Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1259/08.0TVLSB.L1-8
Relator: ILÍDIO SACARRÃO MARTINS
Descritores: ABUSO DE DIREITO
RESPONSABILIDADE CIVIL
DIREITO DE ACÇÃO
ALTERAÇÃO DA REGULAÇÃO DO PODER PATERNAL
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 07/13/2010
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: - A nota típica do abuso do direito reside na utilização do poder contido na estrutura do direito para a prossecução de um interesse que exorbita do fim próprio do direito ou do contexto em que ele deve ser exercido.
- A responsabilidade civil pode ocorrer no âmbito da litigância de má fé ou a responsabilização do agente pode ser o epílogo normal daquele que abuse do direito de acção.
- Porém, independentemente da verificação de qualquer uma daquelas figuras, o exercício do direito de acção pode envolver responsabilidade civil nos termos gerais, no âmbito da denominada culpa in agendo.
- A mãe do menor, que requer contra o pai alteração da regulação do exercício do poder paternal, baseando-se em relatos do menor sobre o comportamento do pai em relação ao filho, alegando que este molesta sexualmente o filho de ambos durante as visitas, fá-lo para, através do tribunais, acautelar os superiores interesses do menor em causa.
- Nestas circunstâncias, mesmo que se não provem os mencionados relatos, a mãe do menor não actua com abuso de direito, não sendo o seu comportamento ilícito e a sua actuação encontra-se plenamente justificada pelo cumprimento de um dever.
- O direito de acção é um dos vários direitos que está compreendido no direito fundamental de acesso aos tribunais (artº 20º da C.R.P.).
- O direito de acção é um direito subjectivo autónomo e distinto do direito material que se pretende fazer actuar em juízo, pelo que o seu exercício não está dependente de qualquer requisito prévio de demonstração da existência do direito substancial.
(sumário do Relator)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa

I - RELATÓRIO

Y --- intentou acção ordinária contra W--- , pedindo a condenação da ré no pagamento da quantia de € 98.600, a título de indemnização por danos morais e patrimoniais, acrescida de juros de mora desde a decisão até integral pagamento, bem como nos demais danos morais e patrimoniais a fixar em execução de sentença.
Alegou, em resumo, que a ré fez constar factos e juízos de valor no seu requerimento que deu entrada em 03.08.1999 no processo nº, que ofenderam a honra e consideração do autor, reiterados em requerimentos posteriores entrados em 28.08.1999, 24.09.2001, 12.07.2005 e 07.09.2005, o que lhe causou danos.

A ré contestou, por excepção e impugnação. Terminou pela procedência da excepção de prescrição e, caso assim não se entendesse, pela improcedência da acção e sua absolvição do pedido.
O autor replicou, pugnando pela improcedência da excepção.

Foi proferido saneador- sentença que julgou improcedente tanto a excepção de prescrição ,   como a acção e absolveu a ré do pedido.

Não se conformando com a sentença, dela recorreu o autor, tendo formulado as seguintes CONCLUSÕES:
1ª - A alteração do regime de regulação do poder paternal é um direito - dever, que só é legitimo se houver fundamento legal e verdadeiro, para o mesmo.
2ª - " In casu ", como o fundamento alegado não foi considerado verdadeiro pelos peritos e, consequentemente, não dado como provado pelos tribunais de 1ª e 2ª instância, bem como a então requerida e ora ré / recorrida condenada várias vezes como litigante de má-fé, temos que o exercício de tal direito não foi regular, normal, como a doutrina o exige.
3ª – Assim, porque se verificou um exercício anormal do direito próprio, temos um abuso do direito.
4ª - Ressaltando da documentação junta aos autos que a intenção da ré foi a de afastar o filho do pai e de atentar contra o crédito, bom-nome e consideração deste, com actuação culposa, embora o abuso do direito, porque objectivo, de tal requisito prescinda.
5ª - Pelo que estão verificados todos os pressupostos do art° 334° do CC, verificando-se abuso do direito na modalidade " Tu quoque " por violação dos art°s 483°/484° do CC, e desequilíbrio.
6ª – À parte isto, o que se verifica também e principalmente é uma "culpa in agendo", violando-se o direito do autor sem qualquer razão justificativa, válida e verdadeira, pois verificou-se uma improcedência da acção por razões de fundo, pelo que não havia nenhum concreto direito de acção.
7ª - Tal "culpa in agendo" afasta a alegada causa de exclusão da ilicitude de exercício de um direito e/ou cumprimento de um dever.
8ª - Em caso idêntico, entre as mesmas partes e no mesmo processo, assim o foi considerado, para com o ora recorrente, pelo que não há uniformidade de critérios e decisões entre os tribunais de 1ª instância.
Termina pedindo que seja revogada a sentença, condenando-se a ré em indemnização pelos danos causados.

