Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1535/09.5YRLSB-7
Relator: ROSA RIBEIRO COELHO
Descritores: CLÁUSULA CONTRATUAL GERAL
INEPTIDÃO DA PETIÇÃO INICIAL
INCOMPATIBILIDADE DE PEDIDOS
INTERPELAÇÃO ADMONITÓRIA
PAGAMENTO EM PRESTAÇÕES
VENCIMENTO
MORA
JUROS
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 10/20/2009
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: ALTERAR A DECISÃO
Sumário: I – As cláusulas contratuais gerais inseridas em formulários depois da assinatura de algum dos contratantes devem ser consideradas excluídas, ainda que antes das assinaturas seja feita alusão àquelas, porque o local onde estão inseridas não garante que sobre elas tenha incidido a atenção do contraente a quem são dirigidas.
II – Não há incompatibilidade substancial de pedidos cumulados, geradora de ineptidão da petição, quando o autor pede que se reconheça a resolução de um contrato de mútuo e que se condene o mutuário a pagar juros nele convencionados.
III – Embora se trate de pretensões inconciliáveis, esta impossibilidade de conciliação verifica-se apenas no plano da lei, e não no plano da vontade do autor, nada impedindo que se apreenda aquilo que este pretende obter.
IV – Não vale como interpelação admonitória aquela em que o credor diz que, não havendo cumprimento no prazo concedido, poderá vir a optar pela resolução do contrato, pois não anuncia, contrariamente ao que deveria suceder, que o não cumprimento no prazo fixado dará lugar a uma situação de não cumprimento definitivo.
V – O art. 781º do C. Civil, ao determinar o vencimento imediato das restantes prestações, deve ser interpretado no sentido de que o inadimplemento do devedor gera o direito do credor de exigir dele a satisfação daquelas prestações, e não no sentido de que o não pagamento de uma das prestações no prazo acordado, determina, por si só, a entrada em mora do devedor quanto ao cumprimento das demais.
VI – Quanto às prestações ainda não vencidas à data em que ocorre a falta de pagamento de uma prestação, a entrada em mora, e o correlativo vencimento de juros moratórios, depende de interpelação do devedor para o respectivo pagamento, ou, na sua falta, da verificação da data em que cada uma delas deveria, de acordo com o plano contratual estabelecido, ser paga.
VII – O vencimento operado nos termos do citado art. 781º abrange apenas o capital que integra as prestações, ficando de fora os juros remuneratórios igualmente nelas incluídos.
(Sumário da Relatora)
Decisão Texto Integral: ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA
7ª SECÇÃO CÍVEL

         I – A. e B, S. A., intentaram contra M e C a presente acção declarativa com processo ordinário, onde, invocando o não cumprimento, pela 1ª ré, de um contrato de financiamento que com ela celebrou a 1ª autora com vista à aquisição de um veículo automóvel, cuja propriedade ficou reservada a favor da 2ª autora e no âmbito do qual a 2ª ré se constituiu fiadora, sem que haja também satisfeito, apesar de interpelada para o efeito, as prestações devidas pela 1ª ré, pediram que:

a) se declare válida a resolução do referido contrato de financiamento para aquisição a crédito;

b) se condene a 1ª ré a reconhecer a propriedade da autora B, S. A., sobre o veículo e, bem assim, a entregá-lo às autoras;

c) se condenem as rés a pagar à autora A a quantia de € 15.863,75, acrescida de juros de mora à taxa legal  de 12%, acrescida de dois pontos percentuais, contados desde 20.07.2001 e até efectivo pagamento, ascendendo os mesmos, na data da propositura da acção, a €.496,61.

A 2ª ré contestou, pedindo a sua absolvição do pedido e houve réplica.

Realizado o julgamento foi proferida decisão sobre os factos oportunamente levados à base instrutória.

Depois foi proferido o despacho de fls. 303 ordenando a notificação das partes para se pronunciarem sobre as questões aí enunciadas, atinentes aos pedidos formulados pelas autoras e à sua possível incompatibilidade, na sequência do que estas se pronunciaram nos termos constantes de fls. 312-315.

Foi proferida sentença que, julgando a acção parcialmente procedente, declarou que o veículo automóvel de marca, com a matrícula …OS pertence à 2ª autora, absolvendo as rés dos demais pedidos.

Contra ela apelaram as autoras, tendo apresentado alegações onde formulam as conclusões que passamos a transcrever:
A. O Tribunal a quo considerou, em suma, que (i) não são aplicáveis as condições gerais do contrato de financiamento por se encontrarem desacompanhadas de assinatura, (ii) existe incompatibilidades dos pedidos declaração da validade da resolução do contrato, de condenação no pagamento das prestações não pagas e na entrega do veículo, bem como (iv) não se verificou a conversão da mora em incumprimento definitivo.
B. Relativamente à exclusão das cláusulas contratuais gerais, a decisão de que ora se recorre considera que as mesmas não podem ser consideradas na medida em que constam após a assinatura dos contraentes nem sequer há "uma remissão clara para as cláusulas constantes do verso, do género «dou o meu acordo às cláusulas constantes do verso do contrato» ‘‘.

C. Ora, tal não é verdade dado que imediatamente antes da assinatura dos contraentes, consta a Clausula 14 pela qual as apeladas "declaram conhecer e aceitar integralmente as condições expressas neste contrato, incluindo as presentes Condições Particulares e as Condições Gerais inscritas no verso.”

D. Isto, sem prejuízo da menção feita no início do contrato de financiamento imediatamente após a identificação dos Contraentes bem como na cláusula 11.

E. Por outro lado, não se verifica qualquer incompatibilidade de pedidos dado que na realidade o enquadramento legal dos pedidos formulados pelas Apelantes é estritamente em cumprimento do clausulado do contrato e do Código Civil.

F. Sucede, então, que o contrato de financiamento objecto dos presentes autos determina, antes de mais, que o incumprimento do pontual pagamento de uma prestação importa, nos termos do artigo 781.° do Código Civil, o vencimento das prestações seguintes - cfr. primeira parte da Cláusula C do referido contrato.

