Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
9359/16.7T8LRS-A.L1-6
Relator: ANTÓNIO SANTOS
Descritores: CONVENÇÃO SOBRE OS ASPECTOS CIVIS DO RAPTO INTERNACIONAL DE CRIANÇAS
RESIDÊNCIA HABITUAL DO MENOR
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 03/16/2017
Votação: MAIORIA COM UM VOTO VENCIDO
Texto Integral: N
Texto Parcial: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: -Sendo em Itália o local de residência habitual do menor, em resultado de acordo de ambos os seus progenitores , e aos quais de resto cabia o exercício em conjunto - após a separação de ambos - das responsabilidades parentais, a progenitora incorre na sua retenção ilícita em Portugal se , após um curto período de férias no nosso país , não mais pretende regressar a Itália com o menor, assim decidindo unilateralmente e contra a vontade e o acordo do outro progenitor.
-Sendo a conduta da progenitora do menor ilícita à luz do artº. 3 da Convenção sobre os Aspectos Civis do Rapto Internacional de Crianças, concluída em Haia em 25.10.80, e artº 2, nº 11, do Regulamento nº 2201/2003 do Conselho (CE), de 27.11.03, a decisão de ordenar o regresso imediato do menor a Itália apenas não deve ser proferida pelo tribunal se tal se justificar/impuser em razão da salvaguarda do interesse superior da criança, maxime de forma a obstar a que a sua separação do progenitor/guardião lhe possa causar um dano psíquico intolerável.

(Sumário elaborado pelo Relator)
Decisão Texto Parcial: Acordam os Juízes, do Tribunal da Relação de Lisboa.
                                                          

1.-Relatório

                      
O Ministério Público veio, em benefício e no interesse do menor A , nascido em 3/8/2009, e contra a respectiva progenitora B, intentar ACÇÃO TUTELAR COMUM de NATUREZA URGENTE, impetrando que seja diligenciado o imediato regresso do referido menor a ITÁLIA , junto do seu progenitor C , residente em Alzano Lombardo.

Para tanto, alegou o MP, em síntese, que :
-O menor A, nascido a 03-08-2009, natural de Bergamo, Itália, é filho da requerida B , de nacionalidade portuguesa e de C de nacionalidade italiana, sendo que, os seus progenitores nunca foram casados, mas viveram como se cônjuges fossem, até meados de 2013, data em que se separaram;
-A partir da data da separação dos progenitores ,o menor passou a  residir com a mãe em Itália, mas com o convívio permanente do pai e o apoio dos avós paternos, sendo que, as responsabilidades parentais relativas ao A não foram ainda reguladas;
-Acontece que, após um período de férias em Portugal, a requerida/ mãe do menor decidiu não regressar a Itália, informando o progenitor em 12-08-2016, de que não mais voltaria a Itália com o A, tendo retido o filho no nosso País, contra a vontade ou sem consentimento do referido progenitor;
-A referida situação configura, em rigor, uma retenção ilícita da criança, pela progenitora, impondo-se portanto diligenciar pelo seu regresso imediato ao Estado da sua residência habitual (Itália) de acordo com o disposto nos artigos 3°, 7° e 12° da Convenção da Haia Sobre os Aspectos Civis do Rapto Internacional de Crianças de 25 de Outubro de 1980 e nos artigos 2°, 10° e 11° do Regulamento (CE) nº 2201/2003 de 27 de Novembro de 2003.

1.1-Designado dia para audição da requerida B , teve a mesma lugar a 24/11/2016, data em que foi igualmente ouvido o requerido  C , sendo que, finda a diligência, foi proferida a seguinte Sentença/decisão :
“(…)

O Ministério Público veio solicitar a admissão do pedido de regresso do A a Itália, na sequência de pedido de regresso formulado pelo seu progenitor C, por o menor ter sido deslocado para Portugal sem a sua autorização e, por isso, ilicitamente.
Foram ordenadas as diligências necessárias com vista evitar a deslocação da criança para um país terceiro.
Foi ouvida em declarações da progenitora, a qual confirmou a deslocação do menor para Portugal sem autorização do pai.
Em cumprimento do disposto no artigo 7º , alínea c) da Convenção de Haia de 25.10.1980, foi tentada uma solução consensual para o regresso do menor A a Itália.
Não havendo qualquer motivo para indeferir o pedido, impõe-se dar cumprimento ao disposto no artigo 12° da citada convenção.
Em face do exposto, ordeno o imediato regresso do menor Leandro L...P...N... a Itália.
Notifique os progenitores e comunique à Direcção Geral de Reinserção Social e Prisionais.
Sem custas.
Registe e notifique.”

