Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
5957/2007-3
Relator: CARLOS ALMEIDA
Descritores: CRIME
FALSO TESTEMUNHO
ASSISTENTE
LEGITIMIDADE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 07/18/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO
Sumário: I – Seja qual for a forma como se caracterize o bem jurídico tutelado pela incriminação contida no artigo 360º do Código Penal, não se pode ignorar que a prestação de um falso testemunho se repercute directamente na esfera jurídica da pessoa que o seu autor dolosamente visou desfavorecer.
II – Por isso, deve ser reconhecida legitimidade a essa pessoa para intervir como assistente no respectivo processo penal.
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Lisboa

I – RELATÓRIO

1 – Apreciando um requerimento formulado no processo n.º 847/07.7TDLSB pela “LISBOAGÁS GDL -  Sociedade Distribuidora de Gás Natural de Lisboa, S.A.”, a sr.ª juíza colocada no 1º Juízo do Tribunal de Instrução Criminal de Lisboa proferiu, no dia 30 de Março de 2007, o despacho que se transcreve:

«Nos presentes autos veio LISBOAGÁS GDL requerer a sua constituição como assistente.

O Ministério Público pronunciou-se no sentido do requerido ser indeferido relativamente ao crime p. e p. pelo artigo 360° do Código Penal.


*

Face ao exposto e tendo em conta que o (a) requerente está em tempo, tem legitimidade, tem advogado nos autos e procedeu ao pagamento da taxa de justiça devida, admito o(a) mesmo(a) a intervir nos autos como assistente (cf. Artigos 68°, 70° e 519° n.º 1 do Código Processo Penal), relativamente ao crime de denúncia caluniosa p. e p. pelo artigo 365° do Código Penal.

Indefere-se o requerido no que concerne ao crime de falsidade de testemunho p. e p. pelo artigo 360° do CP, porquanto a requerente não pode considerar-se ofendida relativamente ao mencionado ilícito, tendo em conta o bem jurídico que o mesmo tutela».

2 – A requerente interpôs recurso desse despacho.
A motivação apresentada termina com a formulação das seguintes conclusões:
1. «O presente recurso parcial vem interposto da parte do douto despacho constante dos autos a fls. mediante o qual o Mmo. Juiz a quo vem indeferir a constituição da Recorrente como assistente relativamente ao crime de falsidade de testemunho, p. p. pelo artigo 360° do CP, com fundamento em que a Recorrente não se pode considerar ofendida porquanto não é titular do bem jurídico que a referida norma incriminadora tutela.
2. O crime de falsidade de testemunho tutela a realização ou administração da justiça como função do Estado, mas não é este o único interesse protegido pela incriminação.
3. Conforme consta do Acórdão do STJ de 12.07.2005, no âmbito do processo 05P2535, disponível em www.dgsi.pt, o crime em causa também faz uma ponderação com os concretos interesses dos particulares ofendidos pela prática do crime.
4. Para tanto, basta atender ao disposto no artigo 361° do CP, o qual prevê uma agravação da medida da pena caso os factos praticados lesem os interesses de terceiros, expressamente previstos nas respectivas alíneas.

5. O crime de falsidade de testemunho, p. p. pelo artigo 360° do CP, visa proteger a administração da justiça, mas também, imediata, especial e particularmente, os prejuízos que os atentados podem causar a interesses de particulares.

6. O vocábulo "especialmente" contido na alínea a) do n.º 1 do artigo 68° do CPP deve ser interpretado num sentido de particular e não de exclusivo.
7. Constam expressamente da denúncia apresentada factos que permitem concluir que a Recorrente ficou lesada nos seus interesses em virtude da conduta levada a cabo pelo 1° Denunciado e que a Recorrente entende que consubstancia a prática do crime de falsidade de testemunho, p. p. pelo artigo 360°, n.ºs 1 e 3 do CP.
8. No âmbito da providência cautelar que correu os seus termos pela 1ª Secção da 14ª Vara Cível de Lisboa, sob o n.º 2818/04.6TVLSB, a qual comportou a realização de duas audiências de julgamento distintas, o já referido 1° Denunciado prestou dois depoimentos contraditórios relativamente à mesma matéria de facto, sendo de concluir que pelo menos, um deles é necessariamente falso.
9. O indeferimento da providência cautelar é claramente lesivo dos interesses da Recorrente e teve como fundamento a contradição patente nos depoimentos prestados pelo 1° Denunciado, consubstanciando o crime p. p. pelo artigo 360°, n.ºs 1 e 3 do CP.
10. Pelo que a Recorrente tem um interesse particular e legítimo, especialmente protegido pela incriminação, assim se justificando a sua admissão a intervir nos presentes autos na qualidade de assistente, nos termos do disposto no artigo 68°, n.º 1, alínea a) do CPP.
11. Assim, ao proferir o despacho recorrido andou mal o Mmo. Juiz “a quo”, violando o disposto no artigo 68°, n.º 1, alínea a) do CPP, pelo que deverá ser proferido douto Acórdão que revogue parcialmente o despacho recorrido, admitindo, em consequência, a Recorrente a intervir nos presentes autos na qualidade de assistente, também relativamente ao crime de falsidade de testemunho, p. p. pelo artigo 360° do CP.

