Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
281/08.1TAALM.L2-9
Relator: JOÃO CARROLA
Descritores: DEFICIÊNCIA DA GRAVAÇÃO
GRAVAÇÃO DA PROVA
ARGUIÇÃO DE NULIDADES
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 01/26/2012
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: ANULADO
Sumário: Iº Face à actual redacção do art.363, do Código de Processo Penal, introduzida pela Lei nº59/98, de 25Ago., a omissão (ou deficiência) de gravação constitui uma nulidade sanável, sujeita ao regime de arguição e sanação dos arts.120, nº1 e 121, do C.P.P., em conjugação com o art.9, do Dec. Lei nº39/95, de 16Fev.;
IIº Essa nulidade pode ser arguida nas próprias alegações e dentro do prazo de recurso;
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na 9.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa:

I.
No processo comum n.º 281/08.1TAALM do 1.º Juízo Criminal de Almada, os arguidos A..., C... e B…, Ldª, foram submetidos a julgamento, após terem sido acusados da prática, em co-autoria, de treze crimes de abuso de confiança em relação à segurança social, p. e p., pelo artº 107º do RGIT, aprovado pela Lei nº 15/2001 de 05-06.
Pelo Instituto de Segurança Social, IP Centro Distrital de Setúbal, foi deduzido pedido de indemnização civil contra os arguidos, peticionando a condenação solidária dos mesmos no pagamento das quantias retidas e não entregues no valor de € 5.572,06, acrescida de juros vincendos.
Realizada a audiência, foram condenados:
- O arguido A... pela prática em concurso real de onze crimes de abuso de confiança em relação à Segurança Social, p. e p., pelas disposições conjugadas dos art.ºs 107º, n.º 1 e 105º, n.º 1 do RGIT, na pena de noventa (90) dias de multa para cada um dos crimes e, em cúmulo jurídico, nos termos do artigo 77º do Cód. Penal, na pena única de duzentos e cinquenta dias (250) de multa, à taxa diária de cinco euros (€ 5,00) e a que corresponde a prisão subsidiária de 166 dias de prisão nos termos do art.º 49º do C.Penal;
- A arguida C... pela prática em concurso real de onze crimes de abuso de confiança em relação à Segurança Social, p. e p., pelas disposições conjugadas dos art.ºs 107º, n.º 1 e 105º, n.º 1 do RGIT, na pena de noventa (90) dias de multa para cada um dos crimes e, em cúmulo jurídico nos termos do artigo 77º do Cód.Penal, na pena única de duzentos e cinquenta dias (250) de multa, à taxa diária de quatro euros (€ 4,00) e a que corresponde a prisão subsidiária de 166 dias de prisão nos termos do art.º 49º do C.Penal;
- A arguida sociedade B…, Ldª pela prática em concurso real de onze crimes de abuso de confiança em relação à Segurança Social, p. e p., pelas disposições conjugadas dos art.ºs 107º, n.º 1 e 105º, n.º 1 do RGIT, na pena de cento e oitenta dias (180) de multa para cada um dos crimes e, em cúmulo jurídico nos termos do artigo 77º do Cód.Penal, na pena única de quinhentos dias (500) de multa, à taxa diária de seis euros;
- Os arguidos solidariamente a pagar ao Instituto de Segurança Social, IP Centro Distrital de Setúbal a quantia de três mil, oitocentos e vinte e nove euros e seis cêntimos (€ 3.829,06), acrescida de juros de mora vencidos desde o dia 16 do mês seguinte àquele a que respeitam as contribuições deduzidas e não entregues e vincendos até efectivo e integral pagamento, contados à taxa legal, sendo os vencidos até à data da dedução do pedido nos autos no valor de mil, setecentos e quarenta euros (€ 1.743,00).

Inconformada com a decisão, dela veio interpor recurso a arguida C..., com os fundamentos constantes da respectiva motivação que aqui se dá por reproduzida e as seguintes conclusões:
1….
2….
Termina pela declaração de nulidade da audiência de discussão e julgamento e a determinação da repetição da mesma e de todos os actos subsequentes.
O Digno Magistrado do Ministério Público respondeu concluindo:
“1…
2….

