Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
197/18.3PAALM-A.L1-9
Relator: FERNANDO ESTRELA
Descritores: DECLARAÇÕES PARA MEMÓRIA FUTURA
PRESSUPOSTOS
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 04/26/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIMENTO
Sumário: I A tomada de declarações para memória futura pode ser feita,verificadas determinadas circunstâncias (nomeadamente, desconhecimento da identidade do suspeito, ausência deste, necessidade urgente de preservar prova, necessidade urgente de proteger o declarante ou outras pessoas, partida eminente ou possibilidade séria de morte deste).

II Sempre que possível, deverá ser evitada a repetição da audição da testemunha especialmente vulnerável durante o inquérito, podendo ainda ser requerido o registo nos termos do artigo 271.º do Código de Processo Penal.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na 9.ª secção do Tribunal da Relação de Lisboa.


Relatório:


I No Proc.º n.º 197/18.3.PAALM-A, da Comarca de Lisboa, Juízo de Instrução Criminal, Juiz 2, por despacho judicial de 14 de março de 2018, foi decidido indeferir o requerimento do Ministério Público no sentido de serem tomadas declarações para memória futura à queixosa A…,, nascida a …,de 1926.

II Inconformado, o Ministério Público na 1.ª instância interpôs recurso, formulando as seguintes conclusões:
1- O requerimento do Ministério Público de fls. 13 tem enquadramento legal nos artigos 67.º-A, n.º 1, alínea b), e 271.º, do Código de Processo Penal, nos artigos 26.º a 28.º, da Lei n.º 93/99, de 14 de Julho, e no artigo 24.º, n.º 1, da Lei n.º 130/2015, de 4 de Setembro, que a decisão recorrida violou, e apoio jurisprudencial (cfr., entre outros, o recente Acórdão de 4 de Maio de 2017 do Tribunal da Relação de Lisboa, proferido no âmbito do Processo n.º 12/15.0JDLSB.L1-9: “I - Mesmo com a actual redacção do art.º 271º do CPP, a tomada de declarações para memória futura pode ser feita, verificadas determinadas circunstâncias (nomeadamente, desconhecimento da identidade do suspeito, ausência deste, necessidade urgente de preservar prova, necessidade urgente de proteger o declarante ou outras pessoas, partida eminente ou possibilidade séria de morte deste) (…).”.
2- No presente inquérito, investigam-se factos susceptíveis de integrar, pelo menos, a prática de um crime de burla qualificada, p. e p. pelos artigos 217.º, n.º 1, e 218.º, n.º 2, alíneas a) e c), do Código Penal. 
3- A ofendida A…, completará, no próximo mês de Abril, 92 anos de idade.
4- Foi-lhe atribuído o Estatuto de Vítima Especialmente Vulnerável pela P.S.P..
5- Para além da ofendida A…, ter 91 anos, o que, como se sabe das regras de experiência comum, implica como necessária a obtenção célere e precisa do seu depoimento, acresce um factor de a lei entender que, por essa qualidade, a mesma deva ser salvaguardada, designadamente, evitando-se a sua infinita e repetida audição no processo (perigo de revitimização).
6- Não colhe suporte legal o douto despacho recorrido dizendo que “não foi feita qualquer diligência de prova no inquérito em ordem a apurar a veracidade dos factos e recolher a prova necessária nem tampouco foi ouvida a queixosa na qualidade de testemunha” (sublinhado nosso), pois que, para além do mais, não compete à Meritíssima Juiz de Instrução Criminal, salvo o devido respeito, sindicar a forma como é orientada a investigação.
7- Acresce que, a fls. 5 a 8, encontra-se prova documental que suporta, de alguma forma, a denúncia.
8- Tal como as crianças / os jovens, os idosos exigem protecção e urge assumi-la, face aos preceitos aludidos, no processo penal - “A OMS (2002) estima que o aumento demográfico dos idosos, a nível mundial, agrave as situações de violência e maus tratos devido à rutura de laços familiares e com a redução e ineficácia dos sistemas de proteção social. Em Portugal a APAV (2014) revela que a par do crescimento demográfico deste grupo aumenta também a violência. Segundo a mesma, os idosos são vítimas de violência em diversos contextos (Títono, 2009). Durante o processo de envelhecimento surgem perdas de ordem física e psicológica que torna os idosos mais vulneráveis ao risco de violência. Com efeito, é no seu cotidiano, quer em casa, quer na rua, que os idosos se tornam vítimas das circunstâncias por motivos de ordem jurídica, social e cultural de cada sociedade.”, Rosas (2015).
9- Deverá o douto despacho recorrido ser revogado e substituído por outro que admita a recolha de declarações para memória futura a A…, tal como requerido pelo Ministério Público.
V. Excelências, assim decidindo, farão a costumada e desejada JUSTIÇA!