G. Na referida cláusula não está em causa a possibilidade da extinção do contrato pelo vencimento antecipado mas sim o vencimento da obrigação - liquidável em prestações - nos termos previstos no Código Civil.

H. Tal previsão determina que a primeira premissa das consequências legais do incumprimento do contrato seja o vencimento de todas as prestações acordadas e não pagas, isto é, o vencimento da obrigação.

I. Consequentemente, a segunda premissa é a opção que a Apelante A, para efeitos de extinção do contrato, tem de fazer:

ou pelo vencimento antecipado - Cláusula D;

ou pela rescisão - Cláusula E e parte final da Cláusula C.

J. In casu, a Apelante A optou pela rescisão do contrato, prevista na já referida Cláusula E e parte final da Cláusula C.

L. No caso de se optar pela rescisão do contrato, foi acordada entre as partes uma cláusula penal.

L. Tal cláusula penal é então composta pela diferença entre:

- o valor das prestações vencidas e não pagas - que se venceram nos termos da cláusula C, ou seja, do 781.° do Código Civil;

- e o valor obtido com a venda do veículo financiado.

 M. De facto, a Apelante A optou pela rescisão e, como tal, veio judicialmente pedir o cumprimento da cláusula penal acordada, ou seja, a condenação das Apeladas ao pagamento do valor correspondente à diferença entre o montante das prestações vencidas e não pagas acrescido dos correspondentes juros de mora nos termos da alínea D), e o valor obtido com a venda do veículo – cfr. Cláusula E.

N. Neste contexto, enquadra-se ainda a condenação da Primeira Apelada a entregar o veículo às Apelantes, já que,

O. a entrega do veículo após o incumprimento do contrato é uma obrigação da Primeira Apelada que advém:

- da reserva de propriedade constituída com vista ao integral cumprimento do contrato de financiamento – parte final, do n.° 1 do artigo 409.° do Código Civil, Cláusula 11 e Cláusula A do contrato em causa;

- e da cláusula penal acordada pelas partes, ou seja, resolvido o contrato a A.  tem direito a ser ressarcida do prejuízo correspondente à diferença entre o montante das prestações vencidas e não pagas acrescido dos correspondentes juros de mora nos termos da alínea D), e o valor obtido pela A.  com a venda do veículo – cfr. Claúsula E.

P. Acresce que, no artigo 29.° da petição inicial as Apelantes alegam que "Se e quando o veículo for efectivamente restituído às AA. e vendido, o valor assim apurado deverá ser deduzido ao montante em dívida pelo R. (Cláusula E das condições gerais do contrato)".

Q. É neste contexto que as Apelantes se pretendem ver ressarcidas do prejuízo em que incorreram ao contratar com as Apeladas e não cumular a execução do contrato com as consequências resultantes da resolução como entendeu o Tribunal a quo.

R. No que concerne à falta de conversão da mora em incumprimento definitivo, não assiste razão ao Tribunal a quo na medida em que a declaração constante da carta junta aos autos a fls. 14 configura a exigência legal do artigo 808º, n.° 1 do Código Civil.

S. De facto, tal declaração transmite ao devedor a perda de interesse do credor na prestação a que aquele está adstrito, caso não se verifique a regularização do contrato.

T. Ora, para efeitos do n.° 1 do artigo 808.° do Código Civil, a prestação aqui em causa é o cumprimento do contrato.

U. Sucede que, na data da interpelação, a Apelante A fixou um prazo razoável para a realização da mesma.

V. Embora já se tivesse verificado o vencimento de todas as prestações vencidas e não pagas, nos termos da Cláusula C e do artigo 781.° do Código Civil, a carta referida no artigo 13.° da petição inicial não só representa a possibilidade do devedor regularizar o cumprimento do contrato (discriminando-se por isso o valor correspondente às prestações vencidas na data da interpelação como se não se tivesse verificado o vencimento imediato do artigo 781.°), como desde logo se declara que, caso não haja regularização, a A poderá optar pela rescisão nos termos acordados, aplicando-se necessariamente a cláusula penal que é do conhecimento do devedor.

W. Neste contexto, a Apelante A transmitiu às Apeladas a perda do interesse na prestação caso não se verificasse no prazo fixado a regularização das prestações vencidas.

X. Assim, caso a mora se mantivesse, a A optaria pela rescisão do contrato com as consequências legais explanadas no mesmo.

Y. Pelo exposto, a interpelação constante de fls. 14 dos autos é válida nos termos e para o efeito do artigo 808.° do Código Civil, pelo que a decisão do Tribunal a quo viola claramente tal disposição legal.

Z. Ao decidir nos termos que constam da sentença da qual ora se recorre, o Tribunal a quo violou o disposto nos artigos 405.°, 781.°, 801.° e 808.° do Código Civil.

AA. Atendendo à matéria assente bem como ao supra exposto, deve a decisão do Tribunal a quo na parte em que dela se recorre ser substituída por outra que:

a. declare válida a resolução do contrato de financiamento para aquisição a crédito do veículo automóvel marca  com a matrícula ….OS;

b. condene a primeira Apelada a entregar às Apelantes o veículo automóvel marca com a matrícula ….OS, a fim de este ser vendido e o valor obtido com a venda deste ser imputado ao montante peticionado em c.;

c. Condene a primeira Apelada a pagar à Primeira Apelante A a quantia de € 15.863,75, correspondente a 37 prestações no valor de € 428,75, cada, que se venceram todas com a falta de pagamento atempado da 18a prestação de 2O.O7.2OO1;condene a Primeira Apelada a pagar à Apelante A juros à taxa comercial sucessivamente em vigor, acrescida de dois pontos percentuais, incidentes sobre o montante referido no ponto anterior, desde a data de entrada em mora (20.07.2001) e até efectivo e integral pagamento.

            Não houve contra-alegações.

         Colhidos os vistos, cumpre decidir, sendo questões sujeitas à nossa apreciação as enunciadas pelas apelantes nas conclusões que formularam, visto serem estas, como é sabido, que delimitam o objecto do recurso.