Neste Tribunal, a Exma. Procuradora-Geral Adjunta teve vista nos autos, limitando-se a aderir à resposta ao recurso oferecida em primeira instância.
Foi dispensado o cumprimento do disposto no art.º 417º n.º 2 CPP.

II.
Colhidos os vistos legais, cumpre agora apreciar e decidir.
Na sentença recorrida, o tribunal considerou provado o seguinte:
1…..
…..

O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação, sendo apenas as questões aí sumariadas as que o tribunal de recurso tem de apreciar, conforme jurisprudência uniforme do STJ (cfr. Ac. STJ de 28.04.99, CJ/STJ, ano de 1999, p. 196 e jurisprudência ali citada), sem prejuízo das de conhecimento oficioso, designadamente os vícios indicados no art. 410º nº 2 do C.P.P. (cfr. Ac. STJ para fixação de jurisprudência nº 7/95, de 19/10/95, publicado no DR, série I-A de 28/12/95).
No caso dos autos, face às conclusões da motivação do recurso, as questões suscitadas são:
1. Nulidade da audiência de discussão e julgamento por deficiente gravação da prova produzida na mesma e com vista à impugnação da matéria de facto
2. a) Da nulidade da audiência de julgamento por ausência de notificação da arguida.

Por uma questão de precedência entre as questões suscitadas começaremos por apreciar a invocada em último lugar.
Veio a arguida invocar que não esteve presente na audiência de julgamento por não ter recebido as notificações enviadas para a morada indicada quando prestou TIR uma vez que entretanto mudou de residência em virtude se ter separado do seu ainda marido e nunca lhe ocorreu informar a alteração da morada porque o seu marido lhe afirmou que tratava de tudo e nuca lhe entregou as notificações.
E, acrescenta, que depois de ter sido informada, por dois agentes da PSP, da necessidade de se deslocar ao tribunal e tendo passado a ser notificada para a actual morada, passou a estar presente.

Verificam-se, com relevo, as seguintes ocorrências processuais:
- A audiência de discussão e julgamento, inicialmente designada apara o dia 11 de Fevereiro de 2010 (fls. 368), por impossibilidade de cumprimento de tal despacho foi postergada para o dia 15.04. 2010 (despacho de fls. 369).
Em cumprimento deste último despacho, foi expedida, a 9.02.2010 notificação por via postal simples com prova de depósito, depósito esse certificado a fls. 383, para a morada que a arguida C... havia declarado no TIR como aquela que era a sua residência para efeitos processuais.
Por despacho proferido a fls. 392 foi alterada a data de realização de julgamento para o dia 27.05.2010, despacho e data estes que foram objecto de notificação à arguida C... por via postal simples com prova de depósito expedida a 16.04.2010 para a morada prestada no TIR (fls. 398), mostrando-se o depósito certificado a fls. 406.
- Na data agendada, 25.07.2010, a arguida não compareceu em julgamento, nem justificou a sua falta.
-O Tribunal procedeu ao início da audiência de julgamento, tendo proferido o seguinte despacho “A arguida C... encontra-se regularmente notificada, não compareceu nem justificou a sua ausência, pelo que, ao abrigo do disposto no art.º 116º, n.º 1 do CPP, é a mesma condenada em multa processual no valor de 2 UC´s.
O tribunal não considera imprescindível a presença da arguida desde o início do julgamento, pelo que se dará inicio ao mesmo nos termos do art.º 333º do CPP.”
- No final da sessão de audiência em questão, a Mma Juiz Presidente, invocando a utilidade da presença da arguida em julgamento para a boa decisão da causa, determinou a interrupção da audiência e designou para sua continuação o dia 21 de Junho de 2010, determinando ainda a emissão de mandados de detenção para comparência com busca das residências eventualmente declaradas pela arguida.
- Nesta sessão de 21 de Junho de 2010 e perante a informação obtida junto das autoridades policiais que a arguida não havia sido localizada para cumprimento dos mandados a Mma. Juiz Presidente invocando a inviabilidade de audição da arguida devido à ausência da mesma e porque não existisse mais prova a produzir determinou a passagem às alegações orais – cfr. fls. 447.
Não foi ditado qualquer requerimento por parte da defensora oficiosa da arguida.
O Tribunal designou e procedeu à leitura da sentença no dia 08.07.2010.
Deste acórdão foi interposto recurso que foi conhecido pela 5ª Secção Criminal desta Relação na sequência de recurso interposto unicamente pelo M.º P.º relativamente à declaração de extinção do procedimento criminal em virtude da alteração introduzida pelo artigo 113º da Lei 64ª/2008 de 31.12 ao art.º 105º n.º1 RGIT.
Na sequência da decisão desse recurso, foi efectuada a 13.06.2011, audiência de julgamento a que a arguida já esteve presente.