III–Transcreve-se o despacho recorrido.

As declarações para memória futura servem para acautelar a prova que deverá servir em sede de audiência de julgamento e não na fase de inquérito (cfr artigo 271.º, n.º1, do C.P.P.).
Os presentes autos de inquérito tiveram início numa queixa apresentada por A…, no passado dia 05.02.2018.
Desde essa data até ao presente, não foi feita qualquer diligência de prova no inquérito em ordem a apurar a veracidade dos factos e recolher a prova necessária nem tampouco foi ouvida a queixosa na qualidade de testemunha.
Assim, sendo um dos pressupostos da tomada de declarações para memória futura, a existência de circunstâncias que previsivelmente possam impedir a testemunha de ser ouvida em audiência de julgamento, e nada havendo nos autos que permita supor que os mesmos chegarão a essa fase processual, considera-se prematura a realização de tal diligência, motivo pelo qual se indefere a sua realização.
(…)

IV–A Exma Procuradora-Geral Adjunta nesta Relação pronunciou-se no sentido da procedência do recurso interposto.

V–Cumpre decidir.

1. O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões do recorrente (cf., entre outros, os Acs. do STJ de 16.11.95, de 31.01.96 e de 24.03.99, respectivamente, nos BMJ 451° - 279 e 453° - 338, e na CJ (Acs. do STJ), Ano VII, Tomo I, pág. 247, e cfr. ainda, arts. 403° e 412°, n° 1, do CPP).
2. O recurso será decidido em conferência, atento o disposto no art.º 419.º n.º 3 alínea b) do C.P.Penal .
3. O Ministério Público, no seu recurso, veio impugnar o despacho judicial que indeferiu a tomada de declarações para memória futura à ofendida A…, de 91 anos de idade (actualmente com 92 anos de idade).
4. Ao despacho recorrido é aplicável o disposto no art.º 97.º n.º 5 do C.P.Penal, que dispõe que “os actos decisórios são fundamentados, devendo ser especificados os motivos de facto e de direito da decisão“.
Como aponta Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário ao Código de Processo Penal, Ed Univ. Católica, pag.268, a fundamentação “é um raciocínio argumentativo que possa ser entendido e reproduzido (nachvollziehbar) pelos destinatários da decisão”.
Verifica-se que, na forma, o despacho recorrido não contém qualquer irregularidade – encontra-se claro e conciso, fundamentado, aplicando correctamente o facto à lei, e o raciocínio no mesmo plasmado revela-se perfeitamente cristalino e clarividente para qualquer destinatário normal e médio, que é o suposto ser querido pela ordem jurídica, não merecendo qualquer dúvida de interpretação, não sendo, em consequência, merecedor, nesta parte, de crítica.
5. Decidindo.
O despacho judicial recorrido indeferiu o requerimento do Ministério Público no sentido de serem tomadas declarações para memória futura à ofendida A…, de 91 anos de idade (actualmente com 92 anos).
Do auto de denúncia elaborado em 5.2.2018, pela PSP consta que:
A denunciante de 91 anos de idade considerando a sua avançada idade e não tendo familiares próximos que possam tomar conta de si em 07 de Janeiro de 2017 contactou os dois suspeitos no seu Lar de Idosos tendo ali sido conduzida por uma pessoa amiga que a levou ao Lar denominado …, sito na Rua…,. Os suspeitos serão os dois proprietários do referido Lar.
Assim ficou ali internada desde essa data pagando mensalmente a importância de 650 euros, o que corresponde à quase totalidade da sua reforma.
Desde logo os dois suspeitos foram criando empatia com a denunciante, levando-a a confiar neles, motivo pela qual acabou por em 24 de Fevereiro de 2017, assinar um testamento que estes elaboraram em que a denunciante lhes atribui por testamento a sua residência sita na Rua…,, que dista poucos metros do Lar. A denunciante refere que efectuou o denunciante com base nas promessas e empatia criadas com os suspeitos mas que hoje não tem dúvidas que foi propositado e astuciosamente elaborado, pois estes sabiam que a denunciante apesar da sua idade e não tendo familiares próximos era possuidora de um património de valor a que acresce uma conta bancária com cerca de 29.000 euros.
