Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
3/2009-6
Relator: FÁTIMA GALANTE
Descritores: INSOLVÊNCIA
CITAÇÃO
CREDOR
UNIÃO EUROPEIA
TRATADOS
DIREITO INTERNACIONAL
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/12/2009
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA A DECISÃO
Sumário: Embora o artigo 9.° n.° 4 do CIRE seja uma norma especial, aplicável ao processo de insolvência, não pode sobrepor-se às convenções e tratados internacionais, como a Convenção de Haia, sob pena de violação de normas gerais de Direito Internacional convencional e o princípio da prevalência desse Direito sobre as regras de Direito Interno ordinário.
(F.G.)
Decisão Texto Integral: ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA
            I – RELATÓRIO
            No âmbito do processo de insolvência da sociedade S, S.A., declarada a insolvência da mesma, foi ordenado o cumprimento das formalidades legais, designadamente foi ordenada a citação dos credores nos termos e para ps efeitos do disposto no art. 37º do CIRE.
Veio, no entanto, o credor F, com sede na Suíça, suscitar a nulidade da sua citação, por residir no estrangeiro e a «carta de citação» não conter as formalidades exigidas no n° 1 do artigo 247° do C. P. Civil, o que nos termos do artigo 198° do mesmo código a torna nula. Mais veio arguir a nulidade relativa à designação do administrador de insolvência, por não ter sido indicado pelo presidente do Conselho Distrital da Ordem dos Advogados.

            Foi, de seguida, proferido despacho que considerou que o credor Requerente foi devidamente notificado de acordo com as disposições legais aplicáveis e, assim, indeferiu o o requerido e julgou improcedente a nulidade suscitada.

Inconformado, vem o credor requerente apelar da decisão proferida, tendo, no essencial, formulado as seguintes conclusões:
            1. A Decisão Recorrida viola o disposto na Convenção de Haia e nos artigos 247.° do CPC, 17.°, 37.° e 129.° do GIRE e, bem assim dos artigos 8.° n.° 2, 13.°, 119.°, 278.° e 280.° da Constituição da República Portuguesa.
3. Com efeito:
- a FMS é uma sociedade de Direito suíço, com sede na Suíça, que foi expressamente identificada no requerimento inicial de insolvência como um dos cinco maiores credores da SHORTES;
- recebeu na morada da sua sede, por correio registado com aviso de recepção, correspondência que constatou tratar-se de um documento redigido em língua estrangeira (português) e que lhe foi apresentada como estando redigida integralmente em língua portuguesa;
- por consulta aos seus advogados é que se apercebeu, apenas em 27 de Agosto de 2008, de que teria sido chamada para reclamar créditos no âmbito do presente processo de insolvência por via da correspondência acima descrita e que a mesma correspondência lhe era realmente dirigida, sendo proveniente, directamente, de um Tribunal português, o Tribunal do Comércio de Lisboa;
- imediatamente após tal constatação, em 1 de Setembro de 2008, arguiu a nulidade da sua citação de forma a exercer o seu direito de reclamar créditos que, ademais, estavam reconhecidos pela insolvente; e
- em simultâneo - na mesma data e invocando a nulidade da sua citação — a F reclamou tais créditos junto do administrador de insolvência na forma prevista no CIRE.
            4. Considerando o enquadramento factual ora descrito, o Tribunal a quo, admitindo não ter cumprido as formalidades decorrentes da aplicação da Convenção de Haia, entendeu que tais formalidades não teriam lugar por o artigo 9.° n.° 4 do CIRE ser uma norma especial face às mesmas.
            5. Sucede que, como decorre dos princípios gerais de Direito e, em especial do artigo 8.° n.° 2 da Constituição da República Portuguesa, tendo a Convenção de Haia sido ratificada, aprovada e publicada pelo Estado Português e também pelo Estado Suíço, sem que se tenha conhecimento da respectiva denúncia por qualquer destes Estados, tal Convenção prevalece necessariamente sobre o direito interno ordinário, no caso sobre o CIRE.
            6. Para além da aplicabilidade óbvia da Convenção de Haia ao caso em apreço, o artigo 17.° do CIRE determina a aplicação subsidiária do CPC, pelo que, também por esta via, a citação da FMS teria de ser feitas nos termos estabelecidos na mesma Convenção (artigo 247.° do CPC).
            7. O próprio CIRE estabelece normas especiais para a citação de credores estrangeiros com sede, residência ou domicílio em Estados-Membros da União Europeia (cfr. artigo 37.° n. 4 e 129.° n.° 4, ambos do GIRE), não sendo, por conseguinte, admissível que só por terem a sua sede fora da União Europeia os demais credores fossem preteridos.
            8. Assim, é forçoso concluir que a norma correspondente ao artigo 9.° n.° 4 do CIRE, na interpretação constante da Decisão Recorrida, segundo a qual aquela norma prevalece sobre a Convenção de Haia, é inconstitucional por violação do disposto no n.° 2 do artigo 8.° da Constituição da República Portuguesa, conjugado ainda com os artigos 119.°, n.° 1, 280.° n.° 3 e 278.° n.° 1 do mesmo Texto Fundamental.
            9. Deve ser dado provimento ao presente recurso e, em consequência, deverá ser revogada a Decisão Recorrida e declara nula a citação da FMS e, consequentemente, deverá, ao abrigo do princípio da economia processual, ser aceite a reclamação de créditos já apresentada pela FMS e os mesmos reconhecidos, sob pena de violação do disposto na Convenção de Haia e nos artigos 247.° do CPC, 17.°, 37.° e 129.° do CIRE e, bem assim dos artigos 8.° n.° 2, 13.0, 119.0, 278.° e 280.° da Constituição da República Portuguesa.