1.2.-Discordando da decisão/sentença referida em 1.1., veio de imediato e em tempo a requerida B da mesma apelar, aduzindo, em sede de conclusões da instância recursória, as seguintes considerações:
a)-A Requerente e o Requerido C conheceram-se em 25 de Novembro de 2004 e passaram em viver em regime de economia comum em 01 de Janeiro de 2006, em Via Dei Platani, Treviolo, Itália.
b)-Desta relação nasceu A, em 03 de Agosto de 2009, portador do Cartão de Cidadão 301822669 2 ZY4, válido até 08.07.2020, contribuinte fiscal 000000000.
c)-A relação do casal degradou-se pouco tempo depois da união do casal, uma vez que o Requerido nunca abdicou da vida nocturna e de hábitos incompatíveis com a vida familiar.
d)-Canalizando os seus ganhos emergentes de uma relação laboral pouco clara para as suas necessidades pessoais, em detrimento das responsabilidades de uma vida em economia comum, deixando a Requerente e o filho menor a viver uma situação económica difícil.
e)-Em 18 de maio de 2013, a Requerente comunicou que já não existiam condições para continuarem a residir sob o mesmo tecto. Todavia, o Requerido só abandonou a casa em Outubro desse ano.
f)-A Requerente ficou desempregada em Dezembro de 2013, fruto da forte recessão do mercado italiano.
g)-Desde então, a Requerente só angariou trabalhos ocasionais, aos quais se teve de sujeitar.
h)-Em três anos de separação, o Requerido comparticipou no máximo 8 (oito) vezes para os alimentos devidos ao menor
i)-Apesar de instado, o Requerido nunca quis regular o exercício das responsabilidades parentais junto do Tribunal de Família e de Menores, em Itália, apesar de terem consultado um Advogado e elaborado os termos do acordo.
j)-Em finais de 2013, início de 2014, a pedido da Requerente, ambos chegaram a consultar advogados para estabelecerem um acordo amigável, onde se estabelecia uma pensão de alimentos a favor do menor, no valor de € 500,00 mensais.
k)-A Requerente suportou sérias dificuldades, quer do ponto de vista financeiro, da falta de trabalho regular, mantendo o sustento do filho de ambos com o apoio de familiares e amigos.
1)-Em 15 de Abril de 2015, a Requerente viu-se obrigada a colocar à venda a casa onde residia, cujo valor da venda não chegou para liquidar o empréstimo.
m)-A Requerente não tem mais condições para se manter sozinha naquele "modus Vivendis", em Itália.
n)-Em face da ausência de trabalho, encontrando-se sozinha e sem condições de económicas admissíveis, a Requerente decidiu regressar a Portugal, uma vez que obteve uma proposta de trabalho.
o)-Por sua vez o pai do menor, ora Requerido, não tem, nem sequer pretende as condições necessárias para manter a guarda do menor, pois não é nem nunca foi a sua prioridade.
p)-A promiscuidade é de tal ordem, que sempre que o menor priva com o pai, acaba por partilhar a cama com o pai e as suas namoradas.
q)-Outras vezes, após a entrega da criança aos cuidados do pai, o mesmo "devolvia à precedência" ao fim de duas horas, pois já "não aguentava o Miúdo".
r)-A Requerente não pretende de modo algum obstar o convívio da criança com o progenitor.
s)-Todavia, pretende permanecer em Portugal uma vez que tem trabalho, residência e apoio familiar e afectivo, na companhia do seu filho, assegurando-lhe desta forma necessárias condições para um crescimento o saudável e feliz.
t)-Requereu, assim, que fosse fixado judicialmente por este Tribunal os termos em que seria exercida as responsabilidades parentais relativas ao menor, designadamente a guarda, o regime de visitas do outro e o contributo a título de alimentos ao menor.
u)-Sem prejuízo do pedido da fixação do regime provisório.
v)-O progenitor conhece pessoalmente a localidade em que o menor se encontra na companhia da mãe, junto da sua família materna, diga-se, alargada e estruturada.
w)-A presente situação é o resultado da recusa consciente por parte do Emmanuel em subscrever o acordo quanto à regulação do exercício das responsabilidades parentais.
x)-Como pode a Recorrente regressar a Itália para aguardar pelo desfecho sobre o exercício das responsabilidades parentais, a decidir por um Tribunal Italiano da área da residência última do menor, se a mãe regressou de lá sem trabalho e condições para ali permanecer mais tempo, pois nem para o filho tinhas as condições mínimas de apoio?
y)-Sem trabalho, como vai a Recorrente arrendar uma casa para se manter com o filho durante o tempo que irá demorar a obter a decisão?
z)-O menor sempre viveu com a mãe!
aa)-Está matriculado no 2.° ano da Escola EB1 -  Dr. (…) , que faz parte do Agrupamento de Escolas da Portela e Moscavide.
bb)-E conforme resulta do documento escolar, é um aluno pontual e assíduo, o que revela o cuidado que a Recorrente coloca na educação do seu filho.
cc)-Razão pela qual o menor deveria ser ouvido previamente por uma comissão técnica especializada antes de ser tomada qualquer decisão definitiva, a qual seria seguramente esclarecedora.
dd)-Que existe um risco grave de a criança, no seu regresso, ficar sujeita a perigos de ordem física ou psíquica, ou, de qualquer modo, a ficar numa situação intolerável.
ee)-Facilmente se constata que não estão preenchidos os pressupostos em que a referida Convenção faz assentar a entrega da criança.
ff)-Contudo, o Tribunal pode opor-se ao regresso imediato da criança a observarem-se as excepções previstas na al. B) do art.° 13 da Convenção.
gg)-Determina o n.° 6 do art.° 36° da Constituição da República Portuguesa, que os filhos não podem ser separados dos pais, salvo quando estes não cumpram os seus deveres fundamentais para com eles e sempre mediante decisão judicial.
hh)-Nem se pode considerar que se tenha verificado uma deslocação ou retenção licita ao abrigo do disposto no art.° 3.° da Convenção, uma vez que por total desinteresse por parte do progenitor, era a mãe que exercia exclusivamente a guarda e o efectivo poder no que concerne ao exercício das responsabilidades parentais.

