Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
57/10.6TBVFC-B.L1-2
Relator: JORGE LEAL
Descritores: VENDA DE IMÓVEL
PENHORA
CONTITULARIDADE
EXECUÇÃO DE SENTENÇA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 01/21/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: Sumário (art.º 663.º n.º 7 do CPC)

I. Na venda de imóvel por negociação particular, é possível transacionar o imóvel por preço inferior ao valor base e, mesmo, ao valor mínimo anteriormente anunciado para a venda por propostas por carta fechada, embora, pelo menos nos casos em que não haja acordo entre todos os interessados, seja necessária autorização judicial.
II. A vontade do contitular, não executado, do bem penhorado, poderá concorrer para a eventual extensão da venda à totalidade do bem, cabendo-lhe opor-se a tal, se for o caso.
III. Tendo a decisão recorrida incidido tão só acerca da determinação do preço de venda do imóvel penhorado, única questão que o tribunal a quo fora chamado a decidir, não pode a Relação pronunciar-se acerca da eventual contitularidade do imóvel penhorado, enquanto obstáculo à venda do imóvel, invocado pelo apelante/executado no recurso, tanto mais quando se constata que o alegado contitular foi citado para a execução e notificado da penhora e da venda, sem ter deduzido qualquer oposição.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os juízes no Tribunal da Relação de Lisboa

RELATÓRIO

1. Em 14.4.2010 Banque (…) intentou no Tribunal Judicial de Vila Franca do Campo ação de execução para pagamento de quantia certa, contra Alfredo (…), divorciado, residente na Rua (…), Vila Franca do Campo, reclamando o pagamento da quantia de € 8 828,70 e apresentando como título executivo uma livrança, subscrita pelo executado, respeitante ao incumprimento de um financiamento para aquisição a crédito.

2. Citado para a execução, o executado deduziu oposição à execução, que foi rejeitada, por ser extemporânea.

3. Em 06.10.2010 o Sr. agente de execução penhorou, para garantia da dívida exequenda e custas prováveis, um imóvel, composto de casa de habitação com rés-do-chão, primeiro andar e quintal, sito em Vila Franca do Campo, na Rua (…), descrito sob o n.º (…) da Freguesia de Vila Franca do Campo (S. Miguel) e inscrito na matriz predial sob o n.º (…).

4. O direito de propriedade do imóvel encontra-se inscrito, por compra, a favor do executado, “casado com Maria de Jesus (…) no regime de comunhão de adquiridos” (sic) e a favor da referida Maria de Jesus (Ap. … de 1984/06/16).

5. O executado foi notificado da penhora, por carta registada datada de 06.10.2010.

6. Maria de Jesus (…) foi citada para a execução, na qualidade de “contitular” do imóvel penhorado, em 13.11.2010.

7. Por carta datada de 06.7.2011 o executado e Maria de Jesus foram notificados para se pronunciarem acerca da modalidade de venda do imóvel penhorado e respetivo valor base.

8. Em 21.7.2011 o executado “comunicou” que o imóvel era propriedade em comum e partes iguais do executado e de sua ex-mulher, Maria de Jesus (…), e indicou como valor-base do imóvel, o de € 110 000,00, que declarou ser o valor de mercado do imóvel.

9. Em 08.9.2011 a exequente declarou não se opor ao valor de € 110 000,00, atribuído pelo executado para venda do imóvel.

10. Em 06.10.2011 o agente de execução decidiu proceder à venda do aludido imóvel mediante propostas em carta fechada, com o valor mínimo correspondente a 70% do valor de € 110 000,00.

11. A exequente, o executado e Maria de Jesus foram notificados desta decisão, por cartas datadas de 06.10.2011.

12. Em 21.3.2012, data designada para abertura de propostas, verificou-se a inexistência de propostas, pelo que a Sr.ª juíza, que presidira ao ato, determinou que a venda se efetuasse por negociação particular.

13. O Sr. agente de execução contratou uma mediadora imobiliária para promover a venda do imóvel.

14. Segundo certidão permanente do registo predial datada de 06.10.2010, o “valor tributável” do referido imóvel é de € 1 653,69.

15. Segundo a caderneta predial urbana do referido prédio, obtida via internet em 14.10.2010, o valor patrimonial do prédio, determinado em 2009, era de € 1 715,70.