II – Os factos que vêm descritos como provados são os seguintes:

1. A A. , dedica-se ao financiamento para aquisição a crédito de veículos automóveis (artigo 1º dos factos assentes).

2. A B, dedica-se à venda de automóveis (artigo 2º dos factos assentes).

3. Por escrito datado de 00.01.10, de que existe cópia a fls. 5, a 1ª A. financiou a aquisição do veículo automóvel de marca, com a matrícula OS, veículo esse vendido à 1ª R. pela 2ª A. a prestações e com reserva de propriedade (artigo 3º dos factos assentes).

4. A reserva de propriedade a favor da 2ª A. encontra-se registada na Conservatória do Registo Automóvel de Lisboa (artigo 4º dos factos assentes).

5. O preço de venda ascendeu a € 23.476,27, tendo a 1ª R. efectuado o desembolso inicial de € 4.721,47 (artigo 5º dos factos assentes).

6. De acordo com a cláusula 8ª das condições particulares, o valor total do financiamento a reembolsar é de € 25.724,80 (artigo 6º dos factos assentes).

7. Na cláusula 9ª das condições particulares o prazo de reembolso foi fixado pelas partes em 60 meses, mediante o pagamento de 60 prestações mensais no valor de € 428,75 (artigo 7º dos factos assentes).

8. Nos termos da cláusula B das condições gerais «o fiador é solidariamente responsável pelo cumprimento pelo comprador das obrigações para este decorrentes deste contrato» (artigo 8º dos factos assentes).

9. De acordo com a cláusula C das condições gerais, «vencida e não paga qualquer prestação, vencer-se-ão de imediato e automaticamente todas as seguintes nos termos do artigo 781° do Código Civil, e F poderá rescindir este contrato no caso de não pagamento de qualquer das prestações na data do vencimento» (artigo 9º dos factos assentes).

10. Dispõe a cláusula D das condições gerais que «não optando F pela rescisão do contrato, poderá exigir imediato pagamento de todas as prestações, nos termos da cláusula anterior, sobre as quais se vencerão juros de mora à taxa legal acrescida de dois pontos percentuais» (artigo 10º dos factos assentes).

11 Segundo a cláusula E das condições gerais, «no caso F optar pela rescisão do contrato, o comprador, além de perder a favor daquela todas as quantias já pagas, será responsável pelo pagamento de eventuais prejuízos de F correspondentes à diferença entre, por um lado, o valor comercial do veículo na data e no estado em que o comprador o entregar à F, e por outro o montante das prestações vencidas e não pagas acrescido dos correspondentes juros nos termos da alínea D)» (artigo 11º dos factos assentes).

12. Em conformidade com a cláusula F das condições gerais, «após a comunicação da rescisão deste contrato ao comprador, este entregará de imediato, e independentemente da interpelação, o veículo a F fazendo entrega do mesmo e de toda a respectiva documentação no concessionário Ford mais próximo» (artigo 12º dos factos assentes).

13. As cláusulas referidas nos artigos 8° a 12° encontram-se inseridas no verso do contrato, desacompanhadas de qualquer assinatura (artigo 13º dos factos assentes).

14. A 1ª R deixou de proceder ao pagamento das prestações contratualmente estabelecidas, não tendo liquidado as prestações a partir de 01.07.20 (artigo 14º dos factos assentes).

15. A 1ª A. endereçou à 1ª R. a carta datada de 01.11.09, e de que existe cópia a fls. 14, do teor seguinte:

«Pela presente, face ao não pagamento das prestações apresentadas à cobrança, dando origem ao vencimento imediato e automático de todas as prestações seguintes vimos informar V. Exa. da possibilidade de virmos a optar pela rescisão do citado Contrato de Financiamento ao abrigo do disposto na cláusula E das Condições Gerais do mesmo, se o montante em dívida das referidas prestações com os respectivos juros de mora contratuais não for liquidado no prazo de oito dias a contar da recepção da presente carta, no montante total de EUR/PTE: 1320,24/264.684,00.

Recordamos que, com a rescisão do contrato de financiamento, nos termos do disposto nas cláusulas C, E e F das mesmas Condições Gerais, V. Exa. terá de entregar imediatamente o veiculo, perderá todas as quantias já entregues e será responsável pelo pagamento de indemnização, correspondente à diferença entre o montante da totalidade das prestações vencidas e não pagas, acrescido dos respectivos juros de mora nos termos da alínea D, e o valor obtido pela A plc com a venda do veículo; sob pena de recorrermos à via judicial para apreensão do veículo e cobrança do pagamento da indemnização, com os inerentes encargos resultantes de tais procedimentos (custas judiciais honorários e juros de mora).

Caso V. Exa. não liquide as prestações vencidas e não pagas e querendo rescindir amigavelmente o contrato de financiamento, no mesmo prazo de oito dias deve efectuar a entrega voluntária do veículo com a Declaração devidamente assinada e fotocópia do bilhete de identidade - para o que deverá entrar em contacto com os nossos serviços não podendo considerar-se esta carta como novação do contrato de financiamento, mas apenas e unicamente como proposta para facilitar a liquidação do montante em dívida» (artigo 15º dos factos assentes).

16. A 1ª A. endereçou à 1ª R. a carta datada de 01.12.06 e de que existe cópia a fls. 16, do teor seguinte:

«Pela presente ao abrigo do disposto na cláusula C das condições gerais do Contrato de Financiamento Para a Aquisição a Crédito, celebrado entre V. Exa. e a A plc sucursal em Portugal, vimos notificar da rescisão do referido contrato; pelo que deverá, nos termos do disposto na cláusula F das Condições Gerais do citado contrato, proceder à entrega imediata do veículo automóvel no concessionário mais próximo.

Lamentamos a circunstância de nos vermos forçados a optar pela rescisão do contrato, decisão que tomámos face ao não pagamento das prestações apresentadas à cobrança, com os respectivos juros de mora, no montante total em dívida de EUR/PTE: 1.760,86/353 021,00.