A parte contrária respondeu, pugnando pela manutenção da decisão recorrida.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir

II -  FUNDAMENTAÇÃO

A) Fundamentação de facto

Consideram-se provados os seguintes factos:
1º - O autor e a ré estão divorciados e tiveram um filho na constância do casamento.
2º - No âmbito do processo nº, a ré, na qualidade de representante legal do seu filho menor, em 03.08.1999, requereu contra o autor alteração ao regime de regulação do exercício do poder paternal, dando origem ao apenso F), alegando, entre o mais, que:
“O filho acabou por lhe dizer, muito a medo, que uma das brincadeiras consistia em o pai fazer de cavalo, obrigando-o a ele, X, a fazer de cavaleiro, estando ambos nus.” (artº 14º)
“Outras das “brincadeiras consistia no facto de o requerido fazer passar o filho por debaixo das suas pernas, enquanto se encontrava de pé, com as pernas abertas” (artº 15º)
“Outra ainda consistia em o requerido se deitar no chão por cima do filho, imobilizando-o.” (artº 16º)
“Segundo contou a criança, o pai estava nu quando tinha tais brincadeiras e obrigava-o a permanecer igualmente nu, tendo também revelado que dormiam sempre juntos e nus” (artº 18º)
“Para além  do referido nos artºs 14º a 17º, o X deu conta do hábito tido pelo pai de mexer no seu próprio pénis na presença daquele, apontando-o na direcção do filho” (artº 20º)
“Sabe a requerente que se agravaram os hábitos do requerido de consumo excessivo de álcool.” (artº 28º)
“E na física nem se fala, por ora, porquanto, apesar das tentativas feitas pela requerente no sentido de apurar se alguma violência sexual havia sido cometida na pessoa do filho, as mesmas revelaram-se infrutíferas dada a recusa dele em ser observado.” (artº 31º)
“Existem sérios indícios de que o requerido se conduz com o filho de forma indecorosa, reclamando dele e contra a sua vontade práticas ao nível da sexualidade que manifestamente o ferem na sua sensibilidade, e às quais há que pôr cobro.” (artº 67º), conforme doc.  de  fls.  22  a  32,  que  aqui  se  dá  por reproduzido
3º -No  apenso  E (incumprimento), em  requerimento entrado   em 28.08.1999, a ré deu por integralmente reproduzido o que fez constar do requerimento referido em 2), conforme doc de fls. 41 a 45, que aqui se dá por reproduzido.
4º - No âmbito do apenso F, em requerimento entrado em 24.09.2001, a ré alega, entre o mais, que “Como já se explicou em escritos anteriores, existem nos autos,pelo contrário, diversos e graves indícios (…) e elementos informativos reveladores do estado preocupante do menor que só poderão estar relacionados com as situações por ele descritas (…), conforme doc de fls. 98 a 100, que aqui se dá por reproduzido.
5º - No mesmo apenso, a ré apresentou, em 12.07.2005, alegações de recurso, onde termina pedindo a procedência, por provados, dos factos alegados pela mãe no seu requerimento inicial, conforme doc. de fls. 157 a 184, que aqui se dá por integralmente reproduzido.
6º - No âmbito  do mesmo apenso F, a ré apresentou, em 07.09.2005, alegações de recurso, onde alega, entre o mais, que “a prioridade deste processo não deverá ser a educação cívica do menor mas sim o garante da sua integridade física e psicológica”, conforme doc.  de  fls.  189 a 192, que aqui se dá por integralmente reproduzido.

