Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1309/21.5T8OER.L2-2
Relator: LAURINDA GEMAS
Descritores: PROVIDÊNCIA CAUTELAR COMUM
PEDIDO DE MORATÓRIA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 11/04/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROVIMENTO PARCIAL
Sumário: I - O meio de envio de uma declaração (incluindo a vertida em documento eletrónico) não se confunde com a exigência legal de forma da mesma, cabendo à parte interessada em prevalecer-se daquele facto o ónus da respetiva prova, não impondo a lei, por via de regra, designadamente o Decreto-Lei n.º 290-D/99, de 02-08 (na versão em vigor à data dos factos), que, quando remetida por via eletrónica, o seja com recurso a serviços qualificados.
II - No caso da declaração prevista no art. 5.º do Decreto-Lei n.º 10-J/20, de 26-03, atinente ao acesso a uma “moratória Covid-19”, independentemente da validade da mesma, poderá ser feita prova do seu envio, seja por meio físico (v.g. a via postal), seja por meio eletrónico, podendo este último ser o correio eletrónico “simples” (isto é, sem recurso a serviços de confiança qualificados).
III - No procedimento cautelar comum em que foi requerida a suspensão da produção de efeitos da resolução de dois contratos de mútuo para aquisição de veículos, com reserva de propriedade, com fundamento na ilicitude daquela resolução, por a mutuante não ter acedido ao pedido do mutuário, ora Requerente, de aplicação de moratórias, apresentado logo no início da pandemia, é incorreto considerar, na decisão final proferida com dispensa da audiência final, não demonstrado o facto atinente ao envio pelo Requerente à Requerida, em 02-04-2020, desse pedido, através de mensagem de correio eletrónico cuja cópia foi junta aos autos (e que a Requerida até confessou ter recebido)“por esta não se encontrar assinada de forma certificada ou datada”.
IV - A provar-se o envio pelo Requerente de um tal pedido, incumbiria à Requerida dar-lhe resposta célere, alertando para a necessidade de observar as exigências legais que considerasse estarem em falta, sob pena de indeferimento da pretensão, ao invés de avançar sem mais para o envio de cartas com interpelação admonitória, revelando-se, assim, de crucial importância, apurar a data do envio daquele email e se idêntica mensagem foi enviada por correio postal não registado como alegado pelo Requerente, se este vinha (ou não) pagando tempestivamente as prestações contratuais, apenas deixando de o fazer a partir das prestações relativas aos meses de abril e seguintes, bem como se tais cartas foram enviadas.
V - Por outro lado, as moratórias não vieram impedir o funcionamento, nem que seja como ultima ratio, do instituto da alteração das circunstâncias consagrado nos artigos 437.º e 438.º do CC, concatenado com as regras dos diferentes tipos de contratos, numa apreciação que não pode deixar de ser casuística. Perante a urgência de uma situação e a inviabilidade do recurso em tempo útil aos Tribunais (cujo normal funcionamento também ficou afetado, mormente com a conhecida suspensão dos prazos processuais), poderá vir a ser reconhecida a licitude de uma modificação (unilateral) do contrato comunicada por uma das partes, por exemplo uma “moratória de facto”, no contexto da inadequada falta de resposta por parte da instituição de crédito.
VI - Perante a controvérsia fáctica, não se mostra possível decidir, sem necessidade de produção da restante prova oferecida, não estarem verificados os pressupostos da providência requerida designadamente que: (i) muito provavelmente exista o direito (à moratória ou à alteração contratual) ou, tão só, à manutenção dos contratos, e, assim sendo, os direitos de propriedade e posse dos veículos adquiridos mediante os respetivos financiamentos, postos em causa pela descrita atuação da Requerida (a aparência ou verosimilhança dos direitos do Requerente carecido de tutela - fumus boni iuris); (ii) o fundado receio de que, antes de proferida decisão de mérito na ação principal a intentar, seja causada lesão grave e dificilmente reparável a tais direitos (periculum in mora); (iii) a providência requerida seja adequada a remover o periculum in mora concretamente verificado e a assegurar a efetividade do direito ameaçado.
(da exclusiva responsabilidade da Relatora – art. 663.º, n.º 7, do CPC)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, na 2.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa, os Juízes Desembargadores abaixo identificados

I - RELATÓRIO
AA interpôs o presente recurso de apelação da decisão final proferida nos autos de procedimento cautelar comum que intentou contra Banco Santander Consumer Portugal S.A.
No Requerimento Inicial, apresentado em 15-04-2021, aquele requereu que fosse suspensa a produção de efeitos da “rescisão contratual” operada pelo Requerido, designadamente a apreensão do veículo, até ao trânsito em julgado da ação principal declarativa da ilicitude da rescisão contratual.
Alegou, para tanto e em síntese, que:
- O Requerente celebrou com o Requerido dois contratos de financiamento para aquisição a crédito, o primeiro no dia 15-06-2018 relativo ao veículo automóvel da marca ......1, e o segundo no dia de 03-01-2020 relativo ao de veículo automóvel da marca …...2;
- O Requerente é um empresário em nome individual, prestador de serviços na área do …..., que auferia rendimentos médios mensais no valor de 1.800 € que lhe permitiam suportar os créditos contratados;
- Esta situação foi alterada pela pandemia do novo coronavírus COVID-19, com a diminuição do trabalho a partir de março de 2020, passando a partir de abril desse ano a não auferir quaisquer rendimentos, com vários projetos adiados, outros cancelados, não auferindo em alguns meses quaisquer rendimentos do seu trabalho e sem ter direito a subsídio de desemprego;
- Vendo-se assim impossibilitado de proceder ao pagamento das prestações a que se havia vinculado relativas aos meses de abril de 2020 e seguintes, no âmbito dos contratos acima referidos;
- No dia 2 de abril de 2020, o Requerente dirigiu à Requerida, via postal e via correio eletrónico, pedido de aplicação de moratórias aos contratos identificados, conforme doc. 3;
- O Requerente ainda não se encontrava em mora no pagamento das prestações dos créditos em questão em março de 2020, não tendo inclusivamente qualquer dívida tributária à Administração Tributária e à segurança Social;
- A Requerida não aceitou negociar qualquer solução para a regularização das prestações vencidas desde o início da pandemia, tendo rescindido os contratos em causa e comunicado que iria proceder à cobrança coerciva das importâncias que considera em dívida, exigindo a totalidade dos valores mutuados, conforme doc. 4;
- Quando o Requerente contactou a Requerida, julgando tratar-se de um equívoco tal comunicação, foi-lhe dito que o Requerente havia remetido o pedido da moratória de uma forma incorreta;
- Tendo a declaração de adesão à moratória sido tempestivamente apresentada, revela-se ilícita a rescisão dos contratos de crédito, pretendendo o Requerente intentar ação principal de declaração de nulidade dessa rescisão;
- Caso assim não se entenda, deverá ser, como determina o n.º 1 do artigo 437.º do CC, em ação declarativa própria, determinada a modificação dos contratos, com a redução das prestações a pagar pelo Requerente ao Requerido em função da diminuição dos seus rendimentos;
- O Requerente não tem outra fonte de rendimentos e necessita dos veículos em questão, não só para deslocações a nível pessoal, mas sobretudo para poder trabalhar, inclusivamente deslocando-se a sítios remotos, pelo que a apreensão dos mesmos determinaria para si um prejuízo desproporcionalmente superior àquele que acarreta para o Requerido a não apreensão;
- Verifica-se uma probabilidade séria (“fumus boni juris”) de o direito invocado e a acautelar já existir ou vir a emergir de ação a propor, e um fundado receio de que o Requerido, antes da ação ser proposta ou na pendência dela, cause lesão grave e dificilmente reparável (“periculum in mora”) a tal direito, não existindo uma providência específica que acautele o direito ameaçado.
O Requerente juntou documentos e arrolou testemunhas.
Citada a Requerida, deduziu Oposição, na qual alegou, em síntese, que:
- O Requerente remeteu o pedido de adesão à moratória (doc. 3 junto com o RI), via correio eletrónico, o qual apenas foi recebido em 30-09-2020;
- O Requerente deixou de cumprir o contrato de 2018 em 25-03-2020 e o outro a partir de 05-04-2020, não tendo a partir dessas datas liquidado qualquer prestação;
- A Requerida enviou ao Requerente duas cartas (docs. 3 e 4), em 30-07-2020, interpelando-o para, em 15 dias, regularizar as dívidas, findo o qual os contratos seriam resolvidos;
- Foi no seguimento dessa situação de mora e interpelação que a Requerida veio resolver os contratos, por cartas rececionadas pelo Requerente em 03-09-2020;
- O pedido de aplicação de moratória não podia ser atendido porque o Requerente não comprovou ter a sua situação tributária regularizada.
A Requerida juntou documentos e arrolou testemunhas.
Em 13-05-2021, o Requerente apresentou requerimento, alegando ser falso que tivesse sido contactado pela Requerida para efeito de PERSI, não tendo recebido quaisquer comunicações a esse propósito.
