Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
77/08.0TDLSB.L1-3
Relator: MARIA JOSÉ COSTA PINTO
Descritores: ABUSO DE CONFIANÇA FISCAL
SEGURANÇA SOCIAL
DESCRIMINALIZAÇÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 10/28/2009
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário: Tem aplicação em sede de crime de abuso de confiança contra a segurança social o limite de € 7.500 estabelecido no nº 1, do artº 105º, do RGIT, na redacção dada pela Lei nº 64-A/2008, de 31 de Dezembro.
Decisão Texto Integral: Acordam, em Conferência, na 3.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa: *

1. Relatório

1.1. Nos presentes autos de processo comum foi deduzida acusação pelo Ministério Público contra os arguidos “U…, Lda” e A…, imputando-lhes a prática de crimes de abuso de confiança contra a Segurança Social, na forma continuada, p. e p. pelas disposições dos artigos 105.° e 107.° do Regime Geral das Infracções Tributárias aprovado pela Lei 15/2001, de 5 de Julho (RGIT).

Na sequência de requerimento formulado pelos arguidos, veio o tribunal a quo a proferir em 5 de Junho de 2009 despacho que decidiu julgar “extinto por descriminalização o procedimento criminal instaurado contra A… e a sociedade "U.., Lda”, atento o disposto no artigo 2.°, n.° 2, do Código Penal, pela prática, o primeiro, como co-autor de um crime e a segunda, em concurso real, de dois crimes de abuso de confiança fiscal contra a segurança social, na forma continuada, p. e p. pelos art°s 105° e 107° do RGIT e 30.° n.° 2, do Código Penal, e no que respeita à “U…,Lda” por força do disposto no art° 7° do RGIT.

1.2. O Digno Magistrado do Ministério Público interpôs recurso desta decisão, tendo formulado, a terminar a respectiva motivação, as seguintes conclusões:

“1. A... e “U..., Lda” foram acusados pela prática, o primeiro como co-autor de um crime e a segunda em concurso real de dois crimes, ambos de abuso de confiança fiscal contra a segurança social, na forma continuada, p. e p. pelos art°s 105° e 107° da Lei 15/2001, de 5 de Julho e 30° n° 2 do Código Penal, e no que respeita à “U...,Lda” por força do disposto no art° 7° do RGIT (Lei 15/2001, de 5 de Julho).

2. Por douto despacho proferido nestes autos a Mma Juíza "a quo" julgou extinto por despenalização o procedimento criminal instaurado contra o arguido e a referida sociedade, atento o disposto no artigo 2°, n° 2, do Código Penal.

3. A tese defendida no despacho ora posto em crise assenta no argumento de que a nova redacção do artigo 105°, n° 1, da Lei n° 15/2001 de 5 de Junho, conferida pelo art° 113° da Lei n° 64-A/2008 de 31 de Dezembro, que veio a alterar o regime jurídico-penal do crime de abuso de confiança fiscal, ficando excluída da tulela jurídico-penal a falta de entrega ao Estado de quantias inferiores a €7 500, se aplica também ao crime de abuso de confiança contra a segurança social, previsto no artigo 107°, n° 1, do RGIT e atenta a parte final do mesmo.

4. Por se estar, no caso sub judice, perante crime continuado sendo punível com a pena aplicável à conduta mais grave que integra a continuação - por força do artigo 79°, do Código Penal - sendo a parcela em dívida mais elevada no valor de €1026,87, a conduta dos arguidos encontrar-se-ia despenalizada, atento o disposto no artigo 2°, n° 2, do Código Penal.

5. Concluiu a Mma juíza "a quo" que pese embora o artigo 107°, n° 1, do RGIT apenas remeter para as penas previstas nos n° 1 e 5 do artigo 105°, se é considerado o limite de €50 000 previsto no referido n° 5 para qualificar o crime e agravar a moldura penal abstracta aplicável, inexiste argumento juridicamente válido, para afastar a aplicação do limite mínimo actualmente previsto no n° 1, do referido preceito legal.

6. Ora, da interpretação dos art° 105° e 107° do RGIT e 113° da Lei n° 64-A/2008 de 31 de Dezembro, que introduziu nova redacção àquela primeira norma, resulta, em nosso entendimento, que os elementos típicos do crime de abuso de confiança contra a segurança social encontram-se plasmados n° 1 daquele art. 107° e que a remissão que nele é feita para os números 1 e 5 do art. 105° se confina às penas que neles vêm cominadas. Tal remissão não abrange o novo limite introduzido no n° 1 do art. 105°, quer se considere este como um novo elemento do tipo incriminador do crime de abuso de confiança fiscal, quer como uma nova condição de punibilidade.

7. Em contrário, não se pode invocar a remissão que também é feita para o n° 5 do art. 105°, porque esta norma se limita a prever uma circunstância agravante qualificativa e não um elemento do tipo objectivo do crime, estabelecendo apenas a distinção entre o crime simples e o crime agravado, repercutindo-se unicamente na moldura penal aplicável, que passa para prisão de um a cinco anos, quanto às pessoas singulares, e de multa de 240 a 1200 dias, quanto às pessoas colectivas, quando a não entrega for superior a 50.000 €.

8. Por outro lado e fazendo apelo à intenção do legislador, vários fundamentos poderão ser invocados para defender que a mencionada alteração não abrange o crime de abuso de confiança contra a segurança social. Assim o abuso de confiança fiscal relativamente à falta de entrega de prestações não superiores a 7.500 € continua a ser punível como contra-ordenação (cfr. n° 1 do art. 114° do RGIT), enquanto que a falta de entrega de contribuições devidas à segurança social não vem prevista em nenhum diploma legal como contra-ordenação.

9. Assim não se compreenderia que o legislador deixasse impune essa falta de entrega, nos casos em que não ultrapassasse aquele limite dado que se trata de comportamento muito mais censurável do que outros previstos mormente no DL n° 64/89 de 25/2, como contra-ordenações contra a segurança social. Acresce que do confronto entre o n° 2 do art. 103° e o n° 1 do art. 106° do RGIT resulta que o legislador estabelece limites diferentes - mais baixos no que respeita à fraude contra a segurança social - para estabelecer a punição como ilícito criminal das condutas ali previstas.