Recordamos que, nos termos do disposto na cláusula E das Condições Gerais do contrato acima referido V. Exa. além de perder a favor da A plc sucursal em Portugal todas as quantias entregues, será responsável pelo pagamento de eventuais prejuízos que tivermos, correspondentes à diferença entre o valor de venda do veículo e o montante da totalidade das prestações vencidas - incluindo as que se hajam vencido  antecipadamente - acrescidos dos respectivos juros de mora à taxa legal acrescida de dois pontos percentuais

Com referência ao disposto na cláusula F. das Condições Gerais do mesmo contrato, junto enviamos a declaração que nos deverá ser devolvida devidamente assinada quando da entrega do veículo automóvel, sob pena de recorrermos à via judicial para apreensão do veículo e cobrança do pagamento da indemnização com os inerentes encargos resultantes de tais procedimentos» (artigo 16º dos factos assentes).

17. A 1ª A. endereçou à 2 R. a carta datada de 01.11.09, e de que existe cópia a fls. 18, do teor seguinte:

«Notificamos V. Exª na qualidade de fiador e responsável solidário pelas responsabilidades resultantes do contrato de financiamento acima identificado que, face ao não pagamento das prestações apresentadas à cobrança pelo cliente acima identificado [M], dando origem ao vencimento imediato e automático de todas as prestações seguintes, informámos o cliente acima identificado da possibilidade de virmos a optar pela rescisão do citado Contrato de Financiamento ao abrigo do disposto na clausula E das Condições Gerais do mesmo, se o montante em dívida das prestações vencidas e não pagas não forem liquidadas com os respectivos juros de mora contratuais, no prazo de oito dias a contar da recepção da presente carta, no montante total de EUR/PTE: 1.320,24/264.684,00.

Recordamos que, com a rescisão do contrato de financiamento, nos termos do disposto nas cláusulas C., E. e F. das mesmas Condições Gerais, o citado cliente terá de entregar imediatamente o veículo, perderá todas as quantias já entregues e será responsável pelo pagamento de indemnização, correspondente à diferença entre o valor de venda do veículo e o montante da totalidade das prestações vencidas - incluindo as que se hajam vencido antecipadamente - acrescidos dos respectivos juros de mora; sob pena de recorrermos à via judicial para apreensão do veículo e cobrança do pagamento da indemnização, com os inerentes encargos resultantes de tais procedimentos (custas judiciais, honorários e juros de mora).

Caso não seja liquidado o montante em dívida e querendo rescindir amigavelmente o contrato de financiamento, no mesmo prazo de oito dias deve efectuar a entrega voluntária do veículo com a Declaração devidamente assinada e fotocópia do bilhete de identidade - para o que deverá entrar em contacto com os nossos serviços não podendo considerar-se esta carta como novação do contrato de financiamento mas apenas e unicamente como proposta para facilitar a liquidação do montante em dívida» (artigo 17º dos factos assentes).

18. A 1ª A. endereçou à 2ª R. a carta datada de 01.12.06 e de que existe cópia a fls. 20, o teor seguinte:           

«Notificamos V. Exª na qualidade de fiador e responsável solidário pelas responsabilidades resultantes do contrato de financiamento acima identificado que, ao abrigo do disposto na cláusula C. das condições gerais do Contrato de Financiamento Para a Aquisição a Crédito, celebrado entre V. Exa. e a A plc sucursal em Portugal, notificamos o cliente acima identificado da rescisão do referido contrato pelo que deverá, nos termos do disposto na cláusula F. das Condições Gerais do citado contrato, proceder à entrega imediata do veículo automóvel no concessionário mais próximo.

Lamentamos a circunstância de nos vermos forçados a optar pela rescisão do contrato, decisão que tomámos face ao não pagamento das prestações apresentadas à cobrança, com os respectivos juros de mora, no montante total em dívida de EUR/PTE: 1.760,86/353.02 1,00.

Recordamos que, nos termos do disposto na cláusula E. das Condições Gerais do contrato acima referido, V. Exa. além de perder a favor da A sucursal em Portugal todas as quantias entregues, será responsável pelo pagamento de eventuais prejuízos que tivermos correspondentes a diferença entre o valor de venda do veiculo e o montante da totalidade das prestações vencidas - incluindo as que se hajam vencido antecipadamente - acrescidos dos respectivos juros de mora à taxa legal acrescida de dois pontos percentuais.

Com referência ao disposto na cláusula F. das Condições Gerais do mesmo contrato, junto enviamos a Declaração que nos deverá ser devolvida devidamente assinada quando da entrega do veículo automóvel sob pena de recorrermos à via judicial para apreensão do veículo e cobrança do pagamento da indemnização com os inerentes encargos resultantes de tais procedimentos» (artigo 18º dos factos assentes).

19. As cartas referidas nos artigos 18° e 19° foram enviadas para a morada constante do contrato (artigo 19º dos factos assentes).    

20. A 1ª R. não procedeu à entrega do veículo (artigo 20º dos factos assentes).

Está também provado o seguinte:

21. O nº 14 das condições particulares do contrato celebrado tem o seguinte teor: “O Comprador e o fiador declaram conhecer a aceitar integralmente as condições expressas neste contrato, incluindo as presentes Condições Particulares e as Condições Gerais inscritas no verso.

22. E, nessas mesmas condições particulares, logo a seguir à identificação das partes, consta o seguinte: “(…) celebram um Contrato de Financiamento para Aquisição a Crédito, regido pela legislação aplicável, pelas Condições Gerais constantes no verso e pelas seguintes Condições Particulares:

 Da combinação do alegado pelas autoras nos nºs 12 e 15 da petição inicial, para além do que se descreve como provado no nº 14 supra, resulta ainda assente que:

23. Posteriormente a 10.01.2000 a 1ª ré veio a liquidar as 18ª, 19º, 20º, 21º e 22ª prestações.

 

III – Abordemos, então, as questões suscitadas pelas apelantes.

Sobre a exclusão das cláusulas contratuais gerais:
A sentença teve como excluídas estas cláusulas, com invocação do estabelecido no art. 8º, alínea d) do Dec. Lei nº. 446/85, de 25.10, por as mesmas constarem após a assinatura dos contraentes.

Contra o assim entendido, insurgem-se as apelantes, salientando que, ao contrário do que se diz na sentença, na cláusula 14ª do contrato celebrado, consta remissão expressa para as cláusulas gerais constantes do verso, declarando o comprador e o fiador “(…) conhecer e aceitar integralmente as condições expressas neste contrato, incluindo as presentes Condições Particulares e as Condições Gerais inscritas no verso.”, isto sem prejuízo da menção feita no início do contrato de financiamento, imediatamente após a identificação dos contraentes, bem como na cláusula 11.
Na sentença profere-se, de facto, a seguinte afirmação “Sublinhe-se que nem sequer existe uma remissão clara para as cláusulas constantes do verso, do género «dou o meu acordo às cláusulas constantes do verso do contrato», independentemente de se discutir a validade desse procedimento ''.

É afirmação que se mostra desmentida pelo teor da referida cláusula 14ª, sendo que também no início do contrato, logo após a identificação dos contraentes, consta a menção de que o mesmo se rege “pela legislação aplicável, pelas Condições gerais constantes no verso e pelas seguintes Condições Particulares”. Já a cláusula 11[1], ao invés do que sustentam as apelantes, é absolutamente alheia a esta matéria.
Há que saber, pois, se estas remissões para as cláusulas gerais obstam ou põem em causa a afirmada exclusão dessas mesmas cláusulas.
Começará por dizer-se que, na análise desta questão, seguiremos de muito perto os acórdãos desta Relação de 21.01.03 e 13 de Maio do mesmo ano, publicados na C. J. 2003, respectivamente, no Tomo I, pág. 70 e segs. e no Tomo III, pág. 75 e segs., bem como os proferidos nas apelações nº. 2323/05-7, de 10.05.05, nº 5718/05-7, de 15.12.05, nº 6784/08-7, de 30.09.08 e 6783/08-7, de 7.10.08, todos relatados por quem relata o presente.
Não existe qualquer dúvida de que o contrato firmado pelas partes é integrado por cláusulas antecipadamente elaboradas que se destinam a ser, simplesmente, subscritas pela 1ª autora, sua proponente, e por qualquer pessoa que, contratando com ela, as aceita. Estamos, assim, no âmbito das chamadas “cláusulas contratuais gerais”, regidas pelo Dec. Lei nº 446/85, de 25.10, com as alterações introduzidas pelos Dec. Lei nº 220/95, de 31.8 e 249/99, de 7.07.

A falta de negociação prévia sobre a matéria versada em cláusulas desta natureza, faz nascer o risco de o contraente que a elas se submete sem ter participado na sua elaboração, o fazer de modo pouco esclarecido e consciente, assim chamando a si obrigações cujo alcance e medida não ponderou devidamente, em clara postergação do princípio da liberdade negocial.

Quis, por isso, o legislador acautelar a sua posição, para tanto impondo a observância de certas práticas na celebração dos contratos e limitando a margem de arbítrio das partes na definição do conteúdo concreto do acordo celebrado.

O art. 8º do Dec. Lei nº 446/85, ao longo das suas várias alíneas, determina a exclusão de cláusulas em relação às quais se possa duvidar de uma consciente aceitação por parte daquele a quem foram propostas.

Assim, na alínea d) têm-se em vista as cláusulas inseridas em formulários depois da assinatura de algum dos contratantes, previsão que a sentença teve como verificada, por isso considerando excluídas as cláusulas constantes das condições gerais.

Acautela-se aqui, como nas demais alíneas do preceito, e como se disse já, o risco de uma aceitação meramente aparente de condições que facilmente podem passar despercebidas.

No caso, este risco existe relativamente a cláusulas cujo local de inserção não garanta que sobre elas tenha incidido a atenção do contraente a quem são dirigidas, prevendo e admitindo o legislador que este apenas atente devidamente e tome consciência do conteúdo do contrato até ao ponto onde apõe, intervindo fisicamente, a sua assinatura.

No dizer de Mário Júlio de Almeida Costa e António Menezes Cordeiro [2], “Ponderou-se que (...) o circunstancialismo exterior da celebração contratual é manifesto no sentido da inexistência de mútuo consenso das partes sobre o conteúdo das cláusulas”.

Ou, pelo menos, haverá a suspeita, como escreve Menezes Cordeiro [3], de que tais cláusulas não foram lidas ou de que sobre elas não houve acordo.

A circunstância de constar, no rosto do documento, a menção de que o contrato se rege por condições gerais e particulares e de na cláusula 14. constar que “O comprador e o fiador declaram conhecer e aceitar integralmente as condições expressas neste Contrato, incluindo as presentes Condições Particulares e as Condições Gerais inscritas no verso” não basta para garantir que não aconteça o que o legislador quis, manifestamente, evitar.

Como se escreveu no Ac. do STJ de 7.03.2006[4]Mesmo constando da página do contrato assinada a referência à existência de cláusulas gerais que, no entanto, só surgem após as assinaturas das partes, se mantém o risco de não terem sido atentadas essas cláusulas por aderente menos cuidado ou atento, pois há a convicção popular do que se não assinou, ou seja, do que não consta até à assinatura, não foi incluído no contrato.

E como se disse no Ac. do mesmo Tribunal 3.05.2007 [5]: “A assinatura que valida um contrato, uma vontade contratual, é a assinatura por baixo da expressão escrita dessa mesma vontade.

Daí que a lei - que quer proteger a genuinidade da vontade contratual de alguém a quem, sem possibilidade de discussão, se apresenta um enumerado de condições contratuais que não pôde negociar mas a que se sujeita porque quer contratar – tenha o cuidado de validar apenas as cláusulas que estão antes da assinatura, considerando excluídas todas aquelas que aparecem depois.” Ou seja, que aparecem “(…)
abaixo da reflexão
que a assinatura representa e da qual a lei, em defesa do destinatário, não prescinde.

A bem da transparência e lisura de processos – se bem que ainda assim num plano prevalentemente formal –, nestes casos deverão os formulários usados mostrar-se concebidos de modo a que, depois de assinados, não seja ainda necessário perscrutar o verso da página para encontrar matéria relevante em que supostamente se acorda.

Daí que não mereça censura a sentença quando teve por excluídas as cláusulas contratuais gerais apostas no verso do contrato[6], improcedendo as razões expostas em B., C. e D. das conclusões das apelantes.

Sobre a afirmada incompatibilidade dos pedidos formulados pelas autoras:

É questão que, retomada na sentença, já havia sido suscitada no despacho de fls. 303, tendo então as autoras, pronunciando-se sobre ela, negado a existência dessa incompatibilidade nos mesmos termos em que agora o fazem, ao longo das alíneas E. a Q. das suas conclusões.

Na sentença consideraram-se substancialmente incompatíveis os pedidos de declaração de validade da resolução do contrato de financiamento celebrado com a 1ª ré, e de condenação desta a pagar à autora FCE a quantia de € 15.863,75, correspondente a 37 prestações no valor de € 428,75 cada, vencidas com a falta de pagamento atempada da 18ª prestação, acrescida de juros à taxa de 12%, nos termos da Portaria 262/99, acrescida de dois pontos percentuais nos termos do contrato. E, por isso, julgou-se a acção improcedente quanto a tais pretensões.

Os argumentos e raciocínio que serviram de substrato a tal decisão podem resumir-se do seguinte modo:

- Contra o que sustentam na resposta ao despacho de aperfeiçoamento, as autoras nesta acção não pediram o pagamento de uma indemnização correspondente à diferença entre o valor comercial do veículo e as prestações vencidas e não pagas, mas sim o pagamento das 37 prestações, vencidas com o não pagamento da 18ª, o que é bem diferente do pedido (necessariamente ilíquido porque o carro ainda não foi entregue) de condenação na diferença entre o valor comercial do veículo e as prestações vencidas e não pagas.

- O vencimento automático das prestações por virtude da falta de pagamento de uma delas é incompatível com a resolução, já que a um e outra estão subjacentes realidades juridicamente incompatíveis e que se excluem reciprocamente – a vontade de exigir o cumprimento, por um lado, e a vontade de pedir a resolução do contrato, por outro;

- Tendo optado pelo cumprimento do contrato, não pode a autora pretender também a sua resolução.

- Aliás, as cláusulas D e E das condições gerais que se considerámos excluídas configuram as duas faculdades – vencimento automático e resolução – em alternativa.

- Não cabendo ao tribunal optar por um dos deduzidos pedidos, a consequência, neste momento processual, não pode deixar de ser a absolvição dos pedidos.

- Face ao exposto, tem também de improceder o pedido de entrega do veículo às autoras, que estas fundavam na resolução do contrato; para além da já apontada incompatibilidade entre os pedidos de resolução e de pagamento de todas as prestações, incluindo as vencidas automaticamente, também o pedido de entrega do veículo se não coaduna com a exigência de pagamento de todas as prestações.

Começará por dizer-se que mal se entende a posição em que as apelantes persistem, ao defenderem, ainda aqui, ter formulado pedido que manifesta e claramente não deduziram. Não podem desconhecer, nem certamente desconhecem, serem realidades absolutamente distintas, por um lado, pedir a condenação das rés no pagamento das 37 prestações que se venceram por não ter sido paga atempadamente a 18ª das prestações convencionadas - e foi este, inequivocamente, o pedido que deduziram – e, por outro, a pretensão de verem as rés condenadas a pagar-lhes indemnização de valor ilíquido, correspondente à diferença entre o valor comercial do veículo – cuja apreensão, pedida em sede de providência cautelar, foi indeferida - e o valor das prestações vencidas e não pagas.

Feito este reparo, importa verificar se a incompatibilidade substancial dos pedidos, aludida no art. 193º, nº 2, al. c) do CPC, efectivamente existe no caso dos autos. E, para tal, há que analisar, com detalhe, não só os pedidos formulados pelas autoras, como os respectivos fundamentos.

Segundo a lição de Anselmo de Castro [7]Para a verificação desta incompatibilidade substancial, o ponto de referência a que temos de nos reportar acha-se de novo nos pedidos e fundamentos apontados pelo autor, e exclusivamente neles, e de modo nenhum no enquadramento ou qualificação verdadeira a fazer dos factos segundo a lei”.

A propósito de hipótese que formula [8], comparável à dos autos, este autor escreve que, no caso de não se encontrarem  fundados na mesma causa de pedir, os pedidos em confronto, ainda que inconciliáveis em face da lei substantiva, não são “contraditórios no pensamento do autor”; só o serão no plano da lei (…)., pelo que não se verifica entre eles incompatibilidade substancial.

Citando os acórdãos do STJ de 17.1.56 [9] e de 28.5.57 [10], diz: “Não interessa que o enquadramento jurídico constante da petição caracterize efeitos antagónicos, uma vez que não se trate de verdadeira ininteligibilidade do pensamento que orientou aquele articulado”, sendo que apenas esta é susceptível de colocar o tribunal na “emergência que é peculiar do vício da ineptidão – a impossibilidade de decidir”, de proferir julgamento sobre qualquer dos pedidos.

Podendo saber-se, em face da petição inicial, aquilo que o autor quis, não há ineptidão por incompatibilidade substancial de pedidos, se aquele, por vício de enquadramento jurídico, deduziu também uma outra pretensão que a lei lhe não concede.

Também C. Costa[11] entende que só se verificará incompatibilidade quando a oposição entre os pedidos for de molde a impedir que o tribunal apreenda que efeito jurídico pretende o autor obter pela acção.

 Ora, no caso dos autos, a leitura, seja dos fundamentos expostos na petição inicial, seja do teor do requerimento apresentado pelas autoras na sequência do despacho de aperfeiçoamento a que acima aludimos, permite concluir com segurança que o querido pelas autoras é o reconhecimento judicial da validade da resolução do contrato de mútuo, já declarada extrajudicialmente pela 1ª autora à 1ª ré, e a condenação desta, na sequência da extinção do contrato, a entregar o veículo a cuja aquisição a quantia mutuada se destinou e cuja apreensão foi requerida – mas indeferida - pelas autoras em sede cautelar, com invocação da resolução do contrato que ora pretendem ver reconhecida como válida.