Em 14-05-2021, foi proferido despacho que determinou a notificação do Requerente para em 10 dias esclarecer qual dos veículos usa na sua atividade profissional, juntar aos autos o comprovativo do envio da comunicação de adesão à moratória e declarar ainda qual o valor mensal que considera devem ter as prestações em resultado da invocada alteração das circunstâncias.
O Requerente respondeu, mediante requerimento apresentado em 18-05-2021, que o veículo utilizado para deslocações em trabalho é o …...1, sendo o …...2 usado nas deslocações necessárias à economia doméstica; mais disse não ter remetido as comunicações atinentes à moratória via postal registada, pelo que não dispõe de comprovativo de envio; e que estava já, nesse momento, em condições de retomar o pagamento das prestações mensais de ambos os contratos nos valores aí previstos.
Em 04-06-2021, foi determinada a notificação do Requerente para esclarecer se pretendia desistir da instância.
Veio o Requerente responder, em 08-06-2021, que mantinha o interesse no conhecimento do mérito do presente procedimento cautelar.
Em 16-06-2021, foi proferida decisão final, que veio a ser anulada por decisão sumária deste Tribunal da Relação (21-08-2021), vindo a ser proferida nova decisão final (ora recorrida), em 13-09-2021, julgando improcedente a providência.
De novo inconformado com esta decisão, veio o interpor recurso de apelação, formulando na sua alegação as seguintes conclusões:
A - Não se conforma o Recorrente com a sentença a quo na parte em que determina que não se encontra demonstrado que “8 - Em 2-IV-20 o A. enviou à R. a ‘mensagem’ junta a fls 27”, e consequentemente determina que “Não foi junto aos autos o documento (‘assinado pelo mutuário’) previsto no artigo 5º/1 do DL 10-J/20 de 26-III (exigência mantida em vigor pelo DL 26/20 de 16-VI) – motivo por que o ora A. (alegado empresário em nome individual) não poderia beneficiar da moratória aí prevista. Não se verifica, assim, o primeiro requisito de que depende o invocado direito do A. à manutenção dos contratos em vigor.;”
B - E bem assim na parte em que, indeferiu a providência cautelar na parte que julgou improcedente a providência cautelar considerando que “o A. não indica qualquer facto concreto (relativo aos seus rendimentos – artigos 44º a 50º) que permitisse ao Tribunal operar tal modificação.”
C - O presente procedimento cautelar foi requerido pelo Recorrente peticionando que fosse suspensa a produção de efeitos da rescisão contratual operada pelo Recorrido, designadamente a apreensão do veículo, até ao trânsito em julgado da ação principal declarativa da ilicitude da rescisão contratual.
D - Alegou o Recorrente que celebrou com o Recorrido dois contratos de financiamento para aquisição a crédito de veículos automóveis;
E - Vinculando-se o Recorrente ao pagamento de 120 prestações mensais nos valores de 298,13€ e 351,29€, respetivamente, no primeiro e segundo contrato.
F - O Recorrente alegou ser prestador de serviços na área do …..., auferindo rendimentos médios mensais no valor de 1.800€, que lhe permitiam suportar os créditos contratados;
G - Situação que foi alterada pela pandemia do novo coronavírus COVID-19, diminuindo o trabalho a partir da data de Março de 2020, passando a partir de Abril desse ano a não auferir quaisquer rendimentos;
H - Vendo-se assim impossibilitado de proceder ao pagamento das prestações a que se havia vinculado, no âmbito dos contratos acima referidos.
I - No dia 02 de Abril de 2020 o Recorrente dirigiu ao Recorrido, via email, pedido para que fosse aplicado o regime das moratórias aprovado pelo Decreto-Lei n.° 10-J/2020, de 26 de Março aos contratos supra identificados;
J - O Recorrente viu-se surpreendido pela comunicação do Recorrido no sentido da rescisão dos contratos.
K - Uma vez contactado pelo Recorrente, o Recorrido confirmou a rescisão, alegando que o Recorrente havia remetido a comunicação de uma forma incorreta.
L - O Recorrido passou a exigir a totalidade do valor mutuado em ambos os créditos, num total de 54.533,33€, 22.674,56€ relativo ao primeiro contrato de crédito, e 31.858,77€ relativo ao segundo.
M - Os efeitos da rescisão contratual dos contratos de crédito passam pela apreensão dos veículos a que respeitam ou pagamento de um valor de entrada inicial;
N - Não dispondo o Recorrente de meios que o permitam proceder ao pagamento do valor de entrada inicial, a rescisão contratual teria por efeito a apreensão dos veículos.
O - O Recorrente necessita dos veículos em questão para efeitos de deslocações a nível pessoal e profissional, os veículos são utilizados na economia familiar diariamente, designadamente para levar o filho do Recorrente à escola, fazer compras;
P - Sendo imperiosamente necessários para o Recorrente poder trabalhar e sem a disposição de um automóvel, o Recorrente ficará na prática desprovido de um instrumento de trabalho absolutamente necessário para a execução do seu trabalho, e consecutivamente desprovido da sua única fonte de rendimentos.
Q - Além de o recorrente não ter capacidade financeira para pagar a pronto o valor de prestações que se venceram durante a pandemia, não tem capacidade financeira para adquirir viaturas novas;
R - Porém, sendo o Recorrente empresário em nome individual, Não se encontrando o mesmo em mora no pagamento das prestações dos créditos em questão à data de Março de 2020,
S - Nem tendo qualquer dívida tributária à Administração Tributária e à Segurança Social; É aplicável aos créditos em causa o regime constante do artigo 5.º, n.º 5 do Decreto-Lei n.º 10-J/2020, de 26 de Março, na redação conferida pelo decreto Lei n.º 26/2020, de 16 de Junho, do qual resulta que a comunicação de adesão à moratória deveria ser efetuada até ao dia 30 de Junho de 2020.
T - Tendo o Recorrente efetuado a declaração de adesão à moratória no dia 02 de Abril de 2020, via postal e via correio eletrónico, foi a mesma tempestivamente apresentada;
U - Revelando-se ilícita a rescisão dos contratos de crédito supra identificados nos termos em que foi operada.
V - O Recorrente procedeu à junção com o Requerimento Inicial, como documento n.º 3, do comprovativo de envio de email solicitando a aplicação do regime das moratórias;
X - Atenta a prova documental efetuada pelo Recorrente, é entendimento do Recorrente que o Tribunal a quo deveria haver dado como provado facto “Em 2-IV-20 o A. enviou à R. a ‘mensagem’ junta a fls 27”;
Z - E consequentemente, atenta a tempestividade da declaração de adesão à moratória, pronunciar-se no sentido da ilicitude da resolução contratual.
AA - Motivo pelo qual vem pelo presente o Recorrente impugnar a sentença recorrida, relativamente à decisão de facto na parte em que considera não demonstrado que no dia 02 de Abril de 2020 o Recorrente enviou ao Recorrido declaração de adesão ao regime das moratórias;
BB - E consequentemente considera lícita a resolução contratual operada pelo Recorrido;
CC - Requerendo que a decisão recorrida seja revogada na parte em que julga não demonstrado que “8 - Em 2-IV-20 o A. enviou à R. a ‘mensagem’ junta a fls 27.” e que se pronuncia no sentido da licitude da resolução;
DD - Devendo a mesma ser substituída por decisão que julgue tal facto provado atendendo à prova documental apresentada pelo Recorrente, designadamente o documento n.º 3 junto com o requerimento inicial;
EE - E consequentemente se pronuncie no sentido da ilicitude da resolução contratual e determine o deferimento da providência cautelar requerida pelo Recorrente.
FF - Com efeito, considerando que se verifica uma probabilidade séria (“fumus boni júris”) de o direito invocado e a acautelar já existir ou vir a emergir de ação a propor;
GG - Verificando-se um fundado receio de que o Recorrido, antes da ação ser proposta ou na pendência dela cause lesão grave e dificilmente reparável (“periculum in mora”) a tal direito (porquanto não se consumou ainda a lesão);
HH - Considerando que a apreensão dos veículos durante a pendência de ação declarativa a propor pelo Recorrente, tendente à apreciação da ilicitude da rescisão contratual dos contratos de crédito supra identificados operada pelo Recorrido determinaria para o Recorrente um prejuízo desproporcionalmente superior àquele que acarreta para o Recorrido a não produção de efeitos da rescisão dos contratos de crédito;
II - «Quanto à invocada “alteração das circunstâncias”, e não pretendendo o A. a resolução dos contratos, poderia (em abstracto) haver lugar à modificação dos contratos “segundo juízos de equidade” – mas o A. não indica qualquer facto concreto (relativo aos seus rendimentos – artigos 44º a 50º) que permitisse ao Tribunal operar tal modificação.» sentença a quo
JJ - A verdade é que o Requerente alegou e propunha-se a demonstrar que, durante o confinamento resultante da pandemia, sofreu uma alteração anormal e imprevisível dos rendimentos e que por essa via ficou impedido de pagar pontualmente as prestações.
KK - De tal forma que o Requerente não logrou auferir rendimentos em valor suficiente que lhe permita proceder ao pagamento das prestações acordadas;
LL - ORA, com o devido respeito, não foi requerido na providência cautelar que fossem alterados os termos contratuais, em termos da alteração anormal das circunstâncias.