O que a arguido vem colocar em causa é que a notificação para a data da audiência (a primeira das realizadas) tenha sido remetida para a morada constante do Termo de Identidade e Residência que prestou nos autos que a mesma já havia abandonado.
Inexistindo qualquer dúvida em que a morada para onde foi enviada a notificação por via postal simples é exactamente a morada que a arguida indicou no TIR, essa morada é aquela em que a arguida deve ser notificada como decorre do disposto no art.º 196º n.º 2 CPP.
Perante isto, face à não devolução da carta enviada e com a junção do talão certificando o depósito da carta na caixa de correio daquela residência o julgador apenas pode presumir que a notificação se mostra correctamente feita ou que, perante a respectiva ausência no acto para o qual havia sido convocada sem que tenha justificado a falta, a arguida mudou de residência e não o comunicou aos autos, em violação das suas obrigações processuais decorrentes do art.º 196º, nºº 3, al. b), do CPP.
Dos autos resulta, posteriormente, que a arguida veio efectivamente a ser notificada numa outra morada, cujo conhecimento não adveio de nenhuma comunicação feita pela mesma, mas sim por investigação feita pelo próprio Tribunal (cfr. fls. 422).
É pois evidente que, tal como a mesma admite, a arguido mudou de residência e não comunicou tal facto ao Tribunal, em violação das suas obrigações processuais. Nestas situações, como escreve Paulo Pinto de Albuquerque (Comentário, 3ª edição, fls. 557), e como se decidiu no acórdão do TRP de 4.6.2008 (in CJ, XXXIII, 3, 214), mantém-se válida a morada fornecida até comunicação da mudança.
A arguida sabia, porque lhe foi comunicado quando prestou o TIR, que o incumprimento desta obrigação legitimava a sua representação por defensor em todos os actos processuais nos quais tenha o direito ou o dever de estar presente e bem assim a realização da audiência na sua ausência (cfr. art.ºs. 196º, n.º 3, al. b) e 333º, do CPP).
Resulta assim que a notificação da data designada para a primeira audiência de julgamento foi enviada por via postal simples, com prova de depósito, para a morada indicada pela arguida no TIR, pelo que a mesma foi regularmente notificada da data do julgamento. Se a arguido, como diz, não tomou conhecimento da data da audiência foi por culpa sua, estando ciente das suas consequências, isto independentemente de ter confiado, como alega, na pessoa do seu marido na resolução dos problemas.
É certo que a arguida mantinha o direito de prestar declarações até ao encerramento da audiência, mas acontece que o defensor da arguida não requereu a sua audição, o que poderia ter feito nos termos consentidos no n.º 3, do art.º 333º, do CPP.
Logo, nos termos do citado art.º 196º n.º 3, al. b), do CPP, tinha de ser, como foi, considerado notificado, e como tal não se verifica a invocada nulidade decorrente de falta de notificação.

Quanto à questão da nulidade decorrente da deficiente gravação da prova, alegando que, pretendendo impugnar a matéria de facto, não ser perceptível a quase totalidade das declarações do arguido e dos depoimentos prestados pelas testemunhas pedindo que seja determinada a repetição da prova produzia, com a anulação do julgamento.
Por sua vez, o Ministério Público, vem responder que a alegação da invocada nulidade se mostra extemporânea face à data em que as audições se mostram feitas (por referência à audiência de 27.05.2010 em que a prova foi produzida).