ii)-No entanto, deve considerar-se preenchida a hipótese prevista na al. b) do artigo 13° da Convenção, pois:

a)-"Retirar uma criança de tenra idade à mãe, com quem sempre viveu, desde que nasceu;
b)-A única que efectivamente conhece e confia;
c)-Retirá-la do meio familiar em que se encontra inserida;
d)-Levá-la para um país para ir residir com um pai que mal conhece ; sem o apoio da mãe pelas razões escalpelizadas ;
e)-Não é apenas submeter a criança a uma situação intolerável, nem a perigos abstractos de ordem psíquica. É muito mais grave. Configura uma situação de maus-tratos a menor, cujas sequelas poderão afectá-lo de forma grave e perene.
Nestes termos, e nos melhores de direito que Vexas doutamente suprirão,
Nos termos dos artigos 13.°, alíneas a) e 20° da Convenção, resulta comprovados os factos necessários à determinação da rejeição do pedido de entrega imediata do menor, por inexistência de qualquer fundamento e muito menos de qualquer facto que o legitime ;
Sendo que a sentença ora recorrida, viola o intuito normativo da OTM e da própria Convenção de Haia, bem como o disposto nos respectivos arts supra mencionados e os mais elementares princípios constitucionais" , pelo que deve ser considerada nula e substituída por outra que determine a manutenção do menor na companhia da mãe em Portugal, devendo o processo de regulação do exercício das responsabilidade parentais seguir igualmente os seus ulteriores termos até final, aguardando-se a Decisão definitiva que vier a ser proferida por este Douto Tribunal, fazendo-se assim habituada justiça, no cumprimento do superior interesse do menor.

1.3.-Tendo o MP contra-alegado, veio impetrar que à apelação interposta seja negado provimento, impondo-se assim a confirmação da decisão recorrida.
                                                          
Thema decidendum
1.4.-Colhidos os vistos, cumpre decidir, sendo que , estando o objecto do recurso delimitado pelas conclusões [ daí que as questões de mérito julgadas que não sejam levadas às conclusões da alegação da instância recursória, delas não constando, têm de se considerar decididas e arrumadas, não podendo delas conhecer o tribunal de recurso] das alegações dos recorrentes ( cfr. artºs. 635º, nº 3 e 639º, nº 1, ambos do Código de Processo Civil, aprovado pela Lei nº 41/2013, de 26 de Junho ), e sem prejuízo das questões de que o tribunal ad quem possa ou deva conhecer oficiosamente, a questão a apreciar e a decidir  resume-se à seguinte:
I-aferir se a sentença apelada se impõe ser revogada, maxime porque :
a)-não estão preenchidos os pressupostos em que a Convenção faz assentar a entrega da criança;
b)-existe um risco grave de a criança, no seu regresso, ficar sujeita a perigos de ordem física ou psíquica, ou , de qualquer modo, de  ficar numa situação intolerável.
                                                          
2.-Motivação de Facto.
Não tendo o tribunal a quo fixado, como se exigia [ cfr. artºs 154º,nº1, 607º,nº3, 615º, nº1, alínea b) e 986º,nº1, todos do CPC ] que o tivesse feito , os fundamentos de facto da decisão apelada, e não obstante não arguida a competente nulidade, resta a este Tribunal suprir a referida omissão, sendo que para tanto constam dos autos os necessários elementos .

Dos autos resulta, assim, provado que :

2.1.-A, nasceu a 03-08-2009, sendo natural de Bergamo, Itália;
2.2.-O menor identificado em 2.1. é filho de B, de nacionalidade portuguesa e de C, de nacionalidade italiana , tendo ambos vivido como se cônjuges fossem, em Itália, até meados de 2013, data em que se separaram ;
2.3.-B, de nacionalidade portuguesa, residiu em Itália nos últimos 20 anos;
2.4.-Em meados do ano de 2016, B  regressou a Portugal, com o filho A, sendo seu propósito o de passar um período de férias;
2.5.-Findo o período de férias referido em 2.4., e alterando o seu propósito inicial, B decidiu - em meados de Agosto de 2016 - não mais regressar a Itália , passando a viver em Portugal, juntamente com o filho A ;
2.6.-A partir da data da separação dos progenitores, em meados de 2013, o menor A passou a  residir com a mãe, ainda e também em Itália, mas com convívio permanente do pai e o apoio dos avós paternos;
2.7.-As responsabilidades parentais relativas ao A não foram ainda reguladas;
2.8.-C , progenitor do menor A,  não deu o seu consentimento à decisão de B, identificada em 2.5., e  com a mesma não concorda;
2.9.- O progenitor C, em 17/8/2016, participou às entidades policiais de Itália  a retenção em Portugal do menor A,  por parte de B;
2.10.-A 24/11/2016, no âmbito dos presentes autos, foram  ouvidos os progenitores do A , reiterando a B o seu firme propósito de não mais regressar a Itália  e, já o progenitor C , manifestando o propósito de que o menor regresse a Itália, lugar onde sempre viveu.
                                                          
3-Motivação de  Direito.

3.1.-Se a sentença apelada incorre em error in judicando, ao ordenar o imediato regresso do menor A a Itália.
A  decisão apelada  foi pelo tribunal a quo proferida ao abrigo da Convenção de Haia sobre os Aspectos Civis do Rapto Internacional de Crianças de 25.10.1980 [ doravante designada apenas por Convenção (1) ] , e na sequência da presença no nosso País - junto da respectiva progenitora, de nacionalidade Portuguesa - de menor cujo regresso a Itália é exigido pelo respectivo progenitor, de Nacionalidade Italiana .
O tribunal a quo, recorda-se, ainda que de uma forma bastante sucinta, entendeu que em face dos - poucos - elementos recolhidos,  forçoso era concluir verificar-se a previsão do artº 12º da Convenção, razão porque importava determinar/ordenar o imediato regresso do menor A a Itália, , decisão com a qual não concorda a requerida/progenitora B.

