deste Tribunal da Relação em conceder provimento ao recurso interposto, e, nessa conformidade, revogam a decisão revidenda que deverá ser substituída por outra que, ponderando toda a prova recolhida no inquérito, profira novo despacho de pronúncia ou não pronúncia dos arguidos pelos factos e crime vertidos na acusação.

Sem custas.

Notifique.

(Acórdão elaborado e integralmente revisto pelo relator – artº 94º, nº 2 do C.P.Penal).

                                                        *

Lisboa, 28 de Maio de 2009

                Maria de Fátima Mata-Mouros

              João Abrunhosa