MM - Sendo que, aliás, foi alegado no artigo 52º da providência cautelar:
«Termos que, em ação declarativa própria, deverá ser proferida sentença com valor de declaração negocial que substitua a do Requerido, determinando a modificação dos contratos juntos como documentos n.º 1 e 2, determinando que as prestações a pagar pelo Requerente ao Requerido sejam reduzidas em função da diminuição dos seus rendimentos.»
NN - Ou seja, na providência cautelar caberia em função do fumus boni iuris, ou seja, da probabilidade séria de se determinar a ilicitude da rescisão por via da alteração anormal das circunstâncias, acautelar o periculum in mora decorrente dos efeitos da rescisão!
OO - E assim salvo o devido respeito, não foi peticionado que, em sede cautelar se determinasse os termos concretos da alteração contratual.
PP - Sendo que os termos concretos da modificação contratual decorrente da alteração anormal das circunstâncias, seria objecto da acção declarativa que correria por apenso.
QQ - Não sendo e não tendo de ser objecto do procedimento cautelar. Pelo que nunca foi peticionado que o Tribunal, no processo cautelar operasse a modificação do contrato, nem tal é um pressuposto de procedência do processo cautelar.
RR - Apenas e só se peticiona que em função da existência de eventos anormais e imprevisíveis que justificaram a mora do requerente no cumprimento do contrato;
SS - E em função da subsequente ilicitude da rescisão operada pela Requerida,
TT - Fossem sustados os efeitos da Rescisão, no que diz respeito ao Requerente e em função no periculum in mora que os respectivos efeitos lhe possam determinar.
UU - Não devendo assim, o pedido cautelar ter sido liminarmente indeferido.
Termina o Apelante requerendo que sejam dados por provados os factos alegados, seja revogada a sentença proferida e substituída por outra que determine o deferimento da providência cautelar requerida e, em consequência, que seja suspensa a produção de efeitos da rescisão contratual.
Foi apresentada alegação de resposta, em que a Requerida-Apelada defende que seja confirmada a decisão recorrida por não violar quaisquer preceitos legais, concluindo nos seguintes termos:
“A. O recorrido assinou os pedidos de adesão à moratória em 29/IX/2020, facto dado como provado no ponto 6 da douta sentença.
B. Tais pedidos foram encaminhados ao recorrido por e-mail, em 30/IX/2020.
C. À data de 30/IX/2020 já o recorrido havia procedido à resolução dos contratos por incumprimento, facto que comunicou ao recorrente por cartas datadas de 27/08/2020, as quais recebeu em 03/IX/2020 – cfr ponto 5 da sentença quanto aos factos dados como provados.
D. O pedido de adesão a moratória não podia ter sido efectuado em 02/IV/2020 porquanto ainda não se encontrava em vigor a moratória privada.
E. Os contratos não eram elegíveis para moratória.
F. O recorrente não tinha a sua situação regularizada junto da Autoridade Tributária (cfr declaração da AT - documento 7 junto com a oposição).
G. O recorrido não logrou demonstrar a ilicitude da resolução.
H. Muito embora a situação pandémica pudesse por si só preencher o conceito de alteração das circunstâncias (art. 437º do CC), não dispensa o recorrente de provar a perda de rendimentos.
I. O recorrente não provou, por qualquer forma a perda de rendimento, o adiamento de projectos pendentes e até mesmo o cancelamento de serviços já programados.
J. O Recorrente alegou que um dos veículos seria usado pela companheira, não referindo se aquela contribuía com rendimento para o agregado familiar.
K. Impossível era assim ao Tribunal apreciar a aplicação daquele instituto por falta de factos respeitantes ao rendimento do recorrente.
L. Não logrou o recorrente fazer prova da probabilidade séria da existência do direito, pelo que outra decisão não seria possível.”
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
***
II - FUNDAMENTAÇÃO
Como é consabido, as conclusões da alegação do recorrente delimitam o objeto do recurso, ressalvadas as questões que sejam do conhecimento oficioso do tribunal (artigos 608.º, n.º 2, parte final, ex vi 663.º, n.º 2, 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1, do CPC).
Identificamos as seguintes questões a decidir:
1.ª) Se deve ser alterada a decisão da matéria de facto, dando-se como (indiciariamente) provado o facto descrito em 8;
2.ª) Se, face aos factos alegados e indiciariamente provados, se pode (já) perspetivar a ilicitude da resolução dos contratos em apreço e, consequentemente, considerar verificados os pressupostos da providência cautelar requerida.
Factos (indiciariamente) provados
Na decisão recorrida foram considerados indiciaria e documentalmente demonstrados os seguintes factos (para melhor compreensão, alterámos a forma de identificar o Requerente e as datas, acrescentando o que consta entre parenteses retos):
1. Em 15-06-2018 a Requerida [instituição de crédito] assinou o “CONTRATO DE FINANCIAMENTO PARA AQUISIÇAO A CRÉDITO n.º ……” junto a fls. 11 a 14 (cujo teor se dá aqui por reproduzido) – relativo a um veículo ‘......1’ [constando designadamente das cláusulas particulares a identificação do ora Requerente como cliente e no ponto 3 das mesmas o seguinte:
a) Categoria do crédito Crédito automóvel – crédito com reserva de propriedade: usados
b) Duração do contrato 120 meses a contar da data de celebração do contrato
c) Data início do contrato 2018-06-15
d) Data termo do contrato 2028-04-23
e) Preço e condições de pagamento:
Preço a pronto: 32.980,00 €
Entrada inicial (se aplicável) 10.500,00 €
Nº de prestações: 120
Periodicidade: Mensal
Regime de prestações: Constantes
(…) Vencimento da 1.ª prestação: 2018-07-15 (…)
f) Montante total do crédito: 24.594,42 €
(…) Montante total imputado ao consumidor: 36.266,60 €
Mais constando da cláusula 14.ª das condições gerais atinente à “Mora e efeitos do não cumprimento do contrato”, que:
“(…) 5. Verificado o atraso no pagamento de duas rendas/prestações sucessivas, o SC informará o CLT, por qualquer meio susceptível de registo, de que possui um prazo suplementar de 15 dias consecutivos, contados da data em que segunda renda/prestação em mora deveria ter sido cumprida, para proceder ao pagamento de todas as quantias devidas em virtude da mora (encontrando-se ainda o SC obrigado a cumprir os procedimentos de regularização de situações de incumprimento que sejam exigidos por lei).
6. O SC poderá resolver o Contrato e declarar vencidas todas as obrigações ao abrigo do Contrato, exigindo o imediato pagamento dos valores em dívida e comunicando-o ao CLT em papel ou outro suporte duradouro em caso de: a) Incumprimento definitivo por parte do CLT das obrigações de pagamento, o qual se verifica quando, cumulativamente: i. Estiver em falta o pagamento de, pelo menos, duas rendas/prestações sucessivas, desde que o valor em conjunto das rendas/prestações em falta exceda 10% do montante total do crédito; ii. O cliente não proceda ao pagamento das rendas/prestações em atraso e indemnização devida, no prazo concedido para o efeito pelo SC e que não poderá ser inferior a 15 dias (…)”.]
2. Em 03-01-2020, a Requerida [instituição de crédito] assinou o “CONTRATO DE FINANCIAMENTO PARA AQUISIÇAO A CRÉDITO n.º …...” junto a fls. 19 a 22 (cujo teor se dá aqui por reproduzido) – relativo ao ‘......2’ com a matrícula …-VF-… [constando designadamente das cláusulas particulares a identificação do ora Requerente como cliente, incluindo o endereço eletrónico “AA...@gmail.com, e no ponto 3 das mesmas o seguinte:
a) Categoria do crédito Crédito automóvel – crédito com reserva de propriedade: usados
b) Duração do contrato 120 meses a contar da data de celebração do contrato
c) Data início do contrato 2020-01-03
d) Data termo do contrato 2029-11-11
e) Preço e condições de pagamento:
Preço a pronto: 31.000,00 €
Entrada inicial (se aplicável) 0,00 €
Nº de prestações: 120
Periodicidade: Mensal
Regime de prestações: Constantes
(…) Vencimento da 1.ª prestação: 2020-02-05 (…)
f) Montante total do crédito: 31.350,60 €
(…) Custo total do crédito: 42.154,80 €
Mais constando da cláusula 14.ª das condições gerais atinente à “Mora e efeitos do não cumprimento do contrato”, que:
“(…) 5. Verificado o atraso no pagamento de duas rendas/prestações sucessivas, o SC informará o CLT, por qualquer meio susceptível de registo, de que possui um prazo suplementar de 15 dias consecutivos, contados da data em que segunda renda/prestação em mora deveria ter sido cumprida, para proceder ao pagamento de todas as quantias devidas em virtude da mora (encontrando-se ainda o SC obrigado a cumprir os procedimentos de regularização de situações de incumprimento que sejam exigidos por lei).