            Corridos os Vistos legais,
                                   Cumpre apreciar e decidir.
Face às conclusões de recurso, que como é sabido definem o objecto daquele – vd. art.ºs 684º, n.º 3, 690º, n.º 3, 660º, n.º 2 e 713º, n.º 2, do Cód. Proc. Civil – é questão proposta à resolução deste Tribunal, a de saber se a citação da credora/recorrente é nula, por inobservância do formalismo legal.

II – O DIREITO
Vem o presente recurso interposto da decisão que julgou improcedente a invocação da nulidade da citação da FMS.

A F é uma sociedade de Direito suíço, com sede na Suíça e foi expressamente identificada no requerimento inicial de insolvência como um dos cinco maiores credores da S.
Foi ordenada a sua citação com vista à reclamação dos créditos no âmbito do processo de insolvência, sendo que foi remetida e recebida na morada da sua sede, carta registada com aviso de recepção redigida em português, acompanhada de documentação também redigida em português.
Em 1 de Setembro (supostamente só em 27 de Agosto, foi alertada de que com a referida carta teria sido chamada para reclamar créditos) arguiu a nulidade da sua citação de forma a exercer o seu direito de reclamar créditos e em simultâneo, a F reclamou tais créditos junto do administrador de insolvência.
Contudo, o tribunal a quo considerou não se verificar qualquer nulidade na citação, fundamentalmente por considerar que o art. 9º, nº 4, do CIRE é norma especial.
Discorda o Recorrente por ofensa ao Direito Internacional.

1. Está em causa a citação de um dos cinco maiores credores, a que alude o art. 37º, nº 3 do CIRE, com vista à eventual reclamação de créditos.
Determina, porém, o art. 37º, nº 4 do CIRE, que “os credores conhecidos que tenham residência habitual, domicílio ou sede, em outros Estados-Membros da União Europeia são citados por carta registada, em conformidade com os artigos 40.° e 42.° do Regulamento (CE) n.° 1346/2000, do Conselho, de 29 de Maio".
Por outro lado, o n.° 4 do artigo 129.° do CIRE impõe ao administrador de insolvência o dever de avisar pela mesma forma acima referida os credores "com residência habitual, domicílio ou sede, em outros Estados-Membros da União Europeia”.

