Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
215/07.0PBRGR.L1-5
Relator: JOSÉ ADRIANO
Descritores: NOTIFICAÇÃO DO ARGUIDO
NOTIFICAÇÃO POR VIA POSTAL
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 07/07/2009
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO
Sumário: I – A notificação por via postal simples efectuada com as formalidades enunciadas no nº 3 do art. 113º CPP visou tornar possível e válido um acto de notificação menos formal e com menos garantias do que o contacto pessoal para ultrapassar um dos principais obstáculos ao normal desenvolvimento da lide.
II – Com o depósito da carta na caixa do correio da residência indicada pelo arguido o legislador transferiu para este o ónus de manter actualizada a residência bem como o de controlar a correspondência ali entrada presumindo que recebeu a carta que ali foi depositada pelo serviço postal e que tomou conhecimento do respectivo conteúdo no prazo de 5 dias após o depósito.
III – Se, em vez de introduzir a carta na caixa do correio, o distribuidor do serviço postal a entrega em mão ao destinatário ou a quem tal como ele, tem acesso à mesma caixa de correio, há muito maiores garantias de que a carta chegou ao destinatário e que este tomou conhecimento do seu conteúdo.
IV – Constando da notificação que «os prazos acima indicados … iniciam-se a partir do quinto dia posterior à data do depósito na caixa do correio do destinatário, constante do sobrescrito» mas tendo a carta sido entregue em mão a notificação é válida porque a entrega em mão tem a mesma ou maior eficácia do que o depósito na caixa do correio.
V - Mas essa entrega não tem a virtualidade de anular a afirmação de que o prazo se inicia apenas ao 5º dia pois o destinatário não pode ser surpreendido com um prazo mais curto para a prática do acto processual do que aquele que foi indicado na carta só pelo facto de esta não ter dado entrada na caixa do correio. Tem necessariamente de valer o prazo mais longo que lhe foi indicado sob pena de restrição inadmissível das suas garantias de defesa.
Decisão Texto Integral: TEXTO INTEGRAL:

Acordam, em conferência, na 5.ª Secção (Criminal) da Relação de Lisboa:


I. RELATÓRIO:

1. Nos presentes autos de processo comum que correram termos no 2.º Juízo do Tribunal Judicial de R…  os arguidos A… , N… e M…, foram submetidos a julgamento, perante tribunal singular, acusados pelo Ministério Público e pelas assistentes da prática dos seguintes crimes:

- os dois primeiros arguidos, um crime de ofensa à integridade física, relativamente ao ofendido C… p. e p. pelo art. 143º, nº 1, do Código Penal, crime imputado na acusação pública;

- a terceira arguida, dois crimes de injúria, p. e p. pelo art. 181.º, do mesmo Código, imputados por cada uma das assistentes.

As assistentes deduziram, em separado, contra a arguida M… pedidos de indemnização civil …

O ofendido C… deduziu, contra os arguidos pedido de indemnização civil …

2. Realizado o julgamento, foi proferida sentença[1], na qual se decidiu (transcrição):

«Pelo exposto na procedência da acusação condeno os arguidos A… e N... como co-autores materiais sob a forma consumada de um crime de ofensas à integridade física p. p. pelo art. 143° do C. Penal:

…………………………………………………………………………………………………..

Como autora material sob a forma consumada de dois crimes de injurias p. p. pelo art° 181° do CP, condeno a arguida M…, por cada um deles, na pena de …………………………………………

Julgo os pedidos cíveis parcialmente procedentes por provados e assim condeno

…………………………………………………………………………………………..


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3. Inconformados, recorreram os arguidos N… A… e M… da sentença condenatória e ainda dos despachos de fls. 224 e 267 - pelos quais o tribunal não admitiu a contestação e róis de testemunhas apresentadas pelos arguidos -, formulando as seguintes conclusões:

«A) O dever de fundamentação dos actos jurisdicionais, para se mostrar minimamente cumprido, deve permitir às partes conhecer os pressupostos da decisão e ainda colocar o tribunal de recurso em posição de exprimir em termos mais seguros, um juízo concordante ou divergente.