6. O SC poderá resolver o Contrato e declarar vencidas todas as obrigações ao abrigo do Contrato, exigindo o imediato pagamento dos valores em dívida e comunicando-o ao CLT em papel ou outro suporte duradouro em caso de: a) Incumprimento definitivo por parte do CLT]
3. O Requerente não pagou qualquer prestação dos contratos supra a partir de 25-03-2020 e 05-04-2020.
4. O Requerente não recebeu as [duas] cartas da Requerida datadas de 30-07-2020 (fls. 40 a 43) [nas quais a Requerida comunicava, em cada uma delas e com referência a cada um dos contratos referidos em 1 e 2, que os mesmos se encontravam na Unidade de Pré-Contencioso a fim de ser instaurado o competente processo judicial, informando ainda que se encontrava vencido e não pago o valor de 1.516,73 € e de 1.422,16 €, respetivamente, e que dispunha do prazo de 15 dias para regularizar a dívida, caso contrário à mesma acresceriam juros de mora até integral pagamento e se procederia à resolução dos contratos, solicitando a apreensão dos veículos].
5. Em 03-09-2020 o Requerente recebeu as [duas] cartas da Requerida de 27-08-2020, juntas a fls. 44 e 45v (cujos teores se dão aqui por reproduzidos) [nas quais lhe comunicou a resolução dos contratos referidos em 1 e 2 o preenchimento de livranças com os montantes em dívida, com a data de vencimento de 11-09-2020].
6. Em 29-09-2020 o Requerente assinou os “Pedido de Adesão a Moratória (ENI)” juntos a fls. 49v-50 e 50v-51 (cujos teores se dão aqui por reproduzidos).
7. Em 08-10-2020 a Advogada da Requerida enviou ao Requerente a ‘mensagem’ junta a fls. 28 (cujo teor se dá aqui por reproduzido) [com o seguinte teor:
“Exmo. Sr. AA
Fomos incumbidos, na qualidade de mandatários do Banco Santander Consumer Portugal S.A. de responder ao seu e-mail infra, uma vez que os contratos já se encontram no n/escritório para recuperação das dívidas resultantes da resolução por incumprimento contratual.
Assim, informo V. Exa. que estando os contratos resolvidos, não se lhes é aplicável a moratória e não podem ser objecto de renegociação.
Nesta fase poderá equacionar-se acordo de pagamento em prestações, sendo que o M/constituinte irá exigir a cada um dos contratos:
a) Entrega voluntária do veículo para ser vendido e o valor abatido à dívida (podendo ainda resultar um remanescente a liquidar);
Ou
b) Pagamento de entrada inicial (valor a indicar pelo Banco).
Aguardo que me informe do que tiver por conveniente.
Com os meus melhores cumprimentos”].
Na decisão recorrida foram considerados não demonstrados os seguintes factos:
8. Em 02-04-2020 o Requerente enviou à Requerida [para o endereço “AtcClientes@santanderconsumer.pt] a ‘mensagem’ [email] junta a fls. 27 [com o seguinte teor:
Santander Consumer
Exmo Srs.
Venho por este meio pedir a adesão a moratória para os meus Créditos Automóvel.
Meu nome é AA (…) e tenho 2 créditos automóvel: ……1 …-NI-… e ……2 …-VF-…
Sou freelancer profissional na área de ….. e devido a este panorama mundial e nacional a minha actividade viu se drasticamente afectada.
Muitos projectos foram adiados, outros cancelados…, o que obviamente me esta a dificultar e impossibilitar o pagamento total dos créditos no presente.
Aguardo um parecer da vossa parte, para que em conjunto superemos esta péssima situação e que voltemos à nossa normalidade o quanto antes.
Muito obrigado
Aguardo resposta vossa”]
9. Em 25-05-2020 a Requerida enviou ao Requerente a carta junta a fls. 37 [comunicando a integração no PERSI no que se refere ao crédito referido em 1] – e, em 09-06-2020, a carta junta a fls. 38v [comunicando a extinção do PERSI no tocante ao crédito referido em 1].
1.ª questão – Da modificação da decisão da matéria de facto
No seguimento da decisão sumária que anulou a primeira decisão final, veio a ser acrescentada à decisão da matéria de facto a seguinte fundamentação: “O Tribunal julgou a matéria de facto com base na documentação junta aos autos (como referido supra) – não tendo sido julgado indiciariamente demonstrado o envio da ‘mensagem’ (ponto 8) por esta não se encontrar assinada de forma certificada ou datada, e, o envio de cartas pela R. (ponto 9), por não ter sido junto qualquer comprovativo de tal envio.”
O Requerente defende que deve ser dado como (indiciariamente) provado o facto descrito no ponto 8, face à prova documental apresentada, designadamente o documento n.º 3 junto com o Requerimento Inicial.
Apreciando.
Desde já se adianta que a decisão recorrida não se enquadra nos cânones processuais consagrados na lei (cf. art. 295.º ex vi do n.º 3 do art. 365.º, e art. 367.º, todos do CPC), pois, sem a realização de audiência final, apenas haveria que elencar os factos plenamente provados, justificando-o, sendo manifestamente descabida uma análise crítica das provas (até aí estritamente documental) para formação de convicção do juiz, como parece ter sido o caso.
Apesar de incipiente, infere-se da citada fundamentação, socorrendo-nos igualmente do que se afirmou na também escassa fundamentação de direito - onde se alude à necessidade “documento (‘assinado pelo mutuário’) previsto no artigo 5º/1 do DL 10-J/20 de 26-III (exigência mantida em vigor pelo DL 26/20 de 16-VI”) -, ter sido considerado pelo Tribunal a quo que o facto descrito no ponto 8 apenas podia ser provado por documento, ou seja, que seria necessário que dos autos constasse uma mensagem assinada de forma certificada ou datada.
A questão de facto em discussão consiste em saber se a mensagem de correio eletrónico cuja cópia foi junta como doc. 3 com o Requerimento Inicial foi (ou não) enviada numa determinada data. Note-se que não foi alegado, nem resulta desse documento, que estejamos perante uma mensagem com assinatura eletrónica.
Há muito que está prevista na lei, com designações diversas, a possibilidade de “assinatura electrónica”, “assinatura electrónica avançada”, “assinatura eletrónica qualificada”, que permite atestar a autenticidade da assinatura de um documento digital, revestindo-o de valor probatório conferido pela lei. Assim, o Decreto-Lei n.º 290-D/99, de 02-08, aprovou o “regime jurídico dos documentos electrónicos e da assinatura digital”, tendo sido alterado quatro vezes, a primeira das quais pelo Decreto-Lei n.º 62/2003, de 03-04, e a última pelo Decreto-Lei n.º 88/2009, de 09-04, vindo a ser revogado pelo Decreto-Lei n.º 12/2021, 09-02 (o qual “Assegura a execução na ordem jurídica interna do Regulamento (UE) 910/2014, relativo à identificação eletrónica e aos serviços de confiança para as transações eletrónicas no mercado interno”).
O art. 3.º do referido Decreto-Lei n.º 290-D/99 (na versão introduzida pelo art. 2.º do Decreto-Lei n.º 62/2003, em vigor a partir de 2003-04-04), estabelece, a respeito da forma e força probatória do documento eletrónico, que:
1 - O documento electrónico satisfaz o requisito legal de forma escrita quando o seu conteúdo seja susceptível de representação como declaração escrita.
2 - Quando lhe seja aposta uma assinatura electrónica qualificada certificada por uma entidade certificadora credenciada, o documento electrónico com o conteúdo referido no número anterior tem a força probatória de documento particular assinado, nos termos do artigo 376.º do Código Civil.
3 - Quando lhe seja aposta uma assinatura electrónica qualificada certificada por uma entidade certificadora credenciada, o documento electrónico cujo conteúdo não seja susceptível de representação como declaração escrita tem a força probatória prevista no artigo 368.º do Código Civil e no artigo 167.º do Código de Processo Penal.
4 - O disposto nos números anteriores não obsta à utilização de outro meio de comprovação da autoria e integridade de documentos electrónicos, incluindo outras modalidades de assinatura electrónica, desde que tal meio seja adoptado pelas partes ao abrigo de válida convenção sobre prova ou seja aceite pela pessoa a quem for oposto o documento.
5 - Sem prejuízo do disposto no número anterior, o valor probatório dos documentos electrónicos aos quais não seja aposta uma assinatura electrónica qualificada certificada por entidade certificadora credenciada é apreciado nos termos gerais de direito.”
Por sua vez, o art. 6.º do mesmo diploma legal (igualmente na redação do DL n.º 62/2003), atinente à comunicação de documentos eletrónicos, estatui, na parte que ora importa, que:
“1 - O documento electrónico comunicado por um meio de telecomunicações considera-se enviado e recebido pelo destinatário se for transmitido para o endereço electrónico definido por acordo das partes e neste for recebido.
2 - São oponíveis entre as partes e a terceiros a data e a hora da criação, da expedição ou da recepção de um documento electrónico que contenha uma validação cronológica emitida por uma entidade certificadora.
3 - A comunicação do documento electrónico, ao qual seja aposta assinatura electrónica qualificada, por meio de telecomunicações que assegure a efectiva recepção equivale à remessa por via postal registada e, se a recepção for comprovada por mensagem de confirmação dirigida ao remetente pelo destinatário que revista idêntica forma, equivale à remessa por via postal registada com aviso de recepção.
4 - Os dados e documentos comunicados por meio de telecomunicações consideram-se em poder do remetente até à recepção pelo destinatário. (…)”
Portanto, a lei conferia (e confere face ao novo regime legal) especial força probatória e estabelece presunções em matéria de comunicação de documentos eletrónicos, mas, salvo nos casos especialmente previstos na lei (como é o caso da prática de atos processuais), não obriga a que as comunicações, por via eletrónica (mormente correio eletrónico), de documentos/declarações/mensagens seja feita com recurso a serviços de entidades certificadoras. O documento eletrónico (incluindo, pois, a própria declaração ou mensagem constante do email) que seja comunicado por um meio de comunicação eletrónica considera-se enviado e recebido pelo destinatário se for transmitido para o endereço eletrónico definido por acordo das partes e neste for recebido, não exigindo a lei para prova desse facto a aposição de assinatura eletrónica qualificada, antes admitindo a utilização de outro meio de comprovação da autoria e integridade de documentos eletrónicos.
Na decisão recorrida é invocado o disposto no art. 5.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 10-J/20, de 26-03 (diploma que estabelece medidas excecionais de proteção dos créditos das famílias, empresas, instituições particulares de solidariedade social e demais entidades da economia social, bem como um regime especial de garantias pessoais do Estado, no âmbito da pandemia da doença COVID-19), nos termos do qual “as entidades beneficiárias remetem, por meio físico ou por meio eletrónico, à instituição mutuante uma declaração de adesão à aplicação da moratória, no caso das pessoas singulares e dos empresários em nome individual, assinada pelo mutuário e, no caso das empresas e das instituições particulares de solidariedade social, bem como das associações sem fins lucrativos e demais entidades da economia social, assinada pelos seus representantes legais.”
Mas há que distinguir a “declaração de adesão” (propriamente dita) do meio pelo qual é enviada, importando ainda perceber quais as possíveis consequências de uma declaração que não observe a exigência de forma ali prevista.
Em princípio, uma declaração de adesão que não conste de escrito assinado pelo mutuário (sabendo-se que o documento eletrónico pode satisfazer o requisito legal de forma escrita e que uma assinatura poderá ser manual ou digital) será nula, sendo a nulidade de conhecimento oficioso – cf. artigos 220.º, 286.º e 364.º do CC. Porém, ainda que ao documento escrito do qual consta a declaração falte um dos requisitos exigidos na lei (por exemplo, a assinatura), sendo assim inválida tal declaração, daí não resulta a irrelevância probatória do documento - o qual pode servir precisamente para prova da existência da declaração nula -, estando sujeito à livre apreciação pelo tribunal (cf. art. 366.º do CC). Portanto, o meio de envio da declaração não se confunde com a exigência legal de forma da mesma, cabendo à parte interessada em prevalecer-se daquele facto o ónus da respetiva prova, não impondo a lei, por via de regra, que, quando remetida por via eletrónica, o seja com recurso a serviços qualificados.
No caso da declaração prevista no citado art. 5.º, independentemente da sua validade, poderá ser feita prova do envio da mesma, seja o envio por meio físico (v.g. a via postal), seja o envio por meio eletrónico, podendo este último ser o correio eletrónico “simples” (isto é, sem recurso a serviços de confiança qualificados).
Embora na mensagem em apreço nos autos não conste nenhuma referência legislativa, não custa admitir que com a mesma o Requerente pretendeu dar a conhecer a sua vontade de beneficiar da moratória legal (prevista no Decreto-Lei n.º 10-J/2020). Porém, não se mostra correta a interpretação e aplicação daquele preceito legal nos termos em que foi feita na decisão recorrida, ao considerar não demonstrado (por insuscetível de vir a ser dado como indiciariamente provado) o facto alegado no Requerimento Inicial e vertido no ponto 8 - atinente ao envio pelo Requerente à Requerida, em 02-04-2020, da mensagem de correio eletrónico cuja cópia juntou (como doc. 3) - apenas por esta não se encontrar assinada de forma certificada ou datada”.
Por outro lado, não se pode olvidar que a pretensão do Requerente nos presentes autos consiste, tão só, em ver suspenso um dos efeitos da resolução dos dois contratos de mútuo que celebrou com a Requerida com garantia da reserva de propriedade: a apreensão dos veículos cuja aquisição foi financiada - cf. art. 15.º do Decreto-Lei n.º 54/75, de 12-02, republicado no anexo I do Decreto-Lei n.º 111/2019, de 16-08 (que “Simplifica e atualiza os procedimentos administrativos de registo automóvel”); tendo, para tanto, invocado a ilicitude da resolução operada pela Requerida, cabendo ao Tribunal, de harmonia com o disposto no art. 5.º, n.º 3, do CPC, fazer o enquadramento jurídico dos factos alegados, não apenas à luz do referido Decreto-Lei n.º 10-J/2020, mas também do princípio geral da boa fé consagrado no art. 762.º, n.º 1, do CC, e do regime da alteração das circunstâncias de que o Requerente, ainda que subsidiariamente, se quis prevalecer. O que significa que o facto vertido em 8, mesmo se não puder valer para efeitos do disposto no citado art. 5.º do Decreto-Lei n.º 10-J/2020, poderá assumir relevância substantiva de outro prisma jurídico.
Ademais, haverá que equacionar a eventual condenação das partes como litigantes de má fé se tiverem alterado a verdade dos factos no tocante ao ponto em discussão, matéria que é de conhecimento oficioso (cf. art. 542.º do CC).
Portanto, no patamar de análise em que nos situamos, perante a alegação de facto feita pelo Requerente (que não corresponde a matéria substantivamente irrelevante), não cabe decidir se a declaração consubstanciada na mensagem em apreço podia ou não valer enquanto declaração de adesão à moratória (muito menos se estavam verificados os requisitos legais da aplicação da moratória e quais as concretas medidas de apoio); o que se discute é se foi enviada, por correio eletrónico, na data alegada, a mensagem cujo “print” se mostra efetivamente junto aos autos, não exigindo a lei que tal facto seja provado por um documento escrito nos termos indicados na decisão recorrida.
Nesta medida, tão pouco se pode desconsiderar a posição da Requerida, no seu articulado de Oposição, ao confessar (cf. art. 293.º, n.º 2, 365.º, n.º 3, 465.º, n.º 2, e 574.º, 2, todos do CPC) a receção do referido email, limitando-se a impugnar expressamente a data em que foi enviado e a alegar que apenas o rececionou em 30-09-2020, juntamente com os diversos documentos que juntou, tudo conforme artigos 2.º, 19.º a 21.º da Oposição (em que confessa o facto atinente ao envio, por email, do pedido de adesão à moratória, salvo quanto à menção “no dia 02/04/2020”).
Aliás, até seria contraditório que estivesse provado, conforme consta do ponto 7, o envio pela Requerida de mensagem de resposta a um email que não havia, afinal, sido enviado, pelo que se mostra indispensável apurar a sequência lógica dos acontecimentos, designadamente se a mensagem aí referida surge como resposta ao email referido em 8 e se foi com este que foram enviados os documentos referidos, incluindo o referido no ponto 6.
Face à posição assumida pelas partes, mostra-se mesmo deficiente, contraditório e insuficiente ter já como provado o que consta do ponto 6. Basta ver que a Requerida alegou apenas que “Tais pedidos foram assinados com data de 29/09/2020 (o que nem é rigorosamente o mesmo do que alegar que foram assinados nessa data) e recebidos pelo requerido por email a 30/09/2020, mail esse junto aos autos como doc. 3 da p.i., que ora se junta completo como doc. 7”, sem que, no entanto, tenha juntado qualquer email, limitando-a a juntar documentos que podem (ou não) ser anexos de um email, cuja data de envio, repete-se, o Requerente diz ser 02-04-2020. Sendo certo que, mais importante do que saber quando foram ou não assinados os documentos/declarações juntos pela Requerida, é saber quando foram rececionados, designadamente se o foram no dia 30-09-2020.
Portanto, salvo quanto à data, encontra-se plenamente provado o facto vertido no ponto 8. Já no que concerne à data de envio e receção da aludida mensagem, não tem razão o Requerente, pois nenhum dos documentos juntos aos autos, em particular o referido doc. 3 que foi oferecido com o Requerimento Inicial, faz prova plena de tal facto. De assinalar que dos autos consta uma declaração de adesão assinada pelo Requerente (doc. 7 junto com a Oposição), datada de 29-09-2020, alegando a Requerida que a mesma foi enviada por email cuja cópia é o que o Requerente alega ter sido enviado em 02-04-2020. A Requerida acrescentou que juntava o email completo, mas também não o fez, limitando-se a juntar, além daquela declaração, as certidões da Segurança Social e da Autoridade Tributária, não demonstrando que tais declaração e documentos sejam anexos do aludido email. Certo é que nenhuma das partes apresentou ainda documento do qual conste a data de envio do referido email. Não se percebe que ainda não o tenham feito, tanto mais que se trata de um documento ao qual terão facilmente acesso.
Aliás, de igual modo continua a ser facto controvertido que idêntica comunicação tenha sida remetida por via postal, como alega o Requerente, sem, no entanto, o ter comprovado com a junção de talão do registo postal ou a/r.
Tudo ponderado, impõe-se concluir, ao abrigo do disposto no art. 662.º, n.º 2, als. b) e c), e 367.º, n.º 1, ambos do CPC, pela anulação da decisão recorrida, determinando-se a notificação das partes para juntarem cópia do referido email da qual conste a data do respetivo envio, bem como a produção de prova testemunhal oportunamente requerida, em ordem a apurar a data do envio daquele email e se idêntica mensagem foi enviada por correio postal não registado na data indicada pelo Requerente (02-04-2020).
Face à procedência parcial das conclusões da alegação de recurso no tocante à impugnação da decisão da matéria de facto, importa prosseguir com a análise da 2.ª questão suscitada, de molde a apreciar da necessidade de produção das provas requeridas ou que devam ser oficiosamente determinadas relativamente ao conjunto dos factos alegados pelas partes.
2.ª questão – Dos pressupostos da providência - (i)licitude da resolução dos contratos
Na decisão recorrida consta a seguinte fundamentação de direito:
«Estabelecendo o nº 1 do artigo 362º do CPC que "Sempre que alguém mostre fundado receio de que outrem cause lesão grave e dificilmente reparável ao seu direito, pode requerer a providência conservatória ou antecipatória concretamente adequada a assegurar a efectividade do direito ameaçado.", acrescenta o nº 1 do artigo 368º do mesmo CPC que "A providência é decretada desde que haja probabilidade séria da existência do direito e se mostre suficientemente fundado o receio da sua lesão."
A primeira questão a decidir é a de saber se a resolução dos contratos foi, ou não, lícita.
Não foi junto aos autos o documento (‘assinado pelo mutuário’) previsto no artigo 5º/1 do DL 10-J/20 de 26-III (exigência mantida em vigor pelo DL 26/20 de 16-VI) – motivo por que o ora A. (alegado empresário em nome individual) não poderia beneficiar da moratória aí prevista.
Não se verifica, assim, o primeiro requisito de que depende o invocado direito do A. à manutenção dos contratos em vigor.
Quanto à invocada “alteração das circunstâncias”, e não pretendendo o A. a resolução dos contratos, poderia (em abstracto) haver lugar à modificação dos contratos “segundo juízos de equidade” – mas o A. não indica qualquer facto concreto (relativo aos seus rendimentos – artigos 44º a 50º) que permitisse ao Tribunal operar tal modificação.
Assim, não se mostra indiciada a ilicitude das resoluções – devendo a presente providência ser julgada improcedente.»
O Requerente discorda deste entendimento, pugnando pela ilicitude da resolução contratual, atendendo à data em que alegadamente requereu o acesso à moratória e às circunstâncias que então se verificavam.
No tocante aos requisitos das providências cautelares não especificadas, importa atentar no que preceituam os n.ºs 1 a 3 do art. 362.º do CPC:
“1. Sempre que alguém mostre fundado receio de que outrem cause lesão grave e dificilmente reparável ao seu direito, pode requerer a providência conservatória ou antecipatória concretamente adequada a assegurar a efetividade do direito ameaçado.
2. O interesse do requerente pode fundar-se num direito já existente ou em direito emergente de decisão a proferir em ação constitutiva, já proposta ou a propor.
3. Não são aplicáveis as providências referidas no nº 1 quando se pretenda acautelar o risco de lesão especialmente prevenido por alguma das providências tipificadas na secção seguinte.”
De referir ainda o disposto no art. 365.º, n.º 1, do CPC: “Com a petição, o requerente oferece prova sumária do direito ameaçado e justifica o receio da lesão”. E também no art. 368.º, n.º 1, do mesmo Código: “A providência é decretada desde que haja probabilidade séria da existência do direito e se mostre suficientemente fundado o receio da sua lesão”.
Assim, o decretamento de uma providência cautelar não especificada depende da concorrência dos seguintes requisitos:
a) que muito provavelmente exista o direito tido por ameaçado - objeto de ação declarativa/executiva (que o requerente poderá ser dispensado de intentar, no caso de inversão do contencioso), ou que venha a emergir de decisão a proferir em ação constitutiva, já proposta ou a propor; é a aparência ou verosimilhança do direito do requerente carecido de tutela - fumus boni iuris;
b) que haja fundado receio de que outrem, antes de proferida decisão de mérito - ou porque a ação não está sequer proposta ou porque ainda se encontra pendente -, cause lesão grave e dificilmente reparável a tal direito; é o perigo de ocorrência de lesão grave e dificilmente reparável se acaso a providência não for decretada - periculum in mora;
c) que ao caso não convenha nenhuma das providências tipificadas nos arts. 393.º a 427.º do CPC;
d) que a providência requerida seja adequada a remover o periculum in mora concretamente verificado e a assegurar a efetividade do direito ameaçado;
e) que o prejuízo resultante da providência não exceda o dano que com ela se quis evitar.
Em síntese, podemos apontar como pressupostos gerais para a decretação de uma providência cautelar não especificada: o fumus boni iuris, o periculum in mora, a adequação e a proporcionalidade.
De referir, no tocante à tramitação do procedimento cautelar comum, que comporta apenas dois articulados, a saber: o requerimento inicial e a oposição; findo o prazo da oposição, quando o requerido haja sido ouvido, procede-se, quando necessário, à produção das provas requeridas ou oficiosamente determinadas pelo juiz (cf. arts. 365.º a 367.º do CPC); sem esquecer que, conforme expressamente previsto no art. 3.º, n.ºs 3 e 4, do CPC o juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem e que às exceções deduzidas no último articulado admissível pode a parte contrária responder na audiência prévia ou, não havendo lugar a ela, no início da audiência final.
Face aos factos alegados pelas partes e às posições assumidas nos articulados, podemos considerar que foram celebrados entre ambas dois contratos de concessão de crédito (sendo insuficiente considerar provado que foram assinados pela Requerida os documentos que os consubstanciam sem menção a factos essenciais – cf. pontos 1 e 2). Não estando provado que os tenha outorgado na qualidade de empresário em nome individual ou sequer o uso dado às duas viaturas cuja aquisição foi financiada, ainda não dispomos de elementos que nos permitam, com rigor e segurança, qualificá-los juridicamente, mormente afirmar que se tratam de contratos de crédito ao consumo, regulados pelo Decreto-Lei n.º 133/2009, de 02-06.
Tão pouco sabemos exatamente, com referência a cada um desses contratos, quando é que o Requerente terá incorrido em mora, sendo obscuro o que a este respeito foi dado como provado no ponto 3, sobretudo tendo em conta o alegado pela Requerida e as datas de vencimento das 1.ªs prestações nos dois contratos.
Alega o Requerente que não se encontrava em mora à data do início da pandemia, incluindo aquando da entrada em vigor do referido Decreto-Lei n.º 10-J/2020, de 26-03, que veio estabelecer medidas excecionais de proteção dos créditos das famílias, empresas, instituições particulares de solidariedade social e demais entidades da economia social, bem como um regime especial de garantias pessoais do Estado, no âmbito da pandemia da doença COVID-19.
Este diploma (que entrou em vigor no dia seguinte ao da sua publicação – cf. art. 14.º) foi objeto de sucessivas alterações legislativas, tendo designadamente, cingindo-nos ao período temporal considerado pelas partes, sido:
- Aditados os arts. 6.º-A e 13.º-A pela Lei n.º 8/2020, de 10-04;
- Alterados os arts. 2.º, 3.º, 4.º, 5.º, 6.º-A, 10.º, 11.º, 12.º, 13.º-A e 14.º, aditado o art. 5.º-A e procedida a reordenação sistemática nos seguintes termos [o capítulo v passou a denominar-se «Disposições interpretativas e vigência», sendo composto pelos arts. 13.º-A e 14.º], pelo Decreto-Lei n.º 26/2020, de 16-06;
- Alterados os arts. 2.º, 3.º, 5.º e 14.º (este último procedendo à prorrogação da vigência do presente diploma até 31-03-2021) pela Lei n.º 27-A/2020, de 24-07;
- Alterados, com efeitos a 30-09-2020, os arts. 4.º, 5.º (o previsto no n.º 5 deste art. produz efeitos a partir de 30-09-2020), 5.º-A e 14.º e aditados o art. 5.º-B e um anexo ao presente diploma pelo Decreto-Lei n.º 78-A/2020, de 29-09.
Quanto às entidades beneficiárias do regime estabelecido pelo aludido Decreto-Lei, no que ora importa, determina o n.º 2 do seu art. 2.º (tendo em conta a redação primitiva, face ao alegado pelo Requerente) que:
“2 - Beneficiam igualmente das medidas previstas no presente decreto-lei:
b) Os empresários em nome individual, (…) que, à data de publicação do presente decreto-lei, preencham as condições referidas nas alíneas c) e d) do n.º 1 e tenham domicílio ou sede em Portugal.”
Sendo tais condições as seguintes:
“c) Não estejam, a 18 de março de 2020, em mora ou incumprimento de prestações pecuniárias há mais de 90 dias junto das instituições, ou estando não cumpram o critério de materialidade previsto no Aviso do Banco de Portugal n.º 2/2019 e no Regulamento (UE) 2018/1845 do Banco Central Europeu, de 21 de novembro de 2018, e não se encontrem em situação de insolvência, ou suspensão ou cessão de pagamentos, ou naquela data estejam já em execução por qualquer uma das instituições;
d) Tenham a situação regularizada junto da Autoridade Tributária e Aduaneira e da Segurança Social, na aceção, respetivamente, do Código de Procedimento e de Processo Tributário e do Código dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencial de Segurança Social, não relevando até ao dia 30 de abril de 2020, para este efeito, as dívidas constituídas no mês de março de 2020.”
Nos termos do art. 3.º, n.º 1 do referido Decreto-Lei n.º 10-J/2020 (considerando, face ao alegado pelo Requerente, a sua redação primitiva), estão abrangidas as operações de crédito concedidas por instituições de crédito, sociedades financeiras de crédito, sociedades de investimento, sociedades de locação financeira, sociedades de factoring e sociedades de garantia mútua, bem como por sucursais de instituições de crédito e de instituições financeiras a operar em Portugal, adiante designadas por «instituições», às entidades beneficiárias do presente decreto-lei. Note-se, todavia, que o art. 2.º do Decreto-Lei n.º 26/2020, veio alterar a redação deste preceito, acrescentando, além do mais, a referência expressa ao “crédito aos consumidores, nos termos do Decreto-Lei n.º 133/2009, de 2 junho, na sua redação atual, para educação, incluindo para formação académica e profissional”.
De referir ainda que o Decreto-Lei n.º 10-J/2020, no art. 4.º (também na primitiva redação) na parte que ora importa, estabelece que:
“1 - As entidades beneficiárias do presente decreto-lei beneficiam das seguintes medidas de apoio relativamente às suas exposições creditícias contratadas junto das instituições:
(…) c) Suspensão, relativamente a créditos com reembolso parcelar de capital ou com vencimento parcelar de outras prestações pecuniárias, durante o período em que vigorar a presente medida, do pagamento do capital, das rendas e dos juros com vencimento previsto até ao término desse período, sendo o plano contratual de pagamento das parcelas de capital, rendas, juros, comissões e outros encargos estendido automaticamente por um período idêntico ao da suspensão, de forma a garantir que não haja outros encargos para além dos que possam decorrer da variabilidade da taxa de juro de referência subjacente ao contrato, sendo igualmente prolongados todos os elementos associados aos contratos abrangidos pela medida, incluindo garantias.
2 - As entidades beneficiárias das medidas previstas nas alíneas b) e c) do número anterior podem, em qualquer momento, solicitar que apenas os reembolsos de capital, ou parte deste, sejam suspensos.”
Por sua vez, o acima referido art. 5.º deste diploma legal (na sua redação inicial) dispõe que:
“1 - Para acederem às medidas previstas no artigo anterior, as entidades beneficiárias remetem, por meio físico ou por meio eletrónico, à instituição mutuante uma declaração de adesão à aplicação da moratória, no caso das pessoas singulares e dos empresários em nome individual, assinada pelo mutuário e, no caso das empresas e das instituições particulares de solidariedade social, bem como das associações sem fins lucrativos e demais entidades da economia social, assinada pelos seus representantes legais.
2 - A declaração é acompanhada da documentação comprovativa da regularidade da respetiva situação tributária e contributiva, nos termos da alínea d) do n.º 1 do artigo 2.º
3 - As instituições aplicam as medidas de proteção previstas no artigo anterior no prazo máximo de cinco dias úteis após a receção da declaração e dos documentos referidos nos números anteriores, com efeitos à data da entrega da declaração, salvo se a entidade beneficiária não preencher as condições estabelecidas no artigo 2.º
4 - Caso verifiquem que a entidade beneficiária não preenche as condições estabelecidas no artigo 2.º para poder beneficiar das medidas previstas no artigo anterior, as instituições mutuantes devem informá-lo desse facto no prazo máximo de três dias úteis, mediante o envio de comunicação através do mesmo meio que foi utilizado pela entidade beneficiária para remeter a declaração a que se refere o n.º 1 do presente artigo.”
Antevendo a necessidade de regulamentação destas matérias, estabelece ainda o artigo 10.º, na sua redação inicial, que:
“1 - O membro do Governo responsável pela área das finanças define por portaria as demais condições gerais aplicáveis a qualquer das medidas excecionais e temporárias de resposta à pandemia COVID-19 previstas no presente decreto-lei.
2 - O Banco de Portugal densifica, por regulamento, os deveres de informação das instituições relativos às operações abrangidas pelas medidas excecionais e temporárias de resposta à pandemia COVID-19 previstas no presente decreto-lei.”
Finalmente, nesta breve alusão aos mais pertinentes artigos do Decreto-Lei n.º 10-J/2020, importa ter presente que foi aditado, pelo art. 2.º da aludida Lei n.º 8/2020 (em vigor a partir de 2020-04-11), o art. 6.º-A, consagrando expressamente o dever de prestação de informação por partes das instituições de crédito. Seguindo-se o Aviso do Banco de Portugal n.º 2/2020, publicado no Diário da República 2.ª Série, n.º 89, Parte E, de 07-05-2020, que regulamenta os deveres de informação aos clientes a observar pelas instituições no âmbito das operações de crédito abrangidas pelas medidas excecionais e temporárias de resposta à pandemia COVID-19 previstas no Decreto-Lei n.º 10-J/2020, de 26 de março (“moratória pública”), bem como no âmbito de moratórias de iniciativa privada.
Ora, não só pelo seu conteúdo, mas também em virtude da sucessão de normas legais e da falta de regulamentação adequada, mostra-se inevitável a controvérsia gerada pela interpretação e aplicação destas normas. As empresas e os particulares, confrontados que foram sendo, como é facto notório, com a divulgação pelos órgãos de comunicação social da existência de moratórias, nem sempre dispunham naturalmente de informação segura, desde já nos parecendo de muito duvidosa constitucionalidade, por violação do princípio da proporcionalidade, ínsito no princípio do Estado de direito democrático consagrado no art. 2.º da CRP, uma interpretação normativa do citado art. 5.º que fulmine com o indeferimento um pedido não devidamente instruído e acompanhado de toda a documentação, mesmo quando os mutuários não tenham sido previamente alertados pelas instituições mutuantes para todas as exigências legais e as possíveis consequências da sua inobservância (preocupação espelhada na redação introduzida pelo art. 2.º do referido Decreto-Lei n.º 26/2020, em vigor a partir de 17-06-2020).  Nesta linha de pensamento, embora em situações diferentes, veja-se o juízo de inconstitucionalidade do acórdão do TC n.º 277/2016, de 14-06, secundado no Acórdão n.º 440/2019.
Ou seja, perante uma pretensão que possa ter sido apresentada antes do início da vigência do regime das moratórias na parte aplicável (mas quando até já havia sido publicada a lei que o instituiu) e não devidamente instruída (como a Requerida diz ter acontecido), estamos em crer que haverá de ser dada pela instituição mutuante informação desse facto, no prazo máximo de 3 dias, a fim de possibilitar que seja complementada, pelo menos dentro do prazo máximo de comunicação de adesão à moratória.
Por tudo isto, não podemos enjeitar a hipótese de, a provar-se o envio pelo Requerente da mensagem de correio eletrónico, incumbir à Requerida dar-lhe resposta célere, alertando para a necessidade de observar as exigências legais que considerasse estarem em falta, sob pena de indeferimento da pretensão. Ao invés de avançar sem mais para o envio de cartas com interpelação admonitória, revelando-se, assim, de crucial importância, apurar se o Requerente vinha (ou não) pagando tempestivamente as prestações contratuais, apenas deixando de o fazer a partir das prestações relativas aos meses de abril e seguintes, bem como se as cartas referidas no ponto 4 foram enviadas.
A estarmos perante contratos de crédito ao consumo [que, repete-se, vieram a ser expressamente abrangidos pela previsão da alínea b) do n.º 2 do art. 3.º do Decreto-Lei n.º 10-J/2020, na redação introduzida pelo art. 2.º do Decreto-Lei n.º 26/2020, em vigor a partir de 17-06-2020], a licitude da sua resolução não se basta com uma qualquer situação de mora, sendo certo, que, além do contratualmente estipulado, haverá de se ter em atenção o disposto no art. 20.º, n.º 1, al. b), do referido Decreto-Lei (“Ter o credor, sem sucesso, concedido ao consumidor um prazo suplementar mínimo de 15 dias para proceder ao pagamento das prestações em atraso, acrescidas da eventual indemnização devida, com a expressa advertência dos efeitos da perda do benefício do prazo ou da resolução do contrato”).
Sempre se dirá ainda que, a estarmos perante cartas que tenham sido remetidas via correio simples (não registado), facto que poderá vir a ser esclarecido, incluindo mediante produção da prova testemunhal oferecida, importará decidir sobre a eficácia dessa comunicação, até porque perante o desconhecimento do motivo da sua falta de receção, poderá igualmente concluir-se pela ilicitude da resolução dos contratos, por não ter sido precedida da indispensável interpelação admonitória.
Não se pode, pois, ignorar o que foi alegado pela Requerida a este respeito, no sentido do envio de cartas com interpelação admonitória, sendo certo que, face ao preceituado no art. 224.º, n.º 2, do CC, importará apurar se teve ou não lugar (e de que forma) o alegado envio das ditas cartas. Aliás, sem saber isso, não nos parece possível afirmar que não foram recebidas, sendo assim obscuro o que a esse respeito se decidiu no ponto 4. Portanto, há que apurar, relativamente a cada um dos contratos, não apenas quando deixaram de ser pagas as prestações contratuais (ponto 3), mas também qual o procedimento subsequente adotado pela Requerida, notificando-se a mesma para juntar os comprovativos do registo postal das cartas referidas no ponto 4, o que se irá determinar ao abrigo dos artigos 367.º, n.º 1, e 662.º, n.º 2, alíneas b) e c), do CPC.
Por outro lado, como já se acima se referiu, a pretensão do Requerente haverá de ser apreciada não apenas à luz dos mecanismos estabelecidos pelo Decreto-Lei n.º 10-J/2020, mas também do regime geral e especial dos contratos em apreço. Com efeito, as moratórias não vieram impedir o funcionamento, nem que seja como ultima ratio, do instituto da alteração das circunstâncias consagrado nos artigos 437.º e 438.º do CC, concatenado com as regras dos diferentes tipos de contratos, numa apreciação que não pode deixar de ser casuística. Neste sentido já se pronunciou o tribunal da Relação de Lisboa, designadamente no acórdão de 14-09-2021, no processo n.º 5769/21.6T8LSB.L1-A-7, conforme se alcança das seguintes passagens do respetivo sumário.
“III – A situação pandémica que se vive a nível mundial desde Março de 2020 constitui uma alteração das condições normais da vivência da população mundial, com manifestos reflexos na vida diária dos cidadãos e das empresas, constituindo, em termos objectivos, uma alteração anormal das circunstâncias em que as partes fundaram a decisão de contratar (as circunstâncias objectivas comuns a ambas as partes respeitam, genericamente, às condições de mercado - oferta e procura - vividas antes da pandemia).
IV – Apesar da existência de uma alteração anormal das circunstâncias em que as partes fundaram a decisão de contratar, tal não deixa de implicar uma avaliação casuística da situação em análise, com aferição do preenchimento dos demais pressupostos do funcionamento do artigo 437º do Código Civil, pois que apenas nesse circunstancialismo a parte lesada terá direito à resolução ou à modificação do contrato segundo juízos de equidade, desde que não se encontre em mora no momento em que a alteração das circunstâncias ocorreu.”
Também nos parece ser essa a posição adotada pela doutrina, em que avultam os Professores Miguel Pestana de Vasconcelos e Mariana Fontes de Vasconcelos, conforme intervenções no Webinar subordinado ao tema “Covid-19 e contratos: alteração das circunstâncias e regime da moratória nos contratos bancários”, disponível em https://www.direitoemdia.pt/magazine/show/81
É bem certo que, em regra, uma modificação do contrato pela alteração das circunstâncias tem de ser decidida pelo Tribunal, mas isso não significa que não possa, perante a urgência de uma situação e a inviabilidade do recurso em tempo útil aos Tribunais (cujo normal funcionamento também ficou afetado, mormente com a conhecida suspensão dos prazos processuais), vir a ser reconhecida a licitude de uma modificação (unilateral) do contrato comunicada por uma das partes, por exemplo uma “moratória de facto”, no contexto da inadequada falta de resposta por parte daquela instituição (até porque o litígio também não se podia resolver com a mera intervenção do Banco de Portugal como entidade supervisora – cf. art. 8.º do DL n.º 10-J/2020).
Todavia, entendeu o Tribunal a quo, isto, note-se, sem prévio convite ao aperfeiçoamento do Requerimento Inicial (o qual, nessa sua perspetiva, sempre se imporia – cf. artigos 6.º e 590.º do CPC), que o Requerente não alegou factos concretos relativos aos seus rendimentos para que o Tribunal pudesse operar uma modificação fundada nesse instituto, considerando, como se percebe pelo anterior despacho, que a mesma passaria por uma redução do valor das prestações devidas.
Porém, como ora defende o Apelante, extravazaria o objeto do litígio determinar uma qualquer modificação dos contratos em apreço. Importaria, sim, apurar, além das datas em que se iniciou a mora relativamente a cada um dos referidos contratos, a alegada quebra de rendimentos e sua causa, factos relevantes para que se pudesse vir a apreciar se, no quadro do instituto da alteração das circunstâncias, poderia vir a ser reconhecido, na ação principal, o direito que o Requerente se arroga à modificação dos contratos de crédito, segundo juízos de equidade (sem que tal afete gravemente os princípios da boa fé e seja de considerar coberta pelos riscos próprios do contrato), independentemente da moratória prevista no Decreto-Lei n.º 10-J/2020, de 27-03, em termos tais que não legitimassem a resolução dos contratos pela Requerida.
Sendo facto notório que a partir de meados de março de 2020 se vivenciou uma situação de pandemia mundial de Covid-19, com medidas de confinamento que afetaram a economia de diversos sectores do País, a questão do início da mora do Apelante é de crucial relevância, havendo que perceber se a Requerida, perante a situação vivenciada e o que foi pedido pelo Requerente (mormente quando o fez), só então sendo possível fazer, um juízo de prognose,  sobre a (i)licitude da resolução dos contratos.
Em função de tudo isto, e sendo evidente que ao caso não se mostra adequada nenhuma das providências tipificadas nos arts. 393.º a 427.º do CPC, não nos parece possível concluir, sem necessidade de produção da restante prova oferecida, não estarem verificados os demais pressupostos da providência requerida designadamente que: (i) muito provavelmente exista o direito (à moratória ou à alteração contratual) ou, tão só, à manutenção dos contratos, e, assim sendo, os direitos de propriedade e posse dos veículos adquiridos mediante os respetivos financiamentos, claramente postos em causa pela descrita atuação da Requerida (a aparência ou verosimilhança dos direitos do Requerente carecido de tutela - fumus boni iuris); (ii) o fundado receio de que, antes de proferida decisão de mérito na ação principal a intentar, seja causada lesão grave e dificilmente reparável a tais direitos - o perigo de ocorrência de lesão grave e dificilmente reparável se acaso a providência não for decretada (periculum in mora); (iii) a providência requerida seja adequada a remover o periculum in mora concretamente verificado e a assegurar a efetividade do direito ameaçado; (iv) o prejuízo (para a Requerida) resultante da providência não exceda o dano (para o Requerente) que com ela se quis evitar.
Em suma, ao abrigo do disposto nos artigos 367.º, n.º 1, e 662.º, n.º 2, alíneas b) e c), ambos do CPC, ante a manifesta insuficiência, obscuridade e contradição da decisão recorrida sobre os assinalados pontos de facto, impõe-se anular, de novo, aquela decisão, de molde a possibilitar as junções documentais acima referidas, bem como a produção da prova testemunhal oferecida pelas partes, com a realização da audiência final. Após, na decisão final a proferir, deverão ser devidamente elencados, como provados ou não provados, todos os factos substantivamente relevantes alegados pelas partes e os que sejam complemento ou concretização desde e resultem da instrução da causa [cf. art. 5.º, n.º 2, al. b), do CPC], designadamente os atinentes à própria celebração dos contratos de crédito em apreço, à qualidade de empresário do Requerente ao outorgar os contratos, à utilização dada aos veículos cuja aquisição terá sido financiada, ao envio pelo Requerente por via postal de pedido de acesso à moratória, ao momento em que o Requerente deixou de pagar as prestações de cada um dos contratos em apreço, ao envio pela Requerida das cartas referidas em 4 (cf. art. 15.º da Oposição) e às demais circunstâncias de facto alegadas no Requerimento Inicial.
Procedem, pois, em parte, as conclusões da alegação de recurso, o qual merece provimento parcial nos termos indicados.
Vencida a Requerida-Apelada, é responsável pelo pagamento das custas do presente recurso (artigos 527.º e 529.º, ambos do CPC).
***
III - DECISÃO
Pelo exposto, decide-se conceder parcial provimento ao recurso e, em consequência, anular a decisão recorrida e determinar o prosseguimento dos autos com:
(i) a notificação das partes para juntarem o “print” do email enviado pelo Requerente à Requerida (doc. 3 junto com o Requerimento Inicial), na qual seja visível a data do envio;
(ii) a notificação da Requerida para juntar os comprovativos do envio das duas cartas datadas de 30-07-2020 (docs. 3 e 4 da Oposição);
(iii) a realização de audiência final, a fim de ser produzida toda a prova já oferecida pelas partes e a que ainda for legalmente oportuno apresentar.
Mais se decide condenar a Requerida-Apelada no pagamento das custas do recurso.
D.N.

Lisboa, 04-11-2021
Laurinda Gemas
Arlindo Crua
António Moreira