Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
66/10.5SVLSB.L1-5
Relator: ARTUR VARGUES
Descritores: CÚMULO JURÍDICO DE PENAS
PENA SUSPENSA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 03/06/2012
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO
Sumário: Iº A inclusão da pena suspensa num cúmulo de penas não equivale tecnicamente à revogação da suspensão, tendo apenas o alcance de considerar sem efeito a suspensão pela necessidade legal de proceder ao cúmulo de penas;
IIº Uma pena de prisão suspensa na sua execução, aplicada pela prática de um crime que está em relação de concurso com os demais em que o arguido foi condenado, deve ser incluída no cúmulo jurídico a efectuar;
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na 5ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa

I - RELATÓRIO
         1. Nos presentes autos com o NUIPC 66/10.5SVLSB, da 3ª Vara Criminal de Lisboa, foi o arguido A..., após realização de cúmulo jurídico de várias penas, por acórdão de 18/10/2011, condenado na pena única de quatro anos de prisão e sessenta e seis dias de prisão resultante da conversão de multa e cento e sessenta dias de multa à taxa diária de 5,00 euros.

         No cúmulo jurídico dessas penas, não foi incluída a pena de 1 ano e 6 meses de prisão suspensa na sua execução por igual período, em que o arguido foi condenado no Proc. nº 260/08.9PMLSB, do 5º Juízo Criminal de Lisboa.


         2. O Ministério Público não se conformou com o teor da decisão e dela interpôs recurso.
         2.1 Extraiu o recorrente da motivação as seguintes conclusões:




         3. O arguido não respondeu à motivação de recurso.

         4. Nesta Relação, a Exmª Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer no sentido da procedência do recurso.

         5. Foi dado cumprimento ao disposto no artigo 417º, nº 2, do CPP, não tendo sido apresentada resposta.

         6. Colhidos os vistos, foram os autos à conferência.

         Cumpre apreciar e decidir.


II - FUNDAMENTAÇÃO
1.  Âmbito do Recurso

         O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, havendo ainda que ponderar as questões de conhecimento oficioso, mormente os vícios enunciados no artigo 410º, nº 2, do CPP – neste sentido, Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, 2ª edição, Editorial Verbo, pág. 335; Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6ª edição, Edições Rei dos Livros, pág. 103, Ac. do STJ de 28/04/99, CJ/STJ, 1999, Tomo 2, pág. 196 e Ac. do Pleno do STJ nº 7/95, de 19/10/95, DR I Série A, de 28/12/95.

         No caso em apreço, atendendo às conclusões da motivação de recurso, a questão que se suscita é a de saber se uma pena de prisão suspensa na sua execução, aplicada pela prática de um crime que está em relação de concurso com os demais em que o arguido foi condenado, devia ter sido incluída no cúmulo jurídico superveniente efectuado.

2.  A Decisão Recorrida

2.1 Conforme consta do acórdão recorrido, o arguido A... sofreu as seguintes condenações:
A – No Proc. nº 66/10.5SVLSB, da 3ª Vara Criminal de Lisboa, por factos praticados em 06/07/2009, foi julgado por acórdão proferido em 25/01/2011, transitado em julgado em 24/02/2011 (fls. 857) e condenado na penas de 1 ano e 6 meses de prisão, pela prática de cada um de um crime de roubo qualificado, p. e p. pelo artigo 210º, nº 1, do CP.
Factos: o arguido, em conjugação de esforços com outra arguida, usando a sua força física, subtraiu e fez seus, a quantia de 5,00 euros e um telemóvel no valor de 50, euros.

B – No Proc. nº 428/06.2GBVFX, do 1º Juízo Criminal de Vila Franca de Xira, por sentença de 15/06/2010, transitada em julgado em 20/07/2010 e factos de 28/04/2006, (fls. 1102) foi o mesmo arguido condenado na pena de 100 dias de multa, à taxa diária de 5,00, pena convertida em 66 dias de prisão (fls. 1351), pela prática de um crime de dano, p. e p. pelo artigo 212º, nº 1, do CP.
Factos: o arguido, utilizando a força física, dobrou a porta de um veículo automóvel, tendo o ofendido sofrido um dano no valor de 500,00 euros.