16. Em 23.8.2013 a mediadora imobiliária encarregada de promover a venda informou o Sr. agente de execução que considerava que o valor base de € 110 000,00, indicado no processo como “valor base”, era um valor elevado, “tendo em conta as características actuais do imóvel (mau estado de conservação e falta de acabamentos)”, sugerindo que fosse publicitado como valor de venda os € 77 000,00 indicados no processo como “valor para venda.”

17. Em 18.9.2013 a mediadora imobiliária informou o Sr. agente de execução de que o imóvel fora anunciado para venda no seu site e que até então apenas fora efetuada uma visita ao imóvel, em 14.9, tendo o interessado indicado, no seu relatório de visita, que a moradia precisava de muitas obras e que, por esse motivo, não tinha interesse na mesma.

18. Em 05.3.2014 a mediadora imobiliária informou o Sr. agente de execução que o imóvel continuava a ser divulgado na internet, além de no escritório da agência, e fora publicitado seis vezes no jornal “Açoriano Ocidental”. Apenas ocorrera mais uma visita ao imóvel por um interessado, em 07.01.2014, tendo em ambos os casos os clientes manifestado que não haviam gostado do imóvel, “contribuindo para essa opinião o estado de conservação da moradia e a quantidade de obras necessárias efectuar para que esta fique com melhores condições habitacionais.” O imóvel estava a ser promovido pelo preço de venda de € 77 000,00.

19. Da informação supra referida foi dado conhecimento às partes pelo tribunal a quo.

20. Em 04.6.2014 a mediadora imobiliária informou o Sr. agente de execução de que depois da informação datada de 05.3.2014 não tinham surgido mais pedidos de marcação de visita para a moradia em questão, mas que nesse dia de 04.6.2014 haviam sido contactados “pela D. Maria de Jesus (…) (antiga proprietária), a qual nos informou que tinha uma pessoa conhecida que estava interessada em visitar a moradia”, pelo que haviam solicitado os dados dessa pessoa para agendarem uma visita.

21. Em 30.9.2014 um interessado apresentou à mediadora imobiliária uma proposta de compra do imóvel, pelo preço de € 50 000,00.

22. Ouvidas as partes pelo Sr. agente de execução, o executado opôs-se à venda por aquele preço, defendendo que, tratando-se de venda por negociação particular, o bem não podia ser vendido por preço inferior ao seu valor comercial, que, no seu entender, era de € 110 000,00.

23. O Sr. agente de execução solicitou ao Sr. juiz que, caso os “executados” não lograssem obter melhor proposta no prazo de 10 dias, autorizasse a venda do imóvel pelo valor da única proposta obtida, o de € 50 000,00.

24. Em 01.6.2015 a Sr.ª juíza proferiu despacho em que autorizou a venda do imóvel pelo valor proposto (€ 50 000,00), caso o executado não indicasse ao Sr. agente de execução, no prazo de 10 dias, comprador para o bem por valor superior ao então proposto.

O executado apelou deste despacho, tendo apresentado alegações em que formulou as seguintes conclusões:

A) O valor fixado do prédio em venda nos autos é de 110.000,00€, mas na douta decisão ora recorrida, sem qualquer outro fundamento que não a demora na venda, é aceite uma proposta no valor de 50,000,00€!

B) Na venda por proposta em carta fechada, a venda é feita por 85% do valor base do bem, nos termos do n.° 2 do art. 816° do CPC, aplicável aos presentes autos por força do art. 6°, n.° 1, da Lei 41/2013;

C) Tratando-se de venda por negociação particular, como é o caso, o valor é, nos termos dos artigos 812° e 833° do CPC, o valor integral do bem, conforme já era aliás entendimento doutrinário na vigência do anterior Código. (Vide anotação ao art 905° CPC - correspondente ao actual 833° - do C. Civil Anotado do Prof. Lebre de Freitas);

D) A norma do valor base, por 85% está neste NCPC expressamente reservada à modalidade de venda por proposta em carta fechada, conforme art. 811° n° 2 a contrario, ou seja, o referido artigo 816° não é aplicável a outro tipo de venda;

E) A negociação particular não tem limite de valor a anunciar porque é uma negociação e como tal exige o consentimento de todas as partes envolvidas;

F) Caso contrário, seria mais uma expropriação particular!

G) O Executado só é dono de metade do prédio, pelo que só isso pode estar à venda;

H) Pelo que, salvo o devido respeito, a douta decisão viola os artigos 811º e 816° do CPC, o art.° 1308° do Código Civil e 62° da Constituição da República Portuguesa.

O apelante terminou pedindo que o recurso fosse julgado procedente e, em consequência, a decisão recorrida fosse revogada e substituída por outra que ordenasse que a venda por negociação particular fosse feita pelo valor base atribuído ao bem, não contestado, segundo disse, por nenhuma das partes.

Não houve contra-alegações.

Foram colhidos os vistos legais.

FUNDAMENTAÇÃO

As questões suscitadas no recurso, pela respetiva ordem lógica, são as seguintes: objeto da venda face à existência de contitularidade; preço de venda do imóvel.

Primeira questão (objeto da venda)

O factualismo a levar em consideração é o exposto no Relatório supra.

O Direito

Resulta dos autos que, correndo a execução contra o ora apelante, foi penhorado um imóvel que, de acordo com o registo predial, pertence não só ao executado mas também a Maria de Jesus. A contitular foi citada para os termos da execução, com invocação do disposto nos artigos 826.º e 862.º do CPC então em vigor (CPC de 1961, com a redação introduzida pelo Dec.-Lei n.º 38/2003, de 8.3 e pelo Dec.-Lei n.º 226/2008, de 20.11). Do disposto nessas normas, que correspondem aos artigos 743.º e 781.º do atual CPC, resulta que, com o acordo do(s) outro(s) contitular(es), não executado(s) (sem necessidade de consentimento por parte do executado – cfr. Rui Pinto, “Manual da execução e despejo”, Coimbra Editora, 2013, pág. 927), o bem que não pertença em exclusividade ao executado poderá vir a ser vendido na totalidade, no âmbito da execução. Também no caso da execução contra um só dos cônjuges, a venda poderá incidir sobre o bem comum que venha a ser penhorado, se o cônjuge, citado para a execução, não diligenciar pela sua exclusão por via da separação de bens (art.º 825.º do CPC de 1961, art.º 740.º do atual CPC).

De tudo isto decorre que a vontade do contitular, não executado, do bem penhorado, poderá concorrer para a eventual extensão da venda à totalidade do bem, cabendo-lhe opor-se a tal, se for o caso. Por outro lado, o tribunal ad quem tem por missão apreciar a decisão alvo do recurso (artigos 627.º, n.º 1, 639.º e 640.º), averiguar da bondade do decidido, à luz do seu objeto, tal como foi apresentado na primeira instância perante o tribunal a quo. Assim, a menos que sejam de conhecimento oficioso, não cabe ao tribunal ad quem apreciar questões novas, que não tenham sido objeto da decisão recorrida. Ora, o despacho recorrido, sub judice, apenas incidiu sobre o valor do preço da venda executiva do aludido bem, única questão que o tribunal a quo fora chamado a dirimir.

Assim, não estando em causa matéria que seja do conhecimento oficioso desta Relação, não se apreciará a questão da contitularidade do imóvel penhorado. A atenção desta Relação incidirá tão só sobre a fixação do valor porque o imóvel penhorado poderá ser vendido (sendo certo que não se mostra que tenha havido oposição à venda da totalidade do imóvel por quem tinha legitimidade para o efeito, a contitular como tal inscrita no registo predial, que, como se disse, foi citada para a execução e notificada da penhora).

Segunda questão (preço de venda do bem penhorado)

Seguindo o figurino legal então em vigor, idêntico ao atual, primeiramente tentou-se a venda do imóvel mediante propostas em carta fechada (art.º 889.º n.º 1 do CPC de 1961, art.º 816.º n.º 1 do CPC atual). À época o valor base a anunciar para venda, no caso de venda mediante propostas por carta fechada, era igual a 70% do valor base dos bens (n.º 2 do art.º 889.º do CPC antigo). O valor base, in casu, foi o valor de mercado (alínea b) do n.º 3 do art.º 886.º-A do CPC antigo), que fora indicado pelo executado, ou seja, € 110 000,00. Assim, o valor a anunciar para venda foi € 77 000,00. Nos termos do disposto no n.º 3 do art.º 894.º, esse (€ 77 000,00) seria o preço mínimo porque o bem poderia ser vendido, não podendo ser aceites propostas com valor inferior, a menos que nisso acordassem o exequente, o executado e os credores com garantia real sobre o bem.

