Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1019/19.3T9FNC.L1-9
Relator: MADALENA CALDEIRA
Descritores: ERRO DE JULGAMENTO
IMPUGNAÇÃO PARCIAL DA MATÉRIA DE FACTO
INUTILIDADE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 03/09/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: ISendo a pretensão recursiva da Assistente a condenação de arguidos pela prática de crime(s) de dano, p. e p. pelo art.º 212º, n.º 1, do CP (pelo qual foram absolvidos em sede de sentença), é inútil o conhecimento do invocado erro de julgamento referente à materialidade objetiva dada como não provada, e que daria suporte a uma condenação, quando, em simultâneo, a Recorrente não ataca a materialidade também dada como não provada referente ao dolo do crime de dano.


IITal facto torna também inútil o conhecimento de questões de direito, designadamente da inexistência de estado de necessidade desculpante.


Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordaram, em conferência, os Juízes Desembargadores da 9ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa:


I.–RELATÓRIO


Por sentença datada de 29.06.2022 os arguidos A e B foram absolvidos da prática, em coautoria material, de um crime de dano simples, p. e p. pelos artigos 26º e 212º, n.º 1, do CP, pelo qual haviam sido pronunciados.
Foram igualmente absolvidos do pedido cível deduzido pela Assistente/Demandante Cível C.
*

Recurso da decisão

Inconformada, a Assistente interpôs recurso da sentença absolutória, tendo extraído da sua motivação as seguintes CONCLUSÕES (que transcrevemos):
1.ª–O presente recurso versa sobre a totalidade da decisão proferida pelo Tribunal de primeira instância, na medida em que o mesmo, salvo melhor opinião e sempre com o devido respeito, mal andou na apreciação da prova produzida em sede de audiência de discussão e julgamento, com a consequente seleção da matéria de facto, bem como incorreu em erro de interpretação e aplicação da norma prevista no artigo 35.º, do Código Penal;
2.ª–Com efeito, a matéria de facto dada como provada nos pontos 1. e 2., da matéria de facto da contestação deveria, salvo melhor opinião, ter sido julgada não provada;
Senão vejamos,
3.ª–O tribunal entendeu dar como provado que a assistente havia mandado instalar uma Câmara oculta apontada para a porta da arguida permitindo a visualização de imagens interiores da habitação e pessoas que é frequentavam comentando tais imagens com terceiros;
4.ª–Tais factos resultam, apenas e tão-só, das declarações da própria arguida, apresentadas só em julgamento e sem qualquer outro suporte probatório, quer documental, quer testemunhal, estando mesmo em contradição com o depoimento das testemunhas D e E;
5.ª–Para além de que nos parece óbvio que uma câmara colocada sobre a porta de entrada da Assistente, virada para o patamar do prédio, jamais conseguiria filmar o interior da casa da frente, onde mora a sua filha F;
Por outro lado,
6.ª–A Assistente entende que o tribunal a quo devia ainda ter dado como provados os factos alegados nos artigos 11., 12., 17., 18., 23. e 24., da acusação particular de fls. 275-279, pela sua relevância para a decisão da causa;
7.ª–Factos esses que, na nossa modesta opinião, resultaram provados pelos depoimentos das testemunhas D e E, proferidos na sessão do dia 09/06/2022, assim como pelas declarações que a própria Assistente prestou ao Tribunal, na sessão do dia 15/06/2022;
Dito isto;
8.ª–O crime de dano previsto no artigo 212.º, do Código Penal, é um crime de resultado, sendo objetivamente preenchido com a destruição de coisa alheia, tal como se verificou no caso concreto;
9.ª–Ora, o Tribunal a quo entendeu que apesar de os factos provados consubstanciarem a prática objetiva daquele ilícito criminal, os arguidos teriam atuado sem culpa, ao abrigo de um estado de necessidade desculpante, uma vez que o meio por eles utilizado teria sido o estritamente necessário para impedir a continuação das filmagens, as quais ameaçavam – supostamente – o respetivo direito à intimidade da vida privada;
10.ª–E aqui, a ora Assistente não pode conformar-se com tal entendimento do Tribunal a quo, quer porque não se encontra provado qualquer violação do direito à reserva da vida privada dos arguidos, quer por entender que a estes seria exigível comportamento diferente, segundo as circunstâncias do caso concreto;
11.ª–A assistente entende que os arguidos, ao invés de destruírem, de forma selvagem, a câmara de videovigilância identificada nos autos, podiam e deviam ter dialogado com a Assistente -que era sua mãe e avó - pedindo-lhe que retirasse essa câmara ou até mesmo podiam ter colocado uma fita adesiva em cima da câmara, para impedir a continuação das filmagens;
12.ª–A verdade é que os arguidos nada disso fizeram e não privilegiaram, nem sequer tentaram o diálogo com a sua progenitora, preferindo passar à ação e assim destruir, de forma irreparável (!!), os cabos e a câmara da assistente;
13.ª–E fizeram-no num contexto de pura maldade, sabendo que isso iria causar-lhe ainda mais ansiedade e insegurança, tanto mais que vinham há algum tempo a dar pontapés na porta de casa da Assistente, durante a noite, e a fazer-lhe gestos obscenos, tal como foi testemunhado por E e referido pela própria Assistente, em sede de julgamento;
14.ª–A assistente não se conforma, por isso, com este entendimento do Tribunal a quo, mais a mais quando o mesmo poderá até abrir a caixa de pandora relativamente aos mais diversos sistemas de videovigilância colocados na cidade, pois qualquer cidadão que se sinta lesado ou ofendido no seu direito à intimidade da vida privada poderá, então, destruir qualquer câmara, a coberto de um (inexistente) estado de necessidade desculpante;
15.ª–Com o devido respeito, esta medida de exclusão da culpa não poderia ter sido interpretada da forma como foi no caso concreto, por se tratar de uma medida de exceção prevista na lei penal, para casos muito pontuais, dependentes da prova de que não seria razoável exigir aos arguidos comportamento diferente, o que não sucede no presente caso, dado que os arguidos não só não provaram qualquer comportamento ativo da Assistente que fosse passível de violar o seu direito à reserva da vida privada, como se lhes impunha um dever legal, moral e até mesmo natural de a interpelarem previamente para alterar o posicionamento da câmara ou até mesmo para removê-la, antes de avançarem a vias de facto, dado tratar-se da sua Mãe e Avó;
16.ª–Pelo que deviam os arguidos ter sido condenados pela prática dos dois crimes de dano por que vinham pronunciados, acrescido do pagamento de uma indemnização à Assistente, sobretudo pelos danos não patrimoniais que lhe foram causados, tal como peticionado no pedido cível de fls. 275- 279;
Normas Jurídicas Violadas:
Artigos 35.º, n.º 1, e 212.º, do Código Penal.
Nestes termos e nos demais de direito que V. Exas. doutamente suprirão, deve o presente recurso ser julgado totalmente procedente, por provado, alterando-se a matéria de facto provada nos termos supra melhor expostos e, em consequência, condenando-se os arguidos pela prática de dois crimes de dano e ainda no pagamento de uma indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais, em montante a fixar pelo Tribunal com recurso a juízos de equidade, fazendo assim V. Exas. a costumada JUSTIÇA!
*

Resposta do Ministério Público
O Ministério Público respondeu ao recurso no sentido da sua improcedência, tendo apresentado as seguintes CONCLUSÕES (que transcrevemos):
1.–A sentença recorrida, salvo melhor opinião, é justa, faz uma correcta apreciação da prova e aplicação do direito, está devidamente fundamentada, não enferma de quaisquer nulidades ou outras irregularidades e, como tal, deve ser mantida.
2.–De forma muito simples, o que está em causa nestes autos e resultou do julgamento é que a assistente instalou uma câmara de vigilância junta da porta do seu apartamento, em zona comum, virada para a porta do apartamento dos arguidos, sem qualquer licenciamento ou autorização, e os arguidos, confrontados com esta câmara (ilegal) em funcionamento, cortaram os fios exteriores da câmara de forma a impedir que continuasse a recolher ilicitamente imagens daquela zona.
3.–Quanto ao recurso sobre a matéria de facto, o recurso não merece qualquer provimento pois a assistente limita-se a indicar os pontos provados n.º 1 e 2 da contestação e vários pontos da “acusação particular”, indicando depois passagens de duas testemunhas, sem fundamentar concretamente em que medida tais excertos impunham objectivamente uma decisão diversa sobre que pontos concretos.
4.–A assistente pretende também, incluir na matéria de facto determinados pontos da acusação particular sobre um episódio que ocorreu em circunstâncias de tempo, modo e lugar completamente diferentes (no dia 09/09/2019), quanto os arguidos vinham pronunciados por um episódio diferente e que ocorreu em Dezembro de 2019.
5.–Pior, é que esses factos que a assistente agora pretende incluir foram arquivados pelo Ministério Público (cfr. despacho de arquivamento de fls. 89) porque a queixa quanto aos mesmos foi apresentada 9 meses depois de terem ocorrido, o que a assistente tinha obrigação de saber.
6.–A decisão da matéria de facto resultou de uma cuidadosa análise da prova produzida, está devidamente fundamentado, está devidamente fundamentada e constitui uma solução plausível face à prova produzida, pelo que o que se situa perfeitamente dentro dos limites do artigo 127.º do CPP.
7.– A assistente, no fundo, pretende um novo julgamento quanto à matéria de facto, apenas porque discorda da convicção do Tribunal, embora não aponte qualquer decisão que seja objectivamente errada face à prova produzida, extravasando o princípio da livre apreciação da prova do artigo 127.º do Código Penal.
8.–Acresce que os factos atinentes ao elemento subjectivo do crime não foram dados como provados, são essenciais para uma eventual condenação e o recurso não incide sobre tais factos, que nunca indicou especificamente.
9.–A sentença recorrida entendeu que os arguidos agiram perante um acto actual e ilícito (câmara de vigilância ilegal a registar imagens da porta da sua casa), violador de liberdade (e direitos de personalidade) dos mesmos, tendo-se limitado ao estritamente necessário para o cessar (cortar os fios externos da câmara de vigilância), invocando aqui um estado de necessidade desculpante.
10.–Efectivamente, não se nos afigura exigível ao homem médio que, perante a colocação de uma câmara não licenciada numa zona comum do prédio e virada para a porta do seu apartamento, e considerando que essa agressão e permanente, pois as imagens são captadas a cada instante, actue de outro modo, frisando aqui que não está em causa uma destruição da câmara (essa sim inadmissível) mas sim o mero corte dos seus fios exteriores.
11.–Acresce que, se se entendesse que falharia algum pressuposto para o estado de necessidade, os arguidos teriam sempre agido, manifestamente, na falsa convicção de agirem a coberto de tal causa de justificação e a situação cairia necessariamente no erro sobre ilicitude previsto no artigo 17.º do Código Penal, na modalidade de erro sobre a existência ou limites de uma causa de justificação ou de exclusão, ou “erro indirecto sobre a proibição”, o que exclui a culpa e redundaria na necessária absolvição dos arguidos.
Termos em que se conclui pela improcedência do recurso e pela manutenção da sentença recorrida.
*

O recurso foi admitido a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito suspensivo.
*

PARECER DO MINISTÉRIO PÚBLICO JUNTO DA RELAÇÃO

Subidos os autos a este Tribunal da Relação, em sede de parecer a que alude o art.º 416°, do CPP, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto aderiu à resposta às alegações do recurso apresentada pelo Ministério Público na primeira instância.
*

Cumprido o disposto no art.º 417º, n.º 2, do CPP, não foi apresentada resposta.
*

Após exame preliminar e colhidos os Vistos, realizou-se a conferência, cumprindo agora apreciar e decidir, nos termos resultantes do labor da conferência.
*

II.–FUNDAMENTAÇÃO

A DELIMITAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO

O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões do recorrente, sendo essas que balizam os limites do poder cognitivo do tribunal superior, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, como ocorre por exemplo com os vícios previstos nos artigos 410º, n.º 2, ou 379º, n.º 1, ambos do CPP (cfr. art.º 412º, n.º 1, e 417º, n.º 3, ambos do CPP).

Posto isto, passamos a delimitar o thema decidendum, que o mesmo é dizer a elencar as questões colocadas à apreciação deste tribunal, pela ordem em que foram invocadas:
1.–A impugnação pela Assistente da decisão sobre a matéria de facto, em virtude de existir erro de julgamento:
-Relativamente aos factos dados como provados na sentença recorrida em 1- e 2- “da contestação”, que em seu entender deveriam ter sido dados como não provados ; e
-Relativamente aos factos constantes dos pontos 11., 12., 17., 18. 23. e 24. da acusação particular, reportados a 09.09.2018, que em seu entender deveriam ter sido dado como provados, factos que foram alvo de decisão de não pronúncia transitada em julgado.
2.–Relativamente ao dano pronunciado, reportado a 29.12.2018, que foi objeto de julgamento, saber se é de afastar a existência de estado de necessidade desculpante, que afasta a culpa, em virtude de, por um lado, não ter existido violação do direito à reserva da vida privada dos arguidos e, por outro, porque lhes era exigível um comportamento diferente.
*

A DECISÃO RECORRIDA:

A decisão recorrida tem o seguinte teor (que se transcreve integralmente):
A Assistente deduziu acusação particular contra:
A, casada, nascida em 4 de Outubro de 1965, natural de Santo ..., Funchal, filha de E e de C, residente no Caminho de ...; e, B, solteiro, nascido em 8 de Outubro de 1998, natural de São ..., Funchal, filho de ... e de A, residente no Caminho de ... e ..., solteira estudante com domicilio no Caminho ..., no Funchal, filha de A e de ....
*
Imputou-lhes a prática, em co-autoria, de um crime de violência doméstica, p. e p pelo art. 152.º do Código Penal, de um crime de injúria, p. e p. pelos arts. 181.º, 182.º e 184.º do mesmo diploma e de dois crimes de dano, p. e p. pelo art. 212.º do Código Penal.
O Ministério Público acompanhou a acusação deduzida quanto à prática de um crime de dano.
A fls. 131 foi deduzido pedido cível contra os já referidos arguidos, pela assistente, pedindo a quantia de 5.000,00€ a titulo de dano morais.
*

Foi requerida abertura de instrução, a qual culminou com uma decisão instrutória nos seguintes termos:
-não pronunciar os arguidos A, ... e B, pela prática, em co-autoria, de um crime de violência doméstica, p. e p pelo art. 152.º do Código Penal;
-não pronunciar os arguidos A, ... e B, pela prática de um crime de injúria, p. e p. pelos arts. 181.º, 182.º e 184.º do Código Penal.
-não pronunciar as arguidas A e ... pela prática de um crime de dano, p. e p. pelo art. 212.º, n.º 1 do Código penal;
-pronunciar os arguidos A e B, pela prática de um crime de dano, p. e p. pelo art. 212.º, n.º 1 do Código Penal.
Procedeu-se a julgamento com inteiro respeito pelo formalismo legal, como resulta da ata respetiva, na ausência do arguido Nuno ..., conforme o requereu, sendo que não houve alteração dos pressupostos processuais após a marcação do dia para a audiência.
Os arguidos contestaram a fls. 268, invocando, em suma que agiram no exercício de um direito, e arrolaram testemunhas.
*
Da discussão da causa e com relevo para a sua boa decisão, resultaram provados os seguintes factos:
1- No dia 29 de Dezembro de 2018, pelas 11 horas e 45 minutos, no quarto andar, do ..., no Funchal os arguidos F e Nuno ... abriram a porta do seu apartamento e dirigiram-se até a porta do apartamento da Assistente, levando consigo uma escada e ferramentas.
2- Ao chegar à porta da fracção identificada pelas letras "BZ", pertencente à assistente, o arguido B montou e subiu à escada, sob o olhar e instruções da sua mãe F, começando então a destruir os cabos eléctricos de ligação da câmara de videovigilância da Assistente e acabando por cortar e danificar irreparavelmente essa câmara, cujo valor ascende a € 310,00 (trezentos e dez euros).
MAIS SE PROVOU QUE:
3- A arguida confessou os factos provados.
4- Os arguidos não têm antecedentes criminais.
5- O arguido vive com os pais e é estudante.
6-A arguida está desempregada, auferindo um subsidio de 750,00€ mensais, vive com o seu marido que é empresário e dois filhos, e habita em casa própria. Como habilitações literárias tem a 4ª classe.
DA CONTESTAÇÃO:
1-A assistente, mãe e avó, dos arguidos mandou instalar, através de seu filho E (ambos em litígio devido ao pedido de partilhas por parte da arguida) uma câmara oculta que estava apontada para a porta da arguida F permitindo quando aberta a visualização das imagens interiores da habitação, e pessoas que a frequentavam, gravando as imagens e comentando as mesmas em locais que frequentava.
2-A arguida suspeitou da existência de uma câmara, a objeto do julgamento por comentários que ouviu de terceiros, pois a mãe comentava a terceiros o que via e gravava da casa da filha.
3-Numa primeira fase, antes de a assistente deixar de se relacionar com a sua filha que lhe dava apoio direto diariamente e a alimentava, foram instaladas duas câmaras que não teriam como objetivo gravar imagens, mas visualizar a entrada de cada porta da habitação de cada uma a da arguida e a da assistente.
4-Quem contratou o serviço de instalação foi a arguida e quem pagou tal serviço e as referidas câmaras foi também a arguida.
5-A arguida pagou a G 1330,00 euros para compra de material de um sistema de alarme de intrusão e de um sistema de C.C.T.V., o qual foi posteriormente retirado e destruído.
6-O colocador da segunda câmara (esta oculta) ligada à casa da assistente, e apontada para a porta de entrada da arguida e de sua família, foi G.
7-A ação dos arguidos limitou-se ao corte de um cabo e obtenção de fotos para procedimento criminal, evitando a continuação da gravação de imagens, não tendo sido excedido o absolutamente necessário para evitar o prejuízo do direito à privacidade.
8.-A arguida apresentou queixa após detetar a existência dessa câmara mandada colocar de forma dissimulada, apontada para a sua porta e com gravação do interior da sua casa sempre que a mesma era aberta, tendo cortado previamente um simples cabo que permitia a recolha de imagens.
Do pedido cível:
A assistente passou a residir em casa de um filho.
*

FACTOS NÃO PROVADOS:
Da pronuncia:
1.–Os arguidos agiram com intenção de destruir e danificar a câmara de videovigilância da assistente, tendo conseguido os seus intentos.
2.–Atuaram, causando à assistente o dano inerente à destruição da câmara de videovigilância.
3.–Os arguidos agiram de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei penal e tendo a capacidade para se determinar de acordo com esse conhecimento.
Da contestação:
1.–A câmara oculta foi paga pela arguida.
Do pedido cível:
1.–Com a atitude dos arguidos a Assistente sentiu-se ofendida, humilhada, sobressaltada e lesada na sua honra, consideração e no seu património, perdendo noites de sono tranquilo, e momentos de paz tranquilidade e bem-estar.
2.–A assistente passou a ter medo de entrar e sair da sua própria casa sozinha assim como tem receio de estar na sua própria casa, sobretudo de noite, por temer agressões por parte dos arguidos.
3.–A assistente sente-se assim profundamente angustiada triste e magoada com tais atos praticados pela sua própria filha e netos.
*

FUNDAMENTAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO:
A convicção do Tribunal é formada, para além dos dados objectivos fornecidos pelos documentos e outras provas constituídas, também por declarações e depoimentos, em função das razões de ciência, das certezas e ainda das lacunas, contradições, hesitações, inflexões de voz, parcialidade, coincidências e mais inverosimilhanças que, porventura, transpareçam em audiência, das mesmas declarações e depoimentos tudo isto conjugado com as regras da experiência e da lógica do próprio julgador.
Deste modo, a formação da convicção deste Tribunal, quanto aos factos dados como provados e não provados, resultou da análise crítica da conjugação das declarações do arguido e dos depoimentos das testemunhas, bem assim como da análise dos documentos juntos aos autos, da seguinte forma:
A arguida presente em julgamento, confessou os factos provados, esclarecendo que a câmara em causa se encontrava oculta, ao contrário das anteriores, que tinham sido montadas com o assentimento de ambas (mãe e filha) e posteriormente retiradas, e que só soube da sua existência quando começou a ouvir comentar que a sua mãe (ora assistente) comentava o que via na câmara, no cabeleireiro e no café. Realçou ainda que antes de cortar o fio da câmara falou com o condomínio que lhe disse que ela teria que resolver o problema com a sua mãe, e depois de cortar o cabo da câmara, apresentou queixa na PSP (cfr. doc. Junto aos autos a fls 309). Só o fez porque a referida câmara estava virada para a sua porta de entrada e não, como refere a Assistente para segurança daquela, como aliás decorre da visualização das imagens constantes da Pen junta aos autos. Da mesma visualiza-se mesmo o interior da casa da arguida, quando esta abre a porta.
Por último, esclareceu que os problemas com a sua mãe começaram a partir do momento em que pediu as partilhas dos bens por morte do seu Pai.
A assistente, referiu que a segunda câmara que instalou foi por si paga ao Sr. G, embora não saiba quanto pagou, nem tenha nenhum comprovativo da sua aquisição. De igual forma referiu que a instalou para sua própria segurança, pois queria ver quem lhe batia a porta, lhe dava pontapés na porta, e lhe tocava a campainha durante a noite, o que lhe causava medo.
Contudo, como já se referiu supra, a câmara referida estava apontada para a casa da arguida e não para a sua porta, donde se conclui que a sua instalação, não seria para sua segurança.
Por último ainda, foi referido em julgamento, também pela assistente que não ouve bem, pelo que a existir, o barulho provocado pela campainha da porta não poderia ser tão audível e incomodativo.
A testemunha D, cunhada da arguida (casada com um irmão desta), referiu que a sua sogra (a assistente) teve que comprar um outra câmara já que a primeira havia sido partida pela arguida, (o que viu só através das imagens), e foi essa que a arguida cortou o cabo, (e que é objeto dos presentes autos), o que deixou a assistente muito magoada e insegura, tendo ido viver para sua casa onde permanece até hoje.
Ao ser-lhe perguntado, referiu que nunca viu esta última câmara.
A testemunha E, é irmão da arguida e corroborou a versão da testemunha anterior, tendo acrescentado que a mãe lhe deu o dinheiro para comprar esta última câmara e que entregou a testemunha G o qual a instalou. Não tem qualquer recibo da mesma.
A testemunha H, costumava fazer companhia a assistente, e sabe que a câmara foi ali colocada para segurança da mesma. Referiu ainda que a assistente agora vive na casa de um dos filhos.
A testemunha G foi quem instalou todas as câmaras no local em causa, e relativamente à ultima, referiu ter sido a testemunha Ricardo quem lhe encomendou o serviço e pagou (330,00€).
Não passou recibo, nem tem alvará para o exercício dessa atividade.
Ora, da conjugação destes depoimentos, não temos como não conferir credibilidade as declarações da arguida, porque verosímil e consentânea com a realidade. De facto, esta confessou que juntamente com o seu filho, cortou o cabo da câmara de videovigilância que se encontrava apontada para a sua porta de entrada, e que o fez porque não conseguia ter qualquer privacidade.
Já por outro lado a chefe da PSP pareceu-nos isenta e credível, e com conhecimento directo dos factos que podia ver perfeitamente dada a sua localização.
É plausível a sua versão e, quanto a sua legalidade, deixaremos as considerações para a fundamentação de direito.
A assistente nunca negou que a sua câmara estivesse oculta, afirmando ter sido ela que a mandou instalar. Nenhuma outra testemunha afirmou que a câmara não estava oculta, sendo que algumas afirmaram até que não a tinham visto, conferindo assim também nesta parte credibilidade às declarações da arguida e revela alguma coisa acerca da personalidade da Assistente e do conflito latente entre ambas.
Os antecedentes criminais dos arguidos foram provados pela análise dos seus CRC e as condições sócio económicas pelas declarações da arguida, que se nos afiguraram credíveis e pelo relatório de fls. 284, quanto ao arguido julgado na ausência.
Quanto aos factos que não foram dados como provados, resultaram da sua falta de prova ou até da prova do contrário.
Quanto ainda aos factos que não foram dados como provados nem como provados, resultou do facto de se tratarem de conclusões, opiniões, conceitos de direito, ou por último, de não terem interesse para a boa decisão da causa.
*

FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
Os arguidos vêm acusados, da prática de um crime de dano, p.p.p. artº 212º do CP.
Dispõe este preceito legal que « quem destruir, danificar, desfigurar ou tornar não utilizável coisa alheia, será punido …»
São elementos deste tipo de crime:
a)- a acção de destruir, danificar, desfigurar ou tornar inútil uma coisa.
b)- A coisa ser alheia.
c)- O resultado destruição, danificação ou inutilização da coisa.
d)- O nexo causal entre a acção típica e o resultado considerado.
É elemento subjectivo do crime de dano o dolo, entendido como conhecimento de todos os elementos objectivos do facto típico e a vontade da sua realização.
Destruir uma coisa, é fazê-la desaparecer materialmente ou por forma a que ela perca a sua individualidade. Danificar uma coisa é provocar um estrago na mesma, sem que esta perca a sua individualidade, mas sofrendo uma diminuição no seu valor económico ou da sua utilidade específica. Desfigurar é alterar a estética da coisa. Tornar inutilizável, é torná-la inadequada, ainda que temporariamente, ao fim para a qual estava destinada (Vide a propósito: Leal Henriques e Sima Santos – « Código Penal de 1982 », vol. IV, pág. 115).
Analisando os factos resulta que os arguidos, com a sua conduta, preencheram os elementos objectivos deste tipo legal. Aliás a própria arguida o admitiu.
Alegou na contestação e em audiência, que o fez em estado de necessidade.
Vejamos.
São pressupostos do estado de necessidade desculpante a verificação de uma situação de perigo atual para bens jurídicos de natureza pessoal do agente ou de terceiro e ser o facto ilícito praticado idóneo a afastar o perigo que não seria removível por outro modo.
A lei portuguesa desculpa aquele que "praticar um facto ilícito adequado a afastar um perigo actual, e não removível de outro modo, que ameace a vida, a integridade física, a honra ou a liberdade do agente ou de terceiro, quando não for razoável exigir-lhe, segundo as circunstâncias do caso, comportamento diferente" (art. 35º nº 1 do CP).
A excussão da culpa decorre de, nas circunstâncias concretas do facto, não ser razoável exigir do agente um comportamento diferente.
Como salienta Figueiredo Dias, sobre o Estado Atual da Doutrina do Crime, 2ª parte, sobre a construção do tipo-de-culpa e os restantes pressupostos da punibilidade, R. P. C. C., Ano 2, 1º, 28), o afastamento da punibilidade fica a dever-se "a considerações retiradas das circunstâncias concretas do facto e do seu agente, que fazem que in casu não seja razoável exigir dele outro comportamento"; apesar do ilícito-típico praticado, demonstra-se "a persistência no agente de uma atitude de fidelidade do direito que aponta a fundamentação do facto numa atitude pessoal juridicamente desvaliosa ou em qualidades juridicamente desvaliosas da sua personalidade".
O estado de necessidade desculpante pode reconduzir-se, assim, do princípio da inexigibilidade de um comportamento ajustado à norma.
São pressupostos do estado de necessidade desculpante:
- verificar-se uma situação de perigo actual para bens jurídicos de natureza pessoal (vida, integridade física, honra e liberdade) do agente ou de terceiro.
O facto ilícito praticado tem de ser "adequado", ou seja, idóneo a afastar o perigo que não seria remível por outro modo.
Para além destes elementos objectivos relacionados com o perigo, o bem jurídico ameaçado e a adequação do facto é necessário que o juiz verifique que não era razoável exigir do agente, segundo as circunstâncias do caso, comportamento diferente.

Vejamos o caso concreto:
Nos termos do artº 19º da Lei 58/2019, sob epígrafe, Videovigilância
1–Sem prejuízo das disposições legais específicas que imponham a sua utilização, nomeadamente por razões de segurança pública, os sistemas de videovigilância cuja finalidade seja a proteção de pessoas e bens asseguram os requisitos previstos no artigo 31.º da Lei n.º 34/2013, de 16 de maio, com os limites definidos no número seguinte.
2– As câmaras não podem incidir sobre:
a)-Vias públicas, propriedades limítrofes ou outros locais que não sejam do domínio exclusivo do responsável, exceto no que seja estritamente necessário para cobrir os acessos ao imóvel;
b)-A zona de digitação de códigos de caixas multibanco ou outros terminais de pagamento ATM;
c)-O interior de áreas reservadas a clientes ou utentes onde deva ser respeitada a privacidade, designadamente instalações sanitárias, zonas de espera e provadores de vestuário;
d)-O interior de áreas reservadas aos trabalhadores, designadamente zonas de refeição, vestiários, ginásios, instalações sanitárias e zonas exclusivamente afetas ao seu descanso.
3–Nos estabelecimentos de ensino, as câmaras de videovigilância só podem incidir sobre os perímetros externos e locais de acesso, e ainda sobre espaços cujos bens e equipamentos requeiram especial proteção, como laboratórios ou salas de informática.
4–Nos casos em que é admitida a videovigilância, é proibida a captação de som, exceto no período em que as instalações vigiadas estejam encerradas ou mediante autorização prévia da CNPD.”
E, nos termos da Lei 46/2019, Artigo 31.º
Sistemas de videovigilância
1–As entidades titulares de alvará ou de licença para o exercício dos serviços previstos nas alíneas a), c) e d) do n.º 1 do artigo 3.º podem utilizar sistemas de vigilância por câmaras de vídeo para captação e gravação de imagem com o objetivo de proteger pessoas e bens, desde que sejam ressalvados os direitos e interesses constitucionalmente protegidos, sendo obrigatório o seu registo na Direção Nacional da PSP, nos termos definidos por portaria do membro do Governo responsável pela área da administração interna.
2–As gravações de imagem obtidas pelos sistemas videovigilância são conservadas, em registo codificado, pelo prazo de 30 dias contados desde a respetiva captação, findo o qual são destruídas, no prazo máximo de 48 horas.
3–Todas as pessoas que tenham acesso às gravações realizadas nos termos da presente lei, em razão das suas funções, devem sobre as mesmas guardar sigilo, sob pena de procedimento criminal.
4–É proibida a cessão ou cópia das gravações obtidas de acordo com a presente lei, só podendo ser utilizadas nos termos da legislação processual penal.
5–Nos locais objeto de vigilância com recurso a câmaras de vídeo é obrigatória a afixação, em local bem visível, de informação sobre as seguintes matérias:
a)- (Revogada.)
b)-A menção «Para sua proteção, este local é objeto de videovigilância»;
c)-A entidade de segurança privada autorizada a operar o sistema, pela menção do nome e alvará ou licença;
d)-O responsável pelo tratamento dos dados recolhidos perante quem os direitos de acesso e retificação podem ser exercidos.
6–Os avisos a que se refere o número anterior são acompanhados de simbologia adequada, nos termos definidos por portaria do membro do Governo responsável pela área da administração interna.
7–Os sistemas de videovigilância devem ter as seguintes caraterísticas:
a)-Capacidade de acesso direto às imagens em tempo real pelas forças e serviços de segurança, para efeitos de ações de prevenção ou de investigação criminal, lavrando auto fundamentado da ocorrência;
b)-Sistema de alarmística que permita alertar as forças e serviços de segurança territorialmente competentes em caso de iminente perturbação, risco ou ameaça à segurança de pessoas e bens que justifique a sua intervenção;
c)-Registo dos acessos incluindo identificação de quem a eles acede e garantia de inviolabilidade dos dados relativos à data e hora da recolha.
8–Para efeitos do número anterior, os requisitos técnicos para os sistemas de videovigilância são fixados em portaria do membro do Governo responsável pela área da administração interna.
9–É proibida a gravação de som pelos sistemas referidos no presente artigo, salvo se previamente autorizada pela Comissão Nacional de Proteção de Dados, nos termos legalmente aplicáveis.
10–Os sistemas de videovigilância, apenas utilizáveis em conformidade com os princípios da adequação e da proporcionalidade, devem cumprir as demais normas legais relativas à recolha e tratamento de dados pessoais, designadamente em matéria de direito de acesso, informação, oposição de titulares e regime sancionatório.”
Ainda, a Portaria 292/2020, Artigo 113.º
“Declaração de instalação
1-A instalação, manutenção e assistência técnica de sistemas ou dispositivos de segurança e proteção deve ser realizada mediante termo de responsabilidade, que ateste o cumprimento da legislação e das normas aplicáveis, subscrito pelo técnico responsável da entidade autorizada a prestar o serviço.
2-A entidade instaladora autorizada que instale sistemas ou dispositivos de segurança e proteção deve emitir declaração de instalação, subscrita pelo técnico responsável, que ateste a consonância com as normas técnicas aplicáveis CLC/TS 5....-7, EN 6....-4 ou EN 6....-1.-2, previstas na presente portaria.
3-No momento da instalação, a entidade instaladora autorizada deve proceder à entrega do manual do sistema e do livro de registos do sistema.
4-O modelo de declaração de instalação é aprovado por despacho do diretor nacional da PSP.”

O dever de registo dos sistemas de videovigilância é aplicável aos sistemas utilizados pelas entidades titulares de alvará ou licença e por entidades que adotem as medidas de segurança previstas nos artigos 7.º, 8.º e 9.º da Lei nº 46/2019.
O dever de registo compreende igualmente os sistemas de videovigilância que as empresas de segurança privada, autoproteção e entidades sujeitas a medidas de segurança sejam responsáveis pelo tratamento de dados pessoais ou para os quais disponham de procuração.
[Art. 51º, Portaria 292/2020, de 18 de dezembro].
Ora, a câmara de videovigilância em causa nos presentes autos, a segunda, estava oculta e sem qualquer sinalização exterior que desse conta da sua existência.
Não foi montada por técnicos habilitados, nomeadamente com alvará, nem continha as necessárias autorizações.
Está em causa o direito a intimidade da vida privada e a imagem dos arguidos, direitos de personalidade constitucionalmente protegidos.
Para que se verifique a situação de estado de necessidade, deve verificar-se uma situação de perigo atual para bens jurídicos de natureza pessoal do agente ou de terceiro, e ser o facto ilícito praticado idóneo a afastar o perigo que não seria removível por outro modo.
O meio utilizado foi o estritamente necessário para afastar o perigo: os arguidos cortaram apenas um cabo, para impedir a continuação das filmagens. Falaram com o condomínio e apresentaram queixa na PSP.
As delongas no decurso do processo não são compatíveis com a situação de perigo para os bens jurídicos em causa, não lhes podendo ser exigida outra conduta.
Concluímos assim que os arguidos agiram em estado de necessidade desculpante, o que afasta a culpa dos arguidos, e consequentemente conduz a sua absolvição, por não se mostrar preenchido o elemento subjetivo deste preceito legal.
DO PEDIDO CÍVEL:
A indemnização por danos emergentes de um crime, é regulada pela lei civil, nos termos do disposto no artº 128º do CP. Ou seja, sempre que conexa com a responsabilidade criminal, exista responsabilidade civil, é no normativo dos artº 483º e segs. do CC, que deve ser procurado o suporte legal da indemnização reparatória.
Do exposto resulta que não existe responsabilidade criminal, pelo que igualmente não há lugar a reparação por danos morais, pedida pela Assistente.
*

DECISÃO
Nestes termos e pelo exposto, decide-se:
Julgar improcedente por não provada a douta acusação pública e o pedido cível e, em consequência:
Absolver os arguidos A, e B da prática em autoria material, de um crime de dano simples, nos termos dos artºs 26º e 212º nº1 do CP, pelo qual vinham pronunciados.
Absolver ainda os arguidos do pedido cível deduzido pela Assistente.
*
Custas cíveis e criminais pela assistente/demandante.
Notifique e deposite.
Boletim à DSIC.
*

DA ANÁLISE DOS FUNDAMENTOS DO RECURSO (pela ordem de lógica jurídica):
A Assistente/Recorrente pugna pela condenação dos arguidos A e B pela prática de dois crimes de dano, p. e p. cada qual pelo art.º 212º, n.º 1, do CP.
Com vista a este desiderato suscita duas principais questões.
Adiantamos, por brevidade, que o presente recurso está condenado ao fracasso, desde logo por questões estritamente processuais, como passaremos a evidenciar.
Vejamos, então, cada uma das questões e da sua potencialidade para a procedência recursiva.

1.–DA IMPUGNAÇÃO DA DECISÃO SOBRE A MATÉRIA DE FACTO, EM VIRTUDE DE EXISTIR ERRO DE JULGAMENTO:

. Relativamente aos factos dados como provados na sentença recorrida em 1- e 2- “da contestação”, que no entender da Recorrente deveriam ter sido dados como não provados.
Tratam-se de factos atinentes ao episódio datado de 29.12.2018, relativamente ao qual os arguidos A e B foram pronunciados, em coautoria, pela prática de um crime de dano simples, e foram absolvidos na sentença recorrida.
A materialidade em causa é a seguinte:
            Provados, da contestação
            1-A assistente, mãe e avó, dos arguidos mandou instalar, através de seu filho E (ambos em litígio devido ao pedido de partilhas por parte da arguida) uma câmara oculta que estava apontada para a porta da arguida F permitindo quando aberta a visualização das imagens interiores da habitação, e pessoas que a frequentavam, gravando as imagens e comentando as mesmas em locais que frequentava.
            2-A arguida suspeitou da existência de uma câmara, a objeto do julgamento por comentários que ouviu de terceiros, pois a mãe comentava a terceiros o que via e gravava da casa da filha.
Verifica-se, com substancial interesse, que a Assistente/Recorrente não ataca os factos dados como “não provados” na sentença recorrida em 1. a 2. “da pronúncia”, onde se concentra, além do mais, a materialidade referente ao dolo do crime de dano que se pretende ver imputado aos arguidos F e B, factos que aqui se transcrevem:
            Não provados, da pronúncia:
            1. Os arguidos agiram com intenção de destruir e danificar a câmara de videovigilância da assistente, tendo conseguido os seus intentos.
            2. Atuaram, causando à assistente o dano inerente à destruição da câmara de videovigilância.
            3. Os arguidos agiram de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei penal e tendo a capacidade para se determinar de acordo com esse conhecimento.
Ora, decorre do art.º 412º, do CPP, sob a epígrafe “motivação do recurso e conclusões”, que:
1 - A motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido.
2 – (…)
3 - Quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida;
c) As provas que devem ser renovadas.
4 - Quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na ata, nos termos do disposto no n.º 3 do artigo 364.º, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação.
5 – (…)
6 - No caso previsto no n.º 4, o tribunal procede à audição ou visualização das passagens indicadas e de outras que considere relevantes para a descoberta da verdade e a boa decisão da causa.

Ainda com interesse, resulta do art.º 428º, do CPP, que as Relações conhecem de facto (e de direito) e de acordo com o art.º 431º, do mesmo diploma legal, “Sem prejuízo do disposto no artigo 410º, a decisão do tribunal de 1ª instância sobre matéria de facto pode ser modificada: a) Se do processo constarem todos os elementos de prova que lhe serviram de base; b) Se a prova tiver sido impugnada, nos termos do n.º 3, do artigo 412º; ou c) Se tiver havido renovação da prova”.

A sindicância da matéria de facto, chamada impugnação ampla, baseada no art.º 412º, n.ºs 3, 4 e 6, do CPP, é uma das duas vias de sindicar a matéria de facto em processo penal e tem na sua base a consideração de que o tribunal a quo efetuou uma incorreta apreciação da prova produzida em sede de audiência de julgamento.
Impõe-se salientar que na impugnação ampla da matéria de facto o tribunal de recurso está impedido de reapreciar concretos pontos de facto (julgados provados ou não provados) que o Recorrente não tenha indicado como incorretamente julgados, tanto mais que para cada ponto alvo desta reapreciação o Recorrente está obrigado a indicar as concretas razões de discordância, a especificar as provas que imponham decisão diversa da recorrida e, havendo gravação das provas, a indicar concretamente as passagens das gravações em que se funda a impugnação, pois são essas que devem ser ouvidas ou visualizadas pelo tribunal, sem prejuízo de outras relevantes (nºs 4 e 6 do art.º 412º, do CPP).

Posto isto, admitindo por mera hipótese académica que a Assistente/Recorrente tivesse cumprido com todos os ónus da impugnação ampla da matéria de facto e que este tribunal lhe reconhecesse razão, por via disso a matéria de facto dada como provada ficaria expurgada da materialidade ínsita em 1 e 2 da “contestação” dos “factos provados”, em razão do que subsistiriam provados tão só os seguintes factos:
1-No dia 29 de Dezembro de 2018, pelas 11 horas e 45 minutos, no quarto andar, do Edifício ..., no Funchal os arguidos F e Nuno ... abriram a porta do seu apartamento e dirigiram-se até a porta do apartamento da Assistente, levando consigo uma escada e ferramentas.
2-Ao chegar à porta da fracção identificada pelas letras "BZ", pertencente à assistente, o arguido B montou e subiu à escada, sob o olhar e instruções da sua mãe F, começando então a destruir os cabos eléctricos de ligação da câmara de videovigilância da Assistente e acabando por cortar e danificar irreparavelmente essa câmara, cujo valor ascende a € 310,00 (trezentos e dez euros).
Mais se provou que: (…)
Da contestação:
(…)
3-Numa primeira fase, antes de a assistente deixar de se relacionar com a sua filha que lhe dava apoio direto diariamente e a alimentava, foram instaladas duas câmaras que não teriam como objetivo gravar imagens, mas visualizar a entrada de cada porta da habitação de cada uma a da arguida e a da assistente.
4-Quem contratou o serviço de instalação foi a arguida e quem pagou tal serviço e as referidas câmaras foi também a arguida.
5-A arguida pagou a G 1330,00 euros para compra de material de um sistema de alarme de intrusão e de um sistema de C.C.T.V., o qual foi posteriormente retirado e destruído.
6-O colocador da segunda câmara (esta oculta) ligada à casa da assistente, e apontada para a porta de entrada da arguida e de sua família, foi G.
7-A ação dos arguidos limitou-se ao corte de um cabo e obtenção de fotos para procedimento criminal, evitando a continuação da gravação de imagens, não tendo sido excedido o absolutamente necessário para evitar o prejuízo do direito à privacidade.
8.-A arguida apresentou queixa após detetar a existência dessa câmara mandada colocar de forma dissimulada, apontada para a sua porta e com gravação do interior da sua casa sempre que a mesma era aberta, tendo cortado previamente um simples cabo que permitia a recolha de imagens.

Ora, desta factualidade provada não constam, já se vê, os elementos subjetivos do crime de dano, concretamente o dolo.

Na verdade, prescreve o art.º 212º, do CP, que:
1- Quem destruir, no todo ou em parte, danificar, desfigurar ou tornar não utilizável coisa alheia, é punido com prisão até 3 anos ou com pena de multa.
O crime de dano é um delito contra a propriedade (e não necessariamente contra o património, no sentido de ter de haver prejuízo patrimonial).
Constituem elementos objetivos do tipo:
-a ação de destruir, no todo ou em parte, danificar, desfigurar ou tornar não utilizável;
-coisa;
-alheia;
-o resultado consistente na destruição, danificação ou inutilização; e
-o nexo causal entre a ação e o resultado típicos.
Integram-se no crime de dano todas as formas de atentar contra a propriedade alheia que não redundem em apropriação ou mero uso ilícito das coisas de outrem.
Com esta finalidade, o legislador concentrou no tipo em análise uma vasta gama de comportamentos passíveis de destruir ou danificar coisa alheia ou mesmo de impedir a sua normal utilização.
E constituem elementos subjetivos:
-O dolo em qualquer uma das suas três modalidades previstas no art.º 14º, do CP, posto que o crime de dano é um crime doloso, não se admitindo a sua prática na forma negligente.
É sabido que o dolo se desdobra em pelo menos dois elementos:
.O elemento intelectual (representação, previsão ou conhecimento dos elementos do tipo de crime); e o
.Elemento volitivo (vontade de realização daqueles elementos do tipo objetivo), que se traduz na atuação com intenção de realizar o facto típico (dolo direto) ou na aceitação da realização dos elementos do tipo objetivo como consequência necessária da conduta (dolo necessário) ou na conformação ou indiferença pela realização do resultado previsto como possível (dolo eventual).
De acordo com a doutrina de Figueiredo Dias haverá que acrescentar um terceiro elemento, dito emocional, traduzido na atitude de indiferença ou sobreposição da vontade do agente aos valores protegidos pela norma e fazendo parte do tipo de culpa doloso, elemento que é dado, em princípio, pela consciência da ilicitude.

Face ao que se deixa dito, já se vê que este tribunal jamais poderia dar satisfação às pretensões da Assistente/Recorrente, pois que, mesmo admitindo a hipótese de procedência da questão por si suscitada (no sentido de dar como não provada parte da materialidade objetiva), sempre ficaria a faltar, para o crime poder ser imputado aos arguidos A e B, a materialidade subjetiva, consubstanciada na narração dolo associado à prática do crime de dano - ou seja, a representação da destruição (ou danificação ou desfiguração ou tornar não utilizável) de coisa alheia, bem como a vontade de destruir (ou danificar ou desfigurar ou tornar não utilizável) coisa alheia -, por tal factualidade ter sido dada como não provada e a Assistente/Recorrente não a ter impugnado, estando, por isso, este tribunal de recurso impedido de a reavaliar.
Em consonância, qualquer que fosse a decisão tomada por este tribunal nesta particular questão suscitada pela Assistente, os arguidos nunca poderiam ser condenados nesta sede pela prática de um crime de dano, p. e p. pelo art.º 212º, do CP, por falta, desde logo, de factos provados referentes aos elementos subjetivos, no caso ao dolo, do crime de dano (relacionado com o episódio datado de 29.12.2018).

. Quanto aos factos constantes dos pontos 11., 12., 17., 18. 23. e 24. da acusação particular, reportados a 09.09.2018, que no entender da Assistente/Recorrente deveriam ter sido dados como provados na sentença recorrida (6ª e 7ª conclusões do recurso).
Os aludidos factos constantes da acusação particular são os seguintes:
11.–No dia 09 de Setembro de 2018, pelas 17 horas, a Arguida F e a sua filha Beatriz, abriram a porta do seu apartamento e dirigiram-se até a porta do apartamento da Assistente, levando consigo uma escada e um “martelo de cozinha” embrulhado numa toalha;
12.–Ao chegar à porta da fração identificada pelas letras “BZ”, a Arguida F e a sua filha Beatriz montaram e subiram à escada, começando a desferir uma sequência ininterrupta de marteladas contra a câmara de videovigilância da Assistente e acabando por quebrar e danificar irreparavelmente essa câmara;
17.–Face ao exposto, a Assistente passou a sentir-se terrivelmente insegura e amedrontada, tendo receio de entrar e sair de casa sozinha, pois teme que a sua própria filha e os seus próprios netos a agridam fisicamente, sabendo que esta já não tem câmara de videovigilância naquele patamar, onde também não existem mais vizinhos;
18.–Mas mais; a Assistente passou a ter medo de estar sozinha no interior da sua própria casa e lar, assim como deixou de repousar e de dormir tranquilamente, mesmo apesar de estar a fazer medicação;
23.–Atuaram, assim, com dolo direto, causando à Assistente danos morais e bem assim o dano inerente à destruição da câmara de videovigilância e o terrível medo de continuar a viver tranquilamente no seu próprio lar;
24.–Os Arguidos agiram de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei penal e tendo a capacidade para se determinar de acordo com esse conhecimento;

Dir-se-á que a pretensão da Assistente no sentido de este tribunal condenar os arguidos (julga-se que A e B, porquanto foram os únicos submetidos a julgamento) pela prática deste outro crime de dano simples, com base em factos constantes da acusação particular por si deduzida, alegadamente ocorridos em 09.09.2018, e que foram não pronunciados por despacho transitado em julgado, esbarra clamorosamente contra as mais elementares regras processuais penais da República, desde logo por violar a força de caso julgado de uma decisão transitada em julgado.
Na verdade, o crime de dano simples em causa, por ter como agentes descendentes da queixosa, goza de natureza particular, por força do art.º 212º, n.º 4, e 207º, n.º 1, al. a), do CP.
Tendo a Assistente deduzido quanto a estes factos acusação particular, os visados nessa acusação A, B e I requereram a abertura da instrução, que teve por objeto também estes concretos factos e este específico ilícito, aliás imputado a A e a I (não já a B).
Em sede de instrução foi decidido não pronunciar A e I por tais factos e ilícito, pela circunstância de o direito de queixa ter sido exercido numa altura em que já havia caducado, dado a queixa ter sido apresentada após o prazo de 6 meses previsto no art.º 115º, n.º 1, do CP.
A Recorrente/Assistente não reagiu a esta parte da decisão instrutória proferida pelo Tribunal de Instrução.
Nessa sequência os factos que agora se pretendem ver dados como provados não foram objeto de julgamento, nem da sentença recorrida, dado que não haviam sido pronunciados. Ora, este recurso tem como objeto a sentença recorrida, e não a decisão instrutória na parte dos factos e ilícitos não pronunciados.
A ser assim, como se julga que é, está, obviamente, este tribunal impedido de dar como provada materialidade e ilícito que, tendo sido objeto de apreciação em sede de instrução, foi alvo de despacho de não pronúncia, transitado em julgado, em razão do que estavam fora do objeto de apreciação da sentença recorrida e esta não conheceu.
Dito de outro modo, não pode, obviamente, este tribunal sindicar a decisão proferida pelo tribunal de instrução, na parte em que não pronunciou A e I por estes factos e crime, até porque essa decisão transitou em julgado em seu devido tempo, gozando da força de caso julgado que lhe é própria.
Improcede, pois, o recurso, nesta parte.

2.–Relativamente ao dano pronunciado, reportado a 29.12.2018, que foi objeto de julgamento, saber se é de afastar a existência de estado de necessidade desculpante, que afasta a culpa, em virtude de, por um lado, não ter existido violação do direito à reserva da vida privada dos arguidos e, por outro, porque lhes era exigível um comportamento diferente.
De novo o conhecimento por parte deste tribunal desta questão, nos concretos termos em que é colocada em sede de recurso, revelar-se-ia absolutamente estéril para as pretensões da Recorrente, e isto por duas ordens de razões:
A primeira porque a Recorrente não atacou os factos constantes dos pontos 7 e 8 “da contestação” dos “factos dados como provados”, deles constando que os arguidos A e B não excederam o necessário para acautelar a continuação da gravação das imagens, de onde resulta que tal materialidade passou a estar assente, porque insuscetível de alteração.
A segunda, não menos relevante, porque mesmo que se concluísse no sentido pretendido pela Assistente, ou seja, pela ausência de violação do direito à intimidade dos arguidos, ou até pela obrigação de os mesmos terem atuado de modo distinto, o tribunal esbarraria sempre na falta insuperável da materialidade referente ao dolo associado ao crime de dano, pelas razões já antes aduzidas, em razão do que nunca poderia dar provimento à pretensão da Assistente/Recorrente no sentido de os arguidos A e B serem condenados pela prática do ilícito em causa, por falta de preenchimento dos elementos subjetivos do crime de dano.
Improcede, pois, o recurso interposto, também neste segmento.

III–Dispositivo

Pelo exposto, acordam os juízes da 9ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa em negar provimento ao recurso interposto pela Assistente C.
Custas pela Recorrente/Assistente, fixando-se a taxa de justiça em 3 UC´s (art.ºs 515º, n.º 1, al. b), do CPP, e 8º, n.º 9, do RCP, com referência à tabela III anexa).
Notifique e D.N.



Lisboa,09-03-2023


Madalena Augusta Parreiral Caldeira
António Bráulio Alves Martins
Maria Carlos Duarte do Vale Calheiros