C – No Proc. nº 689/09.5PBLSB, do 2º Juízo T.P.I. Criminal de Lisboa, 1ª secção, por decisão de 11/12/2009, transitada em julgado em 31/12/2009 e factos de 02/11/2009, (fls. 954) foi o mesmo arguido condenado na pena de 7 meses de prisão, pela prática de um crime de furto qualificado, p. e p. pelo artigo 204º, nº 1, alínea b), do CP.
Factos: o arguido retirou do interior de uma viatura um computador portátil, no valor de 150,00 euros e dois discos DVD, no valor, cada um de 15.00 euros, objectos que vieram a ser recuperados e entregues ao proprietário.

D – No Proc. nº 554/09.6PBLSB, do 1º Juízo do Tribunal de Pequena Instância Criminal de Lisboa, 2ª secção., por sentença de 08/09/2009, transitada em julgado em 28/08/2009 e factos de 07/09/2009, (fls. 1066) foi o mesmo arguido condenado na pena de 1 ano e 3 meses de prisão, pela prática de um crime de furto qualificado, p. e p. pelo artigo 204º, nº 1, alínea b), do CP.
Factos: o arguido, em conjugação de esforços com outro co-arguido, partiu o vidro de uma viatura automóvel e, entrando no mesmo, retirou do seu interior dois aparelhos de GPS, no valor de 10,00 euros e um carregador de isqueiro no valor de 15,00 euros, abandonando o local mas vindo a ser interceptados pela polícia, tendo os objectos sido recuperados.

E - No Proc. 602/08.7PDAMD, do 2º Juízo Criminal de Lisboa, 3ª secção, por sentença de 26/05/2009, transitada em julgado em 26/10/2009 e factos de 26/05/2009, (fls. 1010) foi o mesmo arguido condenado na pena de 120 dias de multa, pela prática de um crime de condução de veículo sem habilitação, p. e p. pelo artigo, 3º, nºs 1 e 2, do Decreto-Lei nº 2/98, 03/01.
Factos: em 26/07/2008, pelas 15H00, o arguido conduzia o veículo ligeiro de matrícula ...-31-87 na Rua Latino Coelho, na Damaia – Amadora, sem possuir carta de condução ou outro documento legal que o habilitasse a conduzir.

F - No Proc. nº 260/08.9PMLSB, do 5º Juízo Criminal de Lisboa, 3ª secção, por sentença de 15/04/2009, transitada em julgado em 30/09/2009 e factos de 15/04/2009, (fls. 1002) foi o mesmo arguido condenado na pena de 1 ano e 6 meses de prisão, suspensa na sua execução, pela prática de um crime de furto qualificado, p. e p. pelo artigo 204º, nº 1, alínea b), do CP.
Neste processo encontram-se diligências em curso para se ponderar a revogação da suspensão (fls. 1295).
Factos: em conjugação de esforços com outros dois co-arguidos o arguido partiu o vidro e forçou a porta de uma viatura automóvel e retirou do seu interior peças de roupa e uma carteira tudo no valor de 130,00 euros.

G – No Proc. nº 51/08.7PAOER, do 3º Juízo Criminal de Oeiras, por sentença de 17/12/2008, transitada em julgado em 19/02/2010 e factos de 03/07/2008, (fls. 1026) foi o mesmo arguido condenado na pena de 120 dias de multa à taxa diária de 5,00 euros, pela prática de um crime de furto, p. e p. pelo artigo 203º, nº 1, do CP.
Factos: o arguido foi surpreendido pela PSP a retirar gasóleo do depósito de um camião que se encontrava estacionado, tendo sido recuperado o combustível.
H – No Proc. nº 358/08.3PQLSB, da 6ª Vara Criminal de Lisboa, por acórdão de 09/06/2010, transitado em julgado em 09/07/2010 e factos de 21/06/2008, (fls. 1050) foi o mesmo arguido condenado nas penas de:
- 1 ano de prisão, pela prática de dois crimes de furto, p. e p. pelo artigo 203º, nº 1, do CP.
- 10 meses de prisão, pela prática de um crime de condução ilegal, p. e p. pelo artigo 3º, nº 2, do Decreto-Lei nº 2/98, 03/01.
- 2 anos de prisão, pela prática de um crime de resistência e coacção sobre funcionário, p. e p. pelo artigo 347º, nºs 1 e 2, do CP.
Em cúmulo jurídico foi condenado na pena única de 3 anos e 3 meses de prisão.
Factos: em conjugação de esforços com outros dois co-arguidos o arguido abriu uma viatura automóvel forçando a fechadura, logrando ainda colocar o veículo em funcionamento, veículo no valor de 1300 euros; abasteceu de seguida o veículo numa estação de combustível e encheram vários bidões com combustível que não pagou, no valor de 80,82 euros; seguidamente o veículo conduzido pelo arguido foi perseguido pela polícia e não obedeceu à ordem de paragem emitida pela autoridade, tentando embater na viatura desta entidade, vindo, no entanto a ser imobilizado; neste momento constatou-se que não era titular de carta de condução de veículos automóveis.