Mas, concomitantemente, pretendem também a condenação da 1ª ré (só esta está aqui em causa, visto as autoras se terem conformado com a absolvição da 2ª ré) a pagar à 1ª autora as 37 prestações que se terão vencido antecipadamente, por virtude do não pagamento atempado da 18ª das prestações convencionadas.

Ora, esta pretensão, que consubstancia um pedido de cumprimento do contrato e, portanto, pressupõe a vigência dele, tem causa de pedir diversa daquela outra que se funda na declaração de resolução do contrato por incumprimento da mutuária. Daí que seja no plano da lei, e não no plano da vontade das autoras, que esta inconciliabilidade se verifique, posto que o acolhimento da primeira das deduzidas pretensões, envolvendo o reconhecimento da extinção do contrato, exclui naturalmente o direito de a autora exigir da ré o seu cumprimento.

         Nos termos da doutrina referida, não há, pois, incompatibilidade substancial dos pedidos susceptível de ter gerado a ineptidão da p. i. e de levar, em sede de decisão final, à improcedência dos pedidos.[12]

         Nada mostrando que o pedido de condenação no pagamento das prestações vencidas antecipadamente deva valer apenas no caso de ser reconhecida a resolução do contrato, estamos perante pedidos cumulados formulados paralelamente, sem qualquer nexo de dependência de algum deles em relação a outro, pelo que serão apreciados quanto ao seu mérito e cada um terá a solução que o direito aplicável lhe ditar.

         Assim, os pedidos irão ser apreciados pela ordem por que foram formulados.

        

Sobre a carta de fls. 14, aludida no nº 15 dos factos provados e sobre a validade da declarada resolução do contrato:

Na referida missiva, a dado passo, diz-se o seguinte: «Pela presente, face ao não pagamento das prestações apresentadas à cobrança, dando origem ao vencimento imediato e automático de todas as prestações seguintes vimos informar V. Exa. da possibilidade de virmos a optar pela rescisão do citado Contrato de Financiamento ao abrigo do disposto na cláusula E das Condições Gerais do mesmo, se o montante em dívida das referidas prestações com os respectivos juros de mora contratuais não for liquidado no prazo de oito dias a contar da recepção da presente carta, no montante total de EUR/PTE: 1320,24/264.684,00.(…)”
Tal como se entendeu na sentença – para cuja bem elaborada fundamentação se remete nesta parte, nos termos do art. 713º, nº 5 do CPC –, a 1ª autora, ao comunicar à 1ª ré que, em face do seu incumprimento, poderia vir a optar pela resolução do contrato, deixa em aberto duas hipóteses: a de vir a declarar a resolução do contrato e a de o não fazer; não anuncia, contrariamente ao que deveria suceder, que o não cumprimento no prazo fixado daria lugar a uma situação de não cumprimento definitivo.
Aliás, o anúncio da possibilidade de opção pela “rescisão” deixa em aberto a dúvida sobre se, não sendo esta declarada, a 1ª autora entenderia, ou não, haver um não cumprimento definitivo – já que a resolução não é a única consequência que deste pode advir -, ou se, pelo contrário, consideraria continuar a haver uma situação de mora.
Não pode, pois, valer como interpelação admonitória, ou seja, como intimação dirigida ao devedor para que cumpra, no prazo razoável fixado, a sua obrigação, sob pena de, não o fazendo, se ter o contrato por definitivamente incumprido. E sem a conversão da mora em incumprimento definitivo, não podia operar-se validamente a resolução.
Soçobram, pois, as razões invocadas ao longo das conclusões R. a Y.
O pedido de reconhecimento de validade da resolução do contrato alegadamente operada, não pode, pois, proceder, caindo por terra também o de devolução do veículo que vinha radicado naqueloutro.

Quanto ao pedido de condenação no pagamento das prestações antecipadamente vencidas:
Não estando em situação de não cumprimento definitivo, a 1ª ré continua em mora.
Está fora de causa a aplicação da cláusula C das condições gerais, que se teve como excluída do contrato.
Mostra-se, pois, aplicável ao caso o disposto no art. 781º do C. Civil, de acordo com o qual, faltando o pagamento de uma das prestações, todas as subsequentes se têm como vencidas.
Mas o assim estabelecido não leva a que a 1ª autora tenha direito a receber da ré, como pretende, quantia de € 15.863,75, acrescida de juros de mora à taxa de 14% (12% acrescidos de 2 pontos percentuais) desde 20.07.2001 e até efectivo pagamento.
Desde logo, a taxa de juro pedida, sendo a estabelecida na cláusula D. das condições gerais - a legal, acrescida de dois pontos percentuais -, não é devida, posto que se tiveram estas como excluídas.

A taxa a aplicar será a legal, nomeadamente a fixada sucessivamente pelas Portarias nº 262/99 e nº 597/2005 e avisos da Direcção-Geral do Tesouro nºs 10097/2004, 310/2005, 6923/2005, 240/2006, 7706/2006, 191/2007, 13665/2007, 2152/2008, 19995/2008, 1261/2009 e 12184/2009.


Por outro lado, e quanto à data a partir da qual são devidos os juros de mora, importa referir o que passamos a expor, seguindo de muito perto o acórdão desta Relação de 30.09.08.[13]

O regime instituído no acima referido art. 781º, envolvendo a perda de uma vantagem conferida ao devedor, tem a sua razão de ser na quebra, provocada por este último, da relação de confiança que esteve na base da celebração do acordo de pagamento fraccionado no tempo.

A falta de pagamento de uma das prestações acordadas rompe a confiança nele depositada pelo credor - ao permitir que o cumprimento da sua obrigação fosse efectuado em várias fracções -, bem se justificando, assim, que para este nasça o direito de exigir o pagamento integral e imediato da dívida.

Mas isto não significa que o devedor fique, desde logo, em situação de mora, com a correspondente obrigação de indemnizar o credor pelos danos causados.

Na verdade, a verificação da mora pressupõe a não satisfação de obrigação já vencida e não é legítimo ficcionar aqui uma obrigação de pagamento em prazo certo que, quanto a essas prestações subsequentes, nunca foi nesses termos querida e aceite pelas partes.