10. Outro argumento sustentando a não descriminalização resulta da interpretação teológica dos art°s 105° e 107° do RGIT. De facto, o art. 107.° tutela o erário da Segurança Social, numa lógica de afectação de receitas a fins específicos de beneficio, e de necessidade de garantia do respectivo equilíbrio financeiro, enquanto que o art. 105.º, incide sobre a receita que o Estado se propõe cobrar para satisfação de necessidades indiferenciadas.

11. Acresce ainda um argumento de ordem sistemática. Na verdade, se atendermos à inserção sistemática do art. 113° da Lei 64-A/2008, de 31.12, facilmente constatamos que se integra na sua secção II -"Procedimento e Processo Tributário" do Capítulo XI -"Procedimento, processo tributário e outras disposições", enquanto que as alterações legislativas que o OE contempla para o regime da Segurança Social se inserem no seu Capítulo V -"Segurança Social" (art.s 55° e seguintes), logo seria neste âmbito que o legislador poderia proceder a alterações aos crimes contra a segurança social, o que deliberadamente não fez.

12. Deste modo, impõe-se concluir que as condutas dos arguidos não se encontram descriminalizadas.

13. Porque assim não entendeu e julgou extinto por despenalização o procedimento criminal instaurado contra o arguido A... e “U..., Lda”, o despacho recorrido fez errada interpretação da alteração ao art° 105°, n°s 1 e 5 do RGIT, introduzido pelo art° 113° da Lei n° 64-A/2008 de 31 de Dezembro, violando o disposto no art.° 107° do RGIT, pelo que deve ser revogado e substituído por outro que designe datas para julgamento.”

1.3. Responderam os arguidos, pugnando pela improcedência do recurso e manutenção do despacho recorrido e alinhando o seguinte núcleo conclusivo:

1- A douta decisão recorrida não merece qualquer reparo, devendo ser mantida na íntegra.

II - Os argumentos de ordem teleológica e sistemática permitem afirmar que o crime de abuso de confiança contra a segurança social mantém uma relação de estrita proximidade com o crime de abuso de confiança fiscal, pelo que não se pode defender a sua rigorosa tipificação autónoma e integral face a essoutro ilícito.

III - Com efeito, o limite de € 7 500 estabelecido no n.° 1, do artigo 105.°, do RGIT, na redacção dada pela Lei n.° 64-A/2009, de 31 de Dezembro, deve ter aplicação em sede de crime de abuso de confiança contra a segurança social, daí resultando ter ocorrido a despenalização das condutas abaixo daquele limite.

1.4. O recurso foi admitido por despacho de fls.267.

1.5. Uma vez remetido o mesmo a este Tribunal, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu douto Parecer no sentido da revogação do despacho recorrido e sua substituição por outro que submeta a julgamento os arguidos contra os quais foi deduzida e, oportunamente, recebida, a acusação em causa nos autos.

1.6. Foi proferido despacho preliminar.

Colhidos os “vistos” e realizada a Conferência, cumpre decidir.

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2. Objecto do recurso

Sendo o âmbito do recurso delimitado pelas conclusões da motivação que o recorrente produziu para fundamentar a sua impugnação - artigos 403.º e 412.º, n.º 1 do Código de Processo Penal -, sem prejuízo das matérias de conhecimento oficioso, a única questão que se coloca à apreciação deste Tribunal da Relação é a de saber se no crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, previsto no artigo 107.°, n.° 1 do Regulamento Geral das Infracções Tributárias, aprovado pela Lei n° 15/2001 de 5 de Junho (RGIT), deve ser considerado o limite mínimo da prestação tributária em dívida referenciado no artigo 105.°, n.° 1 do mesmo RGIT, na redacção que lhe foi conferida pelo artigo 113.° da Lei do Orçamento de Estado para 2009 (Lei n° 64-A/2008 de 31 de Dezembro), preceito que veio alterar a previsão típica do crime de abuso de confiança fiscal, excluindo da tulela jurídico-penal a falta de entrega ao Estado de prestações tributárias de valor igual ou inferior a € 7.500.

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3. Fundamentação

3.1 Nos presentes autos, os arguidos A… e "U…, Lda", foram acusados pelo Ministério Público pela prática, o primeiro, como co-autor de um crime e a segunda, em concurso real, de dois crimes de abuso de confiança fiscal contra a Segurança Social, na forma continuada, previstos e punidos pelos artigos 105.° e 107.° da Lei 15/2001, de 5 de Julho e 30.° n.° 2 do Código Penal, e no que respeita à “U…, Lda” por força do disposto no artigo 7.° do RGIT.

Segundo o descritivo acusatório, a conduta desenrolou-se no período compreendido entre os meses de Fevereiro a Junho e Dezembro de 2003 e Agosto de 2004 a Setembro de 2006, cifrando-se em € 1.026,87 o valor da parcela mais elevada de contribuições retidas aos trabalhadores e em dívida à Segurança Social, de acordo com a folhas de remunerações entregues.

De acordo com o despacho recorrido, a nova redacção do artigo 105°, n° 1 do RGIT, conferida pelo artigo 113.° da Lei n° 64-A/2008 de 31 de Dezembro, aplica-se também ao crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, previsto no artigo 107.°, n.° 1, do mesmo RGIT, atenta a parte final do mesmo.

Considerou o tribunal a quo ser de aplicar ao crime de abuso de confiança contra a Segurança Social esta “restrição de punibilidade”, apesar de o n.º 1 do artigo 107.º apenas remeter para as penas previstas nos n.ºs 1 e 5 do artigo 105.º, por não ver razões válidas para se atender ao limite de € 50.000 previsto no n.º 5 para qualificar o crime e agravar a moldura abstracta e já não se atender ao limite de € 7.500 previsto no n.º 1 do mesmo preceito.

E por isso, considerando que o crime continuado é punível com a pena aplicável à conduta mais grave que integra a continuação - por força do artigo 79°, do Código Penal - sendo a parcela mais elevada em dívida pelos arguidos no valor de € 1.026,87, concluiu que a conduta destes se encontra despenalizada, atento o disposto no artigo 2.°, n.° 2, do Código Penal, e julgou “extinto, por descriminalização o procedimento criminal instaurado”.

Entende o Digno recorrente, por seu turno, que os elementos típicos do crime de abuso de confiança contra a Segurança Social se encontram plasmados no n.° 1 daquele art. 107.° e que a remissão que nele é feita para os números 1 e 5 do art. 105.° se confina às penas que neles vêm cominadas, remissão que não abrange o novo limite introduzido no n.° 1 do art. 105°.

3.2. Esta questão não tem recebido uma resposta jurisprudencial unívoca, quer ao nível da 1.ª instância, quer ao nível das Relações, perfilando-se duas teses:

- uma no sentido de que o novo limite mínimo introduzido para o crime de abuso de confiança fiscal se aplica aos crimes previstos no art. 107.º do RGIT (vide os Acórdãos da Relação de Lisboa de 2009.03.25, Processo nº102/04.4TACLD.L1, in www.dgsi.pt e de 2009.07.15, Processo n.º 6463/07.6TDLSB.L1-4, in www.dgsi.pt da Relação de Guimarães de 09.03.23, in CJ, tomo II, p. 316 e da Relação do Porto de 2009.05.27, Processo n.º 343/05.7TAVNF.P1 e de 2009.10.14, Processo 0546335, ambos in www.dgsi.pt, tese que também obteve acolhimento num estudo intitulado Das alterações introduzidas pela Lei nº64-A/2008 de 31/12, aos artigos 105º e 107º do RGIT: Efeitos, Consequências Práticas e Interpretação, da autoria de Soares Vieira e Tiago Caiado Milheiro, in Boletim da ASJP, VI Série, Nº1, Junho 2009);

- outra, até agora maioritária, no sentido de que o limite de € 7.500,00 ora estabelecido no nº1 do art.º 105º do RGIT não tem aplicação em sede de crime de abuso de confiança contra a Segurança Social (vide, entre outros, os Acórdãos da Relação do Porto de 2009.03.25, Processo nº 1131/01.5TASTJ, de 20/04/2009, Processo nº 8419/02.6TDPRT, de 2009.05.27, Processos nºs 1760/06.0TDPRT e 946/07.5TABGC.P1, de 2009.06.03, Processo n.º 0715084, todos disponíveis in www.dgsi.pt, os acórdãos da Relação de Coimbra de 2009.04.03, Processo nº257/03.5TAVIS.C1, in www.dgsi.pt, de 2009.04.22, CJ, tomo II, p. 48 e de 2009.06.17, Processo n.º 37/05.3TASEI.C1 e os Acórdãos da Relação de Guimarães de 2009.04.27, Processo n.º 1304.8TABRG.G1 e de 2009.04.27, Processo n.º 2438/07.3TAGMR.G1, estes in www.dgsi.pt).

Cabe desde logo dizer que são vários e consistentes os argumentos a favor de uma e outra tese e que a dimensão que assumiu a divergência jurisprudencial aconselha a uma intervenção uniformizadora do Supremo Tribunal de Justiça.

Na falta desta, há que tomar posição no caso que se nos apresenta, enfrentando a questão em análise, que se reconduz, afinal, a um problema de interpretação da lei.

3.3. Interpretar uma lei significa descobrir o sentido que está por detrás da expressão utilizada e, sempre que essa expressão possa conter sentidos diversos, eleger a verdadeira significação que o legislador lhe pretendeu conferir (vide P. Lima e A. Varela in Noções Fundamentais do Direito Civil, vol. II, 5ª ed., p. 130).

A norma fundamental a proporcionar uma orientação legislativa para a tarefa do intérprete de descobrir, de entre os sentidos possíveis da lei, o seu sentido prevalente ou decisivo, é o artigo 9.º do Código Civil.

Este preceito, começa por estabelecer que «[a] interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada» (n.º 1); o enunciado linguístico da lei é, assim, o ponto de partida de toda a interpretação, mas exerce também a função de um limite, já que não pode «ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso» (n.º 2); além disso, «[n]a fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados» (n.º 3) – vide sobre a interpretação da lei o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 2006.01.12 (in www.dgsi.pt).

Há assim que proceder ao apuramento do concreto sentido jurídico-normativo dos preceitos em causa, de acordo com as regras de interpretação da lei fixadas no art. 9º, n.º1 do Código Civil, ou seja, atendendo-se a que a interpretação não pode ater-se à letra da lei, mas deve também ter em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas em que é aplicada.

E tendo presente, também, que o legislador não adoptou soluções contraditórias ou incongruentes ou desprovidas de qualquer efeito útil (artigo 9º, n.º 3, do Código Civil), pelo que será sempre necessário detectar algum elemento de compatibilização jurídica entre as disposições em causa, de modo a atribuir a cada uma delas um alcance ou efeito de direito próprios.

Vejamos, pois.

*

3.4. O art.º 113º da Lei n° 64-A/2008, que aprovou o Orçamento de Estado para 2009, alterou o n.º 1 do art.º 105.º do RGIT, conferindo-lhe a seguinte redacção:

Quem não entregar à administração tributária, total ou parcialmente, prestação tributária de valor superior a €7.500, deduzida nos termos da Lei e que estava legalmente obrigado a entregar, é punido com pena de prisão até três anos ou multa até 360 dias.”

A alteração consubstanciou-se em acrescentar à norma a expressão “de valor superior a € 7.500”, passando assim a exigir-se que o valor da prestação tributária em dívida seja superior aquele montante, para que se verifique um crime de abuso de confiança fiscal. Se a dívida é de valor igual ou inferior a esse montante, o legislador considera que não existe ilícito criminal, assim estabelecendo um limiar mínimo de ilicitude ou de punibilidade, como se refere no citado Acórdão da Relação de Lisboa de 2009.07.15.