         2.2 O tribunal recorrido efectuou o cúmulo jurídico das penas mencionadas em A, B, C, D, E, G e H.
         2.3 Não incluiu no cúmulo jurídico a pena mencionada em F, pelos fundamentos que a seguir se transcrevem:
Como se verifica da súmula dos crimes em concurso acima descritos – praticados antes do trânsito em julgado de qualquer deles como dispõe o art.º 77.º, n.º 1 do C.P.– encontramos condenações em penas de prisão efectivas, uma pena de prisão suspensa na sua execução e penas de multa, uma delas convertida em pena de prisão.
Quanto à pena de prisão suspensa, decorrem actualmente diligências para se determinar se a mesma deve ou não ser revogada. (fls. 1295).
Importa, por isso, saber se o Tribunal deve ou não cumular esta pena com as penas de prisão efectiva.
O Supremo Tribunal de Justiça vem produzindo jurisprudência em dois sentidos.
Uma corrente minoritária que impede o cúmulo jurídico de penas de prisão efectiva com penas prisão suspensa, uma vez que estas duas penas têm natureza diversa, [1] - a segunda é pena de substituição.
E uma outra maioritária, que, argumentando não excepcionar a lei esta possibilidade, defende a realização de cúmulo jurídico mesmo nestes casos.[2]
Antes de mais, importa esclarecer que os Juízes titulares desta 3.ª Vara Criminal têm decidido, por unanimidade, não cumular penas de prisão suspensas na sua execução com penas efectivas de prisão.
Isto com base no argumento de que se trata de penas de diversa natureza, assim acompanhando a corrente minoritária.
Ou seja, a pena de prisão suspensa está no mesmo plano dogmático da pena de prisão efectiva e da pena de multa, são penas de diferente natureza.
Com efeito, salvo melhor opinião, não se pode ficcionar que uma pena efectiva tem a mesma natureza de uma pena de prisão suspensa na sua execução, a que acresce, no caso presente, a submissão do arguido a regime de prova, que, como tudo indica, vem sendo cumprido, não sendo a privação da liberdade do arguido obstativa a este cumprimento, tudo dependendo da configuração do regime.
Desde logo porque a primeira é executada pelo Tribunal de Execução de Penas e a segunda pode nunca chegar a ser apreciada por este Tribunal.
Em caso de não revogação da pena, a sua extinção cabe ao Tribunal da condenação.
Este é um argumento meramente formal, mas daqui se depreende já uma diversa significação para o significante – pena suspensa.
Uma pena com execução suspensa é sempre um acto em potência – uma prisão em potência – que pode, vir a ser, ou não, uma verdadeira pena de prisão, logo, nunca pode ter a mesma natureza de uma pena de prisão efectiva.
Mas deve aduzir-se outro tipo de argumentação.
O instituto em apreço – punição do concurso de crimes – tem como finalidade colocar o Tribunal na situação em que se encontraria caso lhe tivessem sido submetidos a apreciação e no mesmo momento, todos os crimes que integram o concurso.
Mas também tem um efeito prático que resulta das regras de punição do concurso e da nova moldura penal que é encontrada segundo estas regras, ou seja, beneficia o arguido – a pena do concurso é sempre inferior ao somatório das penas parcelares.
Por isso se cumulam penas juridicamente e não aritmeticamente.
Este desiderato – benefício do arguido – ainda que não resulte duma interpretação literal das regras em confronto, tem que estar presente em qualquer interpretação das normas relativas a este instituto; isto pela simples razão da sua inarredável verificação em concreto sempre que se procede ao cúmulo jurídico de várias penas parcelares.