Mantendo o mesmo clima de confiança a denunciante foi confidenciando os valores que tinham e face à sua perca de autonomia acabou por aceder que se procedesse ao levantamento de 29.000 euros da sua conta bancária, o que acabaram por fazer em 17/07/2017 no Balcão da Caixa Geral de Depósitos de …,. Foi efectuado um levantamento em numerário que a denunciante deu aos suspeitos para que estes o guardassem, não o deu, mas que continuaria a pertencer à denunciante que iria pedir importâncias monetárias sempre que necessitasse.
Transferidos praticamente todos os valores que a denunciante possuía para os dois suspeitos começou a denunciante a constatar um conjunto de incorreções destes para consigo, uma recusa constante em lhe darem dinheiro quando pedia, dinheiro que era seu.
Acresce que uma vez na posse da residência da denunciante, um pequena vivenda, os suspeitos efectuaram obras naquela residência com o consentimento da denunciante mas logo com o objectivo de o lar dos suspeitos ali colocar outros idosos.
Efectuadas as obras a denunciante voltou à sua residência a 14 de Novembro de 2017 onde ficou a habitar com outra senhora idosa mas ao cuidado do Lar nesta residência existem duas empregadas e a outra idosa que ali reside paga a prestação dos serviços directamente ao Lar dos suspeitos.
Desde então a denunciante tem procurado ter acesso ao seu dinheiro (29 mil euros) o que tem sempre sido negado pelos suspeitos que alegam que têm que pagar as funcionárias da residência actual (700 euros) a que acresce a mensalidade do Lar de 650 euros. A denunciante não consegue saber que dinheiro afinal tem, o que de facto paga ou não, e vê-se na situação de actualmente ter sido espoliada de todos os valores que amealhou na sua vida.
Por estes factos dirigiu-se hoje à Segurança Social onde após expor a situação foi aconselhada a dirigir-se a esta Polícia para apresentar queixa.
NOTA: Nesta Polícia e considerando a sua avançada idade, 91 anos, foi-lhe prestado todo o auxilio e efectuado um levantamento de toda a situação, expressando-se a denunciante de forma coerente, denotando ainda grande capacidade de memorização referindo com precisão datas e factos demonstrando ser uma pessoa na posse de todas as suas faculdades cognitivas.
A mesma mostra-se bastante revoltada com toda a situação, receia pelo seu futuro pois os dois suspeitos ameaçam que deixam de tomar conta dela e não lhes dão qualquer dinheiro. A própria residência da denunciante que transferiu ou transfere com a sua morte, é actualmente explorada pelo Lar dos suspeitos como local de alojamento de pelo menos um idoso que paga ao lar e não à denunciante.
Todos os factos narrados pela denunciante poderão de facto enquadrar um crime de Burla qualificada onde devem ser considerados a idade da vítima, a sua actual situação precária por ter sido espoliada de todos os seus bens.
Refira-se que o testamento elaborado e reconhecido notarialmente não possui uma identidade total dos dois suspeitos, não referindo o número de qualquer documentos de identificação destes nem o NIF. A denunciante não tem familiares directos mas terá sobrinhos.
Junta-se cópia do Testamento elaborado e da página da Caderneta da CGD que contem o levantamento da importância de 29 mil euros. Saliente-se que esta importância foi efectuada através de um levantamento, o que por si só é de facto suspeito.
Toda a situação se afigura delicada face à clara desproteção da denunciante. Embora sobre alguns factos já tenham decorrido seis meses a situação de retenção do dinheiro da denunciante e a sua colocação em situação precária é actual.
Foi efectuada notificação de Vítima especialmente vulnerável.”(sublinhado nosso).
Além da prova documental acima referida, as declarações da queixosa revelaram-se coerentes, tal como constatadas pelo agente da PSP.

Dispõe o artigo 271.º, do Código de Processo Penal:
“1- Em caso de doença grave ou de deslocação para o estrangeiro de uma testemunha, que previsivelmente a impeça de ser ouvida em julgamento, bem como nos casos de vítima de crime de tráfico de pessoas ou contra a liberdade e autodeterminação sexual, o juiz de instrução, a requerimento do Ministério Público, do arguido, do assistente ou das partes civis, pode proceder à sua inquirição no decurso do inquérito, a fim de que o depoimento possa, se necessário, ser tomado em conta no julgamento.
2- No caso de processo por crime contra a liberdade e autodeterminação sexual de menor, procede-se sempre à inquirição do ofendido no decurso do inquérito, desde que a vítima não seja ainda maior.
3- Ao Ministério Público, ao arguido, ao defensor e aos advogados do assistente e das partes civis são comunicados o dia, a hora e o local da prestação do depoimento para que possam estar presentes, sendo obrigatória a comparência do Ministério Público e do defensor.
4- Nos casos previstos no n.º 2, a tomada de declarações é realizada em ambiente informal e reservado, com vista a garantir, nomeadamente, a espontaneidade e a sinceridade das respostas, devendo o menor ser assistido no decurso do acto processual por um técnico especialmente habilitado para o seu acompanhamento, previamente designado para o efeito.
5- A inquirição é feita pelo juiz, podendo em seguida o Ministério Público, os advogados do assistente e das partes civis e o defensor, por esta ordem, formular perguntas adicionais.
6- É correspondentemente aplicável o disposto nos artigos 352.º, 356.º, 363.º e 364.º
7- O disposto nos números anteriores é correspondentemente aplicável a declarações do assistente e das partes civis, de peritos e de consultores técnicos e a acareações.
8- A tomada de declarações nos termos dos números anteriores não prejudica a prestação de depoimento em audiência de julgamento, sempre que ela for possível e não puser em causa a saúde física ou psíquica de pessoa que o deva prestar.”.
Como ensina o Tribunal da Relação de Lisboa, no recente Acórdão de 4 de Maio de 2017, proferido no âmbito do Processo n.º 12/15.0JDLSB.L1-9, disponível em www.dgsi.pt, “I - Mesmo com a actual redacção do art.º 271º do CPP, a tomada de declarações para memória futura pode ser feita, verificadas determinadas circunstâncias (nomeadamente, desconhecimento da identidade do suspeito, ausência deste, necessidade urgente de preservar prova, necessidade urgente de proteger o declarante ou outras pessoas, partida eminente ou possibilidade séria de morte deste) antes de haver Arguido constituído, sem que isso ponha irremediavelmente em causa o direito ao contraditório, desde que ao Arguido seja posteriormente dada a real possibilidade de contraditar e/ou confrontar o autor de tais declarações.” (sublinhado nosso).