Ora bem.
A Convenção, como expressis verbis resulta do respectivo preâmbulo , e no pressuposto de que os interesses da criança são de primordial importância em todas as questões relativas à sua custódia, tem precisamente por desiderato proteger a criança, no plano internacional, dos efeitos prejudiciais resultantes de uma mudança de domicílio ou de uma retenção ilícitas e estabelecer as formas que garantam o regresso imediato da criança ao Estado da sua residência habitual, bem como assegurar a protecção do direito de visita”.

Para o referido efeito,  e de acordo com a alínea a), do seu artº 1º, tem a Convenção por objecto “assegurar o regresso imediato das crianças ilicitamente transferidas para qualquer Estado Contratante ou nele retidas indevidamente.

Ora, para que a Convenção seja aplicável, exigível é que se esteja perante uma situação de uma criança sujeita a uma deslocação ou a uma retenção ilícita, o que pode ocorrer quando [ cfr. artº 3º da Convenção , e também artº 2º, nº 11, do Regulamento (CE) n.° 2201/2003 , do Conselho, de 27 de Novembro de 2003  (2) ]  :
a)-Tendo sido efectivada em violação de um direito de custódia atribuído a uma pessoa ou a uma instituição ou a qualquer outro organismo, individual ou conjuntamente, pela lei do Estado onde a criança tem a sua residência habitual imediatamente antes da sua transferência ou da sua retenção; e
b)-Este direito estiver a ser exercido de maneira efectiva , individual ou em conjunto, no momento da transferência ou da retenção, ou o devesse estar se tais acontecimentos não tivessem ocorrido.

Por sua vez, em conformidade com o último parágrafo do referido art. 3º, o direito de custódia a que alude a al. a) aludida, pode designadamente resultar quer de uma atribuição de pleno direito, quer de uma decisão judicial ou administrativa, quer de um acordo vigente segundo o direito deste Estado.

Isto dito, tudo aponta pois para que a Convenção de Haia deva ser chamada à colação quando uma criança é deslocada - para o estrangeiro - do local da sua residência habitual, quer pelo progenitor que não detém a sua guarda, quer também pelo progenitor que, sendo é certo co-titular da sua guarda, a  afasta todavia do local do seu domicilio habitual, mudando-o contra a vontade do outro co-titular da guarda do menor, e privando-o doravante de poder continuar a deter a guarda efectiva - ainda que em conjunto - da criança como sempre o fizera até então.

Ou seja, a subtracção de um menor por um dos pais ocorre quando existe, em termos de facto, quer o exercício conjunto de responsabilidades parentais ( maxime quando qualquer dos progenitores estão em posições muito próximas,  e bastando v.g. que um dos progenitores vinha mantendo algum contacto com a criança antes da sua transferência ou da sua retenção ) , quer quando os direitos de guarda se encontram atribuídos ( v.g. por decisão judicial ) a um dos progenitores.

Com pertinência para a questão decidenda, importa também atentar que, o Regulamento (CE) n.° 2201/2003 do Conselho, de 27 de Novembro de 2003 , relativo à competência, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria matrimonial e em matéria de responsabilidade parental e que revoga o Regulamento (CE) n.° 1347/2000, é peremptório em consagrar/estabelecer nos respectivos considerandos 17 e 18,que :

“(17) Em caso de deslocação ou de retenção ilícitas de uma criança, deve ser obtido sem demora o seu regresso ; para o efeito, deverá continuar a aplicar-se a Convenção de Haia de 25 de Outubro de 1980, completada pelas disposições do presente regulamento, nomeadamente o artigo 11.º
Os tribunais do Estado-Membro para o qual a criança tenha sido deslocada ou no qual tenha sido retida ilicitamente devem poder opor-se ao seu regresso em casos específicos devidamente justificados.
Todavia, tal decisão deve poder ser substituída por uma decisão posterior do tribunal do Estado-Membro da residência habitual da criança antes da deslocação ou da retenção ilícitas.
Se esta última decisão implicar o regresso da criança, este deverá ser efectuado sem necessidade de qualquer procedimento específico para o reconhecimento e a execução da referida decisão no Estado-Membro onde se encontra a criança raptada.

