Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1604/08.9TMLSB-A.L1-7
Relator: PIRES ROBALO
Descritores: DIREITO DE VISITA
INCUMPRIMENTO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 12/02/2009
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: «Havendo decisão judicial a regular o direito de visitas dos avós e dos irmãos, relativamente a menor órfão de pai, os mesmos podem lançar mão do incidente de incumprimento referido no art.º 181, da O.T.M. em caso de incumprimento da decisão judicial por parte da mãe do menor».
(Sumário do Relator)
Decisão Texto Integral: Acordam nesta secção cível do Tribunal da Relação de Lisboa

1. Relatório

1.1.A, advogado, e B em representação da sua filha C, vêm nos termos do art.º 1887-A, do C.C., conjugado com o art.º 181, da O.T.M., intentar o incidente de incumprimento do regime de visitas, contra D, solteira, residente n, o que fazem alegando, em síntese:
A requerida desde 14 de Março de 2009 que não deixa o seu filho E visitar os familiares do pai (falecido), incumprido assim o acordo na conferência de 4/12/2008, pelo que, requerem que se ordenem as diligências necessárias para o cumprimento coercivo da sentença de fls., no que respeita ao regime de visitas.
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1.2. A fls. 20, destes autos, foi proferido despacho a indeferir liminarmente a pretensão dos requerentes, referindo que « O incidente de incumprimento encontra-se previsto apenas situações em que um dos progenitores não cumpre o acordado ou decidido em matéria de regulação de responsabilidades parentais e o outro pretende o cumprimento coercivo e/ou a condenação em multa e indemnização, não sendo passível de aplicação, designadamente, por analogia, às situações em que um dos progenitores não cumpre com o acordado ou decidido relativamente às visitas do menor a familiares (no caso, irmã e avós).
Não se encontrando a funcionar devidamente um determinado regime de visitas a irmã e e avós, fixado no âmbito de acção tutelar comum, resta àqueles lançar mão de uma nova acção desse tipo, que vise apurar porque razão o regime fixado não funciona devidamente e melhorar o mesmo, aperfeiçoando-o.
No caso, o Requerente e a irmã do menor já intentaram nova acção tutelar comum com esse desiderato, pelo que resta indeferir liminarmente o presente incidente de incumprimento, por legalmente inadmíssivel (art. 181.º, a contrario, da OTM)».
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1.3. Inconformado com tal decisão dela recorreram os requerentes terminando a sua motivação com as conclusões transcritas:
1. O Menor é órfão de Pai desde 31 de Outubro de 2007.
2. Por falta de vontade da Apelada houve necessidade de requerer o direito de visita do Menor à irmã (consanguínea) e aos avós;
3. Na conferência celebrada em 4 de Dezembro de 2008 com um exemplar empenho da Meritíssima Juiz a quo e do Digno Procurador da República foi alcançado o ACORDO, de fls. 75 a 77 do processo principal, para regular o exercício do direito de visita do Menor aos familiares do Pai;
4. Depois do dia 14 de Março de 2008, a Apelada e Mãe do Menor não mais o deixou visitar os familiares do Pai;
5. "A todos, incluindo os menores, é reconhecido o direito constitucional ao desenvolvimento da personalidade – art.º 26.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa. Como titulares deste direito os menores podem relacionar-se e conviver com quem entenderem, nomeadamente, com os irmãos e ascendentes" - (Ac. R.L de 17 de Fevereiro de 2004, in www.dgsi.pt) sublinhado nosso.
6. "Os Pais não podem injustificadamente privar os filhos do convívio com os irmãos e ascendentes" - artigo 1887 -A do Código Civil (sublinhado nosso).
7. Este preceito veio consagrar o direito do Menor conviver com os irmãos e com os ascendentes - (Ac. do S.T.J. de 3 de Março de 1998, in www.dasi.pt);
8. A O.T.M. foi publicada pelo Decreto-Lei n.º 314/78 em 27 de Outubro de 1978;
9. Naquela época, só era possível conceber um direito de relacionamento entre o Menor e os ascendentes - á margem da vontade dos progenitores - quando aquele se encontrasse numa das situações contempladas no artigo n.º 1918 do Código Civil.