O art. 107º nº 1 do RGIT, que prevê e pune o crime abuso de confiança contra a Segurança Social, dispõe nos seguintes termos:

As entidades empregadoras que, tendo deduzido do valor das remunerações devidas a trabalhadores e membros dos órgãos sociais o montante das contribuições por estes legalmente devidas, não o entreguem, total ou parcialmente, às instituições de segurança social, são punidas com penas previstas, nos nºs 1 e 5 do artº 105º.”

A Proposta de Lei 226/X (in www.dgo.pt/oe/2009/proposta) nada refere a propósito da alteração em análise e o Relatório do Orçamento de Estado para 2009 emitido pelo Ministério das Finanças e da Administração Pública (in www.dgo.pt/oe/2009/proposta/Relatorio/rel-2009) silencia também este aspecto, apenas referenciando as razões das alterações no RGIT relativas ao concurso de contra-ordenações, das alterações no domínio da determinação da coima a pagar pelos infractores e as relativas à introdução do novo tipo de ilícito de natureza criminal constante do aditado artigo 95.º-A.

Não podemos deixar de sublinhar que as dificuldades interpretativas suscitadas resultam de o intérprete e aplicador da lei se confrontar com construções normativas passíveis de equívocos, o que não é facto novo ao nível das alterações introduzidas ao texto do RGIT pelas leis do Orçamento de Estado, como o demonstra a prolação do AUJ n.º 6/2008 (in DR I, de 2008.05.15), aresto que foi motivado, também, por uma alteração precisamente ao mesmo artigo 105.º do RGIT, concretamente com a introdução da alínea b) no respectivo n.º 4, através da Lei nº 53-A/2006, de 29/12, que aprovou o Orçamento de Estado para 2007.

No que diz respeito ao artigo 107.º - preceito que prevê o crime de “abuso de confiança contra a segurança social”, essencialmente por remissão para o artigo 105.º -, a mesma lei não introduziu qualquer alteração, mantendo as remissões para os n.ºs 1 e 5 do artigo 105.º e mantendo até, incompreensivelmente, a remissão para o ora revogado n.º 6 do mesmo artigo 105.º.

Estruturalmente, a lei nada mudou, mantendo-se a previsão dos “Crimes contra a Segurança Social” (arts. 106.º e ss.), a par dos “Crimes Fiscais” (arts. 103.º e ss.), como uma das quatro espécies que integra a categoria dos “Crimes Tributários” (Título I da Parte III do RGIT).

Apenas no que diz respeito ao artigo 105.º - preceito que prevê o crime de “abuso de confiança fiscal” -, a Lei nº 64-A/2008 alterou o corpo do n.º 1 nos termos já enunciados, fixando um limite mínimo abaixo do qual a conduta nele descrita não tem relevância penal. Além disso, revogou o respectivo n.º 6.

3.5. Defende o Digno recorrente que da interpretação dos art° 105° e 107° do RGIT e 113° da Lei n° 64-A/2008 de 31 de Dezembro, que introduziu nova redacção àquela primeira norma, resulta que os elementos típicos do crime de abuso de confiança contra a segurança social se encontram no n° 1 daquele art. 107° e que a remissão que nele é feita para os números 1 e 5 do art. 105° se confina às penas que neles vêm cominadas, o que excluiria a atendibilidade, nestes crimes, do limite mínimo ora introduzido no n.º 1 do artigo 105.º (sublinhado nosso).

Ora, ao invés do que afirma o recorrente, entendemos que a remissão da parte final do artigo 107.º, n.º 1 não pode considerar-se confinada às molduras penais previstas nos n.ºs 1 e 5 do artigo 105.º-

O entendimento do Ministério Público, se encontra algum apoio na letra da parte final do n.º 1 do artigo 107.º, levaria a resultados interpretativos absolutamente ilógicos.

Pois, a considerar-se completa a previsão típica do crime de abuso de confiança contra a Segurança Social constante do artigo 107.º, como entende o Ministério Público, não poderia lançar-se mão de qualquer elemento típico previsto no artigo 105.º, e das duas uma:

- ou se considerava que a remissão se reportava às molduras penais de ambos os números indicados (n.º 1 e 5 do art. 105.º) e teríamos duas molduras diferentes para a mesma fattispecie, a prevista no n.º 1 do artigo 107.º, o que era inadmissível,

- ou se considerava que a remissão punitiva valeria apenas para o n.º 1 do artigo 105.º e então ficava sem significado útil a remissão para o n.º 5 do artigo 105.º, o que também se não pode admitir.

Por isso nunca se questionou que a remissão do n.º 1 do art. 107.º se reportava ao n.º 5 do artigo 105.º quando o valor das contribuições retidas e em dívida fosse superior a € 50.000, assim se admitindo, afinal, que a remissão se reporta a um elemento típico que extravaza a previsão do artigo 107.º.

Não podemos concordar com o recorrente quando afirma que o n.º 5 do artigo 105.º não prevê um elemento objectivo do tipo de crime, estabelecendo apenas a distinção entre o crime simples e o agravado com repercussão na moldura penal aplicável (conclusão 7.ª).

Se os denominados crimes fundamentais contêm o tipo objectivo de ilícito na sua forma mais simples – o tipo-base, cujos elementos vão pressupostos nos tipos qualificados ou privilegiados –, os crimes qualificados, contendo embora os elementos típicos do crime fundamental, pressupõem também elementos típicos que agravam o crime.

No caso específico do abuso de confiança fiscal, o n.º 5 do artigo 105.º parte do tipo-base (n.º 1) e acrescenta-lhe um elemento relativo ao tipo de ilícito – ser a prestação de valor superior a € 50.000 – que aumenta a gravidade do facto (vide Figueiredo Dias, in Direito Penal, Parte Geral, I, 2.ª edição, Coimbra, 2007, p. 313; expressivamente Eduardo Correia, usa mesmo a expressão “tipo de tipicidade”, para aludir a este aspecto particular dos tipos fundamentais e qualificados, considerando os qualificados como um novo tipo legal – in Direito Criminal, I, Reimpressão, Coimbra, 1971, pp. 307 e ss.).