(18)-Em caso de decisão de recusa de regresso, proferida ao abrigo do artigo 13.º da Convenção de Haia de 1980, o tribunal deve informar o tribunal competente ou a autoridade central do Estado-Membro no qual a criança tinha a sua residência habitual antes da deslocação ou da retenção ilícitas. Este tribunal, se a questão ainda não lhe tiver sido submetida, ou a autoridade central deve notificar as partes. Este dever não deve impedir a autoridade central de notificar também as autoridades públicas competentes, de acordo com o direito interno.

Na sequência do acabado de expor , e descendo de seguida ao rol dos factos provados, inquestionável é que o menor Leandro L... N..., tendo nascido em Bergamo,  Itália, sempre residiu e teve o seu domicílio habitual neste último país , mantendo-se próximo de ambos os progenitores , ou seja , até o momento em que a progenitora Paula C...P...F... o “transfere”  para Portugal, e decide unilateralmente alterar o seu domicílio , fixando-se com carácter de permanência no nosso País,  é  Itália o País de residência habitual do menor Leandro  , e , ademais, e  em termos de facto, existe o exercício conjunto de responsabilidades parentais.

Ora, ao interferir com o exercício do direito de custódia conjunto  , e , ao reter o menor A em País que não é o da sua residência habitual, ao arrepio e contra a vontade do outro progenitor, interferindo assim e efectivamente com o relacionamento existente entre o referido progenitor e o filho - limitando inevitavelmente a relação afectiva entre ambos - , tudo aponta portanto para que se encontre verificada a situação da alínea b), do artº 3º, da Convenção, impondo-se em consequência concluir que a progenitora B está a reter ilicitamente no nosso País o menor A.

Acresce que, não estando ainda regulado o exercício do poder paternal do menor A, em face da separação de ambos os seus progenitores,  certo é que , quer à luz do nosso Código Civil  ( artºs 1901º e 1906º ) , quer  também do Codice Civile italiano ( artºs 316º e 317º), é incontornável que as questões de particular importância para a vida do filho ( como o é o local da respectiva residência )  são e devem sempre ser decididas em comum por ambos os progenitores , que não por apenas um dos pais. (3)

Perante a referida e inevitável conclusão [ o da retenção ilícita , no nosso País , do menor A ] , forçosa é  assim a aplicação do comando do artº 12º da Convenção  , o qual determina/obriga [  em consonância de resto com o objectivo principal da Convenção - cfr. artº 1º - , que é o de repor o status inicial das crianças ] que , quando uma criança tenha sido ilicitamente retida  e tiver decorrido um período de menos de 1 ano entre a data da retenção indevida e a data do início do processo, a autoridade respectiva deverá ordenar o regresso imediato da criança.

E, mesmo que se mostre decorrido o período de um ano entre a data da deslocação e a data do início do processo , deve também a autoridade respectiva ordenar o regresso imediato da criança,  salvo se for provado que a criança já se encontra integrada no seu novo ambiente. ( artº 12º )

Porque in casu nada permite concluir que decorreu  o período de um ano entre a data da deslocação e a data do início do processo ( em 16/11/2016 ) , tudo aponta portanto para que a decisão do tribunal a quo-ao ordenar o regresso imediato da criança-não seja merecedora de qualquer censura/reparo.

Ainda assim, e porque de matéria se trata que pela apelante foi carreada para os autos em sede de conclusões recursórias [ que não quando ouvida no decurso do processo, ou seja, a montante da decisão recorrida , e quando teve a possibilidade de influenciar a decisão apelada  ] , resta , porém, aferir se ainda assim, a decisão a proferir pelo tribunal a quo não deveria ter sido diversa , maxime por força do disposto no artº 13º, da Convenção, norma esta que dispõe que , não existe a obrigação de ordenar o regresso da criança, se a pessoa que se opuser ao seu regresso provar:
a)-Que a pessoa que pretende o regresso da criança não exercia efectivamente o direito de custódia na época da transferência ou da retenção, ou que havia consentido ou concordado posteriormente com tal transferência ou retenção ; ou
b)-Que existe um risco grave de a criança, no seu regresso, ficar sujeita a perigos de ordem física ou psíquica ou ficar, de qualquer modo, numa situação intolerável.