10. Fora das hipóteses previstas no normativo atrás mencionado, a nossa jurisprudência sempre negou aos avós o "direito de visita" com o argumento de que aquele direito apenas se pertencia em exclusivo ao progenitor que não tinha a guarda do Menor.
11. Todavia, com a entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 84/95, de 31 de Agosto, aquela previsão foi modificada, com o aditamento do artigo n. º 1887 -A e a revogação do n.º 3 do artigo n.º 1905, ambos do Código Civil, estabelecendo-se que: "Os pais não podem injustificadamente privar os filhos do convívio com os irmãos e ascendentes" e deixando de considerar que o direito de visita apenas dizia respeito ao progenitor que não tivesse a guardo do Menor.
12. Ora, esta alteração legislativa veio consagrar o direito de convívio do Menor com os avós, proibindo os pais (neste caso a Mãe) de impedir, sem razão imperiosa, o normal relacionamento dos filhos com os avós, bem como o direito de estes conviverem com os netos.
13. O direito de visita dos avós não se verifica apenas nos casos de ruptura da vida familiar ou da sua desagregação, pois que em caso de injustificado afastamento dos Menores do convívio com os ascendentes, estes podem lançar mão da previsão do artigo n.º 1887-A do Código Civil para exercerem os seus direitos.
14. Assim sendo, o Legislador não previu, ao tempo, a possibilidade de os irmãos e dos avós, virem a ter "direito de visita" e por conseguinte não previu o incumprimento daquilo que não se antevia. Hodiernamente, já assim não é.
15. O recurso à analogia para ser legítimo pressupõe dois requisitos, no entendimento do Insigne Mestre Inocêncio Galvão Teles (Introdução ao Estudo do Direito, 1995, pág. 191).
a. É preciso que falte uma disposição directa de lei para o caso a decidir;
b. É preciso que exista igualdade jurídica de essência entre o caso a regular e o caso regulado.
16. Ora, com o acima exposto damos por verificado o primeiro pressuposto, no entendimento daquele Mestre.
17. Doutro passo, com a alteração introduzida pelo Decreto-Lei n.º 84/95, de 31 de Agosto, em que se revogou o estipulado no nº 3 do artigo 1905 (no qual se previa que o direito de visita era exclusivamente para o progenitor que não tinha a guarda do Menor) e se introduziu o artigo n.º 1887-A do Código Civil (que veio consagrar um verdadeiro direito de visita do Menor aos irmãos e ascendentes), alterou-se a previsão consagrada na OTM, no que ao incumprimento diz respeito.
18. Se há lugar á regulação do exercício do poder paternal, com aquela alteração legislativa, também há lugar á regulação do direito de visita dos irmãos e ascendentes.
19. Se há lugar ao incumprimento do exercício do poder paternal, e será por parte de um dos progenitores - porque se forem os dois estamos na presença de uma alteração - também poderá haver incumprimento do "direito de visita do Menor e/ou irmãos e ascendentes" e neste caso, por parte do progenitor que tem a guarda do Menor.
20. Logo, verifica-se a existência de uma igualdade jurídica de essência entre o caso a regular e o caso regulado (verificando-se o segundo pressuposto no entendimento do Insigne Mestre Inocêncio Galvão Teles, ob citada, pág 191).
21. Caso assim se não entenda deve-se pugnar pela segurança jurídica.
22. Os acordos homologados têm valor de sentença e obrigam as partes ao seu
cumprimento.
23. Uma vez que estamos em presença de jurisdição voluntária apenas se deve admitir alteração se ocorrerem situações supervenientes que justifiquem aquela.
24. Salvo melhor opinião, não se deve utilizar o regime da acção tutelar comum, para alterar o regime estabelecido, sempre que a progenitora incumpra e que neste caso em concreto, nunca cumpriu.
25. Logo, se a progenitora não cumpre com o acordo que foi devidamente homologado pelo Tribunal a quo, deve este ordenar as diligências que repute necessárias para o cumprimento coercivo e condenar o remisso (progenitora) em multa e em indemnização a favor de quem a requerer.
26. Se há uma norma que tutela o direito, ele deve ser respeitado e sancionado, nem que seja nos termos gerais de direito, como por exemplo indemnização por factos ilícitos.
