Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
4343/2007-7
Relator: ORLANDO NASCIMENTO
Descritores: COMPETÊNCIA MATERIAL
TRIBUNAL COMUM
TRIBUNAL DO TRABALHO
ACIDENTE DE TRABALHO
CONTRATO DE SEGURO
SUBROGAÇÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 05/29/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: CONCEDIDO PROVIMENTO
Sumário: I- Os tribunais judiciais comuns, e não os tribunais de trabalho, são competentes em razão da matéria para conhecer do litígio em que uma empresa seguradora a título de direito de regresso, rectius sub-rogação legal (artigo 592./1 do Código Civil), reclama o pagamento de quantia paga ao seu segurado em razão de acidente ocorrido em obra causado por violação das normas de segurança.
II- Muito embora o artigo 85º, alínea c) da Lei n.º 3/99, de 13 de Janeiro prescreva que compete aos tribunais de trabalho conhecer, em matéria cível, das questões emergentes de acidentes de trabalho e doenças profissionais, o litígio em causa prende-se com questão lateral, conexa, de saber se a indemnização decorrente de acidente de trabalho cabe à seguradora em virtude do contrato de seguro que celebrou com a entidade patronal ou se cabe à entidade patronal ou a terceira entidade em razão da violação das regras de segurança no exercício da sua actividade.
III- Somos, assim, conduzidos para a previsão constante da alínea o) do referido artigo 85.º da Lei n.º 3/99 verificando-se que, sem cumulação com outro pedido para o qual o tribunal de trabalho seja directamente competente, não basta que a questão em causa seja conexa com relação laboral para se considerar competente o tribunal de trabalho.

(SC)
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa.

1. RELATÓRIO

[…] COMPANHIA DE SEGUROS, S. A., propôs, no Tribunal Judicial da Comarca de Alenquer, contra, S.[…], S. A. e

B.[…] LD.ª, acção declarativa de condenação, com processo sumaríssimo, pedindo a condenação destas a entregarem-lhe a quantia de € 665,67, com fundamento em que, no âmbito do contrato de seguro titulado pela apólice n.º […], despendeu a quantia de € 505,02 com a reparação das consequências danosas de um acidente de trabalho, ocorrido em 02/07/2003, por um trabalhador ao serviço da R B.[…], numa obra de que era dona a R S.[…], sendo que esse acidente ocorreu por violação das normas de segurança, por parte das RR, pelo que lhe assiste um direito de regresso sobre as mesmas.

Citadas as RR, contestou a R S.[…], por excepção, dizendo não ter interesse na demanda uma vez que não era dona da obra, mês apenas um subempreiteiro, que tomou a seu cargo a realização de alguns trabalhos de construção civil, não tendo violado quaisquer normas de segurança, sendo que os trabalhos no âmbito dos quais ocorreu o acidente se encontravam a cargo da R B.[…], pelo que pede a absolvição da instância e, se assim se não entender, do pedido.

 O tribunal a quo proferiu despacho, declarando-se incompetente em razão da matéria aduzindo, em síntese, que estando em causa nos autos uma alegada responsabilidade civil por acidente de trabalho, o tribunal competente para conhecer da providência, nos termos do disposto no art.º 85.º, al. c) da Lei 3/999, de 13/01 (L.O.F.T.J.) são os tribunais do trabalho.

Inconformada com essa decisão a A. dela interpôs recurso, recebido como agravo, pedindo a sua revogação e que se declare competente o tribunal a quo, formulando conclusões nas quais suscita as seguintes questões:

1.ª O art.º 85.º, al. c) da Lei 3/99 apenas se aplica a questões que directamente respeitem à ocorrência de acidentes de trabalho e doenças profissionais, ou seja, que versem sobre litígios que ocorram entre os sujeitos de relações jurídicas de trabalho (conclusões 1.ª a 5.ª).

2.ª Na presente acção não está em causa a caracterização do acidente dos autos como de trabalho, a ora agravante apenas pretende ser ressarcida das despesas que liquidou, todas elas consequência do acidente dos autos, cuja responsabilidade considera que só pode ser assacada às ora RR, a violação do disposto no art.º 85.º, al. c) da Lei 3/99 (conclusões 6.ª e 7.ª).

Não foram apresentadas contra-alegações.

O Tribunal a quo sustentou a sua decisão.

2. FUNDAMENTAÇÃO

A) OS FACTOS

Os factos a considerar são os acima descritos, sendo certo que a questão submetida ao conhecimento deste Tribunal se configura, essencialmente, como uma questão de direito.

B) O DIREITO APLICÁVEL

O conhecimento deste Tribunal de 2.ª instância, quanto à matéria dos autos e quanto ao objecto do recurso, é delimitado pelas conclusões das alegações da recorrente como, aliás, dispõem os art.ºs 684.º, n.º 3 e 690.º, n.º 1 e 2 do C. P. Civil, sem prejuízo do disposto no art.º 660.º, n.º 2 do C. P. Civil (questões cujo conhecimento fique prejudicado pela solução dada a outras e questões de conhecimento oficioso).

Atentas as conclusões do agravo, supra descritas, a questão submetida ao conhecimento deste Tribunal pela agravante consiste, tão só, em saber se o tribunal competente para a acção, tal como configurada pela autora/agravante, é o Tribunal Judicial de Alenquer, como pretende a agravante, ou se é o Tribunal do Trabalho, como decidiu o Tribunal a quo.

Vejamos.

I. 1. A competência do tribunal em razão da matéria, sendo um pressuposto processual, cuja inexistência se configura como excepção dilatória (art.º 494.º, al. a) e 288.º, n.º 1, al. a), do C. P. Civil), deve ser aferida pelo pedido e causa de pedir do autor ou requerente, em face das respectivas normas legais de atribuição.

Os Tribunais Judiciais têm uma competência material residual, sendo da sua competência todas as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional e, dentro dessa ordem a competência em razão da matéria distribui-se entre tribunais de competência genérica e tribunais de competência especializada segundo o mesmo critério de competência material residual, para os primeiros, em tudo o que, não seja atribuído por lei, aos segundos (art.ºs 66.º e 67.º do C. P. Civil e art.º 18.º da Lei n.º 3/99 de 13 de Janeiro - LOFTJ).

A competência dos Tribunais do Trabalho, como tribunais de competência especializada (art.º 78.º da Lei n.º 3/99 de 03/01), é a estabelecida nos art.º 85.º a 87.º dessa lei de que destacamos, em matéria cível, a al. c) do art.º 85.º, invocada pelo Tribunal a quo como fundamento para se declarar incompetente em razão da matéria, a qual dispõe que: “Compete aos tribunais do trabalho conhecer em matéria cível: c) das questões emergentes de acidentes de trabalho e doenças profissionais”.

O cerne da questão sub judice consiste, pois, em saber se o litígio que a autora/agravante submete ao veredicto do Tribunal se pode qualificar como uma questão emergente de acidente de trabalho ou se tem outra natureza.  

Ora, a questão que a agravante coloca ao tribunal, na formulação do pedido e sua causa de pedir, tem intrinsecamente natureza cível, pois consiste, grosso modo, num pedido de restituição de uma quantia que ela, indevidamente, pagou a um terceiro, trabalhador da R B.[…]. 

Atenta essa natureza, o tribunal competente para dela conhecer será o tribunal a quo (competência residual) se a mesma não couber na competência especializada dos tribunais do trabalho.

 I. 2. Importa, por isso, prima facie, determinar o que se deve entender por questões emergentes de acidentes de trabalho para, em seguida, aquilatarmos se a questão dos autos é, ou não uma dessas questões.

O conceito de acidente de trabalho consta, actualmente, do art.º 6.º da Lei n.º 100/97 de 13/09 - regime jurídico dos acidentes de trabalho e das doenças profissionais - e do Dec. Lei n.º 143/99, de 30/04 - regulamento da lei de acidentes de trabalho - que o definem como: “...aquele que se verifique no local e no tempo de trabalho e produza directa ou indirectamente lesão corporal perturbação funcional ou doença de que resulte redução na capacidade de trabalho ou de ganho ou a morte”.

Atento tal conceito, afigura-se-nos que as questões emergentes de acidente de trabalho são as questões relativas a um tal evento danoso, como a sua constatação, a determinação do dano e a correspondente indemnização, com todas as suas componentes de dano à saúde e integridade física do trabalhador, ao seu património/retribuição, à sua capacidade de ganho, porque são estas as questões que, quanto a acidentes de trabalho, se reportam à relação jurídica de trabalho subordinado, pedra basilar do direito do trabalho que, por sua vez, determina a existência dos tribunais do trabalho como tribunais de competência especializada.

I. 3. Nos exactos termos em que a autora/agravante desenha a relação material controvertida que a opõe às RR, as questões relativas à relação jurídico laboral encontram-se dirimidas, no sentido de que, tendo ocorrido o acidente de trabalho, foram eliminadas as suas consequências danosas[1].

O que permanece em litígio é uma questão lateral, conexa, que consiste em saber quem, por último, deverá assumir a obrigação de indemnizar as consequências danosas do acidente de trabalho, se a autora/agravante, em virtude do contrato de seguro que celebrou com a entidade patronal/entidade empregadora, se as RR, entidade empregadora (R B.[…]) e terceiro (R S.[…]) em virtude da violação de regras de segurança, no exercício da suas actividades.

Dispõe o art.º 85.º, al. o) da Lei n.º 3/99, citado, que compete aos tribunais do trabalho conhecer, em matéria cível: “ Das questões entre sujeitos de uma relação jurídica de trabalho ou entre um desses sujeitos e terceiros, quando emergentes de relações conexas com a relação de trabalho, por acessoriedade, complementaridade ou dependência, e o pedido se cumule com outro para o qual o tribunal seja directamente competente”.

In casu, como estamos perante um único pedido, a lateralidade e conexão, a que acima nos reportámos, não tem o condão de, só por si, incluir a relação material controvertida na competência dos tribunais do trabalho[2].

Resta-nos, pois, averiguar se a proximidade quer com a relação de trabalho, quer com o acidente de trabalho ocorrido no âmbito daquela, nos deve levar a considerar  a relação material controvertida como uma questão emergente de acidente de trabalho.

I. 4. A causa de pedir invocada pela autora/agravante é uma causa de pedir complexa, constituída, grosso modo, pela existência de uma relação jurídica laboral, no âmbito da qual ocorreu a situação patológica do acidente de trabalho, pela existência de um contrato de seguro entre a autora/agravante e a entidade empregadora, relativo à possibilidade desse evento, pela indemnização das consequências do acidente pela seguradora e pelo acto ilícito, porque violador de normas de segurança no trabalho, da entidade empregadora ou de terceiro.

Dos elementos que a compõem, apenas este último – acto ilícito por violação de regras de segurança no trabalho – constitui um elemento novo, relativamente ao acidente de trabalho, sendo, aliás, o seu elemento diferenciador.

E a ele se reportam os art.ºs 18.º e 31.º do regime jurídico dos acidentes de trabalho, aprovado pela Lei n.º 100/97, o primeiro, relativamente a acidente resultante da inobservância das regras de segurança pela entidade empregadora ou seu representante e o segundo, relativamente a acidente causado por outros trabalhadores ou por terceiro.
Quanto ao primeiro, resultando o acidente de falta de observação das regras sobre segurança e saúde no trabalho por parte da entidade empregadora, na parte que ora nos interessa, a responsabilidade pela reparação das consequências danosas do acidente recai sobre a entidade empregadora, sendo a empresa seguradora responsável subsidiariamente (art.º 37.º, n.º 2).

Quanto ao segundo, resultando o acidente de falta de observação das regras sobre segurança e saúde no trabalho por parte de outros trabalhadores ou de terceiros, na parte que ora nos interessa, a seguradora que pagar a indemnização tem direito de regresso contra esses responsáveis (art.º 31.º, n.º 4, da Lei n.º 100/97).

No caso sub judice a autora/agravante imputa a violação de regras de segurança, causadora do acidente de trabalho, à entidade empregadora e a um terceiro, que identifica como dono da obra., propondo a acção contra ambos com fundamento num invocado “direito de regresso”.

Este invocado direito, que só impropriamente se poderá denominar “direito de regresso”, como se refere no Ac. S.T.J de 17/04/2007[3], configurando-se, antes, como uma situação de sub-rogação legal, nos termos do disposto no art.º 592.º, n.º 1, do C. Civil, encontra fundamento jurídico no instituto da responsabilidade civil extra-contratual, por facto ilícito, consagrada no art.º 483.º do C. Civil, sem prejuízo das normas citadas que, atentos os valores jurídicos em causa no âmbito da relação jurídica laboral, lhe conferem uma feição específica – em vez da obrigação de indemnização incidir directamente sobre o autor do facto ilícito, a seguradora é chamada a assumir essa responsabilidade a titulo subsidiário (art.º 37.º, n.º 2) ou em substituição do responsável directo, em qualquer dos casos com evidente beneficio para a defesa dos valores em causa.

O que a autora/agravante pretende, com esta acção, é ressarcir-se dos prejuízos correspondentes às quantias indemnizatórias entregues ao sinistrado no acidente de trabalho e que, nos termos em que conforma a respectiva relação material controvertida, deveriam ter sido suportadas pelos autores do acto ilícito determinante desses prejuízos, as RR.

O que está em causa é, pois, tão só, o invocado “direito de regresso”, que não emerge do acidente de trabalho, embora o pressuponha, mas do acto ilícito imputado às RR e do cumprimento da obrigação que sobre elas impendia, por parte da autora/agravante.

I. 5. E, assim sendo, a questão objecto dos autos não pode considerar-se como questão emergente de acidente de trabalho[4], para efeitos da norma do art.º 85.º, al. c) da Lei n.º 3/99 que atribui a competência, nessa matéria, aos tribunais do trabalho, pelo que a competência em razão da matéria pertence aos tribunais judiciais, nos termos dos art.ºs 66.º do C. P. Civil e 18.º da Lei n.º 3/99 de 13 de Janeiro e, portanto, ao Tribunal Judicial da comarca de Alenquer.

Procedem, pois, as conclusões do agravo, devendo revogar-se o despacho recorrido, o qual será substituído por outro que, declarando o Tribunal a quo competente em razão da matéria, determine os termos processuais subsequentes.

 

3. DECISÃO

Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal da Relação em conceder provimento ao agravo, revogando o despacho recorrido, o qual será substituído por outro que, declarando o Tribunal competente em razão da matéria, determine os termos processuais subsequentes.

Sem custas (art.º 2.º, n.º 1, al. g), do C. C. J.).

Lisboa, 29 de Maio de 2007

 (Orlando Nascimento)

 (Ana Resende)

 (Dina Monteiro)

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[1] Embora a autora/agravante omita o custo de tratamento hospitalar do sinistrado, em hospital público, não declarando se pagou tal tratamento e não peticionando a quantia correspondente.
[2] Cfr. A este propósito, o Ac. S. T. J. de 10/02/2004, in dgsi.pt, Relator, Cons. Araújo Barros. 
[3] In dgsi. pt P.º 07A679, Relator Cons. Sebastião Póvoas.
[4] Cfr. Neste sentido o AC. S.T. J. de 18/11/2004, in dgsi.pt, Relator Cons. Salvador da Costa