De igual modo, recorda-se, pode ainda a autoridade judicial recusar o regresso da criança quando, existindo oposição ao regresso proveniente da criança , é esta última dotada já de um certo grau de maturidade que justifique tomar em consideração as suas opiniões sobre o assunto.

Ora, nesta matéria, não se olvida que em sede de aplicação da Convenção, o papel essencial do Tribunal do Estado requerido é o de restaurar o status quo ante,  e , bem assim, que segundo as regras da experiência , é inquestionável que toda a decisão judicial que ordena o regresso de uma criança ao Estado onde tinha a sua residência habitual [ afastando-a do convívio do progenitor guardião/raptor que , na grande maioria dos casos, é porém e precisamente a pessoa de maior referência do menor, e com quem mantém ela laços de afectividade mais próximos/acentuados ], provoca sempre inevitáveis danos psicológicos para a criança,  razão porque, compreensível é que a excepção da alínea b), do artº 13º, prima facie apenas seja actuada  em situações de prova da existência de um quadro de manifesto e grave perigo para o bem estar da criança.

Do mesmo modo, e em contraponto ao referido, não se desconhece também que o interesse da criança aconselha a que deva privilegiar-se a continuidade das suas relações afectivas com a pessoa que sempre esteve mais próxima de si, desempenhando as tarefas básicas em sede de cuidados de alimentação, saúde, e educação,  o que tudo aconselha - no interesse na criança - a que o regresso da criança para junto do progenitor não guardião acarreta sempre um potencial risco para a mesma.

Por último, e nesta sede, importante é também não descurar a preocupação que as instituições e os tribunais devem ter no sentido de enveredarem por decisões que desincentivem as práticas de transferências e retenções “ilícitas” , não devendo estas últimas acabarem no final por se imporem - como factos consumados , e por  regra em  benefício  do progenitor infractor  - ao progenitor prejudicado.

Tudo visto e ponderado, todas as preocupações acima indicadas são , é verdade, todas elas sensíveis e devem merecer a nossa atenção, mas, ainda assim , o que deve em última instância prevalecer é , e sempre, a decisão que melhor responde/satisfaz o interesse da criança, e isto apesar de, para tanto, houver que desatender a pretensão do progenitor prejudicado/lesado.

Dir-se-á que, se a Convenção tem ,”também”, por desiderato proteger a criança,pois que,a respectiva ratio parte do pressuposto e firme convicção de que os interesses da criança são de primordial importância em todas as questões relativas à sua custódia, então, caso tudo indique que o regresso da criança, ao abrigo e por força da Convenção , não vá de encontro ao seu interesse, bem pelo contrário, então não deve ele ser decretado.

O referido entendimento, compreensivelmente, é aquele que vem sufragado por algumas decisões de Tribunais de 2ª Instância, sendo para tanto de destacar o Ac. do TR de Coimbra de 22-02-2005. (4)

Postas estas breves considerações, a verdade é que dos elementos de facto carreados para os autos - maxime dos fixados por este Tribunal - , não se descortina existir fundamento susceptível de integrar a previsão do artº 13º da Convenção, seja da respectiva alínea a), seja da sua alínea b).

Ademais, dispondo a parte final do referido artº 13º da Convenção que, “ Ao apreciar as circunstâncias referidas neste Artigo, as autoridades judiciais ou administrativas deverão tomar em consideração as informações relativas à situação social da criança fornecidas pela Autoridade Central ou por qualquer outra autoridade competente do Estado de residência habitual da criança”, certo é que nada foi também veiculado susceptível de justificar/impor a prolação de uma decisão  de oposição ao regresso da criança ao Estado da respectiva residência habitual.

Por fim, sempre se acrescenta que, não se descortina também que o regresso da criança A a Itália não seja de todo consentânea com os princípios fundamentais de Portugal relativos à protecção dos direitos do homem e das liberdades fundamentais ( cfr. artº 20º, da Convenção), não infringindo uma tal decisão o art.º 36º,nº6, da CRP [Os filhos não podem ser separados dos pais, salvo quando estes não cumpram os seus deveres fundamentais para com eles e sempre mediante decisão judicial ] .

