Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
3068/2008-7
Relator: GRAÇA AMARAL
Descritores: APREENSÃO DE VEÍCULO
PROVIDÊNCIA CAUTELAR
CADUCIDADE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 04/22/2008
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: PROVIDO
Sumário: I – A particularidade ínsita do procedimento previsto no art.º 21, do DL 149/95, de 24-06 decorre do facto de, pela via cautelar, se obter o efeito material e jurídico atingido com a acção principal (entrega do bem e cancelamento do registo).
II - A antecipação do efeito a atingir com a acção principal dilui, em absoluto, as características de instrumentalidade e provisoriedade atribuídas aos procedimentos cautelares que assumem no regime de caducidade a considerar retirando-lhe, por isso, enquadramento nos casos previstos na lei (art.º389 e 410, ambos do CPC).
III – O procedimento cautelar não perde o interesse face à substituição da decisão provisória pela definitiva.
IV – O art.º 410, do CPC, é uma norma de natureza excepcional, que não comporta integração analógica, não tendo aplicabilidade na providência de apreensão e entrega de coisa locada e cancelamento do registo prevista no art.º 21, do DL 149/95. Por outro lado, estando em causa procedimentos cautelares com finalidades diametralmente diversas, desde logo ficaria inviabilizada tal aplicação analógica.
Decisão Texto Integral: I - Relatório

Partes:

B (Requerente e Recorrente)

S, Lda (Requerida e Recorrida)

Pedido: Entrega imediata de 4 veículos (marca Iveco, modelo Daily 35C13, matrícula  marca Iveco, modelo Eurocargo 150E28P, matrícula ; marca Toyota, modelo Dyna CL 7542, matrícula e marca Iveco, modelo ML 75 E 15, matrícula e respectivos documentos, com cancelamento dos respectivos registos) ao abrigo do art.º21 do DL 149/95, de 24-06 (providência cautelar de entrega judicial e cancelamento do registo)

Fundamento: resolução dos contratos de locação financeira por incumprimento contratual da Requerida (não pagamento das rendas nos termos contratualmente estipulados).

A Requerida não deduziu oposição

Decisão: decretada a providência cautelar tendo sido ordenada a apreensão e entrega judicial à Requerente dos veículos e respectivos documentos e determinado o cancelamento do registo de locação financeira incidente sobre os mesmos.

Despacho recorrido: declarada extinta a providência por caducidade face ao trânsito em julgado da sentença proferida na acção principal respectiva (que condenou a Requerida a restituir à Requerente os veículos objecto dos contratos de locação financeira por aquela incumpridos).

Conclusões da Agravante:

a. Apenas dois dos quatro veículos ordenados entregar por decisão proferida na presente Providência Cautelar lograram ser recuperados pela ora Recorrente;

b. Mantêm-se por apreender (judicial/policialmente) os veículos de matrículas  e , na posse da Requerida, o que consubstancia total desrespeito por aquela decisão judicial (cfr. art. 391° do CPC).

c. A ora Recorrente, tomou conhecimento que o veículo automóvel com a matrícula , se encontrava nas instalações da sociedade "A, Lda.", pelo que requereu, em 23/11/2007, no âmbito da providência cautelar em questão, a sua apreensão na morada da sede dessa sociedade.

d. Com o Despacho, ora Recorrido, Tribunal a quo, estribando-se no facto de já haver sido proferida Sentença em sede de acção principal aplicou, por recurso à analogia, o disposto no art. 410° do CPC, e declarou extinta a providência, por caducidade, recusando à ora Recorrente, a satisfação do pedido de entrega judicial do bem - que era, objectivamente, possível apreender, como o é, ainda, na presente data.

e. O Procedimento Cautelar (cfr. art. 383° do CPC) depende sempre, quanto à sua validade, da decisão, que o confirme ou revogue, proferida na acção principal, mas, tal não significa que a Sentença confirmatória do direito precariamente aferido na Providência Cautelar, automaticamente absorva e consuma esta última, sobretudo se o direito que se visou com ela acautelar não tiver ainda sido integralmente satisfeito pela Ordem Jurídica, e a própria Providência tiver ainda efeito útil bastante para o poder concretamente acautelar.

f. Ao remeter ou relegar a ora Recorrente para a fase executiva, sabendo tanto mais que, face ao referido Requerimento de 23/11/2007, a apreensão judicial/policial do veículo, era, e é, possível, o Tribunal a quo negou à Requerente, ora Recorrente, a tutela do direito a que a mesma tinha, e tem, direito, quando recorreu a este expediente ou meios coercivos.