27.A considerar-se como válida a via apontada pelo Douto Tribunal a quo, no que se não concede, poderemos ver-nos confrontados com a necessidade de, de forma sucessiva e reiterada, intentar novos procedimentos cautelares comuns que, no limite, virão a impor um comportamento à mãe do menor que esta nunca cumprirá porque bem sabe que não sofrerá qualquer consequência prática.
28. Se existem decisões do Tribunal, devem ser respeitadas, sob pena de desobediência, devendo ser aplicada uma multa pelo desrespeito, uma pena compulsória, etc., ou então de nada servem as decisões emanadas pelo Poder Judicial.
Termos em que,
Em face do exposto, e invocando o Douto suprimento de Vossas Excelências, confiadamente se espera que seja dado provimento ao presente Recurso, revogando-se a Douta decisão recorrida com as inerentes consequências;
Como é de lei e de JUSTiÇA!»
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1.4. Não houve contra-alegações.
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1.5. Os senhores Desembargadores-Adjuntos tiveram visto dos autos.
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2. Motivação
Como se sabe o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões do mesmo (art.º 684, n.º 3 e 690, n.º 1, do C.P.C.).
Assim a única questão a apreciar consiste em saber se o despacho recorrido deve ser revogado substituído por outro que ordene o prosseguimento dos autos.
Segundo os recorrentes, em oposição ao despacho recorrido, o incidente de incumprimento aludido no art.º 181, da OTM, tem aplicação quando o progenitor do menor incumpra o acordo de visitas estabelecido por sentença homologatória, relativamente a avó e irmã do menor.
Vejamos
Muito embora a questão a decidir consista em saber se ao caso tem aplicabilidade ou não o artigo 181, da OTM, incidente de incumprimento, cabe referir algo a respeito da matéria do direito de visitas relativamente a avós e irmãos.
Antes das alterações introduzidas no Código Civil pela Lei n. 84/95, de 31 de Agosto, só era possível conceber um direito de relacionamento entre os avós e o menor - à margem da vontade dos seus pais -, quando este se encontrasse numa das situações contempladas no artigo 1918 - perigo para a sua segurança, saúde, formação moral ou educação.
Fora dessas hipóteses, a nossa jurisprudência sempre negou aos avós o "direito de visita", sob o pretexto de que tal "direito", além de não estar consagrado no nosso ordenamento jurídico, integrava o poder paternal, que, por imperativo do então n. 3 do artigo 1905 (eliminado por aquela Lei), pertencia exclusivamente ao progenitor que não tinha guarda do menor.
Hoje tal situação foi radicalmente modificada com a Lei n. 84/95, ao aditar o artigo 1887-A, ao C.C. com o seguinte teor:
"Os pais não podem injustificadamente privar os filhos do convívio com os irmãos e ascendentes".
Este normativo acabou por introduzir, no fim de contas, de modo expresso, um limite ao exercício do poder paternal (cfr. artigo 36 ns. 5 e 6 da Constituição da República e artigos 1885 a 1887 do Código Civil), proibindo os pais de impedir, sem justificação plausível, o normal relacionamento dos filhos com os avós - hipótese que aqui importa ter em conta.
Reconhecendo que as relações com os avós são da maior importância para os netos, ao menos em princípio, quer pela afectividade que recebem, quer pelo desenvolvimento do espírito familiar que proporcionam, o legislador consagrou "um direito de o menor se relacionar" com os avós, que poderá ser designado por "direito de visita", pelo menos assim entendido na sentença homologatória.
Com este "direito de visita", genericamente entendido como o estabelecimento de relações pessoais entre quem está unido por estreitos laços familiares, pretendeu-se tutelar a ligação de amor, de afecto, de carinho e de solidariedade existente entre os membros mais chegados da família.
Na verdade, é preciso não esquecer que, em regra, o relacionamento do menor com os avós contribui decisivamente "para a sua formação moral" e da sua personalidade ainda em embrião e "constitui um meio de conhecimento das suas raízes e da história da família, de exprimir afecto e de partilhar emoções, ideias e sentimentos de amizade".
Por outro lado, "os avós têm em relação aos netos um papel complementar ao dos pais, embora de natureza diferente. Enquanto que os pais assumem uma função predominantemente de autoridade e de disciplina em relação aos filhos, o papel dos avós é quase exclusivamente afectivo e lúdico, satisfazendo a necessidade emocional da criança de se sentir amada, valorizada e apreciada".
