Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
3375/16.6T8FNC.L2-6
Relator: MANUEL RODRIGUES
Descritores: PROCEDIMENTO CAUTELAR
INTERESSES DIFUSOS
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 10/26/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: N
Texto Parcial: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: O procedimento cautelar comum é o meio adequado a prevenir ou a fazer cessar as infracções contra a saúde pública e contra a prevenção do ambiente e qualidade de vida conferido a todos, pessoalmente ou através de associações, pelo n.º 3 do artigo 52 da Constituição da República Portuguesa.
Pretendendo-se com a providência tutelar interesses difusos ligados à saúde e qualidade de vida, não podem os requerentes aspirar a uma tutela egoísta e exclusiva das suas situações jurídicas individuais ou de uma dada categoria de pessoas, uma vez que os interesses a tutelar se perfilam como pertença genérica de toda a comunidade em que se inserem.
Só em casos limite de grave e intolerável degradação da qualidade de vida, devidamente comprovados, e sem prescindir do sentimento dominante na comunidade social, será de admitir a exercitação de providências de carácter preventivo e repressivo com custos sociais desproporcionados.

(Sumário elaborado pelo relator)
Decisão Texto Parcial:Acordam na 6ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa.


IRELATÓRIO:


R... e J..., em 17/05/2016, propuseram procedimento cautelar comum no âmbito de acção popular e preliminar a esta, contra I... S.A., pedindo que:
a)-Para efeitos de permitir o acesso e fruição do parque de estacionamento existente junto à parte Oeste da Praia Formosa, São Martinho, Funchal, pela população da Madeira e dos seus visitantes, de modo público, livre e gratuito, tal como vinha acontecendo até ao dia 19/04/2016, seja determinada à Requerida a imediata e total desobstrução da entrada e da saída do referido parque, removendo tudo o que ali foi colocado, por si ou a seu mando, e recolocando toda a sinalização vertical que existia no estacionamento, concedendo-se para o efeito o prazo máximo de 10 dias corridos, findos os quais deverão os Requerentes ser autorizados a proceder à desobstrução daquelas, a expensas da Requerida, com recurso, se necessário, a acompanhamento e uso da força policial e remoção de quaisquer outros obstáculos a tal efeito;
b)-Nessa sequência, e até à decisão definitiva a proferir no processo principal, seja a Requerida intimada a se abster da prática, por si ou por alguém a seu mando, de todo e qualquer acto que impeça ou dificulte o acesso e a utilização normal do parque de estacionamento em causa à população da Madeira e aos turistas.

Alegam, em síntese, que com a presente providência pretendem defender os interesses gerais da colectividade e também interesses difusos consubstanciados, designadamente, na respectiva qualidade de vida, sendo secundados, neste propósito, por diversos cidadãos residentes em diversas localidades da Região Autónoma da Madeira, os quais, para o efeito, subscreveram o abaixo-assinado que juntam. Referem, em substância, que no dia 19/04/2016, a Requerida, alegada proprietária, bloqueou e fechou o acesso ao parque de estacionamento da Praia Formosa, ambos sitos na freguesia de São Martinho, concelho do Funchal, concretamente o existente a Noroeste da referida praia. Fê-lo à noite, inesperadamente, tendo para o efeito colado nos respectivos acessos de entrada e de saída barreiras de cimento. O fecho do parque de estacionamento em causa pela Requerida impediu de imediato, e vem impedindo desde então, completamente, o acesso e o estacionamento de veículos automóveis no mesmo. O parque de estacionamento em questão existe desde seguramente há mais 30 anos e desde o seu início sempre se destinou e esteve afecto ao uso público, tendo sempre sido livremente acedido e usado pela população madeirense, quer em apoio à mencionada praia pública, quer em apoio aos equipamentos desportivos públicos ali edificados (campo de futebol). Tal parque de estacionamento, inicialmente em terra batida, foi, há vários anos, alcatroado pela Câmara Municipal do Funchal (doravante CMF), que marcou no alcatrão os respectivos estacionamentos e as setas de orientação do trânsito a tinta branca, colocou a sinalização vertical e marcou no alcatrão, a tinta amarela, como reservados, lugares de estacionamento, designadamente para si, para a Polícia de Segurança Pública (PSP), para deficientes para o Serviço de Apoio no Mar (Sanas – Madeira), e bem assim proibiu o estacionamento, designadamente a bicicletas. Tem sido a CMF quem tem procedido à manutenção do parque de estacionamento em causa, reparando-o quanto necessário, o que aconteceu há menos dois meses. Nunca a Requerida impediu o arranjo do parque pela CMF ou a sua utilização pela população da Madeira em geral, a qual sempre o utilizou na convicção de que o terreno onde está implantado é público. A Praia da Formosa é a maior praia pública da Madeira, sendo o parque de estacionamento em causa um dos poucos locais existentes no concelho do Funchal cujo acesso pela população é gratuito. O outro estacionamento existente junto à Shell é manifestamente insuficiente para o estacionamento dos veículos do número de pessoas que ali diária e regularmente se desloca e utiliza quer a praia, quer a promenade, quer os restaurantes e bares das proximidades. O fecho do parque de estacionamento prejudica e põe em causa a segurança das pessoas que frequentam a Praia Formosa e a promenade, porquanto, designadamente o Sanas e a PSP, por um lado, deixaram de ter lugar reservado para ali estacionarem as suas viaturas em caso de emergência na zona, sendo que, por outro lado, as pessoas que ali se deslocam serão obrigadas a estacionar os respectivos veículos nas margens da estrada e nos passeios próximos, criando caos no trânsito na zona e obstruindo ou dificultando muito a passagem de veículos de socorro e de emergência e o acesso em si à praia e à promenade em caso de acidente.

Argumentam, ainda, que face à utilização do parque de estacionamento em causa pela colectividade em geral, e em particular pelo Município do Funchal, e pelos turistas, desde seguramente há mais de 30 anos, de forma ininterrupta, à vista de todos, e designadamente da Requerida, sem oposição de ninguém, sem qualquer violência e na ignorância de lesão do direito de outrem, das três uma: caso o terreno onde foi construído o referido estacionamento seja público, impunha-se ao Município do Funchal, ou esteja dentro do domínio público marítimo, impunha-se ao Município do Funchal, pugnar pela defesa dos interesses de toda a colectividade que lhe foram confiados; caso a Requerida prove que o terreno lhe pertence, impunha-se ao Município do Funchal, na defesa dos interesses da colectividade que representa e na prossecução do interesse público, que invocasse a usucapião sobre o mesmo, tendo em consideração a posse que vem sendo sucessiva e ininterruptamente exercida pelo próprio, através da população do Funchal, nos termos correspondentes ao direito de propriedade; subsidariamente à usucapião, competia ao Município, na defesa do interesse público, invocar a acessão industrial imobiliária sobre o terreno em causa, pois o valor das obras que realizou nele de boa-fé é maior do que o valor do terreno tinha antes. Entendem, ainda, que a obstrução total do acesso, com a consequente impossibilidade física do estacionamento no parque em causa, configura uma situação de esbulho violento, violência essa exercida pela Requerida sobre as coisas, impedindo a sua utilização, destinada a criar no possuidor Município do Funchal um estado psicológico de insegurança que afecta a liberdade e a tranquilidade dos respectivos munícipes.

Citada a Requerida deduziu incidente de impugnação do valor atribuído pelos Autores ao procedimento cautelar, e oposição, por excepção, invocando a incompetência do tribunal em razão do valor da causa, a ineptidão da petição inicial por falta de indicação do pedido[1] e a ilegitimidade dos Autores, e por impugnação, alegando, em substância, que a Requerida é proprietária e possuidora da parcela de terreno em causa, bem como de todo o imóvel na sua globalidade, há mais de 200 anos, e que sempre agiu como tal perante os particulares e entidades públicas, que a Câmara Municipal do Funchal está bem ciente disso e que as obras de melhoramento realizadas por esta autarquia bem como a utilização da referida parcela de terreno como parque de estacionamento foram-no mediante prévia autorização da antepossuidora e somente a título provisório, enquanto o destino final dos prédios não fosse concretizado. Referem, ainda, que não se verifica o pressuposto do periculum in mora que sustenta a urgência dos procedimentos cautelares, na medida em que a parcela de terreno que esteve afecta a parque de estacionamento não irá desaparecer, e que falta igualmente o pressuposto da acção popular quanto ao interesse invocado (direito da população em geral estacionar os veículos junto à praia) por não corresponder a qualquer interesse juridicamente tutelado.

Decidido o incidente, foi fixado o valor à causa.

Foi também decidida a excepção de incompetência do Tribunal em razão do valor da causa.

Procedeu-se à citação do Município do Funchal e, editalmente, dos “utentes regulares da Praia Formosa, na freguesia de São Martinho, Funchal, nos termos para os efeitos do artigo 15º da Lei n.º 83/95, de 31 de Agosto.

Foi também notificada a pendência da presente acção ao Ministério Público, nos termos e para os efeitos do disposto nos artigos 16º da citada Lei n.º 83/95, artigo 5º, n.º 4, do Estatuto do Ministério Público e 325º do Código de Processo Civil.

Realizada a audiência final, foi proferida, em 11-07-2017, decisão que julgou improcedentes as excepções de ilegitimidade activa invocadas e indeferiu a providência cautelar requerida.

Apelaram os Requerentes, formulando na sua alegação as seguintes conclusões:
«1ªDeve ser dado como não provado o que consta sob o ponto 38. da matéria de facto apurada pelo Tribunal a quo, devendo antes, e diversamente, ser dado como provado que, em 24 de Fevereiro de 1992 foi celebrado entre o Governo Regional da Madeira e a H... o Protocolo que consta junto à Oposição como doc. 7 - impondo-se a respectiva consideração na sua totalidade.
Efectivamente, e como consta de tal documento, a desistência da expropriação e a entrega do imóvel em causa efectuaram-se mediante determinadas condições e para determinados fins, e, designadamente, ao invés do que foi feito constar do mencionado ponto 38., está em causa um acordo no qual foi prevista a manutenção, em cada momento, das instalações balneárias de acesso e uso públicos (só assim se percebendo os factos dados como provados sob os pontos 6., 12., 13., 16. 18. a 22., 26. e 40.).
Deve ser dado como não provado o ponto 41. da matéria de facto apurada pelo Tribunal a quo nos termos em que se encontra redigido, por não se mostrar minimamente concretizado, sendo que o que em concreto a esse respeito foi alegado (cfr. art.º 52º da Oposição) e nessa sequência provado (cf. ponto 42 da matéria de facto apurada) foi a promoção pela Requerida de procedimento administrativo de delimitação do domínio público marítimo.
Sendo isto que em concreto foi alegado, da prova produzida em audiência de julgamento resultou que, encontrando-se a área em causa em zona de domínio público marítimo, daí o ter sido promovido o dito procedimento administrativo de delimitação do mesmo pela Requerida, esta, no entanto, nunca até à presente data promoveu qualquer acção para o reconhecimento da respectiva propriedade na indicada zona – cf. resulta expressamente do depoimento da testemunha M..., gravado no CITIUS sob a referência 20170705141227_1572299_2871376, a qual, questionada especificamente a esse respeito, respondeu “não, acção judicial, não”.
E mais resultou provado, com manifesta relevância para a decisão da presente causa, que o estacionamento sub judice se encontra ele próprio especificamente em zona de domínio público marítimo - cf. ortofotomapa junto pela Requerida em Audiência de Julgamento, e cf. depoimento da testemunha Rosa Calado (gravado no CITIUS, sob a referência 20170628170252_1572299_2871376), que justificou a inacção da Requerida a esse respeito até à conclusão do processo administrativo de delimitação, referindo: “até à delimitação do domínio público marítimo, nós não poderíamos dizer concretamente qual é o limite do nosso terreno, tanto podia ser mais dez metros para baixo, como dez metros para cima. O que significa que, em termos práticos, eu não podia vedar um terreno, porque arriscava-me a estar a vedar terreno público, parte de terreno que fosse público. Quando sai a delimitação do domínio público marítimo vem claramente definir onde começa a propriedade privada e acaba a pública.”
Ou seja, deve ser dado como não provado o que presentemente consta sob o ponto 41. da matéria de facto, mais devendo ser dado pelo contrário como provado que a Requerida, tendo promovido o procedimento administrativo de delimitação do domínio público marítimo referido no ponto 42. da matéria de facto, até à presente data não apresentou qualquer acção com vista ao reconhecimento da propriedade que se arroga em zona de domínio público marítimo, onde se inclui o estacionamento sub judice.
Deve ainda ser dada como não provada a matéria dos pontos 44. a 46. da matéria de facto apurada pelo Tribunal a quo desde logo porque contraditada pelo depoimento, na mesma parte, para a qual assim novamente se remete, da testemunha R... – de onde resulta claro, expresso e inequívoco que, até à data do termo do procedimento administrativo de delimitação do domínio público marítimo, a Requerida nem tinha conhecimento dos limites da propriedade que se arroga, e, concretamente, com directo relevo para a presente causa, se a mesma abrangia ou não o parque sub judice.
Mais acresce que a matéria dos ditos pontos 44. a 46., além de assinalavelmente vaga e imprecisa, não encontra qualquer suporte probatório, e, em particular, dos autos não consta qualquer pedido nesse sentido por parte da Câmara Municipal do Funchal, nem tampouco qualquer resposta da H... - constando, pelo contrário, o já referido protocolo celebrado em 24 de Fevereiro de 1992 com o Governo Regional, que previu, designada e expressamente, a salvaguarda, “em cada momento”, da “existência e funcionamento das instalações balneárias de acesso e uso públicos”, o que nada tem a ver, seja com qualquer autorização supostamente pedida pela Câmara, seja com qualquer mero beneplácito supostamente concedido pela H....
Considerando a matéria de facto dada como provada pelo Tribunal a quo, e bem assim quanto integra o presente recurso a respeito da matéria de facto, impõe-se, ao invés do decidido pelo Tribunal a quo, salvo o devido respeito e melhor entendimento, decidir de forma precisamente diversa da que este decidiu, ou seja, decidir no sentido da procedência do presente processo cautelar.
10ªEfectivamente, em particular da matéria apurada sob os pontos 1. a 26. resulta uma situação de esbulho do estacionamento em causa, dada a violência sobre o mesmo em si (a obstrução forçada e noturna, sem qualquer ordem judicial ou de qualquer entidade pública), situação esta que é susceptível de ser questionada em sede de acção popular, embora não através do procedimento especificado de restituição provisória de posse, pelo facto de os particulares - e desde logo os ora Requerentes – serem apenas seus utilizadores e não possuidores em nome próprio (cf. Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, proc. 835/10.6TJVNF, 25-05-2010, supra citado).
11ªAlém de, tal como na situação do aludido Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, estar em causa um bem cuja utilização tem por objecto a satisfação de interesses colectivos de certo grau e relevância - sendo esse o critério que a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, citada pelo dito Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, associa à definição do carácter público de determinado caminho – aqui mais resultou provado que o parque de estacionamento em causa se encontra em zona de domínio público marítimo.
12ªOra, também resultou provado que, pese embora tenha havido procedimento administrativo de delimitação, a Requerida nem sequer propôs até à presente data qualquer acção com vista ao reconhecimento da sua alegada propriedade em zona de domínio público marítimo, e, como tal, não beneficia de qualquer decisão judicial, única apta a ali reconhecer a sua alegada propriedade (cf. art.º 17º, n.º 7 da Lei n.º 54/2005).
13ªAcresce, finalmente, na senda do entendimento sufragado pelo Supremo Tribunal de Justiça no processo 1907/09.5TBABF.E1.S1, por douto Acórdão de 13-02-2014 (à luz da versão então em vigor do diploma em causa, mas cujas razões de ser se julga permanecerem in totum), não ser possível a prova da propriedade privada de terrenos que hajam sido mantidos em posse pública (i.e. por entidade pública) pelo período necessário à formação de usucapião, em zona de domínio público marítimo – como aqui acontece –, pois neste a propriedade pública é a regra e a propriedade privada a excepção.
           
Nas suas contra-alegações, a Requerida formulou, em síntese, as seguintes conclusões:
«O Tribunal a quo deu como provados os factos elencados sob 1 a 64 da douta sentença sub judice, tendo fundamentado a sua decisão com a demonstração do raciocínio por detrás desse julgamento, enumerando exaustivamente as provas (documentais e testemunhais) que o convenceram, bem como ainda a convicção de verdade que cada uma dessas provas lhe mereceu.
Assim, do cotejo da decisão ora impugnada, designadamente da matéria de facto considerada como provada e não provada, bem como da forma clara, precisa e razoável como o tribunal alicerçou a sua convicção, parece-nos notoriamente incongruentes as alegações efectuadas pelos Recorrentes nas suas doutas alegações, já que a Julgadora procedeu a uma avaliação crítica, pormenorizada e ponderada de toda a prova produzida.
Com efeito, é através da motivação que se efectua a delimitação do sistema de livre apreciação da prova.
Ora, a Recorrida só poderá concluir que os Recorrentes se limitam a criticar o uso que o Tribunal a quo fez do aludido princípio da livre apreciação da prova em sede de julgamento da matéria de facto, pretendendo sustentar que deveria ter sido outra a matéria considerada provada.
No entanto, e da leitura da decisão ora impugnada, facilmente se depreende que o Tribunal a quo indicou as múltiplas provas que serviram para formar a sua convicção, bem como explicitou o motivo pelo qual valorizou umas e desconsiderou outras.
Por outro lado, nenhumas das provas utilizadas pelo Tribunal a quo para formar essa convicção são provas proibidas por Lei e todas as provas utilizadas são de livre apreciação pelo Julgador, segundo as regras da experiência comum e a sua convicção, operando a sua análise crítica, com a explicitação individualizada dos participantes que entendeu primordiais para a génese da mesma.
Isto posto, a fundamentação da decisão acha-se devidamente alicerçada nas regras da experiência e em adequados juízos de normalidade, não se perfilado a violação de qualquer regra da lógica ou ensinamento da experiência comum.
E nenhuma razão objectiva colhe aos Recorrentes quando privilegiam ou hierarquizam elementos probatórios, infirmando-os ou afirmando-os de acordo com a sua própria interpretação ou conveniência.
Ao fim e ao cabo, o que os Recorrentes pretendem é contrapor a sua própria convicção à do Tribunal, esta colhida no âmbito do princípio da imediação e da oralidade. Não padece assim a douta sentença do invocado vício da apreciação da prova.

Da Análise ao Julgamento efectuado quanto à Matéria de Facto:
i)-Facto 38:
Procedem os Recorrentes à confusão dos conceitos: acção e condição; e ainda: expropriação e delimitação do domínio público marítimo.
É facto assente, público e notório – quanto mais não seja pelo mero decurso do tempo e pelo facto da prova documental que o demonstra, vide Doc. 7 da oposição, ter sido aceite sem impugnação pelos Recorrentes - que o Governo Regional da Região Autónoma da Madeira desistiu do processo de expropriação urgente da propriedade sub judice da Recorrida.
A acção do Governo Regional pode ter tido condições, como as que constam do citado Doc. 7 da oposição, condições essas que também se alteraram, como resultou à saciedade do depoimento da testemunha I... que, com conhecimento directo, conseguiu explicar ao Tribunal a quo, depoimento esse que se mostrou credível e isento e, portanto, mereceu credibilidade pela Ilustre Magistrada a quo.
De igual forma, decidiram os Recorrentes misturar alhos com bugalhos ao tentar usar a delimitação do domínio público marítimo como facto demonstrativo da “não desistência” da expropriação.
Ora, é por mais evidente que são duas matérias diferentes, tanto mais não seja, porque, como é evidente, a expropriação nunca teria ocorrido se o Governo Regional se considerasse detentor/possuidor/proprietário daqueles prédios por intermédio do domínio público marítimo, pois como seria possível o Governo Regional expropriar a sua própria propriedade?
ii)-Facto 41:
Com a devida vénia, e quanto ao facto 41, por mais que se tente não se descortina a razão da discordância dos Recorrentes.
A Recorrida, como afirmou sempre por sua voz ou pela voz dos seus antepossuidores que faz sua desde pelo menos desde o ano de 1859, é proprietária dos prédios sub sudice, sitos na Praia Formosa, freguesia de S. Martinho, concelho do Funchal. Tendo sempre se opondo pelos meios ao seu alcance às actuações que ofendiam o seu direito.
iii)-Factos 44, 45, e 46:
Continuando, e também aqui relativamente aos factos 44, 45, e 46 julgados como provados pelo Ilustre Tribunal a quo, pretendem os Recorrentes fazer valer a sua leitura enviesada da realidade, à ponderada leitura realizada pelo Ilustre Tribunal a quo.
É evidente, mesmo ao mais distraído dos cidadãos, que não existe qualquer contradição dos factos 44, 45, e 46, com os factos 17, 26, ou 40.
É também evidente que a fundamentação dos factos 44, 45, e 46 resulta do depoimento prestado pelas testemunhas I..., R..., J..., P... (e quanto a esta testemunha realça-se o facto do trabalho por si desenvolvido ter sido efectivamente o licenciamento do parque de estacionamento sub judice junto da entidade administrativa competente, isto é, a Câmara Municipal do Funchal), e M..., que depuseram afirmando o comportamento da Recorrida como proprietária dos prédios sub judice e, de igual forma, afirmando a inexistência de qualquer outra pessoa ou entidade que se arrogasse também detentora/possuidora/proprietária dos prédios sub judice. Mas não só, tais factos provados resultam ainda dos documentos juntos aos autos durante a audiência de julgamento, nomeadamente e em especial: (i) carta da Recorrida para a Câmara Municipal do Funchal datada de 31 de Março de 2008; (ii) carta da Recorrida para a Câmara Municipal do Funchal datada de 22 de Fevereiro de 2011; (iii) carta da Recorrida para a Câmara Municipal do Funchal datada de 8 de Junho de 2011; (iv) fax da Recorrida para a Câmara Municipal do Funchal datado de 4 de Julho de 2011; (v) carta da Câmara Municipal do Funchal para a Recorrida datada de 15 de Julho de 2015; (vi) carta da Câmara Municipal do Funchal para a Recorrida datada de 19 de Agosto de 2015; e (vii) carta da Recorrida para a Câmara Municipal do Funchal datada de 20 Abril de 2016 – tudo documentos juntos aos autos e aceites por acordo das Partes, porquanto não foram impugnados pelos Recorrentes.
A prova é claríssima: a Câmara Municipal do Funchal, o Governo Regional da Madeira, e a APRAM - Administração dos Portos da Região Autónoma da Madeira, S.A. (tudo entidades públicas) confessadamente reconhecem que é propriedade privada.
Realça-se ainda o depoimento de L... que acabou por ser reveladorr quanto a esta matéria.
Na verdade, e como se mostra por demais evidente – mesmo para quem não quer ver, como é a situação expressa dos Recorrentes – a utilização de parte dos prédios sub judice como parque de estacionamento é sim um simples acto gracioso da Recorrida, do qual em vez de receber agradecimento por parte dos seus eventuais beneficiados, está sim a ser vítima de uma ilegítima e imoral tentativa de apropriação daquilo que é seu.
iv)-Dos Factos Mais Relevantes:
O único ponto verdadeiramente em comum entre os Autores e as testemunhas arroladas e ouvidas em audiência de julgamento (J... e C...) é o facto de serem clientes do RESTAURANTE BARRA AZUL de O....
A terceira testemunha (L...) é filho de O...
O RESTARAUNTE BARRA AZUL será o único prejudicado economicamente com a impossibilidade de estacionamento naquele local, pois os outros dois estabelecimentos comerciais sitos na Praia Formosa, um deles continua a ter parque de estacionamento público mesmo ao seu lado e o outro continua a ter parque de estacionamento privado.
A FRENTE MARFUNCHAL - GESTÃO E EXPLORAÇÃO DE ESPAÇOS PÚBLICOS E ESTABELECIMENTOS PÚBLICOS URBANOS DO FUNCHAL, E. M. já notificou O... para abandonar o local.
A Recorrida já notificou O... para abandonar o local.
A Recorrida tem acção judicial contra O... para condenar esta a devolver parte dos prédios sub judice que ocupa ilegitimamente – cf.. documentos juntos aos autos, e que corre termos sob processo n.º 1899/17.7T8FNC do Tribunal Judicial da Comarca da Madeira, Juízo Local Cível do Funchal, Juiz 1.
Os presentes autos não são verdadeiramente qualquer acção para protecção dos interesses difusos da população, mas são sim parte do litígio que opõe a Recorrida ao RESTAURANTE BARRA AZUL de O....
v)-Do Direito:
A Recorrida demonstrou para além do ónus que lhe incumbia que é a única proprietária e possuidora dos prédios sub judice.
Pelo contrário, os Recorrentes, apesar de muito alegarem na sua petição inicial, incumpriram com o ónus que lhes incumbia: (i) não demonstraram a expropriação; (ii) não demonstraram o domínio público marítimo; (iii) não demonstraram a usucapião; (iv) não demonstraram a acessão industrial; (v) e não demonstraram a violação de qualquer direito fundamental colectivo ou difuso que merecesse tutela no âmbito de uma acção popular.

Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

II)OBJECTO DO RECURSO - QUESTOES A DECIDIR:
Sendo as conclusões da alegação de recurso, no seu confronto com a decisão recorrida, que determinam o âmbito da apelação (salvo quanto a questões de conhecimento oficioso que possam ser decididas com base nos elementos constantes do processo) as questões que essencialmente se colocam são as seguintes:
Saber se houve erro na apreciação dos meios de prova que imponha a alteração da decisão da matéria de facto mais concretamente quanto aos pontos 38, 41, 44, 45 e 46 da matéria de facto considerada como provada;
Saber se o circunstancialismo fáctico indiciariamente provado nos autos é de molde a conduzir ao decretamento da providência cautelar requerida.

III)FUNDAMENTAÇÃO
Na 1ª instância julgaram-se indiciariamente provados e não provados os seguintes factos:
A)FACTOS PROVADOS:
“1.No dia 19/04/2016, terça-feira, a requerida bloqueou e fechou o acesso ao parque de estacionamento da Praia Formosa, ambos sitos na freguesia de São Martinho, concelho do Funchal, concretamente o existente a Noroeste da referida praia.
2.O parque de estacionamento em causa encontra-se no termo da via de acesso automóvel à Praia Formosa, do respectivo lado Oeste, na traseira do bar denominado “Beira Calhau”, tendo dois acessos para os veículos automóveis, um de entrada, com cerca de 10m de largo, e um de saída, com cerca de 5m de largo, ocupando uma parcela de terreno, alcatroada e devidamente delimitada, com aproximadamente 1.000m2 de área, parte do prédio rústico inscrito na matriz cadastral respectiva sob o artigo 21º, da Secção AG, e descrito na Conservatória do Registo Predial do Funchal, sob o nº 2375, da freguesia de São Martinho, concelho do Funchal.
3.O fecho do parque de estacionamento foi feito à noite, tendo a requerida para o efeito colocado nos respectivos acessos de entrada e de saída barreiras de cimento.
4.O fecho do parque de estacionamento não foi determinado por qualquer ordem judicial, nem por qualquer entidade pública.
5.O fecho do parque de estacionamento em pela requerida impediu de imediato, e vem impedindo desde então, completamente, o acesso e o estacionamento de veículos automóveis no mesmo.
6.O parque de estacionamento existe desde há mais 30 anos, o qual, desde o seu início, sempre foi acedido e usado pela população madeirense, quer em apoio à mencionada praia pública, quer em apoio aos equipamentos desportivos públicos ali edificados (campo de futebol).
7.O parque de estacionamento, inicialmente em terra batida, foi posteriormente, há vários anos, alcatroado pela Câmara Municipal do Funchal.
8.Foi também a Câmara Municipal do Funchal quem marcou no alcatrão os respectivos estacionamentos e as setas de orientação do trânsito a tinta branca.
9.Tal como foi a Câmara Municipal do Funchal quem colocou sinalização vertical, a qual, em parte, já foi retirada, e marcou no alcatrão a tinta amarela como reservados lugares de estacionamento, designadamente para si, para a Polícia de Segurança Pública (PSP), para deficientes e para o Serviço de Apoio no Mar (Sanas - Madeira).
10.E bem assim proibiu o estacionamento, designadamente a bicicletas.
11.Foi ainda a Câmara Municipal do Funchal quem providenciou pela manutenção do parque de estacionamento em causa, reparando-o quanto necessário menos dois meses da instauração da presente acção.
12.Até ao dia do fecho pela requerida, o parque de estacionamento era regularmente acedido e utilizado pelos requerentes, praticamente diariamente.
13.Tal como era utilizado pelos demais frequentadores regulares da Praia Formosa e da “promenade”, pelos residentes na Região Autónoma da Madeira em geral e pelos turistas, sobretudo no Verão quando a praia é frequentada diariamente por centenas de pessoas.
14.Mas também nas demais estações do ano, dado tratar-se de local procurado e visitado, quer pelos banhistas que frequentam a praia praticamente todo o ano, quer pelos madeirenses em geral e por turistas.
15.Até ao dia do fecho e desde há mais de 30 anos, a requerida, vendo o parque de estacionamento ser arranjado e alcatroado pela Câmara Municipal do Funchal, nada disse e nada fez para o impedir.
16.Até ao dia do fecho, e desde há mais de 30 anos, a requerida vendo a utilização do parque de estacionamento pela população da Madeira em geral, nada disse e nada fez para obstar à utilização diária e permanente do mesmo.
17.Desde há mais de 30 anos e até ao dia 19/04/2016, o parque de estacionamento sempre foi acedido e utilizado regularmente pelos requerentes, para no mesmo parquearem as viaturas, mas também pelos utilizadores regulares da Praia Formosa, pelos residentes na Região Autónoma da Madeira em geral, e pelos turistas para ali parquearem as respectivas viaturas.
18.A respectiva construção e manutenção foi feita pela Câmara Municipal do Funchal, e a sua utilização sempre foi livre e gratuita.
19.A zona onde a Praia Formosa se insere é um local de passeio e de lazer regularmente utilizado pelos madeirenses e pelos turistas ao longo de todo o ano.
20.Nesse local foi efectuada uma “promenade” que a liga à cidade de Câmara de Lobos, fazendo e completando assim a ligação à promenade do Lido.
21.A Praia Formosa e a “promenade” constituem uma zona usada diariamente por madeirenses e por turistas para passeio e para o seu exercício físico diário.
22.A Praia Formosa é dos poucos locais balneares existentes no concelho do Funchal cujo acesso pela população é gratuito.
23.O outro estacionamento ali existente, mais para este da praia, concretamente junto à antiga Shell, é insuficiente para o estacionamento dos veículos do número de pessoas que ali diária e regularmente se desloca e que utiliza quer a praia, quer a promenade, quer os restaurantes e bares das proximidades.
24.Com o fecho do parque de estacionamento o Sanas e a PSP deixaram de ter lugar reservado para ali estacionarem as suas viaturas em caso de emergência na zona.
25.Face à quantidade de pessoas que ali se desloca diariamente, sobretudo no Verão, e ali permanece muitas horas, as mesmas a estacionam os respectivos veículos nas margens da estrada e nos passeios próximos, obstruindo ou dificultando a passagem de veículos de socorro e de emergência e o acesso em si à praia e à “promenade” em caso de acidente.
26.A utilização do parque de estacionamento pela colectividade em geral, e em particular pela do Município do Funchal, e pelos turistas, verifica-se desde há mais de 30 anos, de forma ininterrupta, à vista de todos, e designadamente da requerida, sem oposição de ninguém, sem qualquer violência.
27.A parcela de terreno onde se insere o parque de estacionamento possui cerca de 1.000m2 e é parte integrante do imóvel rústico, com cerca de 54.450m2 descrito na Conservatória do Registo Predial do Funchal sob o n.º 2375 da freguesia de S. Martinho e inscrito na respectiva matriz predial rústica sob o artigo 21.
28.A ré adquiriu o imóvel em causa em 8 de Abril de 1997, tendo desde essa data inscrito, na Conservatória do Registo Predial do Funchal, a seu favor, o direito de propriedade, de forma exclusiva, sobre o imóvel.
29.A propriedade do imóvel teve as seguintes transmissões, previamente à ré: P..., que adquiriu em consequência de partilha por morte, em 17 de Janeiro de 1895; M..., que adquiriu em consequência das partilhas por morte por proprietário anterior; W... LDA., que adquiriu por contrato de compra e venda celebrado com a anterior proprietária, em 23 de Dezembro de 1943.
30.Também junto da Fazenda Nacional, a propriedade do imóvel se encontra inscrita a favor da ré.
31.A este prédio, junta-se um outro que lhe faz continuidade física no local, mas que em termos registais está destacado, que corresponde ao imóvel rústico, com cerca de 12.090m2, descrito na Conservatória do Registo Predial do Funchal sob o n.º 2376 da freguesia de S. Martinho e inscrito na respectiva matriz predial rústica sob o artigo 22.
32.A Praia Formosa bem como os imóveis/terrenos que lhe fazem fronteira são uma zona costeira.
33.Foi publicado no Diário da República, 2ª série, n.º 180, de 18 de Setembro de 2014, o “Anúncio n.º 227/2014”, com o título “Auto de delimitação do domínio público marítimo na confrontação com dois prédios rústicos situados na Praia Formosa, Freguesia de S. Martinho, Concelho do Funchal”, com o seguinte teor: Nos termos e para os efeitos do disposto non.º 6 do artigo 17º da lei n.º 54/2005, de 15 de novembro, na redação da Lei 34/2014, de 19 de junho, e no n.º 2 do artigo 12º do Decreto-Lei n.º 353/20076, de 26 de outubro, faz-se público que, no uso de competência delegada pelo despacho n.º 9778/2014 do Ministro do Ambiente, Ordenamento do Território e Energia, publicado no Diário da República, 2ª Série, n.º 139, de 22 de julho de 2014, o Secretário de Estado do Ambiente, em 20 de julho de 2014, homologou o auto de delimitação do domínio púbico marítimo na confrontação de dois prédios rústicos situados na Praia Formosa, freguesia de S. Martinho, concelho do Funchal, Região Autónoma da Madeira, Processo n.º 4326/97, requerida por Investimentos da Praia Formosa, SA. O referido auto de delimitação, que se publica em anexo, foi elaborado em 15 de junho 2012, pela comissão de delimitação nomeada pela Portaria n.º 816/2008, publicada no Diário da República, 2ª série, n.º 192, de 3 de outubro de 2008.
34.Em anexo ao anúncio referido em 33. está publicado o auto de delimitação ali também referido e que consta de fls. 55 verso e 56 dos autos, o qual aqui se dá por integralmente reproduzido.
35.Um dos antepossuidores dos prédios referidos em 27. e 31. foi a sociedade H..., que, por sua vez, adquiriu o imóvel em 23 de Dezembro de 1943.
36.Foi publicada na I série do Jornal Oficial da Região Autónoma da Madeira, de 21 de Fevereiro a seguinte Resolução n.º 86/80 da Presidência do Governo Regional: “Declara de utilidade pública, com carácter de urgência das expropriações, os prédios necessários à «obra de implantação de uma zona de lazeres para a população na praia Formosa» e autoriza a Secretaria Regional do Equipamento Social a tomar a posse administrativa respectiva.”
37.A H... sempre se opôs à decisão de expropriação referida em 36. e no que respeita aos prédios referidos em 27. e 31.
38.Em 24 de Fevereiro de 1992 a Região Autónoma da Madeira desistiu da expropriação emergente da resolução referida em 36., tendo os prédios referidos em 27. e 31. entregues à H....
39.Posteriormente a ré assumiu a posição de proprietária do imóvel referido em 27. e 31., desde 8 de Abril de 1997, em consequência da cisão da sociedade H..., que deu origem à ré.
40.Na década de 90 do século passado a APRAM – ADMINISTRAÇÃO DOS PORTOS DA REGIÃO AUTÓNOMA DA MADEIRA, S. A., assumindo-se como detentora da parte mais costeira dos imóveis referidos em 27. e 31.
41.Quer a H..., quer a ré, sempre se opuseram ao referido em 40.
42.Em 5 de junho de 1997 a ré deu início ao procedimento administrativo de delimitação do domínio público marítimo, o qual se veio a concluir somente em 18 de Setembro de 2014 com o deferimento da sua pretensão e publicação em Diário da República.
43.De tal delimitação resulta que os prédios referidos em 27. e 31. se estendem até a uma muralha que existe mesmo no limite terrestre da praia, actualmente debaixo da promenade marítima.
44.Na década de 90 do século passado a Câmara Municipal do Funchal pediu autorização à H... para parte do imóvel referido em 27. ser utilizado como parque de estacionamento.
45.O que a H... consentiu.
46.Depois o parque era utilizado por beneplácito da ré.
47.A ré deu início ao procedimento administrativo de licenciamento do parque de estacionamento há mais de 10 anos, com sucessivas repetições.
48.Até à presente data, tal licença nunca foi concedida pela Câmara Municipal do Funchal, tendo a ré, desistido do pedido de licenciamento que formulou.
49.Em 12 de março de 1992 a H... deu de arrendamento a Termague Sociedade de Construções e Empreendimentos da Madeira, Lda. uma porção de terreno com área de 35.000m2 dos prédios mencionados em 27. e 31.
50.Em 7 de Fevereiro de 2002 foi assinado contrato tripartido entre a Câmara Municipal do Funchal, a Shell Portuguesa, Lda. e a ré, de cujo considerando c) consta que “Os subscritores privados do presente Acordo são proprietários das duas parcelas de terreno confinantes com uma parcela intermediária declarada de domínio público pela CMF e delimitadas também no anexo I”, e em que é definido um objectivo para o plano de pormenor da Praia Formosa, e em que, em consequência da execução desse acordo, os privados subscritores irão entregar à Câmara Municipal do Funchal cerca de 70% da área total dos terrenos.
51.Estando a execução do contrato pendente da revisão dos planos urbanísticos aplicáveis, actualmente em curso.
52.Em peça jornalística do Diário de Notícias datado de 1 de Outubro de 2008 refere-se que “Está para breve o lançamento de concurso público para a construção do Plano de Pormenor da Praia Formosa, que nesta primeira fase irá se circunscrever aos arruamentos. Uma informação prestada ontem pelo presidente da Câmara Municipal do Funchal Miguel Albuquerque, por ocasião de visita à estação elevatória construída naquela zona da cidade.
O autarca lembra que o plano implica a cedência, por parte dos promotores imobiliários, de 40 mil metros quadrados à autarquia situados na frente mar e que serão usados em promenade e jardins (…).
53.Em peça jornalística do Diário de Notícias datado de 28 de Novembro de 2004 refere-se que o Presidente da Câmara Municipal do Funchal, Miguel Albuquerque, diz o seguinte: “Com uma área de intervenção de cerca de 12 hectares [a Praia Formosa], toda ela propriedade de privados (com excepção, naturalmente, dos arruamentos públicos, do leito da ribeira, e da «promenade») actualmente é uma área subaproveitada, mas com enorme potencial.”
54.As duas propriedades referidas em 27. e 31., em conjunto, foram avaliadas pelo BANCO COMERCIAL PORTUGUÊS, S. A. em 2010, num total de €13.200.000,00.
55.Desde o cruzamento com a Estrada Monumental a Praia Formosa possui cerca de 1.000m de comprimento de estradas de uso público.
56.Aí estão marcados pelo menos de 30 lugares de estacionamento.
57.Não está totalmente impedido o estacionamento na berma da estrada.
58.Existe a carreira de autocarro da empresa Horários do Funchal, Transporte Público, SA, que tem paragem na Praia Formosa.
59.Há também possibilidade de mobilidade pedonal no local.
60.Foram contratados arquitectos para desenvolver projectos para os prédios referidos em 27. e 31.
61.Estando prevista a construção de edifícios de habitação, comércio, hotelaria.
62.A ré não fechou o acesso de viaturas à praia.
63.A ré não fechou a estrada.
64.A ré não fechou a “promenade” ou o acesso à “promenade”.

B)FACTOS NÃO PROVADOS:
A utilização do parque de estacionamento nos moldes referidos em 12., 13. e 14. vinha sendo feita pelos requerentes e por toda a colectividade na convicção de que o terreno onde o mesmo está implantado é público e que o parque de estacionamento é público;
A Praia Formosa é a maior praia pública da Madeira;
O referido em 26. tem vindo a ocorrer e na ignorância de lesão do direito de outrem;
O valor que as obras de construção do parque de estacionamento trouxeram à totalidade do prédio é maior do que o valor que este tinha antes;
O prédio referido em 27. é denominado de Areeiro;
O prédio referido em 31. é denominado Piornais.
A Camara Municipal do Funchal alcatroou a parte do imóvel que servia de parque de estacionamento após autorização da ré;
Todas as obras de melhoramento realizadas pela Câmara Municipal do Funchal foram precedidas por um pedido de autorização por esta à Ré H..., e só avançaram após essa autorização expressa.
A execução do contrato referida em 51. não se verificou também devido à contínua falta de fundos da Câmara Municipal do Funchal para suportar os custos com as infraestruturas públicas;
Já foram negociadas linhas de crédito para financiar as obras planeadas e continuam a sere negociadas mais;
A Frente Marfunchal, Gestão e Exploração de Espaços Públicos, E. E. M., apesar de detida integralmente pelo Município, explora com escopo lucrativo o Complexo da Barrerinha, incluindo a Praia da Barreirinha, o Complexo do Lido, incluindo a Praia do Lido, o Complexo da Ponta Gorda, e a Doca do Cavacas, incluindo as piscinas naturais de origem vulcânica;
Cobrando, €1,65 a quem quiser aceder à Praia da Barreirinha, e €0,20 por cada quinze minutos de estacionamento nas imediações;
Situação que se replica em todas as praias e respectivos locais de estacionamento.”

C)OS FACTOS E O DIREITO:
Pretendem os Recorrentes a alteração da decisão da matéria de facto mais concretamente os pontos 38., 41., 44., 45. e 46. da matéria de facto considerada provada, com fundamento em erro na apreciação da prova.
1.Nos termos exarados no artigo 607º do CPC vigora, no nosso ordenamento jurídico, o princípio da liberdade de julgamento ou da livre convicção, face ao qual o tribunal aprecia livremente as provas, sem qualquer grau de hierarquização e fixa a matéria de facto em sintonia com a convicção firmada acerca de cada facto controvertido.
Além deste princípio, que só cede perante situações de prova legal - prova por confissão, por documentos autênticos, por certos documentos particulares e por presunções legais - vigoram ainda os princípios da imediação, da oralidade e da concentração, pelo que o uso, pela Relação, dos poderes de alteração da decisão de 1ª instância sobre a matéria de facto, ampliados pela reforma processual operada pelo Dec.-Lei n.º 329-A/95, de 12 de Dezembro, com as alterações introduzidas pelo Dec.-Lei n.º 180/96, de 25 de Setembro, e mantidos pela reforma processual operada pelo Dec.-Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho, deve restringir-se aos casos de flagrante desconformidade entre os elementos de prova disponíveis e aquela decisão, nos concretos pontos questionados

Perante o disposto no artigo 712º do CPC, a divergência quanto ao decidido pelo Tribunal a quo, na fixação da matéria de facto só assumirá relevância no Tribunal da Relação se for demonstrada, pelos meios de prova indicados pelo recorrente, a verificação de um erro de apreciação do seu valor probatório, sendo necessário, qua tais elementos de prova se revelem inequívocos no sentido pretendido pelo apelante (cf. Ac. RL, de 26-06-03, in http://www.dgsi.pt).

Não se trata de possibilitar um novo e integral julgamento, mas a atribuição de uma competência residual ao Tribunal da Relação para poder proceder a uma
O que há que apurar é da razoabilidade da convicção probatória do primeiro grau de jurisdição face aos elementos agora apresentados, ou seja, a modificação da matéria de facto só se justifica quando haja um erro evidente na sua apreciação.

Porém, uma coisa é a compreensão da fundamentação e outra diferente a concordância ou não com a mesma, já que, há que fazer a destrinça entre a convicção objectiva do julgador e, outra muito diferente, a vontade subjectiva da parte que pretende alcançar a sua própria verdade, sem uso de um espírito crítico.

A este propósito refere-se lapidarmente no acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 25.Nov.2005 (proc. 1046/02), disponível in www.dgsi.pt., que “a possibilidade de alteração da matéria de facto deverá ser usada com tia a moderação e equilíbrio, ainda que toda a prova esteja gravada em áudio ou vídeo, devendo tao só o erro grosseiro ou clamoroso na apreciação da prova ser sindicado pela Relação com base na gravação dos depoimentos.”.
Por erro notório deve entender-se “aquele que é de tal modo evidente que não passa despercebido ao comum dos observadores; em que o homem médio facilmente dá conta de que um facto, pela sua natureza ou pelas circunstâncias em que pode ocorrer, em determinado caso, não pode ser dado como provado ou não é dado como provado e devia sê-lo – por erro na apreciação da prova[2].

Ou, como se afirma, entre outros, no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 22.Jul.1997 (proc. 97P612), disponível in www.dgsi.pt., também citado pela Recorrida, “o erro notório na apreciação da prova é um vício de raciocínio na apreciação das provas evidenciado pela simples leitura da decisão. Erro tão evidente que salta aos olhos do leitor médio, sem necessidade de qualquer exercício mental. As provas revelam claramente um sentido e a decisão recorrida ilação contrária, logicamente impossível, incluindo na matéria fáctica ou excluindo dela algum facto essencial”.

2.Revertendo caso sub judice, vejamos então se ocorre o alegado erro na apreciação da prova e subsequente na decisão da matéria de facto considerada provada nos pontos 38., 41., 44., 45. e 46.:
2.1Quanto ao ponto n.º 38:

No ponto n.º 38. da sentença recorrida foi dado como provado que «Em 24 de Fevereiro de 1992 a Região Autónoma da Madeira desistiu da expropriação emergente da resolução referida em 36., tendo os prédios referidos em 27. e 31. entregues à H...».
Sustentam, essencialmente, os Recorrentes, que o ponto 38. deve ser dado como não provada, devendo antes dar-se como provado que em 24 de Fevereiro de 1992 foi celebrado entre o Governo Regional da Madeira e a H... o Protocolo que consta junto à Oposição como Doc. 7, impondo-se a respectiva consideração na totalidade, por entender que a desistência da expropriação e a entrega do imóvel em causa efectuaram-se mediante determinadas condições e para determinados fins, estando em causa um acordo no qual foi prevista a manutenção, em cada momento, das instalações balneárias de acesso e uso públicos.

Ao expressar a sua motivação sobre a decisão da matéria de facto, que se estende pormenorizadamente de fls. 291 a 297 dos autos, a Sra. Juiz a quo referiu, designadamente, que a convicção do Tribunal formou-se com base no conjunto de toda a prova produzida em audiência final, concretamente nos depoimentos das testemunhas por si indicadas, cujos conteúdos relevantes detalhou esmiuçadamente, e no acervo de documentos junto aos autos, sendo que o conteúdo de boa parte deles, entendido como relevante para a prova e boa decisão da causa, foi directamente transposto para a decisão da matéria de facto (v.g. pontos n.ºs 33., 34., 36, 42, 49, 50, 52 e 53).

Dois dos depoimentos valorados pela Sra. Juiz, pela credibilidade que lhe mereceram, foram os das testemunhas M..., P... e M..., a cuja audição integral procedemos, bem como à audição dos demais depoimentos prestados em audiência. A primeira testemunha (M...), de forma isenta e com conhecimento directo dos factos, explicou o contexto em que foi celebrado o Protocolo de 24-02-1992 (cf. fls. 57-58) entre a Região Autónoma da Madeira e a sociedade H..., do qual foi subscritor o seu pai, H..., na qualidade de sócio-gerente da H..., assim como esclareceu as vicissitudes que sofreu, ao ponto de se poder considerar que se alteraram as circunstâncias que levaram à sua assinatura. A segunda testemunha (P...), arquitecto de profissão, esclareceu num registo firme, consistente e persuasivo, que teve a seu cargo a incumbência de dar início e acompanhamento ao procedimento administrativo de licenciamento do parque de estacionamento, que este procedimento se iniciou há mais de 10 anos, mas que até à presente data, apesar de todas as diligências e insistências feitas pela Recorrida, tal licença nunca foi concedida pela Câmara Municipal do Funchal, o que levou a que aquela interessada tivesse desistido do pedido de licenciamento que formulou. É o que consta, aliás, dos factos provados sob os pontos n.ºs 47. e 48. Por fim, a terceira testemunha (M...), arquitecto de profissão, referiu que, a pedido da Recorrida, procedeu à revisão do projecto de arquitectura que abrange os dois terrenos da sua propriedade, de forma a adequá-lo ao Plano Director Municipal em fase de discussão pública, uma vez que a ocupação do solo anteriormente prevista não era a desejada pela autarquia. E asseverou que a CMF terá de elaborar um plano de acessibilidades.

Ora, a ponderação dos referidos meios de prova permite concluir que as condições constantes do Protocolo de 24-02-1992 se alteraram, até pela inércia do Governo Regional da RAM e da Câmara Municipal do Funchal, que não criaram condições para a conformidade do parque de estacionamento em causa com as normas regulamentares aplicáveis a este tipo de instalações, designadamente em termos de segurança, antes dificultando o respectivo processo. E uma análise mais atenta da prova permite perceber o motivo dessa actuação: é que, entretanto, foi elaborado um Plano de Pormenor para a Praia Formosa - que contou com a participação da Recorrida e outros proprietários interessados - e está em curso o processo de revisão do Plano Director Municipal, onde se prevê o tipo e índices de ocupação do solo, bem como a cedência à autarquia do Funchal, por parte dos privados (promotores imobiliários), de uma significativa área de terreno na frente mar[3], que será usada em arruamentos, jardins e em equipamentos e instalações para uso e fruição da população em geral, tais como parques de estacionamento, sendo que, como é usual nestes casos, a construção e exploração de equipamentos e instalações balneárias de acesso e uso públicos poderá resultar de parcerias público-privadas. Por isso meso, e bem, a Sra. Juiz a quo deu como provada a factualidade vertida nos pontos 52. e 53. da decisão da matéria de facto.

Tudo a concluir que as actuais condições de acesso e fruição, pelos Requerentes, população em geral e turistas à Praia Formosa só poderão melhorar.

Improcede, pois, neste segmento a alegação dos Recorrentes.
2.2–Quanto aos ponto. n.ºs 41, 44, 45. e 46.:
No ponto n.º 41. da sentença recorrida foi dado como provado que «Quer a H..., quer a ré, sempre se opuseram ao referido em 40»:
Por sua vez, no ponto n.º 40 considerou-se provado: “Na década de 90 do século passado a APRAM - ADMINISTRAÇÃO DOS PORTOS DA REGIÃO AUTÓNOMA DA MADEIRA, S. A., assumindo-se como detentora da parte mais costeira dos imóveis referidos em 27. e 31.».
E a factualidade considerada provada sob os pontos n.ºs 44, 45 e 46 é a seguinte:
«44.-Na década de 90 do século passado a Câmara Municipal do Funchal pediu autorização à H... para parte do imóvel referido em 27. ser utilizado como parque de estacionamento.
45.-O que a H... consentiu.
46.-Depois o parque era utilizado por beneplácito da ré.».
Pretendem, ainda, os Recorrentes que se altere a decisão da matéria de facto, dando-se como não provados os factos julgados como provado sob os n.ºs 41. 44., 45. e 46.

Alegam, em resumo, que o facto dado como provado sob o ponto n.º 41., nos termos em que se encontra redigido, não se mostra minimamente concretizado, e que a esse respeito apenas se provou a promoção pela Requerida/Recorrida de procedimento administrativo de delimitação do domínio público marítimo, sendo que do depoimento da testemunha Rosa Calado resulta claro que que à data do termo deste procedimento administrativo a Requerida/Recorrida nem sequer tinha conhecimento dos limites da propriedade que se arroga, motivo por quer também não se poderiam dar como provados os factos que o foram sob os pontos n.ºs 44., 45. e 46.

Desde logo, e sem margem para dúvidas, consta-se que a prova disponível e analisada criticamente pelo Sra. Juiz a quo, que conjuga, nesta matéria, prova testemunhal (depoimentos das testemunha M..., J..., P... e M...) e prova documental suporta, claramente, a convicção do julgador relativamente aos factos considerados como provados sob os n.ºs a 41., 44., 45. e 46.

É consabido que na valoração da prova, o juiz não está sujeito a critérios apriorísticos, devendo fazer apelo à sua experiência vivencial, usando de prudência e de bom senso na interpretação dos sinais transmitidos pelas testemunhas, da forma como se exprimem e da segurança ou não dos conhecimentos de que são detentoras.

E a forma como a Sra. Juiz da 1ª Instância ponderou a prova no que respeita a esta matéria mostra-se clara, especificando o seu perfil de pensamento e explicando correctamente as razões do seu convencimento, explicações que retoma quando subsume os factos ao direito.

Na verdade, os depoimentos das referidas testemunhas, que se mostram, tanto quanto é possível percepcionar através da sua audição, isentos e credíveis, conjugados com o teor dos documentos juntos aos autos e não impugnados, designadamente durante a audiência de julgamento[4], alicerçam, nos termos assinalados, a prova dos factos julgados como provados sob os n.ºs 41., 44., 45. e 46.

Na verdade, a Recorrida fez prova à exaustão de que o parque de estacionamento encerrado se situa em parcela de terreno da sua propriedade, de que sempre se opôs a perturbações dessa propriedade por parte de entidades públicas e privados e que a utilização pública da parcela de terreno como parque de estacionamento foi feita por sua tolerância e a solicitação da CMF, só assim se compreendendo a actuação desta entidade sobre a referida parcela de terreno aos longo dos últimos anos e o silêncio a que se remeteu após o encerramento do parque de estacionamento pela Recorrida e após ter sido citada para os termos deste procedimento cautelar.

Em suma, não se vislumbra também neste segmento da decisão da matéria de facto impugnada a existência de um erro evidente de apreciação e valoração da prova ou a violação de princípios e regras de direito probatório.

Termos em que improcede o recurso também nesta parte.

IISaber se o circunstancialismo fáctico indiciariamente provado nos autos é de molde a conduzir ao decretamento da providência cautelar requerida:
1.Como se sabe, a concessão da tutela cautelar impõe-se naqueles casos em que a falta de uma decisão imediata, ainda que provisória, seja susceptível de causar prejuízos graves.
A natureza e finalidade dos procedimentos cautelares não se compadecem com delongas excessivas, ainda que, porventura, destas possa emergir uma decisão mais segura.
No entanto, isso não pode conduzir a uma decisão precipitada que decrete uma providência em casos em que não estejam reunidas as condições para a concessão da tutela provisória.
Não pode consentir-se que, através de uma medida meramente cautelar e provisória e com base numa análise superficial do objecto do litígio, o requerente consiga obter efeitos práticos ou vantagens que jamais alcançaria, de acordo com juízos de prognose, no processo principal rodeado de maiores garantias.
Como observa Abrantes Geraldes, que agora se acompanha, “este perigo é real naqueles procedimentos que, por força da lei ou devido às circunstâncias invocadas pelo requerente e apreciadas pelo juiz, são tramitados ou decididos sem audiência contraditória[5] Não pode esquecer-se que qualquer decisão judicial deve fundar-se num determinado grau de certeza ou, ao menos, de verosimilhança, que lhe confira segurança, o que implica o cumprimento de um determinado formalismo dentro do qual se pode inserir um espaço destinado ao prévio exercício do direito de defesa.
Apesar da sua especial natureza e finalidade, nos procedimentos cautelares não deixam de coexistir estes dois valores que o legislador procurou conciliar e que o aplicador não pode deixar de atender, sob pena de insegurança jurídica, quando a celeridade é colocada em posição prioritária, ou de ineficácia da providência cautelar, quando, porventura, o juiz coloque o valor da certeza jurídica num patamar excessivamente elevado[6].
Dito isto, importa reconhecer que, para o decretamento de qualquer providência cautelar, basta o fumus boni juris decorrente de uma summaria cognitio, ou o chamado juízo de probabilidade ou verosimilhança - cfr. os artigos 400º, nº 1, e 401º, nº 1, do CPC/61, e, após a revisão de 1995/96, os artigos 384º, nº 1, e 387º, nº 1, do CPC, diploma a que pertencerão os normativos que se indicarem sem outra referência.
Por outras palavras, as providências cautelares visam impedir que, durante a pendência de qualquer acção, a situação de facto se altere de modo a que a sentença nela proferida, sendo favorável, perca toda a sua eficácia ou parte dela. Pretende-se combater o periculum in mora - o prejuízo da demora inevitável do processo -, a fim de que a sentença se não torne numa decisão puramente platónica.[7]

Como se pode ler no acórdão do STJ, de 23 de Janeiro de 1986 (Processo n.º 73 534), publicado no BMJ, nº 353, pág. 376, “para o decretamento de qualquer providência cautelar, não é exigida uma prova aprofundada dos elementos materiais constitutivos do direito que o requerente da providência se arroga; basta um juízo de probabilidade ou verosimilhança, expressamente reconhecido para as providências não especificadas (artigos 400º, nº 1, e 401º, nº 1, do CPC), mas válido em relação a todas as demais (artigos 381º e 304º do mesmo Código) ”. Neste sentido se pronunciaram os acórdãos do STJ, de 11 de Junho de 1961 e de 18 de Dezembro de 1979 (no BMJ, nºs 109, pág. 564, e 292, pág. 338), o primeiro dos quais versou directamente um caso de restituição provisória de posse, ainda no domínio do Código de 1939, cujo artigo 400º reunia, num só preceito, exactamente os mesmos textos dos artigos 393º e 394º do Código de 1961.

Sendo, assim, verdade que para o decretamento da providência não se impõe uma indagação exaustiva da existência do direito invocado pelo requerente, ainda assim é manifesto, tendo presentes as razões já expostas, que tal decretamento não pode ter lugar se não forem recolhidos, em termos de matéria de facto, indícios suficientes da verosimilhança de tal direito.

Só perante a existência de tais elementos de prova será possível ao julgador formular um juízo positivo a respeito da aparência do direito invocado.

O juiz deve formular o seu juízo de acordo com as circunstâncias do caso concreto, depois de produzida a prova apresentada pelas partes e de se esgotar o dever de inquisitoriedade perante a situação de facto submetida à sua apreciação. Como observa Abrantes Geraldes, no estudo já mencionado, a actuação do juiz nos procedimentos cautelares é daquelas que mais reclamam a interferência dos factores da ponderação, do bom senso, da justa medida que permita estabelecer o maior equilíbrio dos interesses em conflito, sem graves riscos de prejuízos para o requerido, mas igualmente sem excessivos receios de proferir uma decisão total ou parcialmente favorável ao requerente.[8] - O maior ou menor investimento na averiguação da matéria de facto deve ser avaliado pelo circunstancialismo do caso concreto: o valor da prova produzida, o grau de credibilidade que merecem as testemunhas, o grau de dificuldade na apreciação da matéria de facto ou o valor dos interesses em jogo - o benefício que se alcança com a providência, comparado com os prejuízos que podem derivar de uma decisão precipitada -, sem esquecer ainda os simples comportamentos processuais de qualquer das partes e todos os factos instrumentais ou indiciários que, de acordo com a experiência comum (artigos 349º e 351º do C.C.), possam determinar a convicção do juiz acerca dos factos essenciais e, deste modo, induzi-lo a admitir ou a rejeitar a medida cautelar.[9]
2O ónus geral de alegação da matéria de facto integradora dos requisitos legais de que depende a concessão da providência requerida cabe ao requerente - artigos 3º, n.º 1 e 5º do CPC -, não podendo o tribunal substituir-se-lhe.
O dever de investigação que a lei processual comete ao juiz abarca a matéria de facto trazida ao processo, mas também os factos instrumentais que resultem da instrução do processo, os factos que sejam complemento ou concretização dos que as partes hajam alegado e resultem da instrução da causa, desde que sobre eles tenham tido a oportunidade de se pronunciar, os factos notórios e aqueles de que o tribunal tem conhecimento por virtude do exercício das suas funções (artigo 5º, n.º 2, do CPC).
O artigo 3621º, n.º 1, do CPC impõe a justificação do receio de lesão, ou seja, a alegação de matéria de facto reveladora dos riscos que aconselham uma providência imediata. Por outro lado, prevê-se o ónus do oferecimento de prova sumária do direito ameaçado. Esse ónus de prova não pode desligar-se do antecipado cumprimento do ónus de alegação, o que significa que o requerimento inicial deve conter todos os factos integradores dos elementos constitutivos do direito à obtenção da tutela cautelar requerida.
Por fim, cabe dizer que embora a factualidade, num processo cautelar, possa ser objecto de uma “summaria cognitio”, no que concerne ao Direito, tem de decidir-se conforme os comandos legais efectivamente assumidos - o que não retira à decisão cautelar o significado jurídico de “provisória”.
Em suma, a providência será decretada desde que haja a probabilidade séria da existência do direito e se mostre suficientemente fundado o receio da sua lesão - artigo 368º, n.º 1, do CPC.
3.Considera a 1ª Instância que, no presente caso, em face dos factos indiciariamente provados, impõe-se a conclusão de que não se verificam os pressupostos da providência cautelar requerida.
3.1.Em abono da sua pretensão de desobstrução da entrada e saída do parque de estacionamento em causa e de intimação da requerida a abster-se da prática de actos que impeçam ou dificultem o acesso e utilização de tal parque de estacionamento à população da Madeira e aos turistas, invocam os Recorrentes, além do mais, o direito fundamental ao bem-estar e qualidade de vida, não só dos requerentes, mas da população da Madeira e seus visitantes.
Tal direito tem consagração no artigo 66º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa que proclama o direito de todos a um ambiente humano, sadio e ecologicamente equilibrado e o dever de o defender.
Com relevo para a presente problemática, o artigo 52º da CRP, sob a epígrafe “Direito de petição e direito de acção popular”, dispõe no seu n.º 3:
É conferido a todos, pessoalmente ou através de associações de defesa dos interesses em causa, o direito de acção popular nos casos e termos previstos na lei, incluindo o direito de requerer para o lesado ou lesados a correspondente indemnização, nomeadamente para: a) Promover a prevenção, a cessação ou a perseguição judicial das infracções contra a saúde pública, os direitos dos consumidores, a qualidade de vida, a preservação do ambiente e do património cultural; b) Assegurar a defesa dos bens do Estado, das regiões autónomas e das autarquias locais”.

Consagra-se, desta forma, a tutela de bens jurídicos como os da saúde pública, dos direitos dos consumidores, do ambiente, do urbanismo, do ordenamento do território, da qualidade de vida, do património cultural e dos bens do Estado, das Regiões Autónomas e das autarquias locais.

O direito de acção popular, consagrado constitucionalmente no n.º 3 do artigo 52.º da CRP, no capítulo referente aos direitos, liberdades e garantias de participação política, é um instrumento de participação e intervenção democrática dos cidadãos na vida pública, de fiscalização da legalidade, de defesa dos interesses das colectividades e de educação e formação cívica de todos. É, assim, consagrada uma forma peculiar de participação dos cidadãos, individual ou colectivamente organizados1, na defesa e preservação de valores essenciais, por pertencerem a uma mesma colectividade[10].

Actualmente, a acção popular, tal como configurada no art.º 52º, n.º 3 da CRP, no capítulo referente aos direitos, liberdades e garantias de participação política, é assume tanto a vertente clássica ou correctiva, como a supletiva, para tutela de interesses transindividuais na variante de interesses difusos ou colectivos, e tendente à protecção de direitos ou interesses individuais homogéneos.[11]

Da leitura do texto constitucional resulta que o legislador não concretizou, à partida, quais os interesses salvaguardados aquando do recurso ao instituto da acção popular, desenvolvimento que tem sido feito pela doutrina que tem vindo a socorrer-se de uma série de conceitos distintos para encontrar os interesses protegidos pelo art.º 52º, nº3 da CRP.[12]

Ainda que não totalmente consensual a sua distinção doutrinária costuma-se entender que dentro da categoria dos interesses difusos (em sentido amplo) é possível englobar diferentes realidades, havendo que distinguir entre interesses difusos em sentido estrito, interesses colectivos e interesses individuais homogéneos.

Assim, os interesses difusos em sentido estrito caracterizam-se por pertencerem a uma pluralidade indiferenciada de sujeitos e recaírem sobre bens indivisíveis, sobre bens públicos. São, por isso, interesses da colectividade, em que a satisfação de um só dos titulares, implica, necessariamente, a satisfação de todos, assim como a lesão de um só constitui, correlativamente, lesão da inteira colectividade[13].

Inerente à tutela destes direitos está o caracter altruísta da sua protecção pelo autor popular. Este propõe-se defender o interesse de todos os titulares. Ainda que o art.º 52º, nº3 da CRP atribua ao autor popular o direito de requerer para o lesado ou lesados a correspondente indemnização, o que, de algum modo, parece desvirtuar a lógica puramente altruísta da acção popular configura-se, ainda assim, admissível na medida em que, lado a lado com a reparação dos danos, sejam também diligentemente acautelados os interesses difusos[14].

Os interesses colectivos, por sua vez, diferenciam-se pelo facto de a sua tutela se encontrar confiada a uma organização ou a um ente publico ou privado que age em juízo em “representação” desses interesses, podendo beneficiar, por isso, de uma “defesa colectiva”[15].

Por último, aparecem os interesses individuais homogéneos, também chamados “direitos subjectivos fraccionados”, que correspondem à lesão diferenciada que se verifica na esfera jurídica de uma pessoa ou de um conjunto determinado de pessoas e que advém de uma causa comum[16]. Ou seja, são interesses individuais que pela sua homogeneidade e origem comum, justificam o seu tratamento conjunto.

Nesta linha, devemos reter, em primeiro lugar, que o art.º 52º, n.º 3 da CRP contempla tanto a defesa de interesses difusos [alínea a)], como a defesa de bens do Estado, das regiões autónomas e das autarquias locais [alínea b)].

Em segundo lugar, que as referidas alíneas elencam apenas alguns casos em que se pode propor uma acção popular, mas que podem surgir igualmente, outros interesses relevantes. O art.º 52º, nº 3 não consagra, portanto, um elenco taxativo.

Para além disso, acrescente-se que a acção popular não constitui um meio jurisdicional a utilizar apenas quando todos os outros meios judiciais falharam nem, tão pouco, apresenta carácter subsidiário, constituindo muitas das vezes, a forma mais adequada para tutela dos interesses acima mencionados[17].

Ora, a remissão expressa feita no art.º 52, n.º 3 da Constituição para a lei ordinária, quanto à definição do direito de acção popular chama à colação a Lei 83/95, de 31 de Agosto, vulgarmente denominada Lei da Acção Popular (LAP). Com esta lei, apesar de alvo de algumas críticas na doutrina11 visou regular-se, de forma unitária, o direito de participação procedimental e de acção popular.

No artigo 1º, n.º 1, da LAP postula-se que o direito de acção popular regulado nesta lei se refere à prevenção, cessação ou perseguição judicial das infracções previstas no n.º 3 do art.º 52º da CRP e, no n.º 2 deste artigo são enumerados os interesses protegidos pela presente lei, verificando-se uma quase total coincidência com os bens jurídicos protegidos ao nível constitucional.

Contudo, é no art.º 2º da LAP que se precede a uma identificação concreta dos bens tutelados pela acção popular, tutela esta que a doutrina costuma considerar como sendo a defesa de interesses difusos ou colectivos.Ainda neste preceito, estabelece-se no seu n.º 2 que as autarquias locais são igualmente titulares dos direitos elencados no art.º 2º, n.º 1, consagrando portanto, uma verdadeira forma de acção popular pública.

A acção popular prevista no supramencionado diploma, nomeadamente, nos artigos 12º e seguintes, compreende duas modalidades distintas: A acção popular civil, que pode revestir qualquer das formas previstas no Código de Processo Civil; e, a acção popular administrativa, que comporta a acção para defesa dos interesses referidos no art.º 1º e o recurso contencioso com fundamento em ilegalidade contra quaisquer actos administrativos lesivos dos mesmos interesses.

Não obstante a controvérsia doutrinária e jurisprudencial em torno do âmbito das transcritas normas, todos concordam que no seio das mesmas estão, necessariamente, os interesses difusos, já que incluídos no n.º 3 do artigo 52º da CRP.

A doutrina distingue os interesses difusos em sentido próprio dos interesses individuais homogéneos.

Um interesse difuso é uma “refração em cada indivíduo de interesses unitários da comunidade, global e complexivamente considerada”[18], o que significa que é um “interesse de todos e cada um ou, por outras palavras, é o interesse que cada indivíduo possui pelo facto de pertencer à pluralidade de sujeitos a que se refere a norma em questão (…)”[19].

Assim, a tutela de interesses difusos verifica-se quando a acção popular é proposta por sujeitos cujos direitos ou interesses individuais não foram afectados, que atuam para proteger bens da comunidade (ex: o autor popular atua em defesa da natureza, enquanto bem insusceptível de apropriação individual, devido a uma descarga poluente num rio, que se limitou a matar muitos peixes[20] [21].

Diferentemente, os interesses individuais homogéneos reportam-se a bens susceptíveis de apropriação individual exclusiva.

No entanto, a tutela de interesses individuais homogéneos justifica-se quando os direitos ou interesses de uma pluralidade de sujeitos (consumidores) são violados e, por isso, a lesão afecta uma pluralidade de sujeitos (consumidores) de forma homogénea.

Com efeito, neste conspecto, concordamos inteiramente com o entendimento expresso no Ac. do STJ, de 23-09-1997 (pro. 97B503 (relator Miranda Gusmão), já citado.

No presente procedimento, prévio a acção popular civil, estão em causa, indiscutivelmente, “interesses difusos”, que se reconduzem à defesa da qualidade de vida da população do Funchal e de um leque de pessoas mais amplo que eventualmente frequente a Praia Formosa.

Com se pondera na sentença recorrida, os direitos fundamentais de personalidade, consagrados, desde logo, no texto constitucional – direito à integridade física e moral e ao livre desenvolvimento da personalidade (artigos 25º e 26º, nº1) - são reiterados no Código Civil, ao contemplar, no artigo 70º, a tutela geral da personalidade dos indivíduos contra qualquer ofensa ilícita ou ameaça de ofensa à sua personalidade física ou moral – sendo óbvio e inquestionável que o direito ao bem-estar e lazer se configuram manifestamente como requisitos indispensáveis à realização do direito à saúde e à qualidade de vida, constituindo emanação do referido direito fundamental de personalidade.

No caso vertente, apresentaram-se os Recorrentes a defender o seu direito de personalidade à qualidade de vida e bem-estar (artigos 34º a 36º e 39º a 40º da petição).

E agiram ainda como actores populares para prevenção da qualidade de vida e bem-estar, direitos violados com o bloqueio do acesso ao parque de estacionamento em causa.

Ora, cabe aqui referir que concordamos plenamente com a Sra. Juiz a quo quando refere ser inquestionável “que o direito ao lazer e bem-estar, como factores condicionantes ao equilíbrio psicossomático da pessoa humana, se configuram manifestamente como requisitos indispensáveis à realização do direito à saúde e à qualidade de vida, constituindo emanação do referido direito fundamental de personalidade, já o estacionamento de veículos de forma livre e gratuita junto às zonas de passeio e lazer não se nos apresenta, em abstracto, como condição imprescindível à realização do direito à saúde e à qualidade de vida, nomeadamente na vertente dos direitos ao lazer e bem-estar e, por conseguinte, como emanação de qualquer direito de personalidade.”

Isto porque, como se refere, em concreto, da factualidade indiciariamente provada, designadamente sob os pontos os pontos 6. a 26. e 55. a 64. também não resultam circunstâncias que transvertam a utilização de um parque de estacionamento de veículos junto da Praia Formosa e “promenade” ali existente numa exigência fundamental à efectivação do direito à saúde e qualidade de vida, na perspectiva do direito ao lazer e bem estar.
É certo que a factualidade descrita sob os pontos 24. e 25. indicia que, de um modo genérico, poderá “a qualidade de vida” ser prejudicada pelo obstrução do tráfego e acrescida dificuldade de circulação automóvel, incluindo veículos de socorro, que, após o fecho do parque de estacionamento, o estacionamento de veículos nas margens das estradas e no passeio provoca para toda a zona e, nomeadamente, pelo facto de os serviços de segurança, emergência e saúde terem deixado de ali ter assegurados lugares de estacionamento.

No entanto, nessas circunstâncias, as perturbações em causa, são decorrência da actuação dos condutores e utentes das vias, que as obstruem ou estacionam as respectivas viaturas, dificultando a passagem de outras, o que não é garantido que deixasse de suceder com a reabertura do parque de estacionamento.

Tudo a concluir, como acertadamente se concluiu na decisão recorrida, que, ainda que se admita estarem os Recorrentes e os utentes e visitantes da Praia Formosa e sua “promenade” prejudicados com a perda de alguns minutos ou horas de sol, mar, passeio e actividades físicas, na procura de lugar de estacionamento das respectivas viaturas, na deslocação em transportes públicos ou a pé, bem como com a maior distância que eventualmente terão que percorrer desde o local de paragem da viatura ou do transporte público até à praia, entendemos que não ocorre afectação da qualidade de vida ou do bem-estar.

3.2.Os Recorrentes estribaram, ainda, a respectiva pretensão de desobstrução da entrada e saída do parque de estacionamento em causa e de intimação da requerida a abster-se da prática de actos que impeçam ou dificultem o acesso e utilização de tal parque de estacionamento à população da Madeira e aos turistas, no “carácter dominial” do terreno onde foi construído o parque de estacionamento (artigos 44º a 50º do requerimento inicial).

Contudo, bem andou a Sra. Juiz em considerar improcedente tal argumentação, desde logo por ter ficado demonstrado que o terreno onde está implantado o parque de estacionamento em causa é propriedade da Recorrida (pontos n.ºs 2., 27. a 43. e 50. a 53. Dos factos provados), a qual beneficia, aliás, da presunção derivada do registo (art.º 7º do Cód. Registo Civil), presunção que não foi ilidida pelos Recorrentes.

3.3.E também, decidiu acertadamente ao indeferir a pretensão dos Recorrentes de, em defesa do domínio público autárquico, perante a alegada inércia do município do Funchal, invocarem a aquisição, por usucapião, da parcela de terreno onde se encontra implantado o parque de estacionamento, assim como, e subsidiariamente, a aquisição da mesma parcela por acessão industrial imobiliária.

A pretensão de usucapião está naturalmente votada ao insucesso, por não terem logrado provar uma actuação do município do Funchal, através da população em geral, correspondente ao exercício do direito de propriedade (art.º 1251º do CC.

Para posse susceptível de conduzir à usucapião é necessário que, por um lado, se verifiquem actos materiais que permitam concluir por uma actuação de facto sobre o objecto em questão (corpus) e, por outro, que o agente actue com uma intenção idêntica à de um titular do direito real em causa (animus).

A comprovada utilização da parcela de terreno em causa pela população do Funchal, ao longo de cerca de 30 anos, não faz dos munícipes que utilizam esse prédio verdadeiros possuidores do mesmo, considerados quer isoladamente, quer colectivamente, já que não se provou que o tenham utilizado como titulares de qualquer direito real sobre ele.

Do elenco de factos provados apenas se retira que foram meros utilizadores (ou possuidores precários), qualidade em que fruíram das vantagens e utilidades colectivas (no sentido de satisfação de interesses colectivos ou comunitários) por ele proporcionadas.

Não se configura, assim, uma situação de posse que pudesse conduzir à usucapião da parcela de terreno aonde está implantado o parque de estacionamento em causa e, em consequência, não pode afirmar-se uma aquisição, pelo Município do Funchal, do direito de propriedade sobre tal terreno por usucapião e, por conseguinte, pela probabilidade séria da existência ou possibilidade de emergência de um direito sobre tal terreno, que legitime a respectiva utilização pública e que preencha o primeiro dos mencionados requisitos para a procedência do procedimento cautelar.

3.4.Também a pretendida aquisição do terreno onde se acha implantado o parque de estacionamento, pelo município do Funchal, por acessão industrial imobiliária, está votada ao insucesso.

Senão vejamos,
O artigo 1325º do Código Civil dispõe: “Dá-se a acessão quando com a coisa que é propriedade de alguém se une e incorpora a outra coisa que lhe não pertencia”.

Por sua vez, o n.º 1 do artigo 1340º do mesmo diploma legal, estipula que se verifica a acessão industrial imobiliária, quando, alguém, de boa-fé, construir obra em terreno alheio ou nele fizer sementeira ou plantação, se o valor que as obras, sementeiras ou plantações,  tiverem trazido à totalidade do prédio for maior do que o valor que este tinha antes, adquirindo, nesse caso, o autor da incorporação a propriedade dele, mediante o pagamento (ao anterior proprietário) do valor que o mesmo tinha antes da obra.

Caso o valor acrescentado pela obra seja igual ao que o prédio tinha, estatui o n.º 2 da referida disposição legal, que haverá licitação entre o antigo dono e o autor da incorporação.

Por seu turno, o seu n.º 3, estabelece que, se o valor acrescentado for menor, a obra pertence ao dono do terreno, mas ficando obrigado a indemnizar o autor dela pelo valor que a mesma tinha ao tempo da incorporação.

Segundo o n.º 4 da mencionada disposição legal, considera-se que houve boa-fé, se o autor da obra desconhecia que o terreno era alheio ou se a incorporação tiver sido autorizada pelo dono deste.
Face ao disposto no artigo 1340º, n.º 1, do Código Civil, considerando a situação aqui em causa, são requisitos substantivos da acessão industrial imobiliária:
a)-A incorporação de uma construção em terreno alheio;
b)-Ter essa construção sido feita com materiais e trabalho do seu autor;
c)-Ter o autor da incorporação agido de boa-fé;
d)-Ser o valor trazido pela obra ao prédio maior do que o valor que este tinha antes.

Embora o artigo 1317º, alínea d) do Código Civil disponha que a aquisição do direito de propriedade por acessão tem lugar no momento da verificação do respectivo facto, uma vez verificada a incorporação, o certo é que o regime da acessão não impõe ao beneficiário a aquisição automática do direito de propriedade sobre a coisa, antes atribui ao beneficiário a faculdade de aquisição, um direito potestativo que ele exercerá ou não e, em regra, contra o pagamento de indemnização à outra parte e verificados os pressupostos legais (cfr. MENEZES CORDEIRO, Direitos Reais, 1993, págs. 503 e 504 e OLIVEIRA ASCENSÃO, Estudos Sobre a Superfície e a Acessão, Separata da Scientia Iurídica, 1973, págs. 50 e segs. e Direitos Reais, 1971, pág. 439).

No caso em apreço, impõe-se a conclusão de que os factos indiciariamente provados não permitem afirmar a verificação dos pressupostos da aquisição pelo município do Funchal da parcela de terreno onde se encontra implantado o parque de estacionamento.
Com efeito, de tal factualidade, desde logo, nada se retira relativamente ao valor da construção do parque de estacionamento.

Por outro lado, a procedência da pretensão dos Recorrentes exigiria a prévia demonstração de o município do Funchal, beneficiário da aquisição automática do direito de propriedade sobre a coisa, na perspectiva dos Recorrentes, exerceu o direito potestativo de aquisição, contra o pagamento de indemnização à outra parte. E tal prova não foi feita, bem pelo contrário. Ao invés, o que se constata é o silêncio do município pelos motivos que já referimos: a definição em concreto do arranjo urbanístico dos terrenos envolventes da Praia Formosa e o aproveitamento do potencial construtivo está para breve, estando em curso a revisão do Plano Director Municipal.

Por isso, nesta óptica também não pode concluir-se pela probabilidade séria da existência ou possibilidade de emergência de um direito sobre o terreno onde está implantado o parque de estacionamento que legitime a respectiva utilização pública e que preencha o primeiro dos mencionados requisitos para a procedência do procedimento cautelar.

E, diga-se em abono da verdade, que vemos com muita dificuldade que o encerramento desse concreto parque de estacionamento coloque em causa a qualidade de vida dos Recorrentes ou de qualquer cidadão do Funchal. Pensamos exactamente o contrário. Recorde-se que se extrai da prova produzida que o parque de estacionamento em causa funcionava ilegalmente (ainda que pela mão e beneplácito da CMF), sem projecto de segurança aprovado, designadamente contra incêndios - como se exigiria a um qualquer investidor privado e foi exigido à Recorrida quando pretendeu legalizá-lo. Se a isto somar-mos a localização próxima da frente mar e da “promenade” facilmente se intui que o funcionamento do parque de estacionamento nas condições em que se fazia antes do encerramento é que punha em causa não só a segurança dos seus utilizadores como a segurança e a saúde e bem-estar da população em geral, que não se esgota nessa classe, que demanda e demandará a Praia Formosa. Com efeito, a maior concentração de veículos automóveis na frente mar e o incremento dos níveis de poluição (CO2 e ruído) nesses espaços privilegiados de lazer (porque aptos a práticas desportivas; à observação do mar; à exposição solar, etc.) é que colocavam em perigo a segurança, a saúde e o bem-estar da população utilizadora da Praia da Formosa e da “promenade”.

Sem conceder, ainda que se considerasse que o fecho do parque de estacionamento afecta a qualidade de vida e o bem-estar da população do Funchal e seus visitantes, designadamente dos utentes da Praia Formosa e sua “promenade”, a factualidade indiciariamente provada não revela estar em causa uma lesão grave de tais direitos.

Como se refere na decisão recorrida, o conteúdo do direito à qualidade de vida é demasiado impreciso e variável de local para local, no sentido de que um determinado acto pode ser intolerável numa situação e tolerável noutra.

Não pode ser apreciado dum ponto de vista subjectivo do lesado nem da visão de uma qualidade de vida ideal para um determinado local.

Admite-se, assim, que em determinadas circunstâncias e no confronto com outros direitos oponíveis, merecedores de idêntica protecção, possa sofrer limitações em benefício de uma salutar convivência social.

Assim, no caso vertente, admitindo-se que ficarem os Recorrentes e os utentes e visitantes da Praia Formosa e sua “promenade” prejudicados com a obstrução do acesso e fruição do parque de estacionamento em causa, não ocorre afectação da qualidade de vida ou do bem-estar, ao menos em termos intoleráveis.

Transcreve-se, aqui, por elucidativo, o seguinte excerto da decisão recorrida:
«É que, a convivência comunitária, como a que ocorre nas cidades, implica real ou potencialmente, “ex natura rerum”, algumas contrariedades e incomodidades que os elementos do grupo social se sujeitam a suportar, para poderem continuar a viver no meio urbano que escolheram.
Trata-se da conhecida figura dogmática da área do Direito Penal, transponível, vantajosamente, para a jurídico-civil, designada por adequação social (do alemão sozial Adäquanz, expressão cunhada por Hans Welzel), que constata a tolerância comunitária para certos condutas que, em abstracto se poderiam considerar como infracções, mas que, em homenagem às concretas necessidades da convivência social e aos valores preponderantes na interacção comunitária, em dado momento histórico, são comummente suportadas como toleráveis» (cfr. Acórdão do STJ de 30/09/2010 in www.dgsi.pt).

Isto porque, como é sabido, na convivência social em núcleos populacionais densos, impõem-se algumas restrições de interesses individuais, para que todos possam viver em conjunto em espaços necessariamente limitados.

Daí que não baste falar-se in abstracto na prevalência ou preponderância de uma espécie de direitos fundamentais em relação a outra, antes se exigindo a avaliação concreta do circunstancialismo fáctico de cada situação, tendo em conta os referidos princípios.

“Caso a caso, importa averiguar se a prevalência dos direitos relativos à personalidade não resulta em desproporção intolerável, face aos interesses em jogo, certo que o sacrifício e compressão do direito inferior apenas deverá ocorrer na medida adequada e proporcionada à satisfação dos interesses tutelados pelo direito dominante” (Acórdão do STJ de 15/03/2007, www.dgsi.pt).».

Desta sorte, bem andou a Sra. Juiz a quo em considerar que o circunstancialismo fáctico da presente acção é de molde a desenhar a conduta da Recorrida como exercício do seu direito de propriedade e livre iniciativa privada que não contende com o direito dos Recorrentes e dos utentes e visitantes da Praia Formosa à saúde, qualidade de vida e bem-estar nos termos alegados.

Impõe-se, assim, confirmar, na íntegra, a decisão recorrida, improcedendo, totalmente as conclusões da alegação dos Recorrentes.

IVDECISÃO:
Por tudo o exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar a apelação totalmente improcedente e assim manter a decisão recorrida.
Custas pelos Recorrentes - artigo 527º do Cód. Proc. Civil.
Registe e notifique.



Lisboa, 26/10/2017



Manuel Rodrigues
Ana Paula A. A. Carvalho           
Maria Manuela Gomes



[1]O conhecimento desta excepção ficou prejudicado, uma vez que os Requerentes apresentaram nova petição inicial aperfeiçoada na sequência do convite que lhe foi dirigido pelo Juiz da causa.
[2]Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 3.Dez.1997, proc. 9710990, disponível in www.dgsi.pt.
[3]Pode ir até 58% da área total de intervenção, segundo declarações públicas do então Presidente da CMF, que consta do recorte de jornal junto aos autos, cujo teor não foi impugnado.
[4]Cfr., em especial, (i) carta da Recorrida para a Câmara Municipal do Funchal, datada de 31 de Março de 2008 (fls. 219/220); (ii) carta da Recorrida para a Câmara Municipal do Funchal datada de 22 de Fevereiro de 2011 (fls. 221); (iii) carta da Recorrida para a Câmara Municipal do Funchal datada de 8 de Junho de 2011 (fls. 222); (iv) fax da Recorrida para a Câmara Municipal do Funchal datado de 4 de Julho de 2011 (fls. 223); (v) carta da Câmara Municipal do Funchal para a Recorrida datada de 15 de Julho de 2015 (fls. 224); (vi) carta da Câmara Municipal do Funchal para a Recorrida datada de 19 de Agosto de 2015 (fls. 225-226); e (vii) carta da Recorrida para a Câmara Municipal (fls. 227).
[5]cfr. “Temas da Reforma de Processo Civil - III volume - 5 - Procedimento Cautelar Comum”, Almedina, 1998, págs. 203 e segs.
[6]Cfr. Abrantes Geraldes, loc. cit., págs. 107 e segs
[7]Cfr. Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2ª edição Coimbra Editora, pág. 23.
[8]Cfr. loc. cit., pág. 210.
[9]Cfr. loc. cit., pág. 108.
[10]RAFAEL BIELSA, A acção popular e o poder discricionário da administração – “A acção popular é educativa e o seu exercício faz do cidadão uma espécie de “cavaleiro cruzado”, um colaborador da legalidade e moralidade administrativa; é uma forma peculiar de educar juridicamente o povo”.
[11]LUIS SOUSA FÁBRICA, A acção popular no Projecto do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, p. 3 e ss.
[12]JOSÉ LUÍS SOUSA FÁBRICA, A acção popular já não é o que era, CJA, n.38, p.53 e 54. É ROBIN DE ANDRADE, A acção popular no direito administrativo português, p.35 e ss.
[13]MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA, A legitimidade popular na tutela dos interesses difusos, p.46.
[14]OLIVEIRA ASCENÇÃO, A acção popular e a Protecção do Investidor, p.4.
[15]MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA, op. cit., p. 49 e ss.
[16]O Acórdão do STJ de 23-09-1997, proc. 978503, Relator: Miranda Gusmão, www.dgsi.pt, considerou como interesse homogéneo individual o direito de reparação de danos dos assinantes do serviço telefónico por incumprimento de contrato.
[17]10 J.J. GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, Constituição da República Portuguesa Anotada, vol. I, 3ª ed., Coimbra Editora, 2007, p.700.
[18]LUÍS FÁBRICA, ob. e loc. cit.
[19]LUÍS FILIPE COLAÇO ANTUNES, A tutela dos interesses difusos em Direito Administrativo, Almedina, Coimbra, 1989, pp. 22-23.
[20]14 Exemplo citado por MÁRIO AROSO DE ALMEIDA, Sobre a legitimidade popular no contencioso administrativo português in Cadernos de Justiça Administrativa, n.º 101, Setembro/Outubro 2013, p. 52.
[21]MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA, ob. citada, pp. 20-23.

Decisão Texto Integral: