Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
816/05.1TVLSB-A.L1-2
Relator: FARINHA ALVES
Descritores: COMPETÊNCIA INTERNACIONAL
REGULAMENTO CE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 06/30/2011
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: PROVIDO
Sumário: I - A regra de competência internacional estabelecida, em matéria contratual, no art. 5.º, n.º 1, alíneas a) e b) do Regulamento (CE) n.º 44/2001 de 22 de Dezembro, é aplicável independentemente da obrigação que se pretende ver cumprida.
II - A competência atribuída nos termos do art. 24.º do mesmo Regulamento (CE), é limitada aos casos em que a parte demandada intervém na causa sem suscitar prontamente a questão da incompetência. Este preceito legal não obsta a que a parte demandada cumule a arguição da incompetência do tribunal com a contestação da acção.
(FA)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa,

A - COMÉRCIO DE ARTIGOS DECORATIVOS, LDA., com sede em Lisboa, intentou contra EFA, GMBH & CO.KG, com sede na Alemanha, a presente acção declarativa de condenação com processo ordinário, pedindo que a ré fosse condenada a pagar-lhe a quantia de € 13.106,00, acrescida de juros, à taxa legal, até efectivo pagamento, liquidados até à propositura da acção em € 2.517,31.

Alegou para tanto, em síntese:

A A. tem como objecto social a importação, distribuição e comércio de mobiliário, artigos de iluminação, artigos decorativos para o lar e azulejos decorativos, bem como a decoração de espaços interiores e exteriores (cfr. doc. que se junta sob n.° 1).
No âmbito da sua actividade a A. executa trabalhos com materiais de origem marroquina conhecidos como “zillij” e o “Tadelakt", o primeiro caracterizado por consistir em mosaicos multicolores manufacturados por artesãos marroquinos especializados, e o segundo é um material de revestimento de qualidade nobre à base de cal de Marraquexe que se assemelha ao mármore.
Em 2003, a R. contactou a A. solicitando a esta que procedesse à colocação do “zillij” e do “Tadelakt” numa obra denominada " Amerang Project" que estava a decorrer, em Amerang, na Alemanha.
A autora executou os trabalhos contratados, que foram aceites pela ré apesar de, posteriormente, ter solicitado a rectificação de imperfeições, e de ter declinado o pagamento das facturas em dívida, que somam o montante peticionado.
Citada, a ré contestou, começando por, ao abrigo dos art. 2.º, 3.º e 5.º als. a) e b) do Regulamento CE n.º 44/2001 de 22 de Dezembro de 2000, invocar a incompetência dos tribunais portugueses para conhecerem da acção, defendendo que a mesma é da competência dos tribunais alemães.
Para a hipótese de assim não ser entendido, apresentou a sua defesa em relação à pretensão da autora, e deduziu pedido reconvencional.
Na réplica a autora sustentou a competência dos tribunais portugueses, dizendo que a presente acção visa o cumprimento da obrigação de pagar o preço dos trabalhos executados, obrigação a que se aplica o disposto no art. 774.º do C. Civil, nos ternos do qual o lugar do cumprimento se situa em Portugal. E que a competência internacional dos tribunais portugueses também decorre do preceituado nos art. 65.º e 74.º do CPC por, segundo as regras de competência territorial estabelecidas na lei portuguesa, a acção dever ser intentada em Portugal.
No seguimento, foi proferida decisão a julgar improcedente a excepção de incompetência internacional dos tribunais portugueses. Subsumindo-se a questão ao Regulamento CE n.º 44/2001 de 22-12-2000, considerou-se que a acção visava o cumprimento da obrigação contratual de pagamento do preço, cujo lugar de cumprimento se situava em Portugal. Mais se considerou que a competência dos tribunais portuguesas resultava ainda do preceituado no art. 24.º do Regulamento, uma vez que a ré não limitou a sua intervenção nos autos à invocação da excepção de incompetência, tendo contestado a acção e, até, deduzido reconvenção.

Inconformada, a ré agravou do assim decidido, tendo apresentado alegações onde formula as seguintes conclusões:

1. O Tribunal "a quo" é incompetente para a presente acção à luz das disposições conjugadas dos artigos 65°, 65°-A, 66°, 101° do CPC e artigos 2° e 3° do regulamento (CE) n.º 44/2001 de 22 de Dezembro de 2000, o que determina a absolvição da instância nos termos do artigo 105.° do CPC.
2. "In casu" não faz sentido sequer chamar à colação o disposto no artigo 5.° alíneas a) e b) do citado regulamento dado que, caso se entenda estar-se adentro de um contrato de compra e venda o tribunal competente será o do lugar do Estado Membro onde, nos termos do contrato, os bens foram ou devam ser entregues, o que nos remete para a Alemanha, - no caso da prestação de serviços, o tribunal no Estado Membro onde, nos termos do contrato, os serviços foram ou devam ser prestados o que igualmente nos remete para a Alemanha.
3. Acresce que a Convenção de Roma, potencialmente chamada à colação, sempre nos remeteria também para o foro Alemão, atento a maior conexão com este Estado.
4. Por fim, deve considerar-se que nos termos do artigo 24 do regulamento (CE) supra referido, quando não obstante o requerido/réu tenha apresentado contestação e reconvindo, mas tenha alegado a excepção de incompetência do tribunal português deve considerar-se que não aceita tacitamente a competência deste tribunal.
5. O Tribunal " a quo" interpretou o artigo 5.º, Alínea a) do regulamento considerando que "in casu" era competente o tribunal português por força da aplicação do artigo 774.º do CC, erradamente, dado que a citada disposição regulamentar remete-nos para o local onde os bens deviam ser entregues e/ou os serviços executados, e não para o local onde a obrigação devia ser cumprida.
6. Mesmo a aceitar-se esta interpretação sempre se deveria ter chamado à colação a convenção de Roma aplicável às obrigações contratuais e considerar que por força duma maior conexão com a jurisdição alemã sempre seria o foro alemão o competente.
7. Deve pois alterar-se o despacho em crise por outro que julgue o tribunal português incompetente para a apreciação do pedido.

Não foram apresentadas contra-alegações.
Foi mantida a decisão recorrida.

Sendo o objecto dos recursos delimitado pelas conclusões, ressalvadas as questões que sejam do conhecimento oficioso do tribunal, está em causa no presente agravo saber se os tribunais portugueses são internacionalmente competentes para conhecer da presente acção.

Com interesse para a decisão importa ter em conta os fundamentos nucleares da acção, que definem o seu objecto, já acima enunciados, a saber:

No âmbito da sua actividade a A. executa trabalhos com materiais de origem marroquina conhecidos como “zillij” e o “Tadelakt", o primeiro caracterizado por consistir em mosaicos multicolores manufacturados por artesãos marroquinos especializados, e o segundo é um material de revestimento de qualidade nobre à base de cal de Marraquexe que se assemelha ao mármore.
Em 2003, a R. contactou a A. solicitando a esta que procedesse à colocação do “zillij” e do “Tadelakt” numa obra denominada " Amerang Project" que estava a decorrer, em Amerang, na Alemanha.
A autora executou os trabalhos contratados, que foram aceites pela ré apesar de, posteriormente, ter solicitado a rectificação de imperfeições, e de ter declinado o pagamento das facturas em dívida, que somam o montante peticionado.

O Direito

A questão ora em apreço afigura-se de resposta relativamente simples, parecendo seguro que deve ser reconhecida razão à agravante.
Antes de mais, não suscita qualquer dúvida a aplicação, no caso, do já referido Regulamento do Conselho n.º 44/2001, de 22 de Dezembro. Pois que a acção em causa se funda num contrato de natureza civil, celebrado já na vigência daquele Regulamento, entre pessoas domiciliadas em dois Estados-Membros da Comunidade Europeia, que participaram na sua aprovação.
Prosseguindo, também não oferece dúvidas que, nos termos da regra geral de competência estabelecida no art. 2.º do Regulamento em causa, a presente acção deveria ser intentada perante os tribunais da Alemanha, o Estado onde a ré tem o seu domicílio. Estando apenas em causa saber se, por força de alguma das regras especiais de competência estabelecidas nos artigos 5.º a 24º do mesmo Regulamento, os tribunais portugueses também são competentes para conhecer da causa – cf - o art. 3.º n.º 1 do Regulamento.
No caso em apreço, sendo claro que a presente acção tem fundamento contratual, a indagação está limitada ao âmbito do art. 5.º, n.º 1 do Regulamento, do seguinte teor:
Uma pessoa com domicílio no território de um Estado-Membro pode ser demandada noutro Estado-Membro:
1 – a) Em matéria contratual, perante o tribunal do lugar onde foi ou deva ser cumprida a obrigação em questão;
b) Para efeitos da presente disposição e salvo convenção em contrário, o lugar de cumprimento da obrigação em questão será:
- no caso de venda de bens, o lugar num Estado-Membro onde, nos termos do contrato, os bens foram ou devam ser entregues,
- no caso de prestação de serviços, o lugar num Estado-Membro onde, nos termos do contrato, os serviços foram ou devam ser prestados;
c) Se não se aplicar a al. b), será aplicável a alínea a);
Não se suscitando qualquer dúvida a esse propósito.
Aliás, nem sequer suscita dúvidas o enquadramento da situação dos autos na previsão da al. b) acima transcrita, sendo claro que a matéria de facto alegada consubstancia um contrato de prestação de serviços, na modalidade de empreitada, subsumível naquela alínea b). Apenas está em dúvida saber se a regra ali estabelecida apenas vale para a acção destinada a discutir a obrigação de prestação dos serviços, não sendo aplicável quando a obrigação em discussão seja a de pagamento do preço.
Mas esta é, salvo o devido respeito, uma falsa questão, posto que, sendo a obrigação de pagar o preço a contrapartida da obrigação de prestação dos serviços, a sua apreciação é sempre interdependente, não sendo configurável a discussão de uma dessas obrigações, desligada da outra. Como, de resto, é evidenciado pelos articulados apresentados na presente acção.
Assim sendo, e uma vez que é o cumprimento da obrigação de prestação de serviços que pode suscitar maior discussão e que o tribunal melhor posicionado para apreciar essa discussão é o do lugar onde foram, ou deviam ser, prestados os serviços, justifica-se que seja em função desse lugar que seja determinada a competência do tribunal. O mesmo acontece no caso do contrato de compra e venda, em que a competência do tribunal é definida em função do lugar de cumprimento da obrigação de entrega dos bens vendidos. Em qualquer dos casos, é o tribunal do lugar onde deve ser cumprida a obrigação característica de cada um desses contratos que é competente para conhecer do seu cumprimento, em relação a qualquer das obrigações deles emergentes para as partes.
Aliás, os termos em que se mostra redigida a referida al. b) sugerem, a nosso ver, que a mesma é aplicável a qualquer das obrigações emergentes, seja do contrato de compra e venda, seja do contrato de prestação de serviços.
Neste sentido podem ver-se os acórdãos do STJ de 03-03-2005, (relator Salvador da Costa) e de 10-05-2007 (relator Gil Roque), e desta Relação de 17-12-2008 (relatora Graça Araújo).
Conclui-se, pois, que o art. 5.º do Regulamento não atribui competência aos tribunais portugueses para conhecerem da presente acção.

Posto isto, dir-se-á, também muito brevemente, que se julga não ser defensável o entendimento, que foi aceite na decisão recorrida, de que a competência internacional dos tribunais portugueses podia ser fundada nos termos do art. 24.º do Regulamento, e no facto de a ré não ter limitado a sua intervenção nos autos à invocação da incompetência, tendo contestado a acção, e até deduzido reconvenção.
Apesar de a redacção do preceito legal em causa poder sugerir o entendimento assim propugnado, julga-se que o mesmo não pode ser aceite à luz dos princípios gerais, até porque não corresponde a quaisquer interesses merecedores de tutela jurídica.
No caso, a ré estabeleceu, claramente, uma relação de subsidiariedade entre a arguição da incompetência internacional do tribunal, feita a título principal, nos primeiros sete artigos da contestação, e a restante defesa deduzida nos artigos subsequentes, encabeçados pela expressão, em letras maiúsculas, a negrito e sublinhada, “QUANDO ASSIM NÃO SE ENTENDA”, repetida no primeiro daqueles artigos, o 8.º, do seguinte teor:
Quando assim se não entenda, e por mero dever de patrocínio ainda se refere que não tem, aliás, a Ré direito ao pedido que realiza”.
Ou seja, a ré defendeu-se, invocando, fundamentalmente, a incompetência internacional dos tribunais portugueses para julgar o caso, pretendendo que essa competência está deferida aos tribunais alemães. Mas, prevenindo entendimento diferente, apresentou, desde logo, a sua defesa em relação à pretensão da autora.
Procedimento que, segundo se julga, terá de ser considerado inteiramente regular e processualmente justificado. Pois que, como a mesma observa, se limitasse a sua intervenção na acção à arguição da excepção de incompetência e viesse a decair, perdia a oportunidade de se defender da acção, não sendo concebível a existência de um prazo autónomo para contestar, depois de transitada em julgado a fixação da competência. E também não podia ser obrigada a prescindir da arguição da incompetência do tribunal para poder apresentar a restante defesa. Ou seja, não podia ser obrigada a optar entre a arguição da incompetência do tribunal, limitando a sua defesa a essa excepção, sujeitando-se a ficar sem defesa em caso de decaimento, e a contestação da acção, sujeitando-se a que a mesma fosse julgada no tribunal onde foi proposta, apesar de entender que o mesmo não era internacionalmente competente.
Deste modo, julga-se que a competência internacional, atribuída nos termos do questionado art. 24.º do Regulamento, é limitada aos casos em que a parte demandada intervém na causa sem suscitar prontamente a questão da incompetência. E que tal preceito legal não obsta a que a parte demandada cumule a arguição da incompetência do tribunal com a contestação da acção. Outro entendimento conduziria a uma injustificada limitação do direito de defesa.
E, assim, a competência internacional dos tribunais portugueses também não encontra fundamento no referido art. 24.º do Regulamento (CE) n.º 44/2001 de 22 de Dezembro.

Assim se concluindo que os tribunais portugueses são internacionalmente incompetentes para conhecer da presente acção.
O que, traduzindo uma forma de incompetência absoluta, determina a absolvição da ré da presente instância – art. 101.º e 105º, ambos do CPC.


Termos em que se acorda em dar provimento ao agravo, revogando-se o despacho recorrido e, julgando-se procedente a excepção de incompetência internacional dos tribunais portugueses para conhecerem da presente acção, se absolve a ré da instância.

Custas pela autora, na acção e no recurso.

Lisboa, 30 de Junho de 2011

Farinha Alves
Ezagüy Martins
Maria José Mouro