Além disso, nos dias de hoje, nas famílias em que ambos os progenitores exercem uma actividade profissional fora do lar, surgem cada vez mais situações em que os avós "desempenham um papel de substituto dos pais" durante a ausência destes, assumindo, concomitantemente, uma função educativa de primacial importância social (cfr. Maria Carla Sottomayor, "Regulação do Exercício do Poder Paternal nos Casos de Divórcio", 1997, páginas 15, 16, 21 e 47, e J.C. Moitinho de Almeida, "Reforma do Código Civil", 1981, páginas 165 e 166).
Saliente-se também que o artigo 1887-A não consagra, unicamente, um direito do menor ao convívio com os avós. Reconhece, também, um direito destes ao convívio com o neto.
Assim, embora atribuindo especial relevância jurídica à importância que a ligação com os avós tem para o menor, não deixa de tutelar, de igual modo, o interesse dos próprios avós na convivência com o neto.
O "direito de visita" é um "direito particular", um "direito subjectivo" resultante de uma "realidade humana e biológica" - como é o parentesco -, que a lei não pode ignorar, e alicerçado na afeição e amor reciprocamente sentidos, em geral, entre pessoas do mesmo sangue e muito próximas entre si.
Trata-se, repete-se, de um direito autónomo relativamente ao "direito de guarda", não sendo, por conseguinte, nem uma "faceta" nem uma "consequência" do poder paternal (cfr. Maria Clara Sottomayor, op. cit., páginas 15, 18 e 19). – Cfr. Ac. do S.T.J., 3 de Março de 1998, in www.dgsi.pt, relatado pelo Cons. Silva Paixão.
Ora, no caso em apreço o direito de visitas já foi decidido por sentença homologatória, sendo que, segundo os recorrentes a requerida, mãe do menor incumpre o mesmo.
É verdade que da leitura do n.º 1, do art.º 181, da O.T.M. parece resultar que apenas os progenitores poderão lançar mão do preceito, relativamente ao incumprimento do acordo, ao estipular: « Se relativamente à situação do menor um dos progenitores não cumprir o que tiver sido acordado ou decidido, pode o outro requerer ao tribunal as diligências necessárias para o cumprimento coercivo…»
Porém, em nossa modesta opinião, o preceito tem de ser conjugado com o preceituado no art.º 1887-A, do C.C. que consagra como que um direito de “visitas” aos avós e irmãos.
No caso em apreço tendo havido uma sentença homologatória a reconhecer o direito de visitas aos recorrentes, ainda que haja jurisprudência que entenda que o art.º 1887-A, não consagra um verdadeiro direito de visitas – Ac. desta Relação, de 17/2/2004 -, o certo é que o mesmo foi reconhecido.
Ora, tendo sido reconhecido esse direito e havendo incumprimento, segundo os recorrentes, o meio processual para o fazer cumprir será o incidente do art.º 181, da OTM, pois estamos perante um incumprimento de uma decisão judicial, que tem de ser executada a forma da executar, cremos nós será através do incidente de incumprimento do art.º 181, pois a não ser assim, haveria sempre necessidade de se intentar nova acção tutelar cada vez que uma das partes não cumprisse, no fundo seria negar a possibilidade de fazer cumprir o que já estava anteriormente decidido, e não foi isto certamente que o legislador quis.
Assim, face ao exposto concedemos provimento ao recurso e em consequência revogamos o despacho recorrido, que deve ser substituído por outro que dê continuidade aos autos, de acordo com o preceituado no n.º 1, do art.º 181, da OTM.
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3. Decisão

Pelo acima exposto, decide-se, julgar procedente o recurso e em consequência revogar o despacho recorrido, que deve ser substituído por outro que dê continuidade aos autos, de acordo com o preceituado no n.º 1, do art.º 181, da OTM.
Sem custas
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Sumariado, pelo relator, nos termos do n.º 7, do art.º 713, do C.P.C. na redacção dada pelo D.L. 303/2007, de 24 de Agosto.

Lisboa, 2 de Dezembro de 2009

Pires Robalo – Relator
Cristina Coelho – 1.º Adjunto
Soares Curado – 2.º Adjunto