B) No caso vertente a questão que se suscita é esta: o que levou a Mm.ª Juiz a considerar que todos os arguidos foram notificados a 4.2.09 e não a 9.2.09, quando a carta que receberam do tribunal dizia que o prazo indicado apenas se iniciaria a partir do quinto dia posterior à data do depósito? Que pressupostos fácticos e probatórios a levaram a essa conclusão? Que regime de notificação considerou aplicável ao caso concreto? Quais as normas jurídicas do regime da notificações que impõem estas conclusões e não outras soluções?

C) Todas estas questões não obtêm resposta face aos despachos impugnados, pelo que se impõe concluir que os mesmos enfermam de falta de fundamentação, violando, além do mais o disposto no art° 205°, n° 1 da Constituição da Republica Portuguesa (CRP), os art°s 97° n°5, 374°e 379° do CPP e o art° 158° do CPC, o que acarreta a nulidade dos mesmos e por consequência, a nulidade da audiência e da sentença de fls. 253 e seguintes.

D) A entender-se que tal vicio configura irregularidade, trata-se em qualquer caso de urna irregularidade com influência na decisão da causa, devendo em razão disso, proceder-se à anulação dos referidos despachos bem como à anulação da audiência e da sentença de fls 253 e seguintes.

E) O n° 5 do art° 97° do CPP, quando interpretado no sentido de que a mera alusão, em despacho, à intempestividade da contestação e róis de testemunhas com referência aos art°s 78° e 320° do CPP, satisfaz o dever de fundamentação é inconstitucional por violação do art° 205° n° 1 da CRP.

Sem prescindir e com as reservas atrás assinaladas decorrentes da falta de fundamentação invocada sempre se dirá que:

F) O funcionário do serviço postal não só não executou a notificação de que estava incumbido, como além disso, lançou mão de procedimentos não previstos na lei, substituindo o depósito no correio pela entrega a terceiros.

Trata-se de uma modalidade de notificação sem enquadramento legal, não prevista na lei e corno tal, deve ter-se por juridicamente inexistente, o que conduz, declarada esta, à anulação da audiência de julgamento e da sentença.

G) A considerar-se irregularidade, trata-se de irregularidade com influência no desenvolvimento e decisão a causa, que no caso deve ser conhecida oficiosamente, com as mesmas consequências das referidas na conclusão anterior.

H) Ao entender de modo diverso, o despacho de fls.224 , parece enfermar de erro notório na apreciação da prova e de erro de julgamento, violando os art°s 113°, 313°n°3 do CPP e art°s 20° e 32° da CRP, o que impõe a sua revogação, bem como a revogação da audiência e da sentença de fls. 253 e ss.

I) Por outro lado, o despacho parece inquinado dos mesmos vícios referidos na conclusão anterior, por não ter apreciado devidamente a circunstância de não constar dos autos qualquer termo de notificação, aviso ou outro similar assinado pelos arguidos, nem declaração expressa de terem recebido as cartas do distribuidor postal ou de terem com ele contactado, o que acarreta as mesmas consequências referidas na conclusão anterior.

J) A admitir-se o aproveitamento das notificações deverá entender-se que os arguidos foram notificados no quinto dia posterior à data da distribuição, ou seja no dia 9.2.09 e não no dia 4.2.09.

L) O despacho de fls. 224, além de consubstanciar verdadeira decisão surpresa, constitui um grave atropelo aos direitos fundamentais dos arguidos e às suas garantias de defesa, violando directamente os art°s 13°, 20° e 32 da CRP, o que de per se é fundamento suficiente para a sua revogação bem como para a revogação da audiência de julgamento e da sentença proferida nos autos.

Nestes termos, nos melhores de Direito e nos demais a suprir mui doutamente pelos Excelentíssimos Desembargadores, deve considerar-se procedente a falta de fundamentação dos despachos e, em consequência, proceder-se à sua anulação, bem como à anulação da audiência de julgamento e da sentença proferida, ou no caso de assim não se entender, devem considerar-se procedentes os vícios de inconstitucionalidade, erro notório na apreciação da prova e erro de julgamento que lhes são imputados, revogando-se os mesmos, bem como a audiência de julgamento e a sentença de fls 253 e seguintes.»