É, assim, inequívoco que o legislador, com as remissões do n.º 1 do artigo 107.º do RGIT, não pretendeu confinar-se à molduras penais das normas para que remetia.

O alcance da remissão do artigo 107.º não pode deixar de ser o de que, quando as prestações não entregues constituam contribuições à Segurança Social deduzidas pelos empregadores (assinalando deste modo no preceito remissivo a especificidade da prestação e do seu devedor), as mesmas são punidas nos termos dos n.ºs 1 e 5 do artigo 105.º, sempre pressupondo o preenchimento do tipo base constante do n.º 1 do artigo 105.º, ou o preenchimento do tipo qualificado constante do seu n.º 5, consoante o valor em causa, sob pena de se concluir que o legislador adoptou soluções incongruentes ou desprovidas de qualquer efeito útil, o que o n.º 3 do artigo 9º, do Código Civil não consente.

Ou seja:

- desde que preenchido o tipo base (o do n.º 1 do artigo 107.º, por referência ao n.º 1 do artigo 105.º) a pena aplicável ao abuso de confiança contra a Segurança Social será de prisão até três anos ou multa até 360 dias;

- se estiver preenchido, além do tipo base, o elemento típico constante do n.º 5 do artigo 105.º – neste caso, um elemento relativo ao tipo de ilícito que aumenta objectivamente a gravidade do facto e que consiste, precisamente, no elevado valor retido – a pena aplicável ao abuso de confiança contra a Segurança Social será de prisão de um a cinco anos ou multa de 240 a 1200 dia para as pessoas colectivas.

A evidente remissão para um elemento relativo ao tipo de ilícito no que diz respeito ao n.º 5 do artigo 105.º, não autoriza que se compreenda de modo diverso a remissão que, exactamente a par daquela, é feita para o n.º 1 do mesmo art. 105.º, sob pena de absoluta incongruência do legislador que, quanto a ambos, se exprime nos mesmos termos.

Assim, mesmo antes da alteração resultante da lei do Orçamento de Estado para 2009, a interpretação dos preceitos em análise não podia cingir-se à letra da lei, sendo necessária uma “tarefa de interligação e valoração, que excede o domínio literal” (cf. Oliveira Ascensão, in O Direito, Introdução e Teoria Geral, 11.ª edição, revista, Almedina, 2001, p. 392), determinante da conclusão de que a remissão do artigo 107.º para os n.ºs 1 e 5 do artigo 105.º tinha subentendidos os diferentes valores justificativos das distintas sanções neles cominadas.

Sob pena de, a entender-se de modo diverso, se admitir que o legislador consagrou soluções absurdas, o que é contrário à indicação interpretativa constante do n.º 3 do artigo 9.º do Código Civil.

3.6. Mas prosseguindo numa análise sistemática e teleológica em que se deram já alguns passos, deve dizer-se que era também este critério de valor que, apesar de não ser expressamente referenciado no artigo 107.º, justificava a remissão do n.º 2 deste preceito para o n.º 6 do artigo 105.º, agora revogado.

De acordo com este nº 6 do artigo 105º, a responsabilidade criminal extinguia-se se, no prazo de 30 dias após notificação para o efeito, ocorresse o pagamento das quantias devidas, desde que os montantes em causa não excedessem € 1.000 (na redacção inicial do RGIT) ou € 2.000 (na redacção dada ao nº 6 pelo artigo 60º da Lei n.º 60-A/05 de 30/12 que aprovou o Orçamento de Estado para 2006.

Esta norma apenas deixou de se justificar com a introdução da al. b) do nº 4, que afinal veio fazer depender a punibilidade das condutas previstas no artigo 105.º e no artigo 107.º do não pagamento dos valores nela previstos após notificação para o efeito, sem qualquer limitação de valor, o que levou à revogação do n.º 6 do artigo 105.º.

Neste quadro entendia-se que o crime de abuso de confiança contra a Segurança Social previsto no RGIT podia assumir uma de três formas: abuso de confiança “simples”, na “forma agravada” e na “forma privilegiada”, “em função do valor da prestação tributária não entregue”, de acordo com o disposto no art. 105 nº 1, nº 5 e nº 6 do RGIT, aplicável, por remissão do artigo 107.º ao crime de abuso de confiança contra a segurança social (vide Isabel Marques da Silva in Regime Geral das Infracções Tributárias, pp. 182 ss).

Apesar de revogado actualmente o n.º 6 do artigo 105.º, não deixa de constituir também um contributo interpretativo para a compreensão do regime jurídico do crime em análise, demonstrando que, também ao nível da eventual extinção do procedimento criminal pelo pagamento em determinadas condições, a remissão do artigo 107.º para o artigo 105.º tinha subentendido o valor justificativo da correspondente estatuição.

3.7. A interpretação no sentido da equiparação dos regimes do abuso de confiança fiscal e contra a Segurança Social e da incompletude da tipificação do segundo destes crimes está, também, em consonância com a história da criminalização das condutas que lesam os interesses da Administração fiscal e da Segurança Social.

Com efeito, e como se dá notícia no já citado Acórdão da Relação de Lisboa de 2009.07.15, analisando o processo de criminalização deste tipo de condutas a partir de 1990, “a criminalização inicia-se pelas condutas lesivas do fisco (90 e 93) só sendo criminalizadas certas condutas contra os interesses da segurança social em 1995, por introdução de normas no RJIFNA [aprovado pelo Decreto-Lei n.° 20-A/90, de 15 de Janeiro e alterado pelo Decreto-Lei n.° 140/95, de 14 de Junho], as quais sempre tiveram grande semelhança entre si. Isso mesmo aconteceu em 2001 com o RGIT, que manteve, em grande medida, esse paralelismo. Os interesses tutelados são essencialmente os mesmos, os fins a que os valores patrimoniais se destinam é que têm afectações diferentes.”