É certo que a Recorrente, com sede na Suíça, é credor estrangeiro mas não tem domicílio ou sede habitual num Estado-Membro da União Europeia, pelo que não lhe será directamente aplicável o formalismo previsto no citado Regulamento 1346/2000 de 29 de Maio.
Contudo, o legislador não deixou de acautelar os interesses dos estrangeiros, residentes fora de Portugal e fora da União Europeia. Existem regras gerais aplicáveis à citação. Assim, dispõe o art. 247º nºs 1 e 2 do CPC (aplicável aos processos de insolvência por remissão do artigo 17.° do CIRE), que quando “o Réu resida no estrangeiro, observar-se-á o que estiver estipulado nos tratados e convenções internacionais”. Só na “falta de tratado ou convenção, a citação é feita por via postal, em carta registada com aviso de recepção, aplicando-se as determinações do regulamento local dos serviços postais" (cfr. 247.° n.°s 1 e 2 do CPC).
            Ora, Portugal aprovou e ratificou, a Convenção de Haia de 1965, relativa à Citação e à Notificação no Estrangeiro dos Actos Judiciais e Extrajudiciais em Matéria Civil e Comercial, com publicação no Diário do Governo, de 18 de Maio de 1971.
Também a Suíça aderiu, embora com reservas, à Convenção de Haia.
            Como decorre do art. 10º da referida Convenção, ainda que esteja prevista a citação por carta com aviso de recepção, tal só se mostra possível quando não haja declaração do Estado destinatário em contrário, sendo certo que a Suíça veio expressamente declarar que se opunha a essa forma de citação, pelo que a citação de estrangeiros residentes na Suíça deve ser efectuada através de requerimento dirigido à Autoridade indicada pelo Estado Português, encarregue de receber e transmitir os actos judiciais para citação (no caso, a Direcção Geral dos Serviços Judiciários do Ministério da Justiça), como determinam os arts. 2.° a 6. da Convenção de Haia.
            Além disso, a citação terá, obrigatoriamente, de ser acompanhada de um pedido de acordo com a fórmula anexa à Convenção de Haia (cfr. artigo 3.°, 1.° parágrafo da Convenção de Haia).
            Por outro lado, do artigo 7.° da Convenção de Haia consta que "os termos impressos da fórmula anexa à presente convenção serão obrigatoriamente redigidos em francês ou inglês" e que os espaços em branco serão preenchidos na língua do Estado requerido, em francês ou em inglês.
Deste modo, a citação do credor deveria ter observado o formalismo legal supra referido, o que não sucedeu.

2. Para a decisão recorrida, pese embora a irregularidade no formalismo empregue para a citação da Recorrente, tal situação ficou sanada por força no disposto no art. 9º., nº 4 do CIRE.
Com efeito, dispõe o artigo 9.° n.° 4 do CIRE, que, com “a publicação, no local próprio, dos anúncios requeridos neste Código, acompanhada da afixação de editais, se exigida, respeitantes a quaisquer actos, consideram-se citados ou notificados todos os credores, incluindo aqueles para os quais a lei exija formas diversas de comunicação e que não devam já haver-se por citados ou notificados em momento anterior, sem prejuízo do disposto quanto aos créditos públicos".
Ou seja, mesmo quando a lei prescreve a citação/notificação pessoal a alguns interessados, a falta desta notificação fica sanada desde que esteja efectuada, na forma legal, a publicação exigida nos termos do citado preceito. Assim, segundo Carvalho Fernandes e João Labareda[1], com a publicação dos Anúncios em Diário da República, “a benefício da celeridade e segurança processuais, o Código optou por desconsiderar a falta de notificação pessoal quando for devidamente feita a publicação”.
Mas se tal entendimento pode ser defendido quando se trata de residentes em território nacional, já se afigura, no mínimo, discutível, que o mesmo possa suceder quando estamos perante residentes no estrangeiro, na medida em que, supostamente, os Anúncios em Diário da República são de divulgação nacional.
Ademais, trata-se de norma de direito interno que não pode deixar de ser enquadrada no sistema normativo em que se insere, não podendo derrogar as normas constantes de Convenções de Direito Internacional a que Portugal expressamente se vinculou.