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4. Respondeu o Ministério Público, pugnando pela improcedência do recurso e manutenção dos despachos recorridos e da sentença.
5. Lavrado despacho de sustentação dos despachos recorridos, foram admitidos os recursos.
6. Neste Tribunal, a Exm.ª Procuradora-Geral Adjunta, apôs “visto”.
7. Proferido despacho preliminar e colhidos os necessários vistos, teve lugar a conferência, cumprindo decidir.

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II. FUNDAMENTAÇÃO:
1 - Conforme entendimento pacífico nos Tribunais Superiores, são as conclusões extraídas pelos recorrentes a partir da respectiva motivação que fixam o objecto do recurso, sem prejuízo da tomada de posição sobre todas e quaisquer questões que, face à lei, sejam de conhecimento oficioso e de que ainda seja possível conhecer.

Os recorrentes limitam os respectivos recursos às seguintes questões:
a) O despacho recorrido de fls. 224 sofre de nulidade, por falta de fundamentação, violando os arts. 205.º, n.º 1, da CRP, 97.º, n.º 5, 374.º e 379.º, do CPP, e 158.º, do CPC?
b) A entender-se que tal vicio configura irregularidade, trata-se em qualquer caso de uma irregularidade com influência na decisão da causa, devendo em razão disso, proceder-se à anulação dos referidos despachos bem como à anulação da audiência e da sentença de fls 253 e seguintes?
c) O n° 5 do art° 97° do CPP, quando interpretado no sentido de que a mera alusão, em despacho, à intempestividade da contestação e róis de testemunhas com referência aos art°s 78° e 320° do CPP, satisfaz o dever de fundamentação é inconstitucional, por violação do art° 205° n° 1 da CRP?
d) A notificação efectuada aos arguidos – sem que tenha ocorrido depósito da carta na caixa do correio - deve ter-se por juridicamente inexistente, o que conduz, declarada esta, à anulação da audiência de julgamento e da sentença?
e) A considerar-se irregularidade, trata-se de irregularidade com influência no desenvolvimento e decisão a causa, que no caso deve ser conhecida oficiosamente, com as mesmas consequências das referidas na conclusão anterior?
f) Ao entender de modo diverso, o despacho de fls.224, enferma de erro notório na apreciação da prova e de erro de julgamento, violando os art°s 113°, 313°n°3 do CPP e art°s 20° e 32° da CRP, o que impõe a sua revogação, bem como a revogação da audiência e da sentença de fls. 253 e ss.?


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2 - Vejamos, antes de mais, o conteúdo da decisão recorrida (sentença), no que concerne a matéria de facto:

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3 – Vejamos agora o teor dos despachos recorridos:
Após notificação do despacho que designou data para audiência de julgamento, vieram o arguidos juntar contestação e rol de testemunhas, bem como um aditamento a este, tendo sobre eles recaído o despacho de indeferimento fls. 224, com o seguinte conteúdo:
 “Fls. 203: Não admito as contestações e róis por serem extemporâneos, uma vez que todos os arguidos foram notificados em 4.2.09 e as contestações deram entrada a 2.3.09, mostrando-se assim precludidos os prazos a que aludem os arts. 78.º e 315.º, do CPP. Notifique”.

A 11 de Março de 2009, os arguidos vieram invocar a nulidade do despacho transcrito, por falta de fundamentação, nos termos dos arts. 374.º e 379.º, do CPP) ou, a entender-se que se trata de irregularidade, deve esta conduzir à anulação dos actos subsequentes – julgamento e sentença – face à sua importância decisiva para o desenvolvimento e boa decisão da causa, nos termos do disposto no art. 123.º, do CPP.
Sobre este novo requerimento recaiu o despacho de fls. 267, do seguinte teor:
“Não se verifica no nosso modesto entender, qualquer falta de fundamento de facto ou de direito no despacho que foi proferido a fls. 224, pois ali se refere a intempestividade das contestações e róis e os preceitos legais respectivos, pelo que indefiro o requerimento que antecede. Notifique.”