Significa isto que sempre se pretendeu, como se escreveu no também citado Acórdão da Relação de Lisboa de 2009.02.25, “que o regime de punição fosse idêntico em ambos os crimes - abuso de confiança fiscal e abuso de confiança contra a segurança social - sendo apenas diferentes, as entidades devedoras das prestações e os fundamentos das dívidas.”.

3.8. Decorre das considerações já expostas que o artigo 107.º do RGIT não contém a tipificação integral do crime de abuso de confiança contra a Segurança Social.

Caberá a este passo perguntar: por que razão, neste contexto de equiparação em todos os aspectos que se relacionam com as distintas estatuições previstas para o crime de abuso de confiança fiscal, o legislador de 1995 e 2001 estabeleceu uma previsão autónoma (no artigo 107.º) para o crime de abuso de confiança contra a Segurança Social?

A resposta emerge do próprio conteúdo dos preceitos.

No fundo então, como agora, a previsão autónoma do crime de abuso de confiança contra a Segurança Social (artigo 107.º), relativamente ao crime de abuso de confiança fiscal (artigo 105.º) justifica-se para que constem do tipo as duas especificidades que caracterizam o primeiro e que têm a ver:

- com a sua natureza enquanto “crime próprio ou específico de entidades empregadoras” e, por outro lado,

- com o facto de ter por objecto “as contribuições à segurança social deduzidas do valor das remunerações dos trabalhadores ou dos membros dos órgãos sociais, excluindo todas as demais”.

(vide Isabel Marques da Silva in Regime Geral das Infracções Tributárias, cadernos IDEFF, nº 5, 2ª edição, Coimbra, 2007, p. 1873)

Mas isto não significa que se subscreva a afirmação do recorrente de que a mencionada alteração do artigo 105.º, n.º 1 não abrange o crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, por este manter a sua tipificação autónoma e integral na previsão do artigo 107.° do RGIT.

Sem dúvida que a tipificação é autónoma – há um preceito a ela dedicado – mas de modo algum é integral.

O n.º 1 do artigo 107.º limita-se a descrever as apontadas especificidades, não nos parecendo descabido dizer que se queda por aí a razão de ser da sua existência.

Deve notar-se que as remissões do artigo 107.º para o artigo 105.º abarcam toda a previsão deste, com excepção dos n.ºs 2 e 3 (normas estas que descrevem determinadas prestações e incluem-nas no conceito de “prestação tributária” constante do n.º 1), ou seja, com excepção da parte do artigo 105.º que incide sobre o tipo de prestação não entregue ao Estado, o que bem se compreende já que este está especial e suficientemente descrito no n.º 1 do artigo 107.º.

Quanto ao mais que o artigo 105.º estabelece - os n.ºs 1, 4, 5 e 7 -, o artigo 107.º remete expressamente para o regime dele constante, denotando a vontade legislativa de desenhar o crime de abuso de confiança contra a Segurança Social à imagem do crime de abuso de confiança fiscal, equiparando as suas previsões (com excepção da específica descrição da prestação em dívida e do seu devedor), as penas que lhes cabem [n.ºs 1 e 5], as condições objectivas de punibilidade [n.º 4, alíneas a) e b)] e os valores a atender para efeitos de aferir do preenchimento da previsão típica fundamental ou agravada [n.º 7].

Daqui resulta que a previsão típica própria se restringe à descrição dos elementos específicos típicos da concreta área em que se inscreve a relação jurídica contributiva firmada entre o empregador e a Segurança Social.

Uma vez incumprido o dever jurídico emergente desta relação para o empregador, a eventual relevância criminal da conduta deste e todos os demais aspectos do regime jurídico-criminal a atender devem aferir-se pelo artigo 105.º, n.ºs 1, 4, 5 e 7 do RGIT, por remissão do artigo 107.º do mesmo diploma legal.

3.9. A convicção de que esta é a vontade do legislador e que a mesma não se alterou quando emitiu a Lei do Orçamento de Estado de 2009, mostra-se reforçada pela circunstância de esta lei ter mantido na íntegra as remissões que o artigo 107.º faz para o artigo 105.º, apesar da alteração deste (e incluindo, até, a remissão para o n.º 6 que a mesma lei revogou, o que demonstra também não ter o legislador uma preocupação autónoma com o crime de abuso de confiança contra a Segurança Social).

Impõe-se, pois, uma interpretação dos preceitos em causa no sentido de que a remissão que na parte final do nº 1 do art. 107.º do RGIT se reporta às penas previstas nos nºs 1 e 5 do art. 105.º do mesmo diploma legal, mas sempre pressupondo os diferentes valores que, de acordo com estas normas para que o artigo 107.º expressamente remete, justificam essas distintas sanções. Assim como se deve atender ao valor a partir do qual o crime é qualificado, deverá atender-se ao valor mínimo que o legislador entendeu dever atingir a dívida para justificar uma reacção de natureza criminal

Não se justifica que deixe de se fazer a identidade de punições que o legislador sempre entendeu dever fazer: por força dos n.ºs 1 e 5 do artigo 105.º, aplicáveis por si, ou por força da remissão expressa do n.º 1 do artigo 107.º, quer no crime de abuso de confiança fiscal, quer no crime de abuso de confiança contra a Segurança Social há um valor prestacional abaixo do qual a conduta não tem relevo criminal (não atinge o limiar de gravidade objectiva que justifica a censura penal) e há um valor acima do qual o crime deve ser mais severamente punido.

3.10. Especificamente no que diz respeito à atendibilidade dos valores que o n.º 1 e o n.º 5 do artigo 105.º referem, afigura-se-nos também relevante a consideração expressa no Acórdão da Relação de Lisboa de 2009.02.25 de que “quando o legislador entendeu estabelecer valores diferentes referiu-o expressamente”.

O facto de no âmbito do crime de “fraude” o legislador ter estabelecido expressamente um valor diferente a partir do qual ocorre fraude fiscal (€ 15.000,00 – artigo 103º, nº 2, do RGIT, na redacção introduzida pelo artº 60º da L. 60-A/05 de 30/12) e fraude contra a Segurança Social (€ 7.500,00 – artigo 106º, nº 1, do RGIT) não autoriza o intérprete a dizer que agora, tacitamente, o mesmo legislador resolveu fazer idêntica distinção para os crimes de abuso de confiança fiscal e contra a Segurança Social.