Como escreve Antunes Varela [14], cujo entendimento acolhemos, o art. 781º, ao determinar o vencimento imediato das restantes prestações, deve ser interpretado no sentido de que o inadimplemento do devedor gera o direito do credor de exigir dele a satisfação daquelas prestações, e não, no sentido de que o não pagamento de uma das prestações no prazo acordado, determina, por si só, a entrada em mora do devedor quanto ao cumprimento das demais.

O vencimento de tais prestações é um benefício concedido por lei ao credor que, querendo beneficiar dele, deverá manifestar a sua vontade nesse sentido, interpelando o devedor para cumprir imediatamente a totalidade da obrigação.[15]

Assim, quanto à prestação não satisfeita no prazo acordado, a mora verifica-se, sem dúvida, a partir da data em que o cumprimento deveria ter ocorrido, mas quanto às demais, a entrada em mora, e o correlativo vencimento de juros moratórios, depende de interpelação do devedor para o respectivo pagamento, ou, na sua falta, da verificação da data em que cada uma delas deveria, de acordo com o plano contratual estabelecido, ser paga; a não consideração desta última hipótese, levaria a que o devedor obtivesse um benefício injustificado com o não cumprimento oportuno da sua obrigação.

Ora, no caso dos autos tem de considerar-se que, através da carta de fls. 14, a 1ª autora interpelou a 1ª ré para proceder ao pagamento de prestações em dívida que, atenta a data da missiva – 9 de Novembro de 2001 – e o valor indicado como estando em dívida - € 1.320.24 – só poderiam ser as relativas aos meses de Julho, Agosto e Setembro de 2001 – 18ª, 19ª e 20ª prestações.

Só quanto a estas, entretanto pagas, como foi confessado pelas autoras no ponto 15 da petição inicial e consta do facto nº 15, se pode afirmar a existência de interpelação extrajudicial. No tocante às demais, designadamente às 37 pedidas, a mora verifica-se na data em que, segundo o acordado, cada uma deveria ser satisfeita ou com a citação quanto àquelas em relação às quais, nessa data, se não tinha esgotado ainda o prazo em que deviam ser pagas.

Finalmente, o vencimento operado nos termos do dito preceito abrange apenas o capital que integra as prestações, ficando de fora os juros remuneratórios igualmente nelas incluídos e que constituem uma parcela da totalidade dos juros acordados para o espaço temporal em que duraria o contrato.
É inequívoco, face aos factos nºs 5 e 6, que a quantia entregue à luz do contrato de financiamento é inferior à que a 1ª ré teria de devolver, diferença esta que advém do vencimento, sobre a quantia entregue pela mutuante, de juros remuneratórios; por isso, esta questão tem aqui todo o cabimento.
Sobre ela gerou-se controvérsia jurisprudencial que se mostra superada pelo recente Acórdão de Uniformização de Jurisprudência, datado de 25 de Março de 2009, proferido na revista nº 1992/08-6 e que decidiu no sentido acima referido.


IV – Pelo exposto, julgando-se a apelação parcialmente procedente:
Condena-se a 1ª ré a pagar à autora A.
a) A quantia relativa ao capital das 37 prestações em dívida e aqui peticionadas;
b) Juros de mora sobre as prestações referidas em a), às taxas legais a cada uma aplicáveis e decorrentes das Portarias e avisos acima aludidos, contados desde a data de vencimento quanto às prestações cujo pagamento, segundo o plano contratual acordado, deveria ter sido efectuado até à citação, e desde a data da citação quanto às demais, tudo até efectivo pagamento.
No mais, mantém-se a sentença.
Aqui e na 1ª instância as custas ficam a cargo das autoras e da ré na proporção do respectivo decaimento.

Lisboa, 20 de Outubro de 2009

Rosa Maria M. C. Ribeiro Coelho
Graça Amaral
Ana Resende
----------------------------------------------------------------------------------------- [1] Tem ela o seguinte teor: “Reserva de propriedade: O presente contrato é celebrado com reserva de propriedade do veículo a favor do vendedor registado do mesmo, nos termos das Cláusulas Gerais.
[2]  Em “Cláusulas Contratuais Gerais”, pág. 28

[3] Tratado de Direito Civil Português, I – Parte Geral, Tomo I, 2ª edição, pág. 436.

[4] Relatado pelo Conselheiro João Camilo, www.dgsi.pt.jstj, proc. 06A038
[5] Rel. Conselheiro Pires da Rosa, acessível em www.dgsi.pt.jstj, proc. 06B1650
[6] No mesmo sentido se decidiu também nos Acs. do STJ de 13.01.2005, 6.02.2007 e 16.10.2008, o primeiro relatado pelo Conselheiro Ferreira Girão e o terceiro relatado pelo Conselheiro Alves Velho, acessíveis no mesmo sítio Proc. 04B3874, 6A4524 e 08A343, respectivamente.
[7] Direito Processual Civil Declaratório, Coimbra 1982, vol. II, pág. 226 e segs.
[8] pedido de resolução de mútuo por falta de pagamento dos juros remuneratórios cumulado com o pedido de juros correspondentes ao ano do contrato que entretanto se iniciara
[9] BMJ nº 53, pág. 289
[10] BMJ nº 67, pág. 389
[11] Em Scientia Iuridica, 1952, tomo I, nº 3, pág. 291, pág. 297, conforme citação feita por Abrantes Geraldes em Temas da reforma do Processo Civil, 2ª edição, I vol., pág 131, nota de rodapé.
[12] Neste sentido, Anselmo de Castro, obra citada, pág. 233.
[13] Relatado por quem relata o presente, na apelação nº 6784/08-7.
[14] “Das Obrigações em Geral”, Vol. II, 6ª edição, pág. 53

[15]  No mesmo sentido, Menezes Cordeiro, em “Direito das Obrigações”, AAFDL, 1986, 2º vol., pág. 193, nota 55; destacando-se também, entre outros, o acórdão da Relação do Porto, datado de 18.2.93, Col. Jur., 1993, Tomo I, pág. 236 e os do STJ de 14.11.2006 e 6.02.2007, ambos  acessíveis em www.dgsi.pt e relatados, respectivamente, pelos Cons. Bettencourt de Faria e Alves Velho