Se uma interpretação meramente literal das normas redundar num prejuízo claro para o arguido, deve entender-se que a mesma necessita de um maior aprofundamento hermenêutico e recorrer-se a outros métodos de interpretação.
Isto porque, se é seguro que o fim das penas é, ao lado da protecção de bens jurídicos, a reintegração do arguido na sociedade e não uma mera retribuição ao mal feito à vítima ou à comunidade, então nunca a aplicação da norma interpretanda pode redundar num claro desfavorecimento da reintegração do arguido como seja o agravamento da punição.
A norma do C.P. a interpretar estipula o seguinte.
“Art.º 77.º …
3.- Se as penas aplicadas aos crimes em concurso forem umas de prisão e outras de multa, a diferente natureza destas mantém-se na pena única resultante da aplicação dos critérios estabelecidos nos números anteriores.”
Uma interpretação literal logo nos dirá que o Tribunal só está impedido de cumular penas de prisão com penas de multa, em face da sua diversa natureza.
Mas a interpretação literal é apenas o ponto de partida do processo hermenêutico, há uma aproximação à norma em face do texto mas a interpretação não fica ainda completa.
Será que o legislador quis dizer apenas isto ou ficou aquém daquilo que queria dizer ?
Vejamos o caso dos autos.
A aplicar-se de forma literal o referido preceito legal, a solução encontrada redundaria numa eventual aplicação de uma pena de prisão efectiva – quando, a apreciação acerca das razões de prevenção especial e geral estão a ser ponderadas pelo tribunal que concluiu pela suspensão da pena. [3]
Note-se que, e este argumento é essencial, neste momento, a pena de prisão cuja execução foi suspensa encontra-se a caminho ou da extinção ou da revogação.
Caso seja extinta, nenhum efeito poderia implicar no presente cúmulo e, caso seja revogada, será realizada nova audiência de cúmulo jurídico que, então, a incluirá.
De onde se conclui que o acto não atingiu ainda o estado de potência.
Vamos supor que o período de suspensão se acabara de extinguir.
Neste caso, mesmo a corrente maioritária da nossa jurisprudência, afasta a possibilidade de incluir no concurso uma pena suspensa declarada extinta, uma vez que redundaria na aplicação do regime do art.º 78.º, n.º 1 e 80.º, n.º 1 do C.P., o que equivalia a equiparar uma pena de prisão efectiva a uma pena de prisão suspensa.
Logo, o nosso mais alto Tribunal admite que não são equivalentes as duas penas.
E porque?
Porque são, na sua essência, diferentes. [4]
Mas se o são para este efeito, tê-lo-ão de ser na totalidade do seu regime, i.e., também na impossibilidade de inclusão no concurso com penas de prisão efectivas.
Um cúmulo que englobe penas de prisão suspensas, ainda que, de novo, suspensa a pena unitária, redundaria num evidente prejuízo para o arguido e a paz jurídica dele e da comunidade, por força do alargamento do período da suspensão ou de desconto desproporcionado e sem justificação relativo às penas suspensas extintas que deveriam ser consideradas como penas efectivamente cumpridas.
Veja-se este exemplo.
Um arguido está condenado a cumprir 3 anos de prisão efectiva.
Esta pena está em concurso com duas outras condenações, em pena de prisão suspensa de 2 anos e declaradas extintas.
No rigor dos princípios, operando o desconto da “prisão” já cumprida, o arguido deveria ser libertado de imediato – ou não se procedia ao desconto das penas de prisão suspensas e extintas ?