Pelo contrário.

Se sempre fez uma equiparação punitiva no âmbito do crime de abuso de confiança e se não alterou essa equiparação com a Lei n.º 64-A/2008, que manteve integralmente a remissão do artigo 107.º para os n.ºs 1 e 5 do artigo 105.º, não poderá o intérprete – conhecedor de que quando o quis fazer relativamente à fraude, o legislador o fez expressamente – concluir que o legislador quis distinguir o crime de abuso de confiança fiscal do crime de abuso de confiança contra a Segurança Social neste particular aspecto.

Ao manter integralmente a remissão do artigo 107.º para os n.ºs 1 e 5 do artigo 105.º, legislador não alterou com a Lei n.º 64-A/2008 a equiparação entre os dois tipos de crime de abuso de confiança, devendo repercutir-se no abuso de confiança contra a Segurança Social as alterações que entendeu fazer no âmbito do crime de abuso de confiança fiscal ao estabelecer no n.º 1 do artigo 105.º um limiar mínimo de ilicitude criminal.

3.11. A interpretação no sentido da equiparação punitiva é a única que fazia sentido antes da alteração constante da Lei do Orçamento de Estado de 2009 e, salvo melhor opinião, é a única que a nosso ver continua a fazer sentido.

Não vemos razões para fazer outra opção interpretativa depois da prolação desta lei que manteve integralmente o artigo 107.º do RGIT, vg. as razões de carácter sistemático apontadas pelo recorrente.

Com efeito, o argumento adiantado na motivação recursória de que as alterações legislativas que o OE contempla para o regime da Segurança Social se inserem no seu Capítulo V –“Segurança Social” (arts. 55° e ss.), e logo seria neste âmbito que o legislador poderia proceder a alterações aos crimes contra a segurança social, o que deliberadamente não fez, de modo algum procede.

Na verdade, se atendermos à inserção sistemática do art. 113.° da Lei 64-A/2008, vemos que ela se integra no Capítulo XI da lei, relativo ao “Procedimento, processo tributário e outras disposições”, constando todas as alterações e aditamento ao RGIT nos artigos 113.º a 115.º.

Estando os crimes de abuso de confiança fiscal e de abuso de confiança contra a Segurança Social ambos previstos no RGIT, não se vê por que razão iria o legislador alterar previsões típicas do segundo destes crimes em âmbito distinto da Lei, ainda que conexionado com matérias de Segurança Social.

3.12. Por outro lado, a invocada diferente teleologia dos preceitos também não pode servir para demonstrar que o pensamento do legislador fosse o de afastar do crime de abuso de confiança contra a Segurança Social (como vimos, desenhado no art. 107.º à imagem do crime de abuso de confiança fiscal previsto no art.º 105.º) o limite que fez constar do n.º 1 do art. 105.º do RGIT.

Ambos os crimes se enquadram na categoria geral dos “Crimes Tributários” (no título I da parte III do RGIT), construídos pelo legislador para defesa do bem jurídico comum a todos eles, a saber: “os interesses tributários do Estado”.

É o que bem se refere no citado Acórdão da Relação do Porto de 2009.05.27, aresto em que também se sublinha que não se pode concluir, sem mais, que o crime de abuso de confiança (previsto no art. 105 do RGIT) e o crime de abuso de confiança contra a segurança social (previsto no art. 107 do RGIT), protegem bens jurídicos distintos por estarem integrados em capítulos diferentes.

Como aí se escreve “em ambos os tipos legais está em causa o “erário público”, associado à violação dos “deveres tributários” do sujeito activo (pessoa singular ou colectiva, que mesmo na qualidade de entidade empregadora, actua como “fiel depositário”, sobre o qual recai o dever de entregar a prestação tributária ao credor “Estado Fiscal Social”, assuma este a veste de administração tributária ou de administração da segurança social)”.

E, como aí também se adverte, “não se confunda o bem jurídico-penal protegido no crime de abuso de confiança contra a segurança social com a sua natureza de crime específico próprio (no sentido de sujeito activo só poder ser uma entidade empregadora) e com o objecto, que ainda assim é relativo a prestações tributárias (“contribuições à segurança social deduzidas do valor das remunerações dos trabalhadores ou dos membros dos órgãos sociais”), vistas as definições constantes do art. 11-a) e b) do RGIT.”

É certo que, como refere o Digno Magistrado do Ministério Público, o artigo 105.º incide sobre prestações com que o Estado satisfaz necessidades indiferenciadas e o artigo 107.º incide sobre contribuições que se afectam a fins específicos de benefício e há necessidade de garantia do equilíbrio económico-financeiro da Segurança Social (embora não totalmente certo, já que o financiamento do sistema de Segurança Social não resulta apenas das contribuições – cfr. o artigo 92.º da Lei n.º 4/2007, de 16 de Janeiro, que estabelece as bases gerais do sistema de Segurança Social).

Mas esta ponderação teleológica não constitui um argumento no sentido da não descriminalização, se o legislador não fez qualquer restrição na remissão que consta do n.º 1 do artigo 107.º do RGIT para o n.º 1 do artigo 105.º do mesmo diploma.

Podem adiantar-se fundadas razões, em termos de política criminal, para não atender a um limite mínimo da prestação nos crimes do artigo 107.º (os defensores da não descriminalização aludem, p. ex. à necessidade de assegurar a sustentatibilidade do sistema de Segurança Social e ao fim específico a que são afectadas as receitas) ou para considerar que em ambos os crimes as prestações não pagas terão que ser de valor superior a € 7.500 em cada prestação (p. ex., ao objectivo de descongestionar os Tribunais, retirando-lhes processos-crime em que estão em causa valores menos relevantes e à necessidade de, em tempo de crise económica, tentar aliviar a pressão sobre as pequenas e médias empresas que se debatem com dificuldades ao nível do próprio pagamento dos salários – vide Frederico Vieira e Caiado Milheiro, in estudo citado, p. 157).