g. Como decorre do disposto no art. 389° do CPC, em nenhum dos seus números ou alíneas previu o legislador que este tipo de Providência Cautelar, quando decretada, caduca por efeito do trânsito em julgado da Sentença proferida na acção principal respectiva.

h. h) Nos termos do disposto no n.° 7 do art. 21 do Decreto-Lei n.° 149/95, de 24 de Junho, alterado pelo Decreto-Lei n.° 265/97, o legislador estabeleceu especificamente que: "São subsidiariamente aplicáveis a esta providência as disposições qerais sobre providências cautelares, previstas no Código de Processo Civil, em tudo o que não estiver especialmente regulado no presente diploma", sublinhado nosso.

i. Não quis assim o legislador, de forma clara e expressa, aplicar à Providência Cautelar especificada de Entrega Judicial e Cancelamento de Registo, outras normas subsidiárias que não fossem as constantes dos arts. 381° a 392° do CPC, estando afastada a aplicação quer do art. 410° do CPC, quer quaisquer outros artigos respeitantes a outros procedimentos cautelares especificados.

j. A Douta Decisão, ora Recorrida, socorre-se da analogia ao disposto no art. 410° do CPC para aplicando-o, inclusive, contra norma expressa - o disposto no referido n.° 7 do art. 21 do Decreto-Lei n.° 149/95, de 24 de Junho, alterado pelo Decreto-Lei n.° 265/97 - declarar extinta a presente providência, por caducidade, em virtude de a acção principal ter transitado em julgado.

k. O art. 410° do CPC, aplicado analogicaménte ao caso vertente pela Decisão, ora Recorrida é considerado como norma especial pelo legislador, pelo que, atento o disposto nos arts. 9.°, 10° e 11° do Código Civil, nunca podia ter sido aqui aplicado, o que consubstanciando erro na aplicação do Direito ao caso sub judice, implica que a Decisão a quo deve ser anulada ou revogada, como aqui se requer seja por V.Exas. decidido.

l. Mesmo que assim não fosse de concluir, o que apenas por mera necessidade de patrocínio se admite, na verdade, tendo a Sentença da acção principal transitado em julgado apenas em 20/09/2007 e tendo a ora Recorrente, por Requerimento, apresentado nos autos da Acção Principal, em 07/12/2007, solicitado passagem de certidão da Sentença, com menção expressa de que a mesma se destina a instruir a competente acção executiva a apresentar, deve entender-se, no rigor, que o requisito (de caducidade) da 2.a parte do art. 410° do CPC — se este fosse de aplicar aqui - nunca estaria, in casu, verificado, pois a ora Recorrente promoveu a execução da Sentença da acção principal antes de esgotado o respectivo prazo legal.

m. Também por esta razão a douta Decisão Recorrida padece de erro na aplicação do Direito aos factos, devendo assim ser revogada por V.Exas. como se requer seja aqui decidido.

n. Acresce ainda que, o Douto Tribunal a quo, ao decidir como decidiu, não considerou o disposto no art. 391° do CPC, aqui aplicável ex vi n.° 7 do art. 21 do Decreto-Lei n.° 149/95, de 24 de Junho, alterado pelo Decreto-Lei n.° 265/97

o. O alcance do estabelecido no art. 391.° do CPC (conjugado com o regime da caducidade do art. 389° do CPC), quer em termos de qualificação do tipo de crime que daí resultou, quer em matéria das "medidas adequadas à sua execução coerciva" devem conduzir à conclusão exactamente contrária da produzida no Despacho recorrido.

p. Tais preceitos legais impõem, que uma decisão judicial deste tipo de procedimento cautelar pode (e deve) ser executada, se necessário coercivamente, adoptando-se todas as medidas adequadas para a efectivação ou apreensão do bem cuja restituição foi judicialmente ordenada ao seu proprietário, enquanto se manifestar necessário executar tal decisão ou ordem judicial.

q. A garantia penal da Providência, sobrevive, nos termos da parte final do citado art. 391° do CPC, "sem prejuízo das medidas adequadas à sua execução coerciva", significando que, a própria Providência decretada, na qualidade de decisão judicial que é, sobrevive enquanto não se fizer cumprir, ou seja, até que possa produzir o efeito útil para o qual foi proposta.

r. Padecendo a decisão ora Recorrida, de erro na interpretação e aplicação do Direito concretamente subsumível à factualidade sub judice, há assim razão bastante para que seja a mesma anulada ou revogada, e consequentemente, seja ordenada a apreensão

judicial/policial do veículo aqui em questão, conforme já requerido pela ora Recorrente, e, se espera, seja por V.Exas. decidido.

Não foram apresentadas contra alegações.

II - Apreciação do recurso

1. Os factos:

Para além do que consta do relatório supra, com interesse para o recurso registam-se as seguintes ocorrências:

  • No âmbito da providência cautelar decretada foram apreendidos dois veículos, não tendo sido possível a respectiva apreensão relativamente aos restantes: o de matrícula  e o .
  • A Requerente instaurou acção contra a Requerida de que dependia a presente providência (pedindo a restituição imediata dos veículos objecto dos contratos de locação financeira celebrados e a condenação da mesma no pagamento das quantias devidas por incumprimento do contrato), tendo sido proferida sentença (em 06-06-2007) que a julgou procedente e já transitada em julgado.
  • Por requerimento datado de 23-11-2007 (fls. 180 dos autos de providência) a Requerente, alegando ter tomado conhecimento de que o veículo de matrícula se encontrava nas instalações da firma A, Lda., com sede na Cova da Iria, Fátima, veio requerer a realização de nova diligência de apreensão.
  • Sobre tal requerimento recaiu o despacho recorrido que indeferiu o requerido, declarando a caducidade da providência.

    2. O direito

    Questão a conhecer (delimitada pelo teor das conclusões do recurso e na ausência de aspectos de conhecimento oficioso – art.ºs 690, n.º1, 684, n.º3, 660, n.º2, todos do CPC): 

    - Determinar se a providência cautelar se extinguiu por caducidade com o trânsito em julgado da sentença proferida na acção principal

    A decisão recorrida decidiu no sentido da caducidade da providência cautelar, aplicando analogicamente à situação o regime previsto no art.º 410, do CPC. Sustenta a legitimação do recurso à analogia na circunstância do arresto constituir o paradigma da providência de índole essencialmente executiva e no facto do procedimento cautelar de apreensão de veículo assumir essa natureza.

                Não concordamos com este entendimento. Vejamos.

                A Agravante instaurou providência cautelar ao abrigo do art.º 21 do DL 149/95, de 24-06, e tendo a mesma sido decretada, apenas se encontram apreendidos parte (dois) dos quatro veículos visados.

                Conforme decorre do processo, na acção principal instaurada foi proferida sentença, que condenou a Requerida na entrega dos veículos objecto dos contratos de locação celebrados e por ela incumpridos, a qual transitou em julgado.

                O despacho recorrido ao extinguir o procedimento inviabilizou a possibilidade, como pretendia a Agravante, de manutenção da providência até à apreensão total dos veículos em causa.

                A insustentabilidade da argumentação defendida pelo tribunal a quo decorre da singularidade das providências em causa – arresto e providência de apreensão e entrega de coisa locada e cancelamento de registo.

                O procedimento cautelar previsto no art.º 21, do citado DL 149/95, é uma providência especificada que permite ao locador, em certas situações (resolução do contrato, não exercício pelo locatário exercido da opção de compra, não restituição do bem), requerer a entrega imediata do bem objecto do contrato (e cancelamento do registo), habilitando-o a dispor dele (cfr. n.º6 que prescreve que decretada a providência e independentemente de recurso, o locador pode dispor do bem).

                Embora esteja em causa uma providência que, na sua estrutura, não difere dos restantes procedimentos cautelares (daí que o regime destes se lhe aplica subsidiariamente – art.º 21, n.º7[1]), a sua particularidade[2] decorre do facto de, pela via cautelar, se obter o efeito material e jurídico atingido com a acção principal (entrega do bem e cancelamento do registo).

                Esta antecipação do efeito a atingir com a acção principal dilui, em absoluto, as características de instrumentalidade e provisoriedade atribuídas aos procedimentos cautelares e, nessa medida, não poderá deixar de relevar no regime de caducidade a considerar o qual, por isso, não poderá assumir enquadramento em nenhum dos previstos na lei (art.º389 e 410, ambos do CPC).

                Na verdade, a protecção efectiva do direito do proprietário do bem objecto do contrato alcançada na presente providência cautelar (especificidade que permite a disposição imediata do bem) retira a potencialidade reparadora que se encontra subjacente à acção de execução de sentença (art.º 4, n.º3, do CPC). Nesta medida, mostra-se destituído de sentido pretender que, face à declaração definitiva do respectivo direito, se exija a substituição da pendência (na sua fase final que é necessariamente executória) de um procedimento cautelar que realiza, de forma cabal (pelo seu regime permite ao proprietário do bem a realização do seu direito de forma mais célere), o fim próprio da acção executiva.

                Não ocorrendo qualquer vantagem objectiva nessa substituição (designadamente no caso do titular do direito pretender indemnização, nomeadamente por não se encontrar o bem locado, sendo que a respectiva liquidação não assume cabimento processual no âmbito da providência) e tendo presente a impossibilidade de descurar a necessária prossecução e promoção dos princípios de economia e celeridade processuais[3], não pode deixar de se concluir que o procedimento cautelar não perde (antes continua a manter) o interesse face à substituição da decisão provisória pela definitiva (com o trânsito em julgado da acção principal)[4]. A aceitação de outra posição radica na violação do próprio sentido económico visado com o estabelecimento do regime previsto para a acção cautelar neste âmbito.

                Mantendo total interesse a pendência do procedimento cautelar, não obstante o trânsito em julgado que declarou definitivamente o direito do Requerente, não há que o fazer extinguir por inverificação de qualquer situação de caducidade.

                No que respeita à argumentação tecida no despacho recorrido sustentando a caducidade do procedimento por aplicação analógica do art.º 410, do CPC, cumpre realçar que o seu equívoco reside na circunstância de não só ignorar a natureza excepcional da norma[5] (não comportando, por isso, aplicação analógica – art.º 11, do Código Civil), como a de esquecer que o desígnio das providências cautelares em causa é diametralmente diverso. Na verdade, enquanto que no arresto se visa a apreensão de bens a fim de os mesmos poderem garantir a realização efectiva de um direito (de crédito) do credor (art.º 406, do CPC), no procedimento cautelar em referência a apreensão dos bens tem por subjacente a restituição ao credor/locador de um bem que lhe pertence[6]. Esta dissemelhança inviabiliza, assim e desde logo, a pretendida aplicação analógica.

                Procedem, pois, as conclusões das alegações.

    III – Decisão

    Nestes termos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação de Lisboa em dar provimento ao agravo, pelo que, revogando a decisão recorrida, determinam o prosseguimento do procedimento cautelar a fim de dar execução à providência decretada, designadamente apreciando o requerimento da Requerente de 23-11-2007 (fls. 180 dos autos de providência).
    Sem custas.

    Lisboa, 22 de Abril de 2008

    Graça Amaral

    Orlando Nascimento

     Ana Maria Resende

    ___________________________________________________
    [1] Redacção dada pelo DL 265/97.
    [2] O regime em causa evidencia a concessão de uma protecção reforçada ao comércio jurídico no âmbito da locação financeira, tendo por subjacente evitar a desvalorização do bem, por efeito da situação de imobilidade, durante o período de pendência da acção principal.
    [3]Evidencia-se o manifesto prejuízo que decorre para o titular do direito exigir-se-lhe que, na pendência de um procedimento que pode realizar plenamente o seu interesse (o fim próprio da execução), o substitua por outro (a execução de sentença) que tem por subjacente a mesma finalidade. Para além disso, dado que a providência tem na sua estrutura processual capacidade para esgotar, na sua antecipação, a execução da decisão definitiva, consubstanciar-se-ia na prática de um acto inútil a instauração de acção executiva visando obter igual efeito ao que resulta da prossecução do procedimento cautelar – o da entrega do bem – cfr. Acórdãos desta Relação (Lisboa) e secção (7ª), de 18-09-2007 e 13-11-2007, respectivamente, processos n.ºs 6370/07 e 9245/2007, acessíveis nas bases documentais do ITIJ. 
    [4] Não parece curial que uma situação de ineficácia na execução da decisão cautelar venha a obter melhor resultado através do recurso a uma forma processual com igual finalidade.
    [5] A sua epígrafe aponta nesse sentido “caso especial de caducidade”.
    [6] Conforme se encontra salientado no Acórdão da Relação de Lisboa de 22-03-2007, Processo n.º 1687/2007, 2ª secção, no arresto os bens arrestados são subsequentemente penhorados e destinam-se a realizar dinheiro para satisfazer coactivamente o direito de crédito, pelo que o arrastamento da providência poderá acarretar evidentes prejuízos ao proprietário dos bens, daí se justificando o sentido da norma constante do art.º 410, do CPC. No caso da providência cautelar prevista no art.º 21 do DL 149/95, de 24/6, os bens apreendidos satisfazem por si só o direito do credor uma vez que este pode dispor deles vendendo-os ou dando-lhes qualquer outro destino. Nessa medida, a demora do procedimento que o instituto da caducidade visa impedir não acarreta qualquer prejuízo ao “detentor” do bem.