É pois, dos recursos destes dois despachos que se impõe conhecer, porquanto, apesar de recorrerem também da decisão final, os recorrentes nada alegaram – quer na motivação, quer nas respectivas conclusões – quanto ao mérito da sentença proferida.





4 – Apreciemos, pois, as questões suscitadas pelos recorrentes nas conclusões da motivação do recurso e a que já acima aludimos.
a) O despacho recorrido de fls. 224 sofre de nulidade, por falta de fundamentação, violando os arts. 205.º, n.º 1, da CRP, 97.º, n.º 5, 374.º e 379.º, do CPP, e 158.º, do CPC?

Os arts. 205.º, n.º 1, da CRP, 97.º, n.º 5 do CPP e 158.º, do CPC, impõem um dever geral de fundamentação de todas as decisões, determinando aquela norma processual penal que “os actos decisórios são sempre fundamentados, devendo ser especificados os motivos de facto e de direito da decisão”.

Porque no CPP há norma expressa regulando a respectiva matéria, não deve ser chamada à colação a norma processual civil (art. 158.º), ainda que subsidiariamente.

Por outro lado, também os arts. 374.º e 379.º, do CPP, não têm aplicação ao caso dos autos, porquanto aquelas normas se referem especificamente à fundamentação da sentença penal, definido a primeira os respectivos requisitos e cominando a segunda, com a nulidade, a inobservância de alguns daqueles requisitos.

Os simples despachos – todas as decisões que não conheçam, a final, do objecto do processo – estão sujeitos apenas ao dever geral de fundamentação consignado no citado art. 97.º, n.º 5, do CPP.

O despacho de fls. 224 respeita tal exigência. Dele se extrai com toda a clareza quais as razões da decisão proferida. Do seu teor resulta que as contestações e róis de testemunhas dos arguidos foram apresentados fora do prazo de 20 dias consignado nos arts. 78.º e 315.º, do CPP, sendo por isso tais peças processuais extemporâneas, porquanto foram as mesmas apresentadas em 2.3.2009 quando os arguidos foram notificados a 4.2.2009.

Para questão tão simples, a fundamentação da decisão não podia ser mais clara, apesar de concisa, contendo todos os elementos necessários à sua compreensão, quer de facto quer de direito. Tanto que, os arguidos compreenderam perfeitamente as razões aduzidas para o indeferimento, independentemente do facto de delas discordarem. Mas esta discordância nada tem a ver com a eventual falta de fundamentação. Esta existe, com suficiência. O que pode acontecer é a decisão estar eventualmente incorrecta, por assentar em pressupostos de facto errados ou por ter aplicado defeituosamente o direito. Mas, nesse caso a decisão é atacada pelo seu demérito, não por estar formalmente incorrecta.

De qualquer forma, a deficiente fundamentação de qualquer despacho conduz-nos a uma mera irregularidade, nunca à nulidade do acto - esta só se verifica nos casos de absoluta ausência de fundamentação -, face ao princípio da legalidade que vigora em matéria de nulidades, não estando como tal expressamente prevista, em sintonia com a unanimidade da jurisprudência dos nossos tribunais superiores sobre esta matéria.

Em suma, não sofre o despacho impugnado de fls. 224 de qualquer invalidade por falta de fundamentação, quer se trate de nulidade quer de irregularidade.
b) A entender-se que tal vicio configura irregularidade, trata-se em qualquer caso de uma irregularidade com influência na decisão da causa, devendo em razão disso, proceder-se à anulação dos referidos despachos bem como à anulação da audiência e da sentença de fls 253 e seguintes?

Porque entendemos que também não existe qualquer irregularidade – o despacho em causa está devidamente fundamentado - , está esta questão prejudicada, inexistindo qualquer tipo de invalidade que acarreta as consequências pretendias pelos recorrentes: anulação dos despachos impugnados, do julgamento e da sentença.