In casu, não foram apresentadas propostas.

Assim, em obediência ao disposto na alínea d) do art.º 904.º do CPC, diligenciou-se pela venda do imóvel por negociação particular (idêntica solução está prevista na alínea d) do art.º 832.º do atual CPC).

Será que, à semelhança da venda mediante propostas em carta fechada, existe um limite mínimo para o preço de venda em negociação particular?

A resposta é negativa.

O insucesso da venda por propostas em carta fechada desde logo inculca razoável possibilidade de que não haja interessados para a aquisição do imóvel pelo preço mínimo anunciado. De todo o modo, a venda por negociação particular, pela agilidade de procedimentos que permite, poderá eventualmente desencadear transação por valor satisfatório, igual ou acima do valor base inicialmente fixado no processo. Mas, se assim não for, tal é sinal de que, afinal, o anunciado “preço de mercado” do bem, confrontado com a concreta necessidade de o transmitir, está inflacionado. Nesse caso, sob pena de se chegar a um impasse, em que afinal o património do executado não cumpriria a sua função de garantia geral do credor (artigos 601.º e 817.º do Código Civil), haverá que ponderar a sua venda pelo preço decorrente do real jogo da oferta e da procura, ainda que este valor seja inferior ao preço de venda inicialmente anunciado, mediante, pelo menos quando não haja acordo entre todos os interessados, autorização judicial. Tal possibilidade é apontada pela lei, na medida em que não se inclui, na indicação das regras aplicáveis às vendas em geral e, também à negociação particular (cfr. n.º 2 do art.º 886.º do CPC antigo, atualmente n.º 2 do art.º 811.º do CPC novo) a regra da venda mediante propostas em carta fechada que impede a aceitação de propostas de valor inferior a 70% (atualmente, 85%, artigos 816.º n.º 2 do novo CPC) do valor base.

Em suma, na venda de imóvel por negociação particular, é possível transacionar o imóvel por preço inferior ao valor base e, mesmo, ao valor mínimo anteriormente anunciado para a venda por propostas por carta fechada, ainda que, pelo menos nos casos em que não haja acordo entre todos os interessados, seja necessária autorização judicial. Esta é, de resto, solução unanimemente adotada na jurisprudência (cfr. acórdão da Relação de Lisboa, 18.6.2015, processo 5940/10.6 T2SNT-B.L1-6; Relação de Lisboa, 05.3.2015, processo 2259-10.6T2SNT.L1-6; Relação de Lisboa, 25.9.2014, processo 512/09.0TCSNT-A.L1-8; Relação de Lisboa, 19.6.2014, processo 20713/10.8 T2SNT.L1-6; Relação de Lisboa, 06.11.2013, processo 30888/09.3T2SNT.L1-8; Relação do Porto, 24.9.2015, processo 1951/12.5TBVNG.P1) e em que, contrariamente ao afirmado pelo apelante, não se encontra oposição por parte da doutrina (cfr. José Lebre de Freitas e Armindo Ribeiro Mendes, Código de Processo Civil anotado, volume 3.º, Coimbra Editora, 2003, páginas 601 e 602, ponto 4).

Trata-se, aqui, de operar um mecanismo, previsto na lei, de obtenção de meios necessários à satisfação de um direito, legalmente reconhecido, de um credor do apelante, que se processa pela transação forçada de um bem que existe no seu património (artigos 817.º e 824.º do Código Civil).

Como tal, a venda executiva não carece de consentimento do executado, nomeadamente quanto ao preço.

No caso sub judice, como se ponderou na decisão recorrida, face ao tempo decorrido e às dificuldades encontradas para achar interessado, justifica-se a venda por preço inferior ao valor base e mesmo ao valor mínimo que fora indicado para a venda por propostas por carta fechada, concluindo-se que o valor autorizado pela decisão recorrida (€ 50 000,00) era, afinal, o valor de mercado do imóvel.

A decisão recorrida deve, pois, ser mantida.

DECISÃO

Pelo exposto, julga-se a apelação improcedente e consequentemente mantém-se a decisão recorrida.

As custas da apelação são a cargo do apelante, sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficia.


Lisboa, 21.01.2016

Jorge Leal

Ondina Carmo Alves

Olindo dos Santos Geraldes