Esta solução seria, agora ao contrário, inadmissivelmente beneficiadora do arguido e prejudicial à comunidade na protecção dos bens jurídicos. Logo, existem argumentos a favor e contra os interesses do arguido, tudo devido ao pretender tratar-se de forma igual o que é desigual.
É claro que se pode desde já contra-argumentar que, no momento em que se cumulam as penas, se atende ao conjunto dos factos e à personalidade do agente e, se, o resultado da ponderação de todos os factores for o de converter em pena de prisão efectiva um somatório de prisões suspensas, isso deve imputar-se ao efeito das normas jurídicas em presença.
Ora, quanto à personalidade, já a mesma foi atendida em todos os processos em que foi julgado (embora de forma parcelar) e uma nova avaliação dos factos ainda que, agora, em conjunto, não pode nunca redundar em prejuízo do arguido, aliás, o ordenamento pretende que redunde em benefício como acima se referiu.
Estas duas vertentes só têm eficácia para a determinação da medida concreta da pena do concurso, mas, como bem se vê, a questão que estamos a debater situa-se em momento anterior.
Situa-se na questão de saber se deve ou não proceder-se sempre à operação de cúmulo de penas quando os crimes a que respeitam estão numa relação de concurso.
Para além de que, qualquer aplicação de uma norma jurídica não pode desprender-se dos efeitos que vai causar no cidadão visado, na comunidade onde ele se insere e mesmo no ordenamento jurídico em que é aplicada.
Sabemos que toda a norma jurídica é portadora de uma razão de ser – ratio legis –, visa atingir um objectivo teleologicamente ordenado e se insere num sistema jurídico concatenando-se com normas de hierarquia superior e inferior.[5]
Estes e outros elementos de interpretação desprendem-se do legislador no momento em que a lei entra em vigor na ordem jurídica.[6]
Passa a caber ao intérprete, e só a ele, desvendar qual a norma que se deve extrair de um dado comando jurídico, utilizando estes e outros elementos de interpretação.[7]
É o que procuramos fazer neste excurso.
O resultado, a nosso ver, claramente disforme que se obtém da aplicação tout court do que literalmente se extrai do referido comando jurídico só nos pode levar a concluir que a norma jurídica nele contida vai para além do que nele literalmente parece constar.
Assim sendo, pelas razões acima invocadas, entendemos dever interpretar-se extensivamente o referido n.º 3 do art.º, 77.º do C.P. como querendo dizer que também constituem penas de natureza diversa as penas de prisão efectivas em confronto com as penas de prisão suspensas, uma vez que estas são formas de punição não sedimentadas e instáveis porque em constante possibilidade de transformação em pena efectiva e, assim, reconduzível à primeira modalidade de confronto.
Adivinha-se o contra-argumento da proibição de interpretação extensiva em sede de direito penal. – art.º 29.º, nº 1 CRP
Mas, salvo melhor opinião, sem sustentação.
Isto porque a interpretação extensiva tem aqui a consequência de beneficiar em concreto o arguido, o que é permitido pelo princípio da legalidade consubstanciado no brocardo de Feuerbach: “nullum crimen sine lege praevia et certa”.
No caso presente, deve, no processo em que se suspendeu a execução da pena de prisão, ponderar-se se a mesma deve ou não ser revogada – como está a ocorrer – e, só então, caso o tenha sido, se procederá à ponderação do cúmulo jurídico das penas dos crimes em concurso, assim se encontrando então a pena única.