Outra questão é, como já referimos supra, a que respeita ao mérito do decidido, de que falaremos mais adiante.


c) O n° 5 do art° 97° do CPP, quando interpretado no sentido de que a mera alusão, em despacho, à intempestividade da contestação e róis de testemunhas com referência aos art°s 78° e 320° do CPP, satisfaz o dever de fundamentação é inconstitucional, por violação do art° 205° n° 1 da CRP?

Esta questão está igualmente prejudicada, porquanto entendemos que a decisão impugnada está devidamente fundamentada, observando estritamente as exigências que resultam dos normativos citados, não sendo violado qualquer preceito constitucional com tal entendimento.


d) A notificação efectuada aos arguidos – sem que tenha ocorrido depósito da carta na caixa do correio - deve ter-se por juridicamente inexistente, o que conduz, declarada esta, à anulação da audiência de julgamento e da sentença?

A invalidade dos actos, que emerge da inobservância das normas processuais, pode assumir vários graus, consoante a gravidade da desconformidade do acto com a imposição legal e o grau de interesses que a norma visa proteger, classificando a lei tais invalidades em nulidades, que por sua vez podem ser absolutas ou insanáveis, por contraposição às nulidades relativas – estas diferenciam-se das anteriores por terem de ser arguidas em certo prazo sob pena de se sanarem -, podendo ainda o acto ser meramente irregular.

Tem a doutrina admitido ainda a inexistência jurídica do acto, sanção bem mais gravosa que as anteriores, para aqueles casos em que a anomalia é tão grande que o acto nem sequer é comparável com o seu esquema normativo, não alcançando aquele mínimo imprescindível para ser reconhecido como tal e ter vida jurídica. Enquanto nas nulidades absolutas o acto, ainda que imperfeito, é idóneo a produzir os efeitos jurídicos que a lei lhe atribui, na inexistência jurídica o acto é inidóneo para a produção de quaisquer efeitos jurídicos, não os devendo, em caso algum, produzir[2].

Não é seguramente o caso dos autos. O tribunal procedeu a uma notificação dos arguidos, ordenada pelo juiz no âmbito de um processo penal, assumindo tal notificação uma das formas previstas na lei - notificação por via postal simples -, verificando-se apenas uma ligeira desconformidade entre o modo de entrega da carta previsto na lei - depósito na caixa do correio - e o modo concretamente utilizado pelo distribuidor postal - entrega em mão -, desconformidade que, como veremos, é irrelevante para o efeito. A notificação visa dar conhecimento ao notificando de determinada realidade processual: no caso, a data para audiência de julgamento. O tribunal usou um dos meios de notificação previstos na lei, que se mostrou eficaz, pois os arguidos tomaram efectivo conhecimento do conteúdo da carta, tendo-lhes esta sido entregue. Não se pode, pois, dizer que inexiste um acto de notificação. Houve efectivamente um acto de notificação, susceptível de produzir efeitos jurídicos. A eventual desconformidade no modo de entrega da carta, acima assinalada, poderia eventualmente traduzir uma nulidade ou irregularidade. Todavia, face ao princípio da legalidade que rege tal matéria e não estando tal vício expressamente previsto como nulidade, está posto de parte este vício, restando a mera irregularidade. Todavia, nem este modo de invalidade se verifica.