Em suma, embora o artigo 9.° n.° 4 do CIRE seja uma norma especial, aplicável ao processo de insolvência, entende-se que não pode sobrepor-se às convenções e tratados internacionais, como a Convenção de Haia, sob pena de violação de normas gerais de Direito Internacional convencional e o princípio da prevalência desse Direito sobre as regras de Direito Interno ordinário.
Como decorre do disposto no artigo 8.° n.° 2 da CRP, o Estado Português optou pelo sistema de recepção automática do Direito Internacional Convencional no ordenamento jurídico português, sendo certo que a Convenção de Haia prevalece sobre o citado artigo 9.° n.° 4 do CIRE[2].
            Como refere Gomes Canotilho e Vital Moreira, “(O) único meio de fazer cessar a vigência dessas normas na ordem interna será a desvinculação externa"[3], pelo que não tendo, o Estado Português, denunciado a Convenção de Haia, deve o formalismo aí prescrito para as citações/notificações ser observado.
           
            3. Admite-se que que este formalismo dificilmente se compadece com o carácter urgente do processo de insolvência e se possam suscitar dúvidas quanto à aplicabilidade da Convenção de Haia, para a citação no estrangeiro de Actos Judiciais e Extrajudiciais em Matéria Civil e Comercial - ao processo de insolvência. Na verdade, para os países da União Europeia, distingue-se a citação e notificação no Estrangeiro dos Actos Judiciais e Extrajudiciais em Matéria Civil e Comercial, prevista no Regulamento nº 1348/2000, da citação efectuada no âmbito dos processos de insolvência a que alude o já referido Regulamento 1346/2000 e que tem regulamentação específica.
Porém, à falta de legislação específica internacional no que tange às citações e notificações de credores estrangeiros residentes fora do espaço da União Europeia, em processos de insolvência há que fazer uso da referida Convenção de Haia e que víncula Portugal e a Suíça.
Não pode aceitar-se que o legislador do CIRE pretendesse tratar de forma desigual os credores estrangeiros consoante tivessem sede, domicílio ou residência habitual, dentro ou fora da União Europeia. Não pode a celeridade processual ser obtida a qualquer preço, sem a preocupação de assegurar o conhecimento dos actos judiciais praticados pelos tribunais portugueses aos cidadãos de outros países.
No caso, como se referiu, à falta de outro regime, serão de aplicar os mecanismos previstos na Convenção de Haia, para as citações e notificações.

Seja como for, no caso, nem se trata de repetir a citação deste credor visto que, em 1 de Setembro de 2008, em simultâneo com a arguição de nulidade, o credor reclamou os seus créditos, pretendendo que se tenha por tempestiva a referida reclamação de créditos.

Concluindo:
Embora o artigo 9.° n.° 4 do CIRE seja uma norma especial, aplicável ao processo de insolvência, não pode sobrepor-se às convenções e tratados internacionais, como a Convenção de Haia, sob pena de violação de normas gerais de Direito Internacional convencional e o princípio da prevalência desse Direito sobre as regras de Direito Interno ordinário.

IV - DECISÃO
Termos em que se acorda em julgar procedente o recurso, revogando-se a decisão recorrida, atenta a nulidade da citação da FMS, e consequentemente, ao abrigo do princípio da economia processual, deverá ser proferido despacho que admita a reclamação de créditos já apresentada pela FMS, se outras razões a tal não obstarem, prosseguindo, os autos, os ulteriores termos normais.
Sem custas.
Lisboa, 12 de Fevereiro de 2009.
(Fátima Galante)
(Ferreira Lopes)
(Manuel Gonçalves)
______________________________
[1] Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda, CIRE Anotado, Vol I, pag. 98, Quid Juris,Lisboa, 2005, anotação ao art. 9º.
[2] Cfr. Jorge Miranda e Rui Medeiros, CRP Anotada, T I, Coimbra Editora, 2005, pags. 94/95 e Gomes Canotilho e Vital Moreira, CRP, Vol. I, 4ª Ed., Coimbra Editora, 2007, pag. 259.
[3] J.J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, ob. cit., pag. 259.