Decidindo.
Independentemente da data em que a gravação deficiente foi feita, a acta da audiência de julgamento documenta que se procedeu à documentação das declarações prestadas em audiência através de gravação magnetofónica, um dos meios legalmente previstos para o efeito no art.º 101º, n.º 1, do CPP.
Na sequência dessa audiência, o acórdão proferido limitou-se a declarar extinto o procedimento criminal contra os arguidos.
Dessa decisão apenas o M.º P.º recorreu sendo que aos arguidos não assistia legitimidade para essa prerrogativa processual. Daí a desnecessidade de a arguida apreciar a boa ou deficiente gravação da prova na sequência da efectiva gravação da mesma.
Esta necessidade só surgiu na sequência do acórdão de que agora pretende recorrer em que veio a ser condenada.
Acontece que depois de ouvir o CD da gravação da prova junto aos autos, verificamos que as deficiências são muitas, que todos os depoimentos têm falhas profundas traduzidas ora por interferências, ora por ruídos ou mesmo, em alguns casos, de nula audibilidade, como é referido no recurso.
Tem sido vasta a jurisprudência que se tem pronunciado sobre as consequências da omissão ou deficiência da gravação da prova, e que está longe de ser pacífica, o que nos conduz a aduzir algumas considerações quanto ao seu enquadramento jurídico.
Começando pela qualificação de tal deficiência, vemos que o art.º 363º do CPP, na actual redacção que lhe foi dada pela Lei nº 48/2007 de 29/08, define a falta de documentação da prova como uma nulidade processual, dispondo, concretamente que “as declarações prestadas oralmente na audiência são sempre documentadas na acta, sob pena de nulidade” (sublinhado nosso)
Também a deficiente gravação da prova, desde que não permita percepcionar o teor dos depoimentos e apreender o sentido da prova produzida, pode, da mesma forma, constituir nulidade. Isto porque, uma e outra, equivalem-se, ou seja, encontram-se num mesmo patamar de gravidade quanto à violação ou inobservância da respectiva disposição legal na medida em que não permitem alcançar o sentido dos depoimentos. Nestas circunstâncias, a deficiente gravação da prova deve ser equiparada à situação de falta (total ou parcial) da gravação – tal tem sido o sentido da jurisprudência, mesmo antes de a lei qualificar o vício como nulidade.
Como sabemos, a nossa lei processual consagra um amplo sistema de nulidades taxativas, estabelecendo o n.º 1 do art.º 118º que “a violação ou a inobservância das disposições da lei do processo penal só determina a nulidade do acto quando esta for expressamente cominada na lei”.
E, como já afirmámos, a falta de gravação (ou a sua deficiência) está prevista como nulidade em disposição especial da lei processual (art.º 363º), e não estando prevista expressamente como insanável, nem constando do elenco previsto no artigo 119º, trata-se de nulidade sanável, dependente de arguição, sujeita ao regime do art.º 120º, do CPP.
O legislador, através do Decreto-Lei 39/95 de 16/02, havia institucionalizado no direito processual a admissibilidade do registo das provas produzidas em audiência de discussão e julgamento, começando o art.º 363º, do CPP, na redacção que lhe foi conferida pela Lei 59/98, de 25/08, por ser uma norma programática para o futuro, estabelecendo um princípio geral de documentação das declarações orais. E começaram por ser documentadas em acta apenas as declarações orais prestadas em audiência perante tribunal singular, embora com a possibilidade de os sujeitos processuais, por acordo, prescindirem da documentação, sendo sempre obrigatória no caso de audiência realizada na ausência do arguido.
Percorrida essa experiência, o legislador acabou por tornar a documentação obrigatória guiado pelo paradigma de um modelo que assegure um efectivo 2º grau de jurisdição em matéria de facto - tal é o desiderato da documentação dos depoimentos orais prestados na audiência.