Conforme já assinalámos, a função da notificação é dar conhecimento ao destinatário da carta de determinado acto processual, no caso a data do julgamento. O art. 113.º, n.º 3, do CPP, ao dispor que “quando efectuada por via postal simples, o funcionário judicial lavra uma cota no processo com a indicação da data da expedição da carta e do domicílio para a qual foi enviada e o distribuidor do serviço postal deposita a carta na caixa de correio do notificando, lavra uma declaração indicando a data e confirmando o local exacto do depósito, e envia-a de imediato ao serviço ou ao tribunal remetente, considerando-se a notificação efectuada no 5.º dia posterior à data indicada na declaração lavrada pelo distribuidor do serviço postal, cominação esta que deverá constar do acto de notificação”, visou apenas tornar possível e válido um acto de notificação menos formal e com menos garantias do que o contacto pessoal, para ultrapassar um dos principais obstáculos ao normal desenvolvimento da lide, já que aquele contacto pessoal é impossível na maioria das situações, por não ser encontrado em casa o destinatário da notificação quando ali é procurado, durante o horário de expediente. Com o depósito da carta na caixa do correio sita na residência indicada pelo arguido no respectivo termo de identidade e residência, o legislador transferiu para o arguido o ónus de manter actualizada a residência, dando conhecimento ao tribunal qualquer mudança da mesma, bem como o de controlar a correspondência entrada na sua caixa de correio, presumindo que recebeu a carta que ali foi depositada pelo serviço postal e que tomou conhecimento do respectivo conteúdo no prazo de 5 dias após o depósito. Se, em vez de introduzir a carta na caixa do correio, o distribuidor do serviço postal a entrega em mão ao destinatário, ou a quem, tal como ele, tem acesso à mesma caixa de correio, há muito maiores garantias de que a carta chegou ao destinatário e que este tomou conhecimento do seu conteúdo. Neste caso não há qualquer presunção, mas a certeza de que o destinatário foi notificado. A entrega em mão substitui, com garantias acrescidas para o notificando, o depósito na caixa do correio, equiparando-se a este, para todos os efeitos legais, concretizando-se validamente a notificação como se houvesse depósito. Este é apenas um meio, considerado minimamente eficaz pelo legislador, para fazer chegar ao destinatário a carta enviada. Se a carta for directamente entregue ao destinatário, ou a quem com ele coabita (tendo também acesso à mesma caixa de correio) qual a relevância do depósito? Nenhuma, rigorosamente.

Não podem os arguidos argumentar que não houve notificação, porque a houve – tomaram efectivo conhecimento do conteúdo da carta que lhes foi dirigida pelo tribunal – nem que houve diminuição das suas garantias de defesa, porquanto a realidade é precisamente a contrária, sendo maiores as garantias havendo entrega “em mão” do que com o depósito.

Do exposto se conclui pela inexistência de qualquer invalidade, estando liminarmente afastada a invocada “inexistência jurídica” do acto.


e) A considerar-se irregularidade, trata-se de irregularidade com influência no desenvolvimento e decisão a causa, que no caso deve ser conhecida oficiosamente, com as mesmas consequências das referidas na conclusão anterior?

Conforme já referido na antecedente alínea, a notificação efectuada aos arguidos do despacho que designa data para julgamento é plenamente válida, não estando afectada de qualquer vício. Inexiste pois qualquer irregularidade com as consequências pretendidas pelos recorrentes.


f) Ao entender de modo diverso, o despacho de fls. 224, enferma de erro notório na apreciação da prova e de erro de julgamento, violando os art°s 113°, 313° n°3 do CPP e art°s 20° e 32° da CRP, o que impõe a sua revogação, bem como a revogação da audiência e da sentença de fls. 253 e ss.?
Os vícios consignados no art. 410.º, n.º 2, do CPP, referem-se única e exclusivamente à sentença. Não é possível transplantá-los para qualquer outro tipo de decisão, nomeadamente um despacho judicial que afere da tempestividade da contestação e rol de testemunhas. Não é aqui possível a figura do erro notório na apreciação da prova, o qual, quando referido à decisão final, tem de resultar exclusivamente do conteúdo desta, em conjugação com as regras da experiência comum, sem recurso a outros elementos de prova ainda que constantes dos autos.
Conclui-se pela inexistência do referido vício.
Haverá, porem, erro de julgamento?
Entendemos assistir razão, neste ponto, aos recorrentes.
Na verdade, estes foram notificados via postal simples, nos termos do art. 113.º, do CPP.
Dispõe-se neste artigo:

“1 - As notificações efectuam -se mediante:

a) Contacto pessoal com o notificando e no lugar em que este for encontrado;

b) Via postal registada, por meio de carta ou aviso registados;

c) Via postal simples, por meio de carta ou aviso, nos casos expressamente previstos; ou

d) Editais e anúncios, nos casos em que a lei expressamente o admitir.