B) Fundamentação de direito

O objecto do recurso afere-se do conteúdo das conclusões de alegação formuladas pelo recorrente (artigos 684º e 690º, nº 1, do Código de Processo Civil).
Isso significa que a sua apreciação deve centrar-se nas questões de facto e ou de direito nelas sintetizadas e que são as seguintes:
- Abuso de direito.
- Culpa in agendo.

ABUSO DE DIREITO

Estatui o artº 334º do CC que “é abusivo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito”.
O legislador sufragou a concepção objectivista do abuso de direito – que proclama que não é preciso que o agente tenha consciência da contrariedade do seu acto à boa fé, aos bons costumes ou ao fim social ou económico, exigindo-se, contudo, que o titular do direito tenha excedido manifestamente esses limites impostos ao seu exercício -, o que não significa “que ao conceito de abuso do direito consagrado no artº 334º sejam alheios factores subjectivos, como, por exemplo, a intenção com que o titular tenha agido” [1].
 A figura do abuso de direito surge como uma forma de adaptação do direito à evolução da vida.
Serve como válvula de escape a situações que os limites apertados da lei não contemplam por forma considerada justa pela consciência social vigorante em determinada época, evitando que, observada a estrutura formal do poder que a lei confere, se excedam manifestamente os limites que se devem observar tendo em conta a boa fé e o sentimento de justiça em si mesmo.
O instituto do abuso do direito pressupõe que alguém seja titular de um direito, mas que se exceda no exercício do correspectivo poder. Consiste, essencialmente, na utilização de um poder contido na estrutura do direito, para a prossecução de um interesse que exorbita do fim próprio desse direito, ou do contexto em que ele pode ser exercido.
 
Em qualquer dos casos, pese embora a referida concepção objectiva consagrada no artº 334º do Código Civil, não se podem excluir os factores subjectivos nem afastar-se a intenção com que o titular tenha agido, podendo a consideração destes factores relevar, quer para determinar se houve ofensa da boa fé ou dos bons costumes, quer para decidir se foi exorbitado o fim social ou económico do direito[2].

Para o abuso do direito não há uma sanção uniforme: a sanção assume cores e tonalidades diferentes de harmonia com o modo funcional como o abuso se expressa; o que vale por dizer que aquele tanto se pode reconduzir a uma nulidade negocial, como a um facto gerador de responsabilidade civil por danos provocados, como ainda à própria neutralização do direito que se esvazia na sua eficácia típica como se não existisse.
Mau grado a concepção objectiva do abuso do direito, impressa no artº 334 do CC, casos há em que a componente subjectiva é indissociável do excesso dos limites que conduz ao abuso.
No venire contra factum proprium o que há é um dano de confiança provocado pelo facto de o titular do direito desdizer o que antes havia garantido[3].

Para Pires de Lima – Antunes Varela, “A nota típica do abuso do direito reside na utilização do poder contido na estrutura do direito para a prossecução de um interesse que exorbita do fim próprio do direito ou do contexto em que ele deve ser exercido”[4].

E Cunha de Sá, escreve que “abusa-se do direito quando se vai para além dos limites do normal, do legítimo: exerce-se o direito próprio em termos que não eram de esperar, ultrapassa-se o razoável, chega-se mais longe do que seria de prever”[5].
E, mais adiante, analisando a noção legal de abuso de direito, refere que o mesmo se traduz “num acto ilegítimo, consistindo a sua ilegitimidade precisamente num excesso de exercício de um certo e determinado direito subjectivo: hão-de ultrapassar-se os limites que ao mesmo direito são impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo próprio fim social ou económico do direito exercido”[6].

No caso dos autos, a ré relatou no processo de alteração à regulação do poder paternal do os factos que lhe haviam sido descritos pelo seu filho e pretensamente cometidos pelo pai, o ora autor.
Ao fazê-lo, não teve outra motivação que não a de acautelar os superiores interesses do menor em causa, filho de ambos.