Apreciemos.
         Estabelece o artigo 77º, nº 1, do Código Penal, que “quando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles, é condenado numa única pena. Na medida da pena são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente”, sendo que no nº 1, do artigo seguinte, regulando-se o conhecimento superveniente do concurso, se consagra “se, depois de uma condenação transitada em julgado, se mostrar que o agente praticou, anteriormente àquela condenação, outro ou outros crimes, são aplicáveis as regras do artigo anterior, sendo a pena que já tiver sido cumprida descontada no cumprimento da pena única aplicada ao concurso de crimes”.

         Não existem, no caso sub judice, considerando a data da prática dos factos no Proc. nº 260/08.9PMLSB, do 5º Juízo Criminal de Lisboa, 3ª secção e as do trânsito em julgado das condenações nos outros processos considerados, dúvidas de que se verifica concurso de crimes, de acordo com os aludidos normativos, já que as várias infracções foram cometidas antes de ter transitado em julgado a condenação imposta por qualquer delas.

         A questão de se na situação em causa é de englobar no cúmulo jurídico a pena de prisão suspensa na sua execução é que se apresenta controversa e, como se salienta no acórdão recorrido, existem fundamentalmente duas correntes jurisprudenciais distintas, de cujos lídimos representantes e respectivos arestos ali também se dá nota.

         Como se salienta no Ac. do STJ de 23/11/2010, Proc. nº 93/10.2TCPRT.S1, “de acordo com posição dominante, a suspensão da execução da pena de prisão não constitui óbice à integração dessa pena em cúmulo jurídico de penas aplicadas a crimes ligados entre si pelo elo da contemporaneidade, não seccionada por condenação transitada pela prática de qualquer deles”, posição mantida no Acórdão do mesmo Tribunal de 11/05/2011, Proc. nº 1040/06.1PSLSB.S1, ambos relatados pelo Exmº Conselheiro Raul Borges.


         Nesta Relação e Secção foi proferido Acórdão aos 20/03/2007, no âmbito do Proc. nº 160/2007, disponível em www.dgsi.pt,onde se refere:

         “Nos termos do artigo 78.º, n.º 1, do Código Penal, se, depois de uma condenação transitada em julgado, mas antes de a respectiva pena estar cumprida, prescrita ou extinta, se mostrar que o agente praticou, anteriormente àquela condenação, outro ou outros crimes, são aplicáveis as regras do artigo 77.º

         O disposto naquele número é também aplicável no caso de todos os crimes terem sido objecto separadamente de condenações transitadas em julgado.

         Não se estabelece aí qualquer restrição à inclusão, na pena do concurso, de penas parcelares que tenham sido suspensas na sua execução. Desde que se mostre que depois de uma condenação transitada em julgado, mas antes de a respectiva pena estar cumprida, prescrita ou extinta, o agente praticou anteriormente àquela condenação, outro ou outros crimes, há lugar à inclusão no cúmulo de todas as penas aplicadas.

         Acresce que a aplicação de uma pena única de prisão, ainda que efectiva, em cúmulo jurídico, englobando uma anterior pena de prisão suspensa na sua execução, como se esta não tivesse sido suspensa, não envolve violação de caso julgado, já que este incide de modo definitivo sobre a medida da pena e não sobre a sua execução. A substituição da pena de prisão efectiva por uma pena não detentiva pressupõe alguma provisoriedade, dependendo de um futuro conhecimento de um concurso de crimes a punir com uma única pena.

         A razão de ser da inclusão da pena parcelar suspensa na sua execução num cúmulo posterior radica no princípio segundo o qual o arguido deve ser condenado numa pena única por todos os crimes em concurso.

         Se, por razões ligadas ao funcionamento dos tribunais, mormente por lentidão de alguns deles ou por desconhecimento de outras condenações já impostas, houver condenações que não tomem em consideração todos os crimes em concurso, deve proferir-se nova sentença em que se aplique uma única pena, considerando em conjunto os factos e a personalidade do agente (artigo 77.º, n.º 1).

         Como expende o Prof. F. Dias, em As Consequências Jurídicas do Crime, pg. 285, só relativamente à pena conjunta tem sentido pôr a questão da substituição.

         E não é chamar à colação o regime do artigo 56.º do Código Penal, que regula a revogação da suspensão. Com efeito, a inclusão da pena suspensa num cúmulo de penas não equivale tecnicamente à revogação da suspensão, tendo apenas o alcance de considerar sem efeito a suspensão pela necessidade legal de proceder ao cúmulo de penas.

         Em conclusão: não existe impedimento legal à inclusão da referida pena de prisão com suspensão da execução no cúmulo de penas, antes se tratando de uma exigência legal”.

         E, no mesmo sentido, também nesta Secção, o Acórdão de 05/04/2011, Proc. nº 663/07.6PKLSB-C.L1, consultável no referido sítio.

         Entendimento que subscrevemos integralmente, perfilando-nos ao lado da jurisprudência dominante, sem necessidade de fazer acrescer argumentos aos que se mostram já exaustivamente explanados.

         Face ao exposto, merece provimento o recurso interposto, cumprindo revogar a decisão recorrida e determinar que na 1ª instância se efectue novo cúmulo jurídico que englobe a pena em que o arguido foi condenado no Proc. nº 260/08.9PMLSB, do 5º Juízo Criminal de Lisboa.

III - DISPOSITIVO

         Nestes termos, acordam os Juízes da 5ª Secção desta Relação de Lisboa em conceder provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público e, consequentemente, revogar a decisão recorrida, determinando-se a realização de novo cúmulo jurídico que englobe a pena em que o arguido foi condenado no Proc. nº 260/08.9PMLSB, do 5º Juízo Criminal de Lisboa.

         Sem tributação.

Lisboa, 6 de Março de 2012

Relator: Artur Vargues;
Adjunto: Jorge Gonçalves;
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[1]  Conselheiro Henriques Gaspar, Ac. STJ de 02.06.2004, Proc.º 4P1391 in www.dgsi.pt e Acs. do STJ de 02-06-2004, CJSTJ, 2004, tomo 2, pág. 217; de 06-10-2004, Procº. n.º 2012/04; de 20-04-2005, Procº. n.º 4742/04; da Relação do Porto de 12-02-1986, CJ, 1986, tomo 1, pág. 204; e, na doutrina, Nuno Brandão, em comentário ao Ac. do STJ de 03-07-2003, na RPCC, 2005, n.º 1, págs.117-153.
[2]  Conselheiro Raul Borges, Ac. STJ de 25.09.2008, P.º 8P2891, in www.dgsi.pt e Ac. STJ: de 04-03-2004, Procº. n.º 3293/03 - 5.ª; de 22-04-2004, CJSTJ, 2004, tomo 2, pág. 172; de 02-12-2004, Procº. n.º 4106/04; de 21-04-2005, Procº. n.º 1303/05; de 27-04-2005, Procº. n.º 897/05; de 05-05-2005, Procº. n.º 661/05; de 09-11-2006, Procº. n.º 3512/06 - 5.ª, CJSTJ, 2006, tomo 3, pág. 226; de 29-11-2006, Procº. n.º 3106/06 - 3.ª; de 03-10-2007, Procº. n.º 2576/07 - 3.ª; de 27-03-2008, Procº. n.º 411/08 - 5.ª.
Integral:
[3]  Isto sem invocar a máxima da “luta contra a prisão” como afirma Figueiredo Dias, in D.P.P. II - Consequências Jurídicas do Crime, 1993, fls. 290.
[4]  Ac. STJ de 11.05.2011, Conselheiro. Raul Borges, P.º 1040/06.1PSLSB.S1, in www.itij.pt :
   …
X -Não é líquida a questão da formação de uma pena única em caso de conhecimento superveniente do concurso de infracções, quando, entre outros, estão em concurso, crimes pelos quais tenham sido aplicadas penas de prisão suspensas na sua execução, colocando-se o problema de saber se a integração pressupõe ou não a anterior revogação de tais penas aplicadas por decisões condenatórias transitadas em julgado.

   …
XIV - Após a reforma de Setembro de 2007, face à nova redacção do n.º 1 do art. 78.º do CP, importa indagar, aquando da realização de cúmulo jurídico por conhecimento superveniente, do estado actual da situação do condenado, maxime, se a pena de substituição ainda subsiste, qua tale, ou se foi revogada, ou se foi prorrogado o prazo de suspensão, ou se foi já declarada extinta, ao abrigo do disposto no art. 57.º, n.º 1, do CP.

XV - Entendendo que a pena suspensa inicialmente aplicada for declarada extinta pelo cumprimento (artigo 57.º, n.º 1), não será tida em conta para efeitos de reincidência, decorre que a pena de substituição extinta por tal modo, deve ser colocada no mesmo plano de desconsideração, quer se esteja face a cúmulo jurídico por conhecimento superveniente, ou fora desse quadro, para efeitos de não consideração da agravativa de reincidência.
[5]   Já se ultrapassou a velha querela entre interpretação subjectiva e objectiva, mas não deixam estas de figurar ainda entre possíveis elementos de interpretação ainda que sem a preponderância que já se lhes conheceu.
[6]  Oliveira Ascensão, O Direito - Introdução e Teoria Geral, 3.ª ed. FCG, 299 e segs.
[7]  Karl Larenz, Metodologia da Ciência do Direito, FCG, 2.ª ed. 221 e segs.