Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
2992/22.0TFNC.L1-7
Relator: DIOGO RAVARA
Descritores: COMPETÊNCIA MATERIAL
COMPANHIA DE SEGUROS
ACIDENTE DE TRABALHO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 05/16/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I- Compete ao juízo do trabalho apreciar e julgar uma ação declarativa de condenação intentada por uma companhia de seguros contra determinado empregador, na qual aquela estas pretende exercer o direito de regresso ou sub-rogação legal contra este (nos termos previstos nos arts. 592º do Código Civil[1] e/ou do art. 79º, nº 3 da Lei dos Acidentes de Trabalho[2]), para reaver quantias pagas ao sinistrado em consequência de acidente de trabalho – art. 126º, nº 1, al. c) da Lei de Organização do Sistema Judiciário[3].
II- O juízo central cível e o juízo local cível são, por isso, materialmente incompetentes para apreciar tal causa.
_______________________________________________________
[1] Adiante designado pela sigla “CC”.
[2] Lei nº 98/2009, de 04/09, alterada pela Lei nº 83/2021, de 06/12.
[3] Aprovada pela Lei nº 62/2013, de 26-08, retificada pela decl. Retif. 42/2013, de 24-10; alterada pela Lei 40-A/2016, de 22-12; pela Lei 94/2017, de 23-08; pela Lei Orgânica nº 4/2017, de 25-08; pela Lei 23/2018, de 05-06; pelo DL 110/2018, de 10-12; pela Lei 19/2019, de 19-02; pela Lei 27/2019, de 28-03; pela Lei 55-2019, de 05-08, pela Lei 107/2019, de 09-09, e pela Lei 77/2021, de 23-11.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes na 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

1. Relatório
Fidelidade - Companhia de Seguros, S.A., intentou a presente ação declarativa de condenação com processo comum contra B, pedindo que o Tribunal condene o réu a pagar-lhe a quantia de € 9.633,83, acrescida de juros de mora vencidos desde 22-03-2021, e dos vincendos até integral pagamento.
Para tanto alegou os seguintes factos e razões de Direito:
“1. OS FACTOS 
1º A Autora exerce a actividade de seguradora.
2º A Autora incorporou, por fusão, a Império Bonança – Companhia de Seguros, S.A., conforme certidão permanente com o código de acesso 46466226-5733, sendo certo que a entrega deste código a qualquer entidade pública ou privada dispensa a apresentação de uma certidão em papel (artº 75º, nº5 do Código do Registo Comercial)
 3º No exercício da sua actividade, o Réu B celebrou com a Império Bonança – Companhia de Seguros, S.A., entretanto incorporada na Autora, um contrato de seguro do ramo de Acidentes de Trabalho por conta de outrem, na modalidade genérico agrícola, titulado pela apólice nº AT..., que se rege pela condição especial 03 Seguro de Agricultura (Genérico e por Área), conforme documento que se junta e se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais. (Doc.1)
4º    De acordo com a condição especial 03 Seguro de Agricultura (Genérico e por Área) da apólice:
“1. Este contrato abrange os trabalhadores, permanentes ou eventuais, empregues em actividades agrícolas por conta do Tomador do Seguro, indicando-se no mapa de inventário que faz parte integrante desta apólice:
a) O nome, localização (freguesia e concelho), área cultivada e culturas predominantes de cada uma das parcelas (próprias e/ou arrendadas) que constituem a unidade de exploração agrícola;
b) As retribuições máximas;
c) Uma relação do pessoal permanente por tipo de função principal e respectivas retribuições;
d) O montante anual das retribuições e o número médio de animais de cada espécie existente na exploração agrícola, se for caso disso. (…)” (Doc.1)
5º A cobertura de pessoal eventual para a anuidade de 26-04-2020 a 26-04-2021, era no montante diário máximo de 37,71€ para homens. (Doc.1)
6º  Por seu turno, no mapa de inventário que faz parte integrante desta apólice, mais precisamente no quadro destinado à relação de pessoal permanente ao serviço do tomador do seguro, o Réu não indicou ninguém. (Doc.1)
7º Com efeito, o Réu nunca indicou alguém como trabalhador permanente. 