Como muito bem observou o acórdão da  Secção Criminal deste Tribunal de 18.09.2007 (fls 385):
“ De facto, o que se espera de uma mãe a quem o seu filho menor relata que o pai, aquando das visitas estabelecidas na decisão que regulou o exercício do poder paternal, o molesta sexualmente, é que não silencie essa informação, guardando-a exclusivamente para si, mas antes que a leve ao conhecimento do órgão competente para tomar as providências que o caso reclama. Isto, independentemente da veracidade ou falsidade da informação transmitida pelo menor, já que não dispõe dos meios que lhe permitam assegurar-se da correspondência ou não dos factos relatados com a realidade (os pretensos actos molestadores da integridade física do menor ocorreriam durante as visitas nas quais apenas estavam presentes o assistente e o menor)”.

Terminando, poderemos dizer, de acordo com a matéria de facto, que a ré não excedeu manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes e pelo fim social do direito ao alertar o tribunal para os relatos do menor, filho de ambos.
O mesmo é dizer que não actuou com abuso de direito.
Não sendo o seu comportamento ilícito, a sua actuação encontra-se plenamente justificada pelo cumprimento de um dever, o que foi feito de forma razoável e mesmo ponderada; por isso, não estão preenchidos os pressupostos da responsabilidade civil extra-contratual de que dependia a procedência do pedido do recorrente.

A CULPA IN AGENDO

Alega ainda o apelante que existe uma verdadeira culpa in agendo, pois não existe, no plano civil, qualquer causa de exclusão da ilicitude. O direito de acção por parte da apelada no âmbito dos autos de alteração do exercício do poder paternal traduziu-se na violação do direito ao bom-nome e reputação do autor.

Cumpre decidir.
 Conforme foi decidido no acórdão desta Relação de 08.02.2007[7], o direito de acção está compreendido no direito fundamental de acesso aos tribunais consagrado no artº 20º da C.R.P., em conformidade, aliás, com o artº 10º da Declaração Universal dos Direitos do Homem e com os arts 6º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem e 14º do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos.
Por sua vez, o artº 2º do CPC garante o acesso aos tribunais, atribuindo, por um lado, o direito de obter, em prazo razoável, uma decisão judicial que aprecie, com força de caso julgado, a pretensão regularmente deduzida em juízo e, por outro, faz corresponder a todo o direito substantivo um direito de acção, salvo quando a lei diga o contrário.
O direito de acção judicial surge, portanto, como um direito potestativo, isto é, um direito de desencadear efeitos de Direito, mediante uma actuação do próprio titular.
O reverso do direito de acção é a sujeição à acção, que recai sobre os diversos sujeitos de direito, sujeição essa que é, em suma, o preço a pagar pelo direito de acção, pelo que é impossível restringir uma sem coarctar o outro.
Este direito de acção, não obstante a controvérsia quanto à sua natureza jurídica[8], pode considerar-se como um direito subjectivo autónomo e distinto do direito material que se pretende fazer actuar em juízo, como é hoje a concepção dominante[9]. Uma coisa é o direito de poder provocar a actividade jurisdicional do Estado, para que este aprecie os direitos concretos ou incertos entre as partes, mediante uma decisão fundamentada, outra é o direito substantivo que, por exemplo, o autor se arroga contra o réu e pretende que lhe seja reconhecido pelo tribunal.

No entanto, uma acção judicial pode ser instaurada sem quaisquer fundamentos ou com alegações falsas, apenas para causar danos.
Há muito que deixou de se entender que o direito de acção funciona como uma causa de exclusão da ilicitude, isto é, que uma determinada actuação danosa não é responsabilizante se traduzir, meramente, o exercício do direito de acção.
A este respeito, refere Menezes Cordeiro[10] que uma ordem jurídica moderna não pode deixar de estar apetrechada para oferecer aos interessados vias de defesa e de compensação, nas hipóteses de indevido e danoso exercício do direito de acção judicial.
Por isso, apesar de o direito de acesso aos tribunais estar constitucionalmente garantido, o exercício de tal direito, como o de qualquer outro, pode não ser tolerado pela ordem jurídica, posto que se verifiquem os requisitos do artigo 334º do Código Civil.