A propósito das “testemunhas especialmente vulneráveis”, rezam os artigos 26.º a 28.º, da Lei n.º 93/99, de 14 de Julho:
“Artigo 26.º (Testemunhas especialmente vulneráveis)
1- Quando num determinado acto processual deva participar testemunha especialmente vulnerável, a autoridade judiciária competente providenciará para que, independentemente da aplicação de outras medidas previstas neste diploma, tal acto decorra nas melhores condições possíveis, com vista a garantir a espontaneidade e a sinceridade das respostas.
2- A especial vulnerabilidade da testemunha pode resultar, nomeadamente, da sua diminuta ou avançada idade, do seu estado de saúde ou do facto de ter de depor ou prestar declarações contra pessoa da própria família ou de grupo social fechado em que esteja inserida numa condição de subordinação ou dependência.
Artigo 27.º
1- Logo que se aperceba da especial vulnerabilidade da testemunha, a autoridade judiciária deverá designar um técnico de serviço social ou outra pessoa especialmente habilitada para o seu acompanhamento e, se for caso disso, proporcionar à testemunha o apoio psicológico necessário por técnico especializado.
2- A autoridade judiciária que presida ao acto processual poderá autorizar a presença do técnico de serviço social ou da outra pessoa acompanhante junto da testemunha, no decurso daquele acto.
Acompanhamento das testemunhas especialmente vulneráveis
Artigo 28.º (Intervenção no inquérito)
1- Durante o inquérito, o depoimento ou as declarações da testemunha especialmente vulnerável deverão ter lugar o mais brevemente possível após a ocorrência do crime.
2 - Sempre que possível, deverá ser evitada a repetição da audição da testemunha especialmente vulnerável durante o inquérito, podendo ainda ser requerido o registo nos termos do artigo 271.º do Código de Processo Penal. (sublinhado nosso)”.
Como se tal não bastasse, veja-se ainda o teor do artigo 67.º-A, n.º 1, alínea b), do Código de Processo Penal, que entende por “vítima especialmente vulnerável a vítima cuja especial fragilidade resulte, nomeadamente, da sua idade, do seu estado de saúde ou de deficiência, bem como do facto de o tipo, o grau e a duração da vitimização haver resultado em lesões com consequências graves no seu equilíbrio psicológico ou nas condições da sua integração social”, a conjugar com as normas da Lei n.º 130/2015, de 4 de Setembro (Estatuto da Vítima), onde se prevê expressamente, no artigo 24.º, n.º 1, que “o juiz, a requerimento da vítima especialmente vulnerável ou do Ministério Público, pode proceder à inquirição daquela no decurso do inquérito, a fim de que o depoimento possa, se necessário, ser tomado em conta no julgamento, nos termos e para os efeitos previstos no artigo 271.º do Código de Processo Penal.”.
No presente inquérito, investigam-se factos susceptíveis de integrar, pelo menos, a prática de um crime de burla qualificada, p. e p. pelos artigos 217.º, n.º 1, e 218.º, n.º 2, alíneas a) e c), do Código Penal. 
Efectivamente, a ofendida A…, nasceu em …, de 1926, tendo, no presente, 92 anos.
No auto de denúncia, a fls. 3 e 4, lê-se, com cuidado, que: “Todos os factos narrados pela denunciante (que se expressou de forma coerente) poderão de facto enquadrar um crime de Burla qualificada onde devem ser considerados a idade da vítima, a sua actual situação precária por ter sido espoliada de todos os seus bens.”.
Atenta a situação supra exposta, assume a qualidade de vítima especialmente vulnerável, Estatuto que lhe foi atribuído pela P.S.P. (cfr. fls. 9 e 10).
Com efeito, para além da ofendida A…, ter 92 anos, o que, como se sabe das regras de experiência comum, implica como necessária a obtenção célere e precisa do seu depoimento, acresce um factor de a lei - e bem - entender que, por essa qualidade, a mesma deva ser salvaguardada, designadamente, evitando-se a sua infinita e repetida audição no processo.
Em obediência às acima citadas normas e pensando sempre na qualidade da ofendida, a primeira coisa que o Ministério Público fez quando o presente inquérito lhe “chegou às mãos”, para além de o declarar como urgente, foi requerer as declarações para memória futura.
Acresce que, a fls. 5 a 8, encontra-se prova documental que suporta, de alguma forma, a denúncia.
Citando Rosas (2015), “A OMS (2002) estima que o aumento demográfico dos idosos, a nível mundial, agrave as situações de violência e maus tratos devido à rutura de laços familiares e com a redução e ineficácia dos sistemas de proteção social. Em Portugal a APAV (2014) revela que a par do crescimento demográfico deste grupo aumenta também a violência. Segundo a mesma, os idosos são vítimas de violência em diversos contextos (Títono, 2009). Durante o processo de envelhecimento surgem perdas de ordem física e psicológica que torna os idosos mais vulneráveis ao risco de violência. Com efeito, é no seu cotidiano, quer em casa, quer na rua, que os idosos se tornam vítimas das circunstâncias por motivos de ordem jurídica, social e cultural de cada sociedade.”.
Tal como as crianças/os jovens, os idosos exigem protecção e urge assumi-la, face aos preceitos aludidos, no processo penal.
A decisão recorrida violou os artigos 67.º-A, n.º 1, alínea b), e 271.º, do Código de Processo Penal, os artigos 26.º a 28.º, da Lei n.º 93/99, de 14 de Julho, e o artigo 24.º, n.º 1, da Lei n.º 130/2015, de 4 de Setembro.” (das alegações do M.P. na 1.ª Instância).
“Na verdade o regime constante no artigo 271 ° do CPP aplica-se às testemunhas especialmente vulneráveis, nos termos do artigo 28°, n°2, da Lei n° 93/99, de 14-07.
Dispõe este preceito, no seu n°1, que durante o inquérito, o depoimento ou as declarações da testemunha especialmente vulnerável deverão ter lugar o mais brevemente possível após a ocorrência do crime.
Afigurando-se não ter sido posta em causa a vulnerabilidade da testemunha, pessoa que conta, já, 92 (noventa e dois) anos de idade e mostrando-se adquirida a notícia de um crime e aberto que foi o respectivo inquérito (artigos 241° e seguintes e 262° do CPP) impunha-se, tal como resulta da letra da lei, que a tomada de declarações à testemunha ocorresse o mais brevemente possível.
Por outro lado não exige a lei, nem tal faria sentido, que o inquérito se mostrasse em fase avançada. E não faria sentido na medida em que o preceito foi pensado pelo legislador como meio preventivo de recolha de prova susceptível de perder-se ou inviabilizar-se antes do julgamento - Maia Costa, anotação ao artigo 271° do CPP comentado pelos Excelentíssimos Conselheiros do Supremo Tribunal de Justiça. Aliás é admissível a diligência ainda que não haja arguido constituído, e mesmo quando o autor do crime não tenha sido identificado. Mas apenas se justificará proceder dessa forma quando razões de inadiável urgência a imponham - obra citada.
Serve para dizer que a interpretação levada a cabo no douto despacho recorrido é desconforme à letra da lei e, também, ao elemento teleológico”.(do parecer da PGA).
De facto, o Cons. Maia Gonçalves escreve no C.P.Penal Comentado, Almedina, 2014, a pag. 965:
“15.- É admissível a diligência ainda que não haja arguido constituído, e mesmo quando o autor do crime não tenha sido identificado. Mas apenas se justificará proceder dessa forma quando razões de inadiável urgência a imponham. Deverá então nomear-se defensor ao indiciado autor do crime, para aquele acto. Neste sentido, P. Albuquerque, ob. cit., pp. 728-729; António Gama, "Reforma do CPP: prova testemunhal, declarações para memória futura e reconhecimento", Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 19°, n° 3, pp. 398 ss.; e António Miguel Veiga, loc. cit., p. 117; contra, Damião da Cunha, "O regime processual de leitura de declarações na audiência de julgamento", Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 79, n° 3, p. 405; Joaquim Malafaia, "O acusatório e o contraditório nas declarações prestadas nos actos de instrução e nas declarações para memória futura", Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 14°, n° 4, pp. 532-533, e Vinício Ribeiro, CPP, Notas e comentários, 2.ª ed., p. 724.
16.- Pode haver lugar à recolha de declarações para memória futura na fase de instrução, nos termos do art. 294°
17.- Os actos são obrigatoriamente reduzidos a auto (art. 275°, n° 2).”
E ainda Paulo Pinto de Albuquerque in C.P.Penal Comentado, Univ. Católica, 2008, a pag. 702:
As declarações para memória futura podem ser prestadas quando não há ainda pessoa constituída como arguido ou nem todos os suspeitos estão constituídos como arguidos (acórdão do TRP, de 18.4.2001, in CJ, XXVI, 2, 228, e, no direito Italiano, rejeitando a inconstitucionalidade desta solução, a sentença da Corte Costituzionale Italiana n.° 181, de 16.5.1994, mas contra esta solução, acórdão do TRE, de 29.3.2005, in CJ, XXX, 2, 269, e, na doutrina, DAMIÃO DA CUNHA, 1997: 409, e JOAQUIM MALAFAIA, 2004: 539) ou nem mesmo se conhece a identidade do suspeito do crime, pois de outro modo poderia ficar definitivamente prejudicada a aquisição da prova que se encontrasse em perigo de ser perdida. Mais: não é compatível com a ratio deste instituto de remédio urgente para salvaguarda da prova em perigo que a respectiva aplicação fique nas mãos do autor dos factos. Nestes casos, o princípio constitucional do contraditório exige que o juiz designe defensor para assegurar a defesa da pessoa (mesmo que a sua identidade não seja conhecida) a quem se atribui a prática do crime. Acresce que, sendo possível, o tribunal de julgamento pode convocar para a audiência a testemunha ouvida para memória futura.(sublinhado nosso).

Assim, o despacho recorrido será revogado e substituído por outro que designe, com a maior urgência possível, a recolha de declarações para memória futura a A…, tal como requerido pelo Ministério Público, em que deverá ser nomeado defensor dos arguidos.

VI Pelo exposto, concede-se provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público pelo que se revoga o despacho recorrido que deverá ser substituído por outro que, COM A MAIOR URGÊNCIA POSSÍVEL, designe e proceda à tomada de declarações para memória futura a A…, tal como requerido pelo Ministério Público.
Sem custas.

    
Lisboa, 26 de Abril de 2018


(Fernando Estrela) (Acórdão elaborado e revisto pelo relator - vd. art.º 94 º n.º 2 do C.P.Penal)

(Maria Guilhermina Freitas)