8º Pelo que, o contrato de seguro celebrado não cobria os acidentes de trabalho ocorridos com trabalhadores permanentes. (Doc.1)
 9º  O sinistrado Ab … era trabalhador do Réu, exercendo as funções de agricultor. 
10º No dia 20 de Outubro de 2020, cerca das 10h00mn, no Caminho da Lombada, 81, quando o sinistrado Ab ….. desempenhava as suas funções de agricultor, sob a direcção, autoridade e fiscalização do Réu e por causa delas, sofreu um acidente que consistiu em, quando estava a carregar uma caixa de abóboras sobre os ombros, embateu numa bananeira, perdeu o equilíbrio, e caiu do terreno onde se encontrava para o terreno situado ao nível inferior.
11º  Como consequência directa e necessária do supra referido acidente, o sinistrado Ab …. sofreu várias lesões nas costas e no tornozelo do pé esquerdo, nomeadamente fractura da D11 e D12 e do calcâneo, conforme Docs. 2 a 8, 15 que se juntam e se dão por integralmente reproduzidos para todos os efeitos legais). 
12º A Autora teve conhecimento da existência de acidente de trabalho envolvendo o sinistrado Ab ……, no próprio dia 20 de Outubro de 2020, data em que o sinistrado se dirigiu directamente ao Madeira Medical Center, S.A., entidade hospitalar com a qual a Autora tinha um protocolo, tendo este prestador aberto processo informático. 
13º Entre 20 de Outubro de 2020 a 11 de Novembro de 2020, o sinistrado foi submetido a consultas, exames, tratamentos cirúrgicos, médicos, medicamentoso, internamento hospitalar, tratamentos em regime de internamento, assim como em ambulatório, no Madeira Medical Center, S.A.. (Doc.s. 4 a 8) 
14º Tendo, designadamente, o sinistrado Ab …. sido submetido a intervenção cirúrgica, no dia 22 de Outubro de 2020. (Doc. 6)
15º  Por seu turno, no dia 19-11-2020, o sinistrado Ab … teve alta da consulta no prestador Madeira Medical Center, S.A. (Doc.s 10 e 12)
16º A Autora liquidou a quantia de 2866,00€ (dois mil, oitocentos e sessenta e seis euros) a título de honorários com consultas e cirurgias, realizadas pelo sinistrado no Madeira Medical Center, S.A. (Doc.s 9, 10, 12, 14)
17º  A Autora liquidou igualmente a quantia de 6178,79€ (seis mil, cento e setenta e oito euros e setenta e nove cêntimos), a título de despesas médicas do sinistrado no Madeira Medical Center, S.A., designadamente internamento hospitalar. (Doc.s 9 a 11, 13, 14)
18º Bem como liquidou a quantia de 380,00€ (trezentos e oitenta euros), a título de elementos auxiliares de diagnóstico. (Doc.s 9 e 10)
19º Por outro lado, em consequência das lesões decorrentes do sinistro e após a alta para o domicílio, o sinistrado encontrava-se dependente de terceira pessoa para as actividades da vida diária, designadamente higiene, confeccionar refeições, alimentar-se, etc.  20º Pelo que, a Autora liquidou a quantia de 209,04€ (duzentos e nove euros e quatro cêntimos) ao sinistrado, a título de prestação suplementar a 3ª pessoa. (Doc.s 9 e 10)
 21º Conforme mencionado, no dia 20 de Outubro de 2020, a Autora teve conhecimento da existência de acidente de trabalho envolvendo o sinistrado Ab ………, data em que o sinistrado se dirigiu directamente ao Madeira Medical Center, S.A., entidade hospitalar com a qual a Autora tinha um protocolo, tendo este prestador aberto processo informático.
22º  No dia 21 de Outubro de 2020, ou seja, posteriormente ao início da prestação da assistência ao sinistrado, o Réu remeteu à Autora participação escrita do sinistro referente ao acidente de trabalho em questão ocorrido com o sinistrado Ab…. (Doc. 2)
 23º  Mais tarde, o Réu apresentou formulário de participação electrónica de sinistro acidentes de trabalho preenchido, datado de 02 de Novembro de 2020, referente ao acidente de trabalho em questão ocorrido com o sinistrado Ab …, do qual constavam as seguintes menções em relação ao sinistrado:
“(…) 27. Data de admissão ao serviço: 2012-04-27”
(…) 
“36. Tipo de vínculo à empresa: Contrato de trabalho sem termo
37.  Período normal de trabalho: tempo completo
38.  Período em que ocorre o acidente: Período normal de trabalho diurno
39.  Nº de horas semanais habitualmente trabalhadas: 40:00
40.  Profissão: 61110 – Agricultor e trabalhador qualificado de cereais e outras culturas extensivas
41.  Nº de empregado: 1
42.  Departamento onde trabalha:
43.  Retribuição base: 650€                                 
44. Periodicidade: Mensal (…)” (Doc.3)
 24º  Atendendo a que o contrato de seguro de acidentes de trabalho celebrado entre Autora e Réu apenas cobre acidentes de trabalho ocorridos com trabalhadores eventuais do Réu e não com trabalhadores permanentes, sendo certo que a Autora desconhecia qual a real natureza e duração da relação laboral existente entre o Réu e o sinistrado, podendo o Tomador do Seguro invocar lapso no preenchimento do formulário da participação do sinistro, a Autora solicitou que fosse realizada averiguação sobre o modo como ocorreu o acidente, assim como qual a natureza e duração da relação laboral existente entre o Réu e o sinistrado. 
25º  No decurso das averiguações realizadas pelo senhor perito averiguador, foi apurado que, efectivamente, o sinistrado Ab …. prestava funções de agricultor para o Réu, no âmbito de um contrato de trabalho, com início a 27-04-2012. (Doc.15)
26º O sinistrado laborava para o Réu, de forma contínua, desde a sobredita data de 27-04-2012, no horário das 08 horas às 17 horas, de segunda a sexta feira, auferindo a quantia mensal de 650,00€ (seiscentos e cinquenta euros). (Docs.15 e 16)
27º Pelo que o sinistrado consistia num trabalhador permanente. 
28º  Em face ao conhecimento superveniente de que o sinistrado Ab …… era um trabalhador permanente e não um trabalhador eventual, no dia 23 de Novembro de 2020, a Autora enviou carta ao Réu a declinar a responsabilidade pelo acidente, com o seguinte teor:
“(…) Assunto: Não podemos assumir a responsabilidade pelo acidente
 Estimado Cliente,
Recebemos a sua participação do acidente ocorrido no dia acima indicado
Não podemos assumir a responsabilidade porque o acidente não está garantido pelo contrato de seguro
Analisámos o processo e concluímos tratar-se de um trabalhador permanente, situação não garantida pela apólice.
Não podemos pagar os valores relativos a esta participação
Os trabalhadores permanentes só estão seguros se os respetivos nomes e/ou profissões constarem da relação de pessoas seguras, pelo que não nos será possível pagar quaisquer indemnizações ou despesas decorrentes do referido acidente. 
Temos que pedir que nos reembolse as despesas que pagámos
Não sendo da nossa responsabilidade o pagamento das despesas entretanto feitas, iremos contactá-lo em breve, para lhe pedir o reembolso dos valores processados e lhe explicar como pode fazê-lo. 
Estamos ao seu dispor
Encontramo-nos disponíveis para qualquer esclarecimento que entenda necessário, através dos contactos abaixo indicados.
Com os nossos cumprimentos, (…)”, conforme documento que se junta e se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais. (Doc. 17)
29º  No dia 23 de Novembro de 2020, a Autora remeteu igualmente ao sinistrado Ab …, uma carta a declinar a responsabilidade pelo acidente, conforme carta que se junta e se dá por integralmente reproduzida para todos os efeitos legais. (Doc. 18)
 30º  No dia 22 de Março de 2021, a Autora remeteu carta ao Réu a solicitar o reembolso das quantias pagas por força do dito acidente, com o seguinte teor:
“(…) 
Assunto: Pedido de reembolso
Estimados Senhores,
Na sequência da nossa carta datada de 23.11.2020, anexa.
Vimos pedir o reembolso das despesas pagas no sinistro, no montante total de 9.633.83 Euros - conforme resumo de despesas que juntamos. 
Modo de pagamento
Poderá ser feito em qualquer Balcão desta Companhia ou, através de transferência bancária para o IBAN PT 50 …, dando como referência
(descritivo) o número da assistência, para melhor identificação. 
Envio de comprovativo de pagamento
Deve ser enviado o comprovativo de pagamento de transferência para o e-mail: dnt.reembolsos@fidelidade.pt 
Contate-nos, se precisar de algum esclarecimento 
Com os nossos cumprimentos, (…)”, conforme documento que se junta e se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais. (Doc. 19)
31º Ora, no dia 20 de Outubro de 2020, data em que o sinistrado começou a ser assistido no Madeira Medical Center, S.A., a Autora desconhecia que aquele era trabalhador permanente do Réu. 
32º  O Madeira Medical Center, S.A. prestou a necessária assistência ao sinistrado, incluindo médica, cirúrgica e medicamentosa, assim como o internamento, a solicitação da Autora, por considerar que o sinistrado se encontrava coberto pela apólice. Pelo que,  
33º A Autora liquidou, por força do acidente de trabalho em discussão nestes autos, a quantia global de 9633,83€ (nove mil, seiscentos e trinta e três euros e oitenta e três cêntimos), a título de consultas e cirurgias, despesas médicas, elementos auxiliares de diagnóstico necessários à recuperação do sinistrado, tendo liquidado designadamente despesas com ressonância magnética da coluna dorsal, ressonância magnética da coluna lombar, RX, ecografia, exames, consultas da especialidade, honorários do Médico Cirurgião, do Ajudante, do Médico Anestesista e do Médico Instrumentista que intervieram na cirurgia a que o sinistrado foi submetido, liquidou as despesas com o internamento hospitalar do sinistrado e assistência de terceira pessoa (Doc.s 10 a 14), sendo que o Réu nada pagou a esse título. 
34º Atendendo a que, conforme veio ao conhecimento superveniente da Autora, designadamente conforme foi confirmado no decurso do processo de averiguações, o sinistrado era trabalhador permanente do Réu, sendo que os trabalhadores permanentes só estão seguros se os respetivos nomes e/ou profissões constarem da relação de pessoas seguras, o que não sucedeu, assiste à Autora o direito a exigir do Réu o reembolso das quantias despendidas, nos termos do direito de sub-rogação previsto no art.592º, nº1 do Código Civil, ficando a Autora sub-rogada no direito do sinistrado que beneficiou da assistência e pagamentos realizados, ou caso assim não se entenda, por força das regras do enriquecimento sem causa previstas nos art.s 473º, nº1, 478º e 479º do Código Civil. 
35º Conforme referido nos arts. 16º a 20º desta petição inicial, em consequência do sinistro em questão, a Autora liquidou verbas no montante de 9633,83€ (nove mil, seiscentos e trinta e três euros e oitenta e três cêntimos). 
36º No dia 22 de Março de 2021, a Autora notificou o Réu para que procedesse ao reembolso da supra referida quantia, no valor de 9633,83€ (nove mil, seiscentos e trinta e três euros e oitenta e três cêntimos). (Doc.19)
 37º Apesar das insistências efectuadas pela Autora para que o Réu pagasse a referida quantia, este nunca o fez. 
 38º Pelo que, ao capital em dívida supra referido, acrescem juros moratórios à taxa legal de 4% desde a data da notificação para pagamento (22-03-2021) até integral pagamento, encontrando-se contabilizados até hoje (01-06-2022) juros moratórios no valor de 460,31€ (quatrocentos e sessenta euros e trinta e um cêntimos), perfazendo a quantia em dívida, até ao momento, o montante global de 10.094,14€ (dez mil, noventa e quatro euros e catorze cêntimos). 
2. O DIREITO
39º  Refere o douto acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 29-112018, Proc. nº 1919/15.0T8FAR.E1, disponível para consulta em www.dgsi.pt, que: “(…) I – Não se encontra abrangido pelo contrato de seguro de acidentes de trabalho, na modalidade de seguro genérico agrícola, o sinistrado, trabalhador permanente do empregador, se tendo entre este e a seguradora sido celebrado um seguro de acidentes de trabalho, na referida modalidade, que de acordo com as condições especiais da apólice abrangia trabalhadores permanentes e eventuais, devendo em relação àqueles indicar-se no mapa de inventário que faz parte integrante da apólice uma relação do pessoal permanente do tipo de função principal e respetivas retribuições, o empregador não fez constar do referido mapa de inventário o trabalhador sinistrado em causa. (…)”
40º  Mais referindo o supra citado acórdão a fls… que: 
“(…) Sendo pacífico que o autor/recorrido sofreu um acidente de trabalho em 25 de maio de 2013, ao mesmo é aplicável, em matéria de reparação, o disposto na Lei n.º 98/2009, de 4 de Setembro (doravante também designada de LAT).
Por isso, como decorre do artigo 79.º da mesma lei, o empregador encontrava-se obrigado a transferir a responsabilidade pela reparação do acidente para entidade legalmente autorizada a realizar o seguro.
E efetivamente entre o recorrente e a seguradora/recorrida foi celebrado um acordo de seguro de “acidentes do trabalho”, na modalidade de seguro genérico agrícola, completo a prémio fixo, nos termos indicados na apólice nº …, com início a 21.04.1986, através do qual o primeiro transferiu a sua responsabilidade para a segunda.
Porém, nos termos da Condição Especial 03, o contrato de seguro genérico ou por área “abrange os trabalhadores, permanentes ou eventuais, empregues em atividades agrícolas por conta do Tomador de Seguro, indicando-se no mapa de inventário que faz parte integrante desta apólice, entre o mais, a relação do pessoal permanente por tipo de função principal e respetivas retribuições; ou seja, para que o contrato de seguro abrangesse os trabalhadores permanentes era necessário que o(s) seu(s) nome(s) constasse do mapa de inventário, com indicação da função principal e respetiva retribuição.
No entanto, encontrando-se o trabalhador sinistrado ao serviço do recorrente desde pelo menos 01-09-2007, trabalhando nos seus prédios todos os dias e residindo num anexo existente na própria zona de cultivo, sendo, pois, um trabalhador permanente, o certo é que o empregador nunca comunicou este facto à seguradora.
Como bem se explicitou no acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 19-12-2012 (Proc. n.º 144/13.3TTLMG.P1, disponível em www.dgsi.pt), «no seguro agrícola, por área, não se indicam os nomes dos trabalhadores em folhas de remunerações, vulgo, folhas de férias, nem há o envio das mesmas à seguradora. Nesta modalidade, a cobertura do contrato, quanto aos trabalhadores seguros, respeitam, apenas, aos que trabalham na propriedades agrícolas do segurado, locais de risco devidamente identificados nas condições particulares. O risco, em vez de ser definido com referência predominantemente às retribuições auferidas pelos trabalhadores, como no seguro a prémio variável, é definido com referência, em especial, à área agricultável; na verdade, estabelecendo como critério de determinação do risco a área de laboração agrícola, fica secundarizado o número de dias de trabalho ou o número de trabalhadores por dia de trabalho, podendo o tomador do seguro fazer a gestão de pessoal que mais lhe aprouver, sem necessidade de remeter folhas de férias com o número e os nomes dos trabalhadores e respetivos dias de trabalho, como sucede no contrato de seguro a prémio variável.[…]
Daí não decorre, no entanto, que o tomador do seguro não tenha de dar cumprimento às regras estabelecidas nas condições gerais, especiais e particulares do contrato de seguro firmado com a seguradora, para quem transferiu a sua responsabilidade infortunística laboral. Tal como em qualquer outro contrato, ele deve ser cumprido pontualmente, no duplo sentido de que a prestação deve ter em conta toda a extensão da obrigação, todas as cláusulas do contrato, bem como o seu tempo, prazos, etc., como flui do disposto no Art.º 406.º, n.º 1 do Cód. Civil.
Podendo o seguro abranger trabalhadores eventuais e/ou permanentes, deve o tomador fazer as necessárias indicações à empresa de seguros (…)
Na verdade, não é pela circunstância de o seguro agrícola genérico e por área ter a área cultivável, as culturas e os animais como critérios de determinação do risco, que os elementos pessoais não sejam de considerar também nessa determinação. E sãono, pois embora não seja necessário indicar a lista dos trabalhadores eventuais, é sempre necessário definir as respetivas retribuições máximas, bem como a lista dos trabalhadores permanentes, de modo que a liberdade de gestão do tomador do seguro - do empregador - só se pode exercer depois e para além da satisfação dos referidos pressupostos.
Por outro lado, sendo o contrato de seguro um negócio formal, atento o disposto no Art.º 426.º do Cód. Comercial, o objeto do contrato tem de constar das condições da apólice, nomeadamente, das condições particulares. Daí que não se possa considerar abrangido pelo objeto do contrato de seguro uma categoria de trabalhadores que não esteja mencionada em qualquer das condições da apólice: gerais, especiais ou particulares; aliás, no seguro a prémio variável, a falta do nome do trabalhador nas folhas de férias, exclui-o da cobertura do seguro, como é sabido.
In casu, como vem provado, nas condições particulares, ou em quaisquer outras, nenhuma menção é feita a trabalhadores permanentes pelo que, sendo o A. um trabalhador desta categoria, não está abrangido pelo contrato de seguro celebrado pelos RR. pessoas singulares. Tal decorre de uma interpretação literal da condição especial 03 e dos factos provados, sem necessidade de outros subsídios».
A análise feita no transcrito acórdão é, mutatis mutandis, aqui plenamente aplicável.
Resta acrescentar que tendo o contrato de seguro dos autos sido celebrado em 2104-1986, estando sujeito a renovação periódica não lhe são aplicáveis as regras respeitantes à formação do contrato que decorrem da Lei n.º 72/2008, de 16 de abril, que aprovou o regime jurídico de contrato de seguro e que entrou em vigor em 1 de janeiro de 2009 (vide artigo 3.º da referida lei que aprovou o contrato de seguro).
Por consequência, sendo o autor/recorrido trabalhador permanente do recorrente/empregador, mas não tendo este feito constar aquele do mapa de inventário que faz parte integrante da apólice, não se encontra abrangido pelo respetivo contrato de seguro. (…)”.
41ºRefere o art. 473.º do Código Civil que: “1. Aquele que, sem causa justificativa, enriquecer à custa de outrem é obrigado a restituir aquilo com que injustamente se locupletou. 2. A obrigação de restituir, por enriquecimento sem causa, tem de modo especial por objecto o que for indevidamente recebido, ou o que for recebido por virtude de uma causa que deixou de existir ou em vista de um efeito que não se verificou.”
42º Determina o art. 478º do Código Civil que: “Aquele que cumprir obrigação alheia, na convicção errónea de estar obrigado para com o devedor a cumpri-la, não tem o direito de repetição contra o credor, mas apenas o direito de exigir do devedor exonerado aquilo com que este injustamente se locupletou, excepto se o credor conhecia o erro ao receber a prestação.”
43º Estabelece o art, 479.º do Código Civil que: 
(…)
 44ºA Autora e o Réu têm personalidade e capacidade judiciárias e são partes legítimas nesta acção.”
Regular e pessoalmente citado, o réu contestou, invocando a exceção dilatória de incompetência do Tribunal em razão da matéria, sustentando que a competência para apreciar a causa pertence ao Juízo do Trabalho.
Correspondendo a convite expresso manifestado em despacho do Tribunal a quo, a autora apresentou novo articulado, no qual se pronunciou sobre a exceção de incompetência material invocada pelo réu, pugnando pela sua improcedência.
Seguidamente foi proferida decisão com o seguinte dispositivo:
“- Julgo verificada a exceção dilatória de incompetência absoluta, em razão da matéria.
- Determino a notificação da Autora para, querendo, requerer a remessa dos presentes autos para o Tribunal do Trabalho do Funchal, após trânsito da decisão.  Custas pela Autora, por ter dado origem à presente causa – cfr. artigo 527.º do Código de Processo Civil.
Registe e Notifique.”
Inconformada, a autora interpôs recurso de apelação, apresentando alegações que resumiu nas seguintes conclusões:
1. Não pode a Recorrente concordar com a douta sentença recorrida que julgou verificada a exceção dilatória de incompetência absoluta, em razão da matéria, e que considerou que a competência para o julgamento da presente ação pertence aos juízos do trabalho.
2. A competência do tribunal, como pressuposto processual que é, determina-se pelos termos em que o autor estruturou o pedido e a causa de pedir.
3. A verificação da existência ou inexistência dos pressupostos de facto e de direito da procedência da ação de regresso é questão de mérito e não da competência do tribunal.
4. Na petição inicial a Autora invocou que celebrou com o Réu um contrato de seguro do ramo de acidentes de trabalho por conta de outrem, na modalidade genérico agrícola, que se rege pela condição especial 03 Seguro de Agricultura (Genérico e por Área).
5. No dia 20 de outubro de 2020, ocorreu um acidente de trabalho, envolvendo o trabalhador do Réu, do qual resultaram ferimentos para o aludido trabalhador. O dito trabalhador recebeu assistência médica, cirúrgica, medicamentosa, internamento hospitalar, etc., a qual foi custeada pela Autora. A Autora liquidou igualmente ao trabalhador quantias a título de prestação suplementar a 3ª pessoa.
6. Sucede que, no decurso do processo de averiguações, apurou a Autora que o trabalhador sinistrado era um trabalhador permanente, sendo que os trabalhadores permanentes não se encontram cobertos pela apólice.
7. Pelo que intentou ação solicitando que o Réu reembolsasse à Autora das quantias despendidas por força do dito acidente, nos termos do direito de subrogação previsto no art. 592º, nº1 do C.C., ou caso assim não se entenda, por força das regras do enriquecimento sem causa prevista nos arts. 473º, nº1, 478º e 479º do Código Civil. (cfr. art. 34º da p.i.)
8. In casu, estamos perante um direito de crédito que tem por fundamento o direito de regresso de que a Autora é titular, pelo facto de ter despendido quantias com a regularização do sinistro, sendo que posteriormente veio a apurar-se que o trabalhador não estava coberto pela apólice.
9. Pelo que a responsabilidade do Réu, entidade empregadora, não se encontrava transferida para a Seguradora, ora Autora, solicitando esta à entidade empregadora o reembolso das quantias despendidas, ao abrigo do direito de sub-rogação ou caso assim não se entenda, com base no enriquecimento sem causa, sendo estas matérias eminentemente de natureza civil e não do foro laboral.
10. A relação invocada na petição inicial, visando o exercício do direito de regresso, consubstancia uma relação jurídica autónoma da lateral decorrente do acidente de trabalho, embora com ela conexa. Nela pretende discutir-se em via principal o contrato de seguro celebrado entre as partes e se o mesmo cobria ou não o trabalhador sinistrado em questão.
11. Embora a ação tenha uma causa de pedir complexa e que dela faz parte o acidente de trabalho, este não pode deixar de ser considerado uma componente “naturalística”, porquanto no essencial, o que importa considerar é o direito de regresso da seguradora.
12. Não basta que a Seguradora tenha incluído na causa de pedir a ocorrência de um acidente de trabalho para se concluir que são os juízos de trabalho os tribunais competentes para julgar o pleito.
13. Os Juízos do Trabalho não têm competência exclusiva para qualificar um acidente como de trabalho. (cfr. p. ex. pedidos de reembolso da seguradora laboral em processos cíveis, apreciando e julgando o tribunal cível se se trata de um acidente simultaneamente de trabalho e viação, sem que exista uma sentença prévia proferida no Juízo de Trabalho a reconhecer a existência de acidente de trabalho, ou mesmo sem que tivesse sido instaurada ação emergente de acidente de trabalho, existindo sim despesas efetuadas pela seguradora laboral cujo reembolso solicita).
14. “Entende-se por «questões emergentes de acidentes de trabalho», referidas no art. 126.º, n.º 1, al. c), da LOSJ, as que têm como causa de pedir o acidente de trabalho, nomeadamente as relativas à sua verificação, ao apuramento dos danos dele resultantes, e à determinação da correspondente indemnização; e que constituem preciso objecto do processo de acidente de trabalho, incluindo os respectivos incidentes de revisão, remissão ou actualização de pensão.” (cfr. o douto acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 21-11-2019, Proc. nº 3112/19.3T8BRG.G1)
15. “Estarão aqui em causa os pedidos ou as pretensões que emergem, resultam, têm como causa de pedir o acidente de trabalho, sendo o preciso objecto do que o CPT designa de processos de acidente de trabalho (visando a fixação de pensão, indemnização pecuniária ou prestações em espécie), incluindo os respectivos incidentes de revisão, remissão ou actualização de pensões.”. (cfr. citado acórdão)
16. “o âmbito de aplicação do art. 154.° do CPT está reservado aos processos que têm por objecto as questões de