Não cabe, contudo, ao julgador fazer esta ponderação, por muito pertinente que possa parecer.

Cabe, isso sim, ao legislador, em cada momento, fazê-lo, e de modo inequívoco, para que não restem dúvidas à comunidade sobre a importante fronteira entre o que tem, e o que não tem, relevo criminal (entre o que é e o que não é criminalmente punido).

A identidade da relevância jurídico-criminal das condutas integradoras de ambos os crimes, na perspectiva do legislador, resulta evidente do equivalente tratamento jurídico-criminal que entendeu conferir a ambos antes da alteração constante do Decreto-Lei n.º n.º 64-A/2008, não se vislumbrando razões para agora afirmar que o legislador alterou este tratamento equivalente (sem expressamente o dizer e mantendo a remissão do artigo 107.º para o n.º 1 do artigo 105.º).

Se o legislador, sem indicar as razões por que o fez, o que dificulta a tarefa do intérprete, acrescenta ao tipo de ilícito do abuso de confiança fiscal previsto no artigo 105.º, n.º 1 do RGIT um elemento objectivo – ser a dívida de valor superior a € 7.500,00 –, e se o crime de abuso de confiança contra a Segurança Social está previsto no artigo 107.º, n.º 1 do mesmo RGIT por remissão para aquele artigo 105.º, como excepção dos aspectos que resultam da especificidade dos agentes do crime (no caso do artigo 107.º terão que ser os empregadores) e do tipo de prestação devida ao Estado (no caso do artigo 107.º terão que ser contribuições à Segurança Social), afigura-se-nos não poder deixar de se considerar abrangida naquela remissão genérica a nova configuração típica do artigo 105.º, n.º 1.

Pretendendo o legislador que assim não fosse, deveria claramente dizê-lo, o que não fez.

3.13. Finalmente, não consideramos ter relevo suficiente para afastar esta interpretação a circunstância de não constituir contra-ordenação, a falta de entrega da contribuição devida à Segurança Social de valor não superior a € 7.500.

Mais uma vez sublinhamos, trata-se de uma opção do legislador que não legitima uma interpretação restritiva do n.º 1 do artigo 107.º no sentido de que não é de aplicar o valor mínimo previsto actualmente no art. 105 nº 1 do RGIT, na redacção da Lei nº 64-A/2008.

É importante, ainda, não esquecer que a não criminalização do não pagamento das contribuições devidas à Segurança Social até ao montante de € 7.500,00 não significa que tais quantias não continuem a ser devidas.

A dívida mantém e o empregador continua obrigado a satisfazê-la, ainda que de modo coercivo, devendo ser cobrada pelos meios processuais próprios para o efeito.

3.14. Finalizada a tarefa de interpretação dos artigos 107.º e 105.º do RGIT que nos propusemos fazer à luz dos critérios impostos pelas regras de hermenêutica fixadas no artigo 9º do Código Civil, e analisados os argumentos que se extraem da motivação do recurso, concluímos que a alteração introduzida pela Lei nº 64-A/2008, de 31 de Dezembro ao nº 1 do art. 105º do RGIT, e que consistiu na introdução de um limiar de relevância penal da prestação tributária nele referida – fixado em € 7.500 – é também aplicável ao crime de abuso de confiança contra a segurança social, previsto no art. 107º do mesmo diploma, por força da remissão constante do n.º 1 deste último preceito.

As molduras penais previstas num caso e noutro não podem ser vistas de forma “desarticulada” com as previsões típicas que lhes subjazem, devendo atender-se ao limite da prestação tributária de valor superior a € 7.500 que se encontra previsto no n.º 1 do artigo 105.º, como não pode deixar de se atender ao valor mínimo prestacional de € 50.000 para se configura o tipo qualificado a que alude o n.º 5.

O apelo às outras disposições que formam o complexo normativo do RGIT, a harmonia que deve caracterizar o sistema e a história da criminalização das condutas em causa, impedem a interpretação puramente literal, a que procede o Digno recorrente, no sentido de que a remissão do n.º 1 do artigo 107.º se confina às penas previstas nos nºs 1 e 5 do art. 105 do RGIT.

Uma tal interpretação, além de tornar incompreensível a remissão para duas estatuições sem que se descortinassem hipóteses distintas a justificar essa diversidade não é, salvo melhor opinião, conforme com os assinalados critérios hermenêuticos

No caso sub-judice, todas as parcelas as quantias devidas a título de contribuições, declaradas mensalmente nos períodos em causa nos presentes autos, são de valor inferior a € 7.500,00.

Os valores a considerar para estes efeitos são os que devem constar de cada declaração a entregar, em face do disposto no artigo 105.º nº 7 do RGIT, aplicável ex vi do nº 2 do art. 107 do mesmo diploma legal.

A parcela de maior valor em dívida pelos arguidos orça em € 1.026,87.

Assim, por força do disposto no art. 105º nº 1 do RGIT, na redacção que lhe foi dada pela Lei nº64-A/2008 de 31/12, também aplicável por força da remissão expressa do n.º 1 do art. 107.º do mesmo diploma, mostram-se descriminalizados os crimes de abuso de confiança contra a Segurança Social de que os arguidos foram acusados no âmbito dos presentes autos.

O que determina, nos termos do artigo 2.º, nº 2, do Código Penal, que se declare extinto o respectivo procedimento criminal, não merecendo censura a decisão recorrida.

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4. Decisão

Em face do exposto, decide-se julgar improcedente o recurso, confirmando-se a decisão recorrida.

Sem custas.

Honorários à Exma. Defensora Oficiosa: de acordo com a tabela em vigor (Portaria 1386/2004, de 10.11).

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(Documento elaborado pela relatora e integralmente revisto por quem o subscreve – artigo 94.º, n.º 2 do CPP)

Lisboa, 28 de Outubro de 2009


Maria José Costa Pinto
Maria Teresa Féria Gonçalves de Almeida