A responsabilidade civil pode ocorrer no âmbito da litigância de má fé ou a responsabilização do agente pode ser o epílogo normal daquele que abuse do direito de acção.
Porém, independentemente da verificação de qualquer uma daquelas figuras, o exercício do direito de acção pode envolver responsabilidade civil nos termos gerais, no âmbito da denominada culpa in agendo.
Qualquer direito subjectivo pode ser exercido de forma ilícita, por implicar a violação directa, necessária, eventual ou negligente de outras normas.
Segundo Menezes Cordeiro[11], o exercício do direito de acção pode implicar: a) uma violação contratual; b) a violação de direitos subjectivos; c) a violação de normas de protecção.
O primeiro caso sucede quando a violação do direito de acção traduza a inobservância de um pactum de non petendi ou de uma convenção arbitral. A culpa in agendo resultará, então, do incumprimento de um contrato, pelo que regerá aqui a responsabilidade contratual (artºs 798º e seguintes do Código Civil).
A violação de direitos subjectivos cai sob o artº 483º nº 1 do Código Civil. Pode ocorrer, por exemplo, a violação: do direito ao bom-nome e reputação (uma acção caluniosa); do direito ao património e à iniciativa económica (um pedido de insolvência sem que se verifiquem os pressupostos legais, mas que conduza à total paragem da entidade requerida; do direito de propriedade (qualquer invocação que o contradiga, impedindo o seu pleno desfrute).
Também a violação de normas de protecção cai na alçada do citado artº 483º nº 1.
Nas duas últimas hipóteses acima referidas, enquadráveis na responsabilidade aquiliana, não há presunção de culpa, cabendo ao interessado alegar e provar todos os factos constitutivos da responsabilidade (cfr. artº 487º, nº 1 do CC).
A responsabilidade pela acção efectiva-se, em regra, através de uma acção própria. Até por razões processuais, não é viável enxertar, numa acção em curso, uma nova matéria: ela poderá implicar sujeitos diferentes e distintos pedidos e causas de pedir[12].
A nossa lei processual contém previsões específicas da responsabilidade pela conduta processual, remetendo, umas vezes, para a litigância de má fé, outras para tipos particulares de responsabilidade, e outras para a responsabilidade em geral.
De entre aquelas várias previsões, merece destaque a do artº 390º nº 1 do CPC, por constituir uma concretização e reafirmação ao processo das regras gerais da responsabilidade civil contidas nos artigos 483º e 798º do CC, ou seja, por configurar verdadeiramente uma situação de culpa in agendo[13].

Para Menezes Cordeiro[14], as hipóteses de concretização da culpa in agendo centram-se nos casos em que a actuação processual ilícita sancionada tenha efeitos que transcendam os autos em que o problema se ponha, destacando-se a culpa por danos patrimoniais prolongados (de que é exemplo a previsão do citado artº 390º nº 1), por danos morais e por actuações processuais complexas.
Finalmente, a culpa in agendo pressupõe que a acção em que foram praticados os actos danosos se mostre decidida por decisão transitada em julgado.
E aqui há que destrinçar entre a improcedência por falta de requisitos para a própria acção, a improcedência por razões de processo ou fundo e a procedência com consequências ilícitas.
Nas duas primeiras situações, conclui-se que o direito prefigurado pelo direito de acção não existia, o que não significa que o autor não tivesse direito à discussão judicial. Na terceira, há a considerar o direito de acção e o próprio direito de fundo, que fez vencimento.
Em todos aqueles casos, há que conjugar os direitos do autor com o direito de fundo da outra parte, à luz das regras sobre colisão de direitos (artº 335º do CC), sendo que, no caso da procedência da acção, a margem é muito mais curta porque o direito de acção do autor se mostra mais justificado[15].

No caso concreto, a autor pretende que a ré, ora apelada, seja condenada a pagar-lhe uma indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais por ele sofridos em virtude de a ré lhe ter movido a alteração da regulação do exercício do poder paternal e ter apresentado requerimentos subsequentes.
De acordo com a factualidade que ficou assente, está provado que a apelada produziu tais afirmações, reproduzindo os factos que seu filho menor lhe havia transmitido e que teriam sido cometidos pelo pai, o ora apelante.
Fê-lo, porém, como já se deixou dito, de forma razoável, ponderada, justificada e para cumprimento de um dever, o que afasta também a responsabilidade decorrente da culpa in agendo.
Agindo, na instância própria, em defesa dos superiores interesses do filho menor de ambos, não o fez de forma temerária, procurando, antes, a protecção do tribunal para a defesa daqueles interesses.
 
Portanto, assistia à ré o direito de acção, com vista à alteração da regulação do exercício do poder paternal, que se integra no direito de acesso aos tribunais e é considerado como um direito subjectivo autónomo e distinto do direito material que se pretende fazer valer, donde decorre que não pode confundir-se o direito de poder provocar as actividade jurisdicional do Estado com o direito substantivo a que a parte se arroga.
 
SÍNTESE CONCLUSIVA:

- A nota típica do abuso do direito reside na utilização do poder contido na estrutura do direito para a prossecução de um interesse que exorbita do fim próprio do direito ou do contexto em que ele deve ser exercido.
- A responsabilidade civil pode ocorrer no âmbito da litigância de má fé ou a responsabilização do agente pode ser o epílogo normal daquele que abuse do direito de acção.
- Porém, independentemente da verificação de qualquer uma daquelas figuras, o exercício do direito de acção pode envolver responsabilidade civil nos termos gerais, no âmbito da denominada culpa in agendo.
- A mãe do menor, que requer contra o pai alteração da regulação do exercício do poder paternal, baseando-se em relatos do menor sobre o comportamento do pai em relação ao filho, alegando que este molesta sexualmente o filho de ambos durante as visitas, fá-lo para, através do tribunais, acautelar os superiores interesses do menor em causa.
- Nestas circunstâncias, mesmo que se não provem os mencionados relatos, a mãe do menor não actua com abuso de direito, não sendo o seu comportamento ilícito e a sua actuação encontra-se plenamente justificada pelo cumprimento de um dever.
- O direito de acção é um dos vários direitos que está compreendido no direito fundamental de acesso aos tribunais (artº 20º da C.R.P.).
- O direito de acção é um direito subjectivo autónomo e distinto do direito material que se pretende fazer actuar em juízo, pelo que o seu exercício não está dependente de qualquer requisito prévio de demonstração da existência do direito substancial.

III - DECISÃO

Pelo exposto, julga-se improcedente a apelação, confirmando-se a sentença recorrida.
Custas pelo apelante.

Lisboa, 13 de Julho de 2010

Ilídio Sacarrão Martins
Teresa Prazeres Pais
Carla Mendes
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[1] Pires de Lima – Antunes Varela, in Código Civil Anotado, Vol. I – 2ª Ed., pág. 277.
[2] Antunes Varela, “Das Obrigações em Geral”, vol. I, 2ª ed., págs. 423 e 424.
[3] Ac. STJ de 04-10-2000 Revista nº 207/00, in www.dgsi.pt
[4] Ob cit, pág. 300.
[5] Abuso do Direito, in Cadernos de Ciência e Técnica Fiscal, 1973, pág. 101.
[6] Autor e ob cit, pag. 103.
[7] www.dgsi.pt.
[8] Ary de Almeida Elias da Costa e outros, Cód. Proc. Civil Anotado e Comentado, Vol. 1.º, Athena, Porto, 1972, págs. 64 e segs.
[9] J. A. Reis, Processo de Execução , Vol. I, 2.ª Ed, Coimbra Editora, 1982, págs. 15 e segs. e J. Rodrigues Bastos, Notas ao Cód. Proc. Civil, Vol. I, 3.ª Ed., Lisboa – 1999, pág. 45.
[10] Menezes Cordeiro, Litigância de Má Fé, Abuso do Direito de Acção e Culpa in Agendo, pág. 13.
[11] Ob cit, pág. 138.
[12] Autor e ob cit, pág. 139.
[13] Pedro de Albuquerque, “Responsabilidade Processual por Litigância de Má Fé, Abuso de Direito e Responsabilidade Civil em Virtude de Actos Praticados no Processo”, PÁG. 137.
[14] Ob cit, pág. 145.
[15] Ob cit, pág. 144.