Em conclusão, não se olvidando que , em face do disposto no artº 3.º , nº1, da Convenção sobre os Direitos da Criança de 1989  (5) “Todas as decisões relativas a crianças, adoptadas por instituições públicas ou privadas de protecção social, por tribunais, autoridades administrativas ou órgãos legislativos, terão primacialmente em conta o interesse superior da criança” ,  certo é que in casu não nos fornecem os autos elementos concretos decisivos e relevantes que legitimem considerar que, perante os mesmos [ não se olvidando que um dos critérios fundamentais a atender nesta âmbito é o de privilegiar a manutenção das relações afectivas da criança com o progenitor/pessoa de Referência , importa considerar que o menor completou já os 7 anos de idade e, ademais , até aos 4 anos de idade , esteve aos cuidados de ambos os progenitores , ou seja, nada permite concluir que foi a progenitora a única pessoa que sempre prestou os cuidados primários ao menor A ] , se justificava que tivesse o tribunal a quo decidido pelo indeferimento do pedido de restituição/regresso imediato da criança a Itália.

Em suma, deve assim a apelação interposta improceder, devendo a decisão recorrida ser confirmada
                                              
4-Sumariando ( cfr. artº 663º,nº7, do Cód. de Proc. Civil ).

4.1-Sendo em Itália o local de residência habitual do menor, em resultado de acordo de ambos os seus progenitores , e aos quais de resto cabia o exercício em conjunto - após a separação de ambos - das responsabilidades parentais, a progenitora incorre na sua retenção ilícita em Portugal  se , após um curto período de férias no nosso país , não mais pretende regressar a Itália  com o menor, assim decidindo unilateralmente e contra a vontade e o acordo do outro progenitor ;
4.2.-Sendo a conduta da progenitora do menor ilícita à luz do artº. 3 da Convenção sobre os Aspectos Civis do Rapto Internacional de Crianças, concluída em Haia em 25.10.80, e artº 2, nº 11, do Regulamento nº 2201/2003 do Conselho (CE), de 27.11.03, a decisão de ordenar o regresso imediato do menor a Itália apenas não deve ser proferida pelo tribunal se tal se justificar/impuser em razão da salvaguarda do interesse superior da criança, maxime de forma a obstar a que a sua separação do progenitor/guardião lhe possa causar um dano psíquico intolerável ;
                                              
5-Decisão:

Em face de tudo o supra exposto,
acordam os Juízes na ...Cível do Tribunal da Relação de Lisboa , em , não concedendo provimento à apelação interposta por B ,em :
5.1.- Confirmar a sentença apelada .
Custas pela recorrente.



LISBOA, 16/3/2017

                                   
António Manuel Fernandes dos Santos(O Relator)
Francisca da Mata Mendes(1ª Adjunta)  
*                           
(#)---Eduardo Petersen Silva(2º Adjunto)
*
(#)--- Voto vencido por entender que o tribunal a quo deveria ter ordenado a audição do menor por uma comissão especializada e em seguida, e em conformidade, ter fixado qual a matéria de facto provada.

                                                       
(1)-Aprovada pelo Decreto do Governo nº 33/83, de 11/5, e que entrou em vigor em Portugal no dia 1/12/1983, cfr. Aviso publicado no D.R. nº126/84, Série I, de 31/5/84.
(2)-O qual,  vigora tanto em Portugal como na Itália, desde 1 de Agosto de 2004, com excepção de algumas disposições imediatamente aplicáveis, constituindo fonte derivada do Direito da UE, com aplicação directa e que também prevalece sobre o direito interno, nos termos do artigo 8.º, n.º 4, da Constituição, como bem salienta o Ac. do TR de Lisboa, de 1-10-2013, in Procº nº 2273/07.9TMLSB-7, sendo Relator TOMÉ GOMES, e in www.dgsi.pt
(3)-Vide o Ac. do TR de Lisboa, de 24-03-2009, in Procº nº 2273/07.9TMLSB-7, sendo Relatora CONCEIÇÃO SAAVEDRA, e in www.dgsi.pt
(4)-In Procº nº 2544/04, sendo Relator SOUSA PINTO, e in www.dgsi.pt .
(5)-Adoptada pela Assembleia Geral nas Nações Unidas em 20 de Novembro de 1989 e ratificada por Portugal em 21 de Setembro de 1990.
Decisão Texto Integral: