Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
147/04.4SXLSB.L1-5
Relator: CARLOS ESPÍRITO SANTO
Descritores: CRIME DE USURPAÇÃO
DIREITOS DE AUTOR
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 03/22/2011
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NÃO PROVIDO
Sumário: Iº A difusão pública de emissões de rádio ou televisão não carece de licença específica, pois são as próprias entidades difusoras que pagam os respectivos direitos de autor;
IIº O responsável por um estabelecimento público que aí procede à difusão de obra radiodifundida, ampliando os sinais de som e imagem, nada retirando, alterando ou acrescentando à obra, limitando-se a melhorar aqueles sinais, qualitativa e quantitativamente, não comete o crime de usurpação, p.p., pelos arts.195 e 197, do Código dos Direitos de Autor e Direitos Conexos;
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, os juízes da 5ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:
*
No âmbito do Processo Comum Singular supra id, que correu termos pelo 3º Juízo Criminal de Lisboa – 1ª Secção, foi julgado D…, com os demais sinais dos autos, o qual foi absolvido da prática do crime de usurpação p. e p. pelos arts. 195º e 197º do Cód. Do Direito de Autor e Direitos Conexos que lhe vinha imputado, bem como do pedido de indemnização civil deduzido pela Sociedade Portuguesa de Autores.

Inconformada com a predita sentença recorreu a assistente SPA, pedindo a revogação daquela e a sua substituição por outra que condene o arguido pelo aludido crime de usurpação.
Apresentou para tal as seguintes conclusões:

a) Em Julho de 2004, o arguido era responsável pela exploração do estabelecimento comercial “Café …”;
b) No dia 09 de Julho de 2004, o arguido procedia, no seu estabelecimento comercial, à difusão de obras intelectuais protegidas, as quais estavam a ser radiodifundidas pelo canal de televisão “Solmusica”;
c) Para efeitos desta difusão, o arguido utilizava um ecrã, um, projector, duas colunas, um subwoofer e uma mesa de misturas;
d) O arguido não dispunha de autorização dos autores das obras ou da entidade que os representa, para o exercício desta actividade.
e) Entendeu o Meritíssimo Juiz a quo absolver o arguido, sustentando que este se limitava a proceder a uma mera recepção das obras radiodifundidas;
O Interessa, por isso, precisar o conceito de mera recepção, dado que este não abarca todas as situações de difusão em público de obras radiodifundidas;
g) Nos termos do Parecer do Conselho Consultivo da Procuradoria Geral da República n.° 4/92 de 28 de Maio de 1992, a mera recepção de emissões de radiodifusão em lugares públicos não depende nem da autorização dos autores das obras literárias ou artísticas apresentadas prevista no artigo 149, n 2, nem lhes atribui o direito a remuneração prevista no artigo 155, ambos do CDADC;
h) Do princípio de liberdade de recepção das emissões de radiodifusão que tenham por objecto obras literárias ou artísticas apenas se exclui a recepção-transmissão envolvente de nova utilização ou aproveitamento organizados designadamente através de procedimentos técnicos diversos dos que integram o próprio aparelho receptor, como, por exemplo, altifalantes ou instrumentos análogos transmissores de sinais, sons ou imagens, incluindo as situações a que se reportam os artigos 3 e 4 do Decreto-Lei n 42660, de 20 de Novembro de 1959. (conclusão 14 do citado Parecer);
i) As duas colunas, o subwoofer e a mesa de misturas não são elementos técnicos que integrem o aparelho de televisão receptor dos programas radiodifundidos;
j) Ao utilizar as duas colunas (exteriores ao aparelho de televisão), o subwoofer e a mesa de misturas, o arguido serviu-se de procedimentos técnicos diversos dos que integram o próprio aparelho receptor;
1) O arguido procedeu, deste modo, a uma nova utilização da obra (a recepção-transmissão);
m) Por ter feito uma nova utilização da obra em local público, o arguido necessitava de obter autorização dos autores ou da sociedade que, em Portugal, os representa;
n) Este entendimento é suportado por diversos arestos, de entre os quais, o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, proferido em 15-05-2007, no âmbito do processo 72/2007-5; o Acórdão da Relação de Guimarães proferido em 02-07-2007, no âmbito do processo 974/07-2;
o) O arguido cometeu, por isso, um crime de usurpação, previsto e punido nos termos do disposto no artigo 195° do CDADC;
p) A decisão proferida violou o disposto nos artigos 68° n.° 2 al. e), 149°, 155° e 197° todos do Código do Direito de Autor e dos Direitos Conexos;
q) A decisão proferida pelo Meritíssimo Juiz a quo deve, por isso, ser alterada, condenando-se o arguido pela prática de um crime de usurpação.

Respondeu o MP pugnando pela improcedência do recurso tendo para tal formulado as seguintes conclusões:
1. A decisão recorrida é inatacável, porque fundamentada e foi proferida em obediência à lei — art.° 70.° e 71º do Cód. Proc. Penal.
2. Resulta dos factos provados que no estabelecimento do arguido estava a ser transmitido ao público canal de televisão da TV Cabo através do canal “SOLMISICA” através de um ecrã gigante e duas colunas de som e um subwoofer.
3. Será legitimo indagar se a mera recepção de um programa televisivo em que sejam apresentadas obras literárias ou artísticas, em lugar que deva ser considerado como público — como é o caso sub judice - à luz do disposto no n.° 3 do art.° 149º do CDADC, está ou não sujeita a prévia autorização dos autores e, em qualquer caso, se isso lhes confere ou não o direito a receber alguma remuneração.
4. Dispõe o art.° 155.° do CDADC: “É devida igualmente remuneração ao autor pela comunicação pública da obra radiodifundido, por altifalante ou por qualquer outro instrumento análogo transmissor de sinais, de sons e imagens”. 5. Tal preceito está em intima conexão com o disposto no art.° 68.°, n.° 1 al. e) e 149,°, n.° 2 do CDADC, entendendo-se que o conceito de altifalante ou de instrumento análogo transmissor de sinais, sons ou imagens não abrange aparelhos receptores de radiodifusão quando na sua estrutura mecânica se insere mecanismo idêntico.
6. Verifica-se assim que o art° 155.° do CDADC referido só prevê o direito dos autores à remuneração pela comunicação pública das suas obras radiodifundidas nas situações de transmissão, isto é, de nova utilização ou aproveitamento.
7. O art.° 155º reporta-se à actividade de transmissão pelos meios técnicos a que alude.
8. Não contempla, assim, a exigência de remuneração pela mera recuperação das emissões de radiodifusão que insiram obras literárias ou artísticas nos normais receptores, ainda que compostos por instrumentos difusores de som e/ou imagem.
9. Assim se conclui que a mera receptação nos lugares públicos - restaurantes, cafés, hotéis, tabernas, e estabelecimentos congéneres — pelos seus donos de programas de radiodifusão, por rádio ou televisão, em que sejam representadas obras literárias ou artísticas não depende de autorização dos autores nem de qualquer contrapartida patrimonial.
10. Esta prévia autorização do autor ou o seu direito a receber a respectiva contrapartida patrimonial só existe quando, nos termos do disposto no art.° 149.°, n.° 2 do CDADC, haja novo utilização da obra radiodifundida através de altifalante ou instrumento análogo transmissor de sinais, sons, ou imagens.
11. Com efeito, o princípio é o da livre recepção de emissões de radiodifusão e a excepção encontra-se prevista no aludido art.° 155º. Neste sentido, o Voto de Vencido do Ac. da Relação de Guimarães de 2.7.2007, proc. n.° 974107-2 in www.dgsi.pt: - III — Quem, no caso, difundia a obra em causa era a TV Cabo, como entidade emissora, e o arguido apenas ampliava um dos sinais, o de som, por tal forma que nada retirava ou acrescentava à obra em si, melhorando apenas, qualitativa e quantitativamente, o aspecto sonoro, o que também não cabe na previsão do art° 155° do citado Código, que prevê que é devida igualmente remuneração ao autor pela comunicação pública da obra radiodifundida, por altifalante ou por qualquer outro instrumento análogo transmissor de sinais, de sons ou de imagens, ou seja, prevê uma situação de transmissão autónoma.
IV — No caso, a conduta do arguido não era uma actividade da recepção- transmissão, mas sim, se quisermos ser rigorosos, uma actividade de recepção-ampliação e só de um dos sinais, mantendo-se a obra recebida e ampliada a mesma e sem qualquer violação dos direitos de autor. V — O CDADC só prevê o direito dos autores à remuneração pela comunicação pública das suas obras radiodifundidas nas situações de transmissão, isto é, de nova utilização ou aproveitamento nos termos atrás enunciados e, como se disse, a conduta do arguido não era uma actividade da recepção-transmissão, mas sim, se quisermos ser rigorosos, uma actividade de recepção-ampliação de um só dos sinais, como se disse, mantendo-se a obra recebida e ampliada a mesma e sem qualquer violação dos direitos de autor.
VI — A levar-se o entendimento tão longe como no acórdão em apreço, todos os locais onde estão instaladas colunas sonoras para difusão de música - locais de trabalho, estabelecimentos de restauração, edifícios públicos, etc. -, teriam que ser pagos direitos sem que se faça qualquer transmissão, mas sim mera recepção.
Vil — Aliás, comparativamente com aparelhos standard, um aparelho receptor da maior qualidade pode dispor de mais e melhores altifalantes e debitar muito mais decibéis e nem por isso transgride a lei, como não se transgride se por qualquer meio técnico for possível ampliar também o sinal visual, pois as aparelhagens amplificadoras (ou difusoras) não são susceptíveis de ser captadas por qualquer outra aparelhagem.”
13. Dos elementos constantes nos autos verifica-se que o programa televisivo estava a ser difundido através do aparelho que, pese embora não integrar a estrutura mecânica da televisão, fazia a ampliação da imagem (para um ecrã gigante) e ampliação de som — quer na sua qualidade quer em quantidade, limitando-se o mesmo à receptação da emissão de radiodifusão no seu estabelecimento de café.
14. Na realidade, o arguido com a sua conduta nada acrescentou ou alterou à retransmissão televisiva do canal da TV Cabo “SOLMUSICA”, não se podendo falar em nova utilização da obra, única e exclusivamente porque o aparelho utilizado permitia ampliar o som e a imagem.
15. Admitir tal situação é violar as regras do Principio da Livre Recepção de Emissões de Radiodifusão.
16. Não resultam, assim, verificados os elementos constitutivos do aludido tipo de crime.
17. Não foi violado qualquer imperativo legal.
18. A decisão recorrida não merece reparo e deve ser mantida na íntegra.

Respondeu Café …., Ldª., no sentido da manutenção da sentença recorrida.

É o seguinte o teor da sentença recorrida, na parte que ora importa:
O Ministério Público requereu o julgamento perante tribunal comum singular de:
D…, melhor identificado a fls. 35 dos autos.
pela prática de um crime de usurpação, p. e p. no artigo 195º e 197º do Código dos Direitos de Autor e Direitos Conexos, imputando-lhe os factos constantes da acusação.
*
A Sociedade Portuguesa de Autores deduziu pedido de indemnização civil pedindo a condenação do arguido/demandado a pagar-lhe a quantia de 115,80 acrescida de juros de mora vincendos desde a data da notificação até efectivo e integral pagamento.
Fundamentação de Facto
Da discussão da causa resultaram provados os seguintes factos :
1. O arguido é responsável pelo funcionamento do “Café …” sito na Rua da …..
2. No dia 9 de Julho de 2004, pelas 22.30h elementos da PSP verificaram que no estabelecimento estava um ecrã que emita para o público que estivesse na esplanada imagem e som de telediscos das obras musicais “The show” e “The Letter” interpretados, respectivamente, por Girls Aloud e PJ Harvey emitidas pelo canal da TV cabo “solmusica”.
3. Para o efeito era usado, além do ecrã, um projector, duas colunas de som , um subwoofer e uma mesa de mistura.
4. Na altura da fiscalização o estabelecimento encontrava-se em plena laboração com alguns clientes na esplanada.
5 O arguido não possuía licença ou autorização dos seus autores ou legítimos representantes ou dos produtores para a respectiva comunicação pública.
6. O arguido agiu de forma livre, voluntária e consciente.
Dos factos constantes da acusação não resultou provado que:
A) O arguido com a sua conduta afectou direitos de autor legalmente protegidos tendo conhecimento de que tal conduta era proibida e punida por lei. ---
*
Não resultaram provados nem não provados quaisquer outros factos relevantes para a boa decisão da causa.
*
O DIREITO - ENQUADRAMENTO JURÍDICO PENAL
O arguido vem acusado da prática de um crime de usurpação, p. e p. no artigo 195º e 197º e 199º, todos do Código dos Direitos de Autor e Direitos Conexos.
Estabelece o artigo 195º, do referido código que:
“Comete o crime de usurpação quem, sem autorização do autor ou do artista, do produtor de fonograma e videograma ou do organismo da radiodifusão, utilizar uma obra ou prestação por qualquer das formas previstas neste Código.
2. Comete também o crime de usurpação:
A) Quem divulgar ou publicar abusivamente uma obra ainda não divulgada nem publicada pelo seu autor ou não destinada a divulgação ou publicação, mesmo que a apresente como sendo do respectivo autor, quer se proponha ou não a obter qualquer vantagem económica;
B) Quem coligir ou compilar obras publicadas ou inéditas sem a autorização do autor;
C) Quem estando autorizado a utilizar uma obra, prestação de artista, fonograma, videograma ou emissão radiodifundida, exceder os limites a autorização concedida, salvo nos casos expressamente previstos neste código.
3. Será punido com as penas previstas no artigo 197º, o autor que, tendo transmitido, total ou parcialmente, os respectivos direitos ou tendo autorizado a utilização da sua obra por qualquer dos modos previstos neste código, a utilizar directa ou indirectamente com ofensa dos direitos atribuídos a outrem.”
Nos termos do disposto no nº 1, do artigo 197º, “ os crimes previstos nos artigos anteriores são punidos com pena de prisão até três anos e multa de 150 a 250 dias, de acordo com a gravidade da infracção, agravadas uma e outra para o dobro em caso de reincidência, se o facto constitutivo da infracção não tipificar crime punível com pena mais grave.”
Como refere Luís Francisco Rebelo no Código do Direito de Autor e dos Direitos Conexos, pág. 249, em anotação ao artigo 195.º, “Neste artigo e bem assim nos artigos 196.º e 199.º prevêem-se os crimes contra o direito patrimonial do autor. Fundamentalmente, estes crimes podem reconduzir-se a dois tipos: a usurpação (artigo 195.º) e a contrafacção (artigo 196.º). O artigo 199.º contempla uma situação delituosa derivada de qualquer destes crimes: o aproveitamento ilícito de uma obra usurpada ou contrafeita”.
Aliás, visando os artigos 195.º e 196.º a protecção do direito patrimonial dos autores, a simples usurpação ou contrafacção, sem aproveitamento patrimonial posterior, ficariam praticamente esvaziadas de conteúdo (neste sentido, Ac. RL de 24/11/92, CJ, ano XVII, tomo V, págs. 167 a 170).
O artigo 67º estabelece que:
“1. O autor tem o direito exclusivo de fruir e utilizar a obra, no todo ou em parte, no que se compreendem nomeadamente, as faculdades de a divulgar, publicar e explorar economicamente por qualquer forma, directa ou indirectamente, nos limites da lei.
2 – A garantia das vantagens patrimoniais resultantes dessa exploração constitui, do ponto de vista económico, o objectivo fundamental da protecção legal.”
Decorre do disposto no nº2 al. e), do artigo 68º, que assiste ao autor, entre outros, o direito exclusivo de fazer ou autorizar, por si ou pelos seus representantes “a difusão pela fotografia, telefotografia, televisão, radiofonia ou por qualquer outro processo de reprodução de sinais, sons ou imagens e a comunicação pública por altifalantes ou instrumentos análogos, por fios ou sem fios, nomeadamente por ondas hertzianas, fibras ópticas, cabo ou satélite, quando essa comunicação for feita por outro organismo que não o de origem.”
Ora no caso concreto, o estabelecimento apenas transmitia a emissão de um canal de televisão por cabo, não se verificando nenhuma das situações acima referidas nem nenhuma das previstas no Código de Direitos de Autor e Direitos Conexos. A difusão pública de emissões de rádio ou televisão não carece de licença específica pois são as próprias entidades difusoras que pagam os respectivos direitos de autor que, no caso concreto, é a TV cabo. No estabelecimento gerido pelo arguido a transmissão das imagens e som em causa não estava a ser feita por nenhum “organismo que não o de origem” uma vez que a imagem e som eram as que eram directamente transmitidas por tal canal televisivo.
Assim, analisando os factos provados e confrontando-os com o supra exposto, verifica-se que os mesmos são manifestamente insuficientes para preencher os elementos do tipo.
Decisão
Tendo em consideração o exposto o Tribunal julga a acusação procedente e, em consequência absolve o arguido D…, da prática de um crime de usurpação, p. e p. no artigo 195º e 197º do Código dos Direitos de Autor e Direitos Conexos,
*
O Tribunal julga totalmente improcedente o pedido de indemnização civil e, em consequência, absolve o arguido/demandado D…, da totalidade do pedido.

A Digna PGA junto deste Tribunal emitiu douto parecer no sentido da procedência do recurso.
Colhidos os vistos legais, realizou-se a conferência.
O objecto do recurso, delimitado pelas conclusões, é saber se os factos dados como provados na sentença recorrida integram ou não objectivamente a prática pelo arguido de um crime de usurpação p. e p. pelos arts. 195º e 197º, CDADC; e se o arguido agiu sem consciência da ilicitude.
*
A assistente SPA interpôs o presente recurso da sentença que absolveu o arguido da prática de um crime de usurpação p. e p. pelos arts. 185º e 197º, do CDADC, por entender que a conduta daquele integra a previsão do aludido crime, dado que o mesmo procedeu a uma nova transmissão da obra que estava a ser radiodifundida pela TV Cabo, servindo-se de procedimentos técnicos diversos dos que integravam o aparelho receptor, de acordo com os arts. 149º, 2 e 155º, do CDADC, pelo que necessitava de obter autorização dos autores, para além de que terá agido com consciência da ilicitude dos factos.
Atento o CDADC, no âmbito da radiodifusão de obra de autor rege o princípio da liberdade de recepção de emissões de radiodifusão, nos termos do qual a difusão pública de emissões de rádio e de televisão não carece de licença específica, sendo nos casos como o destes autos as próprias entidades difusoras que pagam os respectivos direitos de autor.
Em face da factualidade provada, o Mmº juiz a quo entendeu que a transmissão das imagens e som em causa não estava a ser feita por nenhum “organismo que não o de origem” uma vez que aqueles eram os que eram directamente transmitidos pelo canal televisivo, não se mostrando, assim, preenchido o tipo legal em causa.
Estabelece o artigo 195º, 1, do CDADC que: “Comete o crime de usurpação quem, sem autorização do autor ou do artista, do produtor de fonograma e videograma ou do organismo da radiodifusão, utilizar uma obra ou prestação por qualquer das formas previstas neste Código”. Tal crime é punido com pena de prisão de até 3 anos e multa de 150 a 250 dias, de acordo com a gravidade da infracção, agravadas uma e outra para o dobro em caso de reincidência – art. 197º, 1, CDADC.
O crime em apreço visa a protecção do direito patrimonial dos autores resultante da exploração das obras por si criadas, nos termos consagrados no CDADC maxime nos seus arts. 67º e 68º.
Nos termos do art. 149º, 1, CDADC, “depende de autorização do autor a radiodifusão sonora ou visual da obra, tanto directa como por retransmissão, por qualquer modo obtida” e acrescenta o nº 2, que “depende igualmente de autorização a comunicação da obra em qualquer lugar público, por qualquer meio que sirva para difundir sinais, sons ou imagens”. “Entende-se por local público todo aquele a que seja oferecido o acesso, implícita ou explicitamente, mediante remuneração ou sem ela, ainda que com reserva declarada do direito de admissão” – nº 3 do mesmo art..
Por seu lado, o art. 155º, CDADC estipula que “é devida igualmente remuneração do autor pela comunicação pública de obra radiodifundida, por altifalante ou por qualquer outro instrumento análogo transmissor de sinais, de som ou de imagens”.
A questão que aqui se coloca é antes de mais a de saber se a situação dos autos – difusão de obra radiodifundida em local público – configura uma mera recepção daquela ou antes uma nova utilização (recepção – transmissão), uma transmissão autónoma, dado que apenas esta última exige a obtenção de autorização dos respectivos autores e o direito a serem remunerados.
O thema em apreço e as questões suscitadas a que se fez referência não têm vindo a obter uma solução consensual por parte da jurisprudência e da doutrina. Assim, no sentido propugnado pela sentença recorrida e pelo MP, podemos salientar os Acs. RG, de 15-11-04, Proc. nº 1204/04-2; e de 2-7-07, Proc. nº 974/07-2, voto de vencido; e da RP, de 5-11-97, Proc. nº 9710719, in www.dgsi.pt; enquanto que o Ac. RL, de 15-5-07, Proc. nº 72/2007, desta Secção, in www.dgsi.pt, e Oliveira Ascensão – Direito de Autor e Direitos Conexos, 1992, pg. 310 a 312 – se pronunciam no sentido da verificação de uma nova transmissão.
De acordo com o Parecer do Conselho Consultivo da PGR, nº 4/92, de 28-5-92, o termo comunicação inserto nos arts. 149º, 2 e 155º, do CDADC significa transmissão ou recepção – transmissão de sinais, sons ou imagens, pelo que a mera recepção de emissões de radiodifusão nos lugares públicos não depende nem da autorização dos autores da obra apresentada nem lhes atribui o direito a remuneração.
Por outro lado, nos termos do mesmo Parecer (conclusão 14ª), do princípio de liberdade de recepção das emissões de radiodifusão que tenham por objecto obras literárias ou artísticas apenas se exclui a recepção – transmissão envolvente de nova utilização ou aproveitamento organizados, designadamente através de procedimentos técnicos diversos dos que integram o próprio aparelho receptor, como, por exemplo, altifalantes ou instrumentos análogos transmissores de sinais, sons ou imagens, incluindo as situações a que se reportam os arts. 3 e 4 do DL nº 42 660, de 20-11-59.
É que, como sublinha ainda o mesmo Parecer, “tendo autorizado a radiodifusão das suas obras e, por isso, recebido dos organismos emissores e correspondente remuneração, exerceram os autores os seus direitos pessoais e patrimoniais em termos de cobertura da actividade de mera recepção pública das emissões independentemente do lugar – público ou privado – em que ocorra”.
No caso sub judice o arguido emitia para o público, no estabelecimento comercial que geria, uma emissão de televisão transmitida através do canal da TV Cabo “Solmúsica” utilizando para tal, além do ecrã, um projector, duas colunas de som, um subwoofer e uma mesa de mistura (que, consabidamente, para o que aqui importa, incorpora um amplificador de som).
Ora, em face do que vem descrito, constata-se que o arguido se limitou a ampliar os sinais de som e imagem, nada retirando, alterando ou acrescentando à obra radiodifundida, atendo-se somente a melhorar aqueles sinais, qualitativa e quantitativamente.
De resto, como se sublinha no mencionado da RG, de 2-2-07, “comparativamente com aparelhos standard, um aparelho receptor de maior qualidade pode dispor de mais e melhores altifalantes e debitar muitos mais decibéis e nem por isso transgride a lei, como não se transgride se por qualquer meio técnico for possível ampliar também o seu sinal visual, pois as aparelhagens amplificadoras (ou difusoras) não são susceptíveis de ser captadas por qualquer outra aparelhagem”.
Não estamos, pois, perante uma nova utilização da obra radiodifundida (recepção – transmissão), mas tão somente ante uma actividade de “recepção – ampliação”, para utilizar a terminologia do cit. Ac. RG, mantendo-se a obra ampliada a mesma. Assim, embora os mencionados instrumentos não façam parte do aparelho de TV receptor, no sentido de não integrarem a sua estrutura mecânica, o certo é que aqueles não constituem componentes de natureza diversa dos que vêm já inseridos em qualquer aparelho de retransmissão de emissões de TV (todos eles contém já amplificador e colunas de som, bem como ecrã) e limitam-se a potenciar, melhorar as performances sonoras e visuais daquele.
Conclui-se, assim, que os mecanismos externos ao aparelho de recepção da emissão de TV cabo utilizados pelo arguido, para além de não serem de natureza diversa dos contidos já naquele, nada acrescentaram ou alteraram relativamente ao programa recebido, limitando-se a difundir as obras em causa com o preciso conteúdo e actualidade com que estavam a ser recebidas através da TV Cabo, potenciando apenas a qualidade do som e da imagem, ampliando-os, tendo em conta o local. Acresce que, para além de ter mantido intacta as obras radiodifundidas, o arguido não procedeu a um aproveitamento organizado do recepcionado, no sentido supra mencionado, quer do ponto de vista técnico quer comercial.
Assim, quanto a nós, a descrita actuação do arguido configura uma mera actividade de recepção dos sinais sonoros e visuais que estavam a ser radiodifundidos pela TV Cabo, canal Solmúsica, a qual não se enquadra na previsão dos arts. 149º, 2 e 155º, CDADC, pelo que não se verifica qualquer violação dos direitos de autor (cuja satisfação in casu compete à estação televisiva emissora) pelo que, consequentemente, não se mostram preenchidos os elementos típicos do crime de usurpação p. e p. pelos arts. 195º e 197º, CDADC.
Assim sendo, mostra-se prejudicado o conhecimento do restante objecto do recurso.
Consequentemente, há que julgar improcedente o recurso, mantendo-se o decidido pelo tribunal a quo.
*

Pelo exposto:
Acordam, em conferência, os juízes da 5ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa, em negar provimento ao recurso, mantendo a sentença recorrida nos seus precisos termos.

Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 4 UC,s.

Lisboa, 22 de Março de 2011

Carlos Espírito Santo
Neto de Moura