2 - Quando efectuadas por via postal registada, as notificações presumem-se feitas no 3.º dia útil posterior ao do envio, devendo a cominação aplicável constar do acto de notificação.

3 - Quando efectuadas por via postal simples, o funcionário judicial lavra uma cota no processo com a indicação da data da expedição da carta e do domicílio para a qual foi enviada e o distribuidor do serviço postal deposita a carta na caixa de correio do notificando, lavra uma declaração indicando a data e confirmando o local exacto do depósito, e envia-a de imediato ao serviço ou ao tribunal remetente, considerando-se a notificação efectuada no 5.º dia posterior à data indicada na declaração lavrada pelo distribuidor do serviço postal, cominação esta que deverá constar do acto de notificação.

4 - Se for impossível proceder ao depósito da carta na caixa de correio, o distribuidor do serviço postal lavra nota do incidente, apõe -lhe a data e envia-a de imediato ao serviço ou ao tribunal remetente.

…”

A carta dirigida aos arguidos para notificação destes foi remetida via postal simples, logo deveria cumprir-se o determinado no n.º 3, nomeadamente a exigência de se fazer constar do acto a cominação de que a notificação se considera efectuada “no 5.º dia posterior à data indicada na declaração lavrada pelo distribuidor do serviço postal”.
Efectivamente, no acto de notificação fez-se constar que “os prazos acima indicados …iniciam-se a partir do quinto dia posterior à data do depósito na caixa do correio do destinatário, constante do sobrescrito (art. 113.º, n.º 3, do CPP)” – fls. 176 v.º a 179.
É certo que esta declaração se refere à “data do depósito na caixa do correio”.
No presente caso não ocorreu o depósito, constando da declaração que a carta foi “entregue em mão” – fls. 187 a 189.
Será que este facto – “entrega em mão” – tem a virtualidade de anular aquela afirmação de que o prazo se inicia apenas ao 5.º dia, passando o prazo a contar-se de imediato a partir da data da entrega?
Na carta registada com aviso de recepção, o destinatário, ou alguém que o represente, tem de assinar o aviso de recepção, comprovando que recebeu, naquela data, a carta respectiva.
Na via postal simples, porque a lei prevê o depósito da carta na caixa do correio, ninguém assina a recepção da carta, porque ninguém lá está para a receber. O que vale é a data aposta como sendo a do depósito, presumindo a lei que o destinatário tome conhecimento do seu conteúdo no prazo máximo de 5 dias. No presente caso, apesar de não ter ocorrido o depósito e de constar que a carta foi entregue em mão, não se sabe a quem foi ela entregue, se ao próprio ou se a terceira pessoa da casa com acesso à caixa do correio, porque ninguém assinou como tendo recebido. Não se pode, por isso, tirar a ilação que o destinatário da carta tomou de imediato conhecimento do conteúdo da carta na data em que foi entregue pelo distribuidor postal. Todavia, para além das dúvidas que emergem do atrás exposto, o que releva de forma determinante é o prazo que foi expressamente concedido aos notificandos e que não pode ser encurtado pelo facto de o distribuidor postal não ter seguido à risca o procedimento que resulta da norma transcrita. Concedido à parte - no caso, ao arguido - um prazo determinado para a prática de certo acto processual, não pode depois o tribunal considerar extemporânea a prática do acto nesse prazo, por ter o entendimento que o prazo, afinal, é outro, mais curto, ou porque o respectivo termo a quo era outro, anterior ao indicado à parte.
Ou seja: se a notificação é válida, porque a entrega em mão tem a mesma ou mais eficácia do que o depósito na caixa do correio, não pode, todavia, o destinatário ser surpreendido com um prazo mais curto para a prática do acto processual do que aquele que lhe foi indicado na carta, só pelo facto de esta não ter dado entrada na caixa do correio. Tem necessariamente de valer o prazo, mais longo, que lhe foi indicado pelo tribunal, sob pena de restrição inadmissível das suas garantias de defesa. A situação é idêntica àquelas em que o tribunal de primeira instância concede, por despacho transitado, uma prorrogação do prazo para recorrer e depois o tribunal de recurso, tendo outro entendimento, considera ilegal tal prorrogação e rejeita o recurso por intempestivo. Tem de haver coerência no sistema e, para ser coerente, o tribunal, seja qual for a instância, não pode dar um prazo mais longo e depois considerar que o acto praticado nesse prazo é extemporâneo porque o prazo legal é mais curto do que o previamente concedido. A este propósito pode ler-se no Ac. do STJ de 21/09/2006, proferido no Proc.06P2559 (www.dgsi.pt):
“I - Decidido na 1.ª instância, com força de caso julgado, prorrogar o prazo para interposição de recurso, não pode o Tribunal da Relação ter essa interposição como intempestiva, nos termos do n.º 3 do art. 414.º do CPP.
II - Em todo o processo - civil ou penal -, deve observar-se uma relação de coerência, ou seja, a indiscutibilidade da subsistência de certa afirmação (no caso, a dilatação concedida para o prazo de recurso), acarreta necessariamente consigo a indiscutibilidade da subsistência ou insubsistência de outras afirmações, as quais se encontram com aquela numa relação particular (no caso, a possibilidade do tribunal de recurso poder considerar-se desvinculado da admissão do recurso com base em intempestividade, apesar de este haver sido interposto no prazo concedido ao recorrente, com força de caso julgado).
III - Esta relação permite a inferência entre subsistências e insubsistências, de tal modo que quando não é possível a coexistência de duas afirmações tomadas ambas como subsistentes dentro da mesma ordem jurídica, sem quebra da sua coerência interna, então a elevação de uma das afirmações a res iudicata envolve o acertamento igualmente definitivo da insubsistência da segunda. Estamos perante um fenómeno que podemos chamar de extensão inversa de caso julgado: da subsistência indiscutível do conteúdo deste, conclui-se a insubsistência de outra afirmação, por se verificar entre as duas uma relação de incompatibilidade.

IV - Esta é a única solução que garante um processo justo e leal, assim como a imprescindível tutela da confiança, como elementos de um processo equitativo.”


Notificados os arguidos por via postal simples, com a cominação de que se consideraria efectuada a notificação no 5.º dia posterior à data indicada na declaração lavrada pelo distribuidor do serviço postal, não pode depois o tribunal considerar que tal notificação ocorreu em data anterior, julgando, em consequência disso, intempestiva a prática do acto. A interpretação feita pelo tribunal traduzir-se-ia num encurtamento do prazo de que os arguidos dispunham para o exercício dos seus direitos de defesa, não tendo sido previamente alertados quanto ao novo termo inicial do prazo de 20 dias de que dispunham para a prática do acto.
Entendemos, pois, que o aludido prazo só pode iniciar-se após o 5.º dia posterior à entrega da carta (9/2/09). Pelo que a apresentação da contestação e rol de testemunhas de cada um dos arguidos (em 2/3/2009) é tempestiva.
Nessa conformidade, é procedente o recurso do despacho de fls. 224, sendo de revogar este, o qual deve ser substituído por outro que admita aquelas peças processuais, seguindo-se os ulteriores termos e ficando, em consequência, sem efeito o julgamento realizado e a sentença proferida.

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III. DECISÃO:

Em conformidade com o exposto, julga-se procedente o recurso intercalar dos arguidos N…, A… e M…, revogando-se o despacho de fls. 224, o qual deve ser substituído por outro que admita as peças processuais ali referidas, seguindo-se os ulteriores termos e ficando, em consequência, sem efeito o julgamento realizado e a sentença proferida.

José Adriano

Vieira Lamim

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[1]  Datada de 11/03/2009 e depositada a 17/03/2009.
[2]  Cfr. a este propósito, João Conde Correia, in “Contributo para a análise da Inexistência e das Nulidades Processuais Penais”, Boletim da Faculdade de Direito da Univ de Coimbra, 1999, pág. 120.