Nestes termos, e nos mais de Direito aplicável, deve ser revogada a decisão recorrida e substituída por douto acórdão que determine a legitimidade da Denunciante em constituir-se assistente nos presentes autos, com todas as legais consequências, como é de justiça!».

3 – Esse recurso foi admitido no dia 16 de Maio de 2007 (fls. 31).

4 – O Ministério Público respondeu à motivação apresentada defendendo a improcedência do recurso (fls. 34 a 40).

5 – Neste tribunal, o sr. procurador-geral-adjunto, quando o processo lhe foi apresentado, emitiu o parecer de fls. 44 a 46, no qual sustenta que o recurso não merece provimento.

6 – Foi cumprido o disposto no artigo 417º, nº 2, do Código de Processo Penal.

II – FUNDAMENTAÇÃO
7 – A questão colocada no presente recurso já foi por nós analisada e decidida em 14 de Dezembro de 2005, no acórdão proferido no recurso n.º 10832/05, no qual dissemos, nomeadamente, que:
«Como relembra o sr. procurador-geral-adjunto, no Acórdão proferido em 8 de Junho passado no recurso n.º 2517/05, dissemos que a questão da admissibilidade da intervenção como assistente era “tradicionalmente resolvida pela doutrina e pela jurisprudência atendendo à natureza individual ou supra-individual do bem jurídico tutelado pela incriminação[1], apenas no primeiro caso se admitindo a constituição de assistente. Acontece, porém, que, em muitos casos, apesar da natureza supra-individual do bem jurídico subjacente à incriminação, o legislador pretendeu, com a criação e tutela desse bem jurídico, proteger de uma forma antecipada bens jurídicos de natureza individual[2].
Ora, nestes casos, não se descortina qualquer razão válida para não admitir a intervenção dos titulares desses bens jurídicos mediatamente tutelados como assistentes no processo penal[3]”.
O mesmo acontece quando, apesar de o legislador dirigir a tutela penal directamente para um bem jurídico de natureza pública, se verifica que os comportamentos proibidos pela norma incriminadora se repercutem directamente nas esferas jurídicas individuais[4].
Também nestes casos não se vê qualquer razão para impedir a intervenção dos particulares atingidos por esses comportamentos como assistentes em processo penal.
É precisamente isso que acontece com a incriminação em causa.
Seja qual for a forma como se caracterize o bem jurídico tutelado por esta incriminação[5], a prestação de um falso testemunho repercute-se directamente na esfera jurídica da pessoa que o seu autor dolosamente visou desfavorecer.
Por isso, deve ser reconhecida legitimidade a essa pessoa para intervir como assistente no respectivo processo penal».
Uma vez que nada justifica, a nosso ver, a alteração dessa posição, que também é sustentada no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12/7/2005, citado pela recorrente, não se pode deixar de conceder provimento ao recurso interposto pela “LISBOAGÁS GDL -  Sociedade Distribuidora de Gás Natural de Lisboa, S.A.”, revogando-se a parte impugnada da decisão recorrida e admitindo-se a requerente como assistente também no que respeita ao crime p. e p. pelo artigo 360º do Código Penal.

III – DISPOSITIVO
Face ao exposto, acordam os juízes da 3ª secção deste Tribunal da Relação em conceder provimento ao recurso interposto pela “LISBOAGÁS GDL -  Sociedade Distribuidora de Gás Natural de Lisboa, S.A.”, revogando o despacho recorrido e admitindo a requerente a intervir nos autos como assistente também no que respeita ao crime p. e p. no artigo 360º do Código Penal.
Sem custas.
²
Lisboa, 18 de Julho de 2007
 (Carlos Rodrigues de Almeida)
 (Horácio Telo Lucas)
(Pedro Mourão)

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[1] E não através da natureza pública, semi-pública ou particular do crime. Basta ver que, se assim fosse, a vítima de um crime de ofensa grave da integridade física não teria legitimidade para intervir como assistente.
[2] Para o efeito o legislador pode utilizar duas técnicas distintas: ou pune fases anteriores da conduta criminosa ou tutela bens jurídicos intermédios de referente individual (sobre o assunto, veja-se MARTIN, Ricardo M. Mata y, in «Bienes jurídicos intermedios y delitos de peligro», Comares, Granada, 1997, p. 21 e segs.
[3] Nesse sentido, veja-se DIAS, Jorge de Figueiredo, e RODRIGUES, Anabela Miranda, in «Parecer sobre a Legitimidade da S.P.A. em Processo Penal» in «Direito de Autor: Gestão e Prática Judiciária», S.P.A., Lisboa, 1989, p. 105 e segs., CUNHA, José Damião da, in «A Participação dos Particulares no Exercício da Acção Penal» in RPCC, Ano 8, Fascículo 4°, p. 630 e segs. e BELEZA, Teresa Pizarro, e PINTO, Frederico da Costa, in «Direito Processual Penal – Os sujeitos processuais e as partes civis», Lisboa, 2001, p. 141 e segs.
[4] Neste sentido, BELEZA e PINTO, ob. cit. p. 141.
[5] Ver, quanto a esta matéria, Medina Seiça, in «Comentário Conimbricense do Código Penal – Parte Especial – Tomo III», Coimbra Editora, Coimbra, 2001, p. 460 e seg.