A regulamentação do modo de gravação está prevista nos art.ºs 3.º a 9º do citado DL 39/95, ressaltando-se aqui que os meios técnicos instalados têm de ser fornecidos pelo tribunal, sendo manobrados por funcionários de justiça que hão-de respeitar na sua utilização os procedimentos técnicos adequados ao efeito, e que deverão facultar cópia da gravação à parte que o requeira, dentro de 8 dias após o acto de gravação (art.º 7º n.º 2).
Por sua vez dispõe o art.º 9º do mesmo diploma que “Se, em qualquer momento, se verificar que foi omitida qualquer parte da prova ou que esta se encontra imperceptível, proceder-se-á à sua repetição sempre que for essencial ao apuramento da verdade”.
Concluímos assim que, face da actual redacção do art.º 363º, não se suscitam dúvidas de que a omissão (ou deficiência) de gravação constitui uma nulidade sanável, sujeita ao regime de arguição e de sanação dos artigos 120º, n.º 1 e 121º, do CPP, em conjugação com o art.º 9º do citado DL 39/95.
A questão que tem sido discutida e divide a Jurisprudência, prende-se com a questão do prazo de arguição desta nulidade e de que é paradigmática a resposta produzida pelo M.º P.º.
Podemos extrair da jurisprudência que se têm perfilado duas orientações:
- Uma, em que o prazo para arguição da nulidade se circunscreve a 10 dias, de acordo com o art.º 105º, do CPP, iniciando-se a contagem desse prazo i) imediatamente após o termo da audiência de julgamento; ii) a partir da data da disponibilização do registo magnético pelo tribunal ou iii) contados da data limite em que a parte poderia ter solicitado a entrega da cópia do registo da gravação, nos termos do n.º 2 do art.º 7º do DL 39/95.
Nesta orientação, os sujeitos processuais devem então diligenciar, dentro do prazo de 10 dias, pela audição dos respectivos suportes magnéticos, presumindo-se que actuam de forma negligente se o não fizerem.
- Uma outra, que entende que a nulidade pode ser arguida dentro do prazo das alegações de recurso, podendo a arguição ter lugar na própria alegação de recurso.
Do nosso ponto de vista, porque a temos por mais correcta e adequada, e se vem firmando como entendimento jurisprudencial largamente dominante, perfilhamos esta última posição.
Dizemos que nos parece mais correcta, por se mostrar mais consentânea com o objectivo da gravação da prova, qual seja o de assegurar amplamente o duplo grau de jurisdição em matéria de facto.
Acresce que independentemente de a qualificarmos, pela sua própria natureza, como sendo de conhecimento oficioso, sempre se dirá que o prazo de arguição das nulidades se encontra dependente do momento do seu conhecimento, o que sempre levaria a considerar que o prazo, neste caso, só corre quando a parte interessada ouvisse os registos da gravação.
E mesmo encontrando-se presentes na audiência em que gravação foi efectuada só posteriormente se aquilatará da respectiva deficiência, pela simples razão de que não têm possibilidades de controlar a gravação, nem se lhes pode exigir que venham de imediato arguir a nulidade, ou logo que termine a audiência.
Os sujeitos processuais não têm a obrigação de controlar as condições da gravação, ou seja, de antecipadamente ter o cuidado de ver se a prova foi correctamente gravada. Isto porque é expectável que a gravação seja efectuada em perfeitas condições de audição pelo Tribunal que tem essa incumbência legal e que tem (ou deveria ter e cuidar dos mesmos) ao seu dispor os meios técnicos e humanos para levar a cabo tal gravação, sendo, portanto, de presumir que a prova ficou registada e é perceptível tanto mais que não pode intervir em nada relativo ao sistema de gravação, não pode fiscalizar o funcionamento do mesmo e nem sequer pode fiscalizar o seu manuseamento pelos funcionários judiciais.
Extraímos daqui que os sujeitos processuais só têm possibilidade de controlar a qualidade da gravação quando, a seu requerimento, lhe são entregues os registos da gravação para poderem avaliar da necessidade e interesse de interpor recurso sobre a matéria de facto, ou seja, será durante o período que decorre entre a entrega dos registos da gravação e o termo do prazo para apresentar alegações que, necessariamente, ocorre ou deve ocorrer o conhecimento pelo recorrente da deficiente gravação.
Mas mesmo para aqueles que defendem que o prazo de arguição é de 10 dias a contar da disponibilização do registo magnético pelo tribunal, a verdade é que nem mesmo com a entrega se pode presumir o exacto momento do conhecimento da omissão ou deficiência da gravação. Nenhuma estipulação legal obriga os sujeitos processuais a tomar conhecimento da falha da gravação imediatamente após tal recebimento sendo razoável que a parte que pretende recorrer só ouça o registo da prova no período em que elabora as alegações, até mesmo num momento limite do tempo estritamente necessário à entrega atempada da motivação. Assim sendo, sempre teria de se entender, em benefício da dúvida, que o recorrente tomou conhecimento da anomalia da gravação no dia em que a comunicou ao tribunal.
Antes da alteração do art.º 363º do CPP a que acima referimos e em que vingava a doutrina expressa no Acórdão do STJ n.º 5/2002 de 27/06/2002, consagrando jurisprudência uniformizadora no sentido de que a omissão de documentação constituía uma irregularidade, sujeita ao regime estabelecido no art.º 123º do CPP, entendeu o Tribunal Constitucional ser inconstitucional “por violação do art.º 32º, nº 1 do CRP, a norma constante do art.º 123º n.º 1 do CPP, se interpretada no sentido de ela impor a arguição, no próprio acto, de irregularidade cometida em audiência, independentemente de se apurar da cognoscibilidade do vício pelo arguido” (sublinhado nosso).
Esta argumentação permite-nos concluir que, em regra, os sujeitos processuais só têm interesse em aceder aos registos da prova, quando proferida a decisão final, pois só aí estão em condições de aferir da necessidade ou da utilidade de impugnar a matéria de facto, pelo que, detectando nessa altura qualquer anomalia na gravação será então no prazo das alegações de recurso que a nulidade há-de ser suscitada.
Tal entendimento ficou expresso de uma forma cristalina no Ac. do STJ de 12.07.2007 que refere “se o recorrente dispõe de determinado prazo para minutar o recurso, e se nessa minuta pode impugnar a matéria de facto é evidente que esse direito (de pedir a repetição da prova omitida ou imperceptível) pode exercer-se até ao último dia do prazo legal em curso, porque pode bem acontecer que só nesse momento seja detectada a anomalia da gravação e só no último dia sejam entregues as alegações.
Não vemos que a parte esteja sujeita a um especial dever de diligência, que lhe imponha a audição do registo áudio da prova nos 10 dias imediatos a tê-los recebido pelo tribunal, quando é certo que ele se destina a servir de suporte a uma alegação de recurso para cuja elaboração dispõe o recorrente de 30 dias e é suposto que a cópia recebida do tribunal não enferme de qualquer anomalia”.
Assim, seguimos o entendimento de que a nulidade decorrente da omissão ou deficiência na gravação da prova produzida na audiência de julgamento pode ser suscitada até ao termo do prazo de interposição de recurso, podendo a arguição ter lugar na própria alegação de recurso. Estamos em crer que a lei, no caso de impugnação da matéria de facto, fixou para o recurso o prazo de 30 dias (nos demais casos o prazo é de 20 dias), para assim conferir ao recorrente um prazo acrescido em 10 dias para levar a efeito a tarefa acrescida de ouvir a gravação (cfr. art.º 411º, n.º 4 do CPP).
Em reforço desta interpretação o diploma que especificamente prevê a gravação, o já referido DL 39/95, não fixa qualquer prazo para a arguição desta nulidade, limitando-se a dizer, concretamente no art.º 9º, que pode ser corrigida “a todo o tempo”.
Por último, tratando-se de nulidade sanável, dependente de arguição, em termos dogmáticos significaria que a sua não arguição, ou a sua arguição não tempestiva, apagaria o desvalor da violação cometida, sanando-se o vício, produzindo como consequência a impossibilidade do recurso da matéria de facto, consequência essa intolerável do nosso ponto de vista e não querida pelo legislador na medida em que o efectivo duplo grau de jurisdição, através do mecanismo da sanação da irregularidade, por razões de ordem meramente formal, se veria definitivamente comprometido.
O vício de omissão ou deficiência da gravação da prova afecta o valor do acto de produção da prova, ou seja, o próprio julgamento, por não poder produzir os efeitos a que se destinava, pelo que, incumbindo ao Tribunal de recurso reapreciar a prova, naturalmente que pode conhecer oficiosamente do vício, nos termos do disposto no art.º 9º do citado DL 39/95 que permite que o vício, sempre que seja essencial ao apuramento da verdade, possa ser conhecido e repetido a qualquer momento.
Assim, independentemente de tal nulidade só ter sido arguida no recurso deve o tribunal ad quem poder conhecer dela oficiosamente e determinar a sua reparação.
Não podemos deixar de referir que mesmo quando à luz do Acórdão do STJ n.º 5/2002 de 27/06/2002, consagrando jurisprudência uniformizadora no sentido de que a omissão de documentação constituía uma irregularidade, já havia quem entendesse que a mesma, sendo relevante, seria de conhecimento oficioso, nos termos do n.º 2, do art.º 123º, do CPP, pelo que, sendo hoje classificada como nulidade, por maioria de razão, se tem de admitir o seu conhecimento oficioso.
E, mesmo nos casos em que o recorrente, impugnando a matéria de facto, não tenha suscitado a nulidade, por desinteresse ou desnecessidade dessa invocação, o tribunal de recurso não poderia ver-se impedido de reapreciar a prova, nunca poderia ficar diminuído na sua competência de julgar o recurso, podendo, por isso, conhecer oficiosamente da nulidade.
Retomando o caso dos autos, só perante a condenação proferida por acórdão de 20 de Junho de 2011 é que a recorrente teve necessidade de, com a finalidade de impugnar a matéria de facto, aceder à prova gravada na já pretérita sessão de julgamento de 27.05.2010, tanto mais que só agora adquiriu o direito ao recurso, e constatou a deficiências, de resto prontamente comunicadas ao tribunal por requerimento de 1 de Julho de 2011, depois de ter solicitada a cópia a 20 de Junho e a ter recebido a 27.06.2011.
Face a estas ocorrências, também a alegação de extemporaneidade em que funda a resposta do M.º P.º não pode obter acolhimento por este tribunal.
Estando a gravação imperceptível e os depoimentos deficientemente gravados, como se refere na informação de fls.684, revelam-se essenciais para a descoberta da verdade, tendo em vista a impugnação que pretende a recorrente sobre a matéria de facto. A alegada deficiência da gravação da prova afecta, pois, a concreta impugnação da matéria de facto, impedindo a reapreciação da prova por parte do Tribunal, desde logo dos factos, estando assim em presença da nulidade prevista no art.º 363º, do CPP.
A nulidade, pela posição que assumimos, foi tempestivamente arguida.
A declaração de nulidade determina quais os actos que passam a considerar-se inválidos e ordena, sempre que necessário e possível, a sua repetição (art.º 122º, n.º 2 CPP).
In casu, a nulidade afecta a gravação de toda a prova testemunhal produzida na audiência de julgamento. Esses depoimentos testemunhais e declarações do arguido terão, pois, de ser repetidos, devendo o Tribunal tomar providências para que a gravação decorra sem problemas, determinando tudo o que for necessário para tal desiderato.
Apesar da regra de economia processual constante do n.º 3 da citada disposição legal, não é possível aproveitar a sentença proferida e porque se trata da nulidade de toda a prova produzida, a declaração de nulidade invalida os actos subsequentes que tenham um nexo de dependência lógica e valorativa com o acto nulo, como sucede com a sentença.

III.
Pelo exposto, acordam os Juízes desta 9ª Secção Criminal em, concedendo parcial provimento ao recurso, julgar verificada a nulidade por deficiente gravação da prova que afecta toda a prova produzida na audiência, e determinar a repetição integral desta, se possível pelo mesmo Tribunal, anulando-se a decisão recorrida.
Sem custas.

Lisboa, 26 de Janeiro de 2012.

Relator: João Carrola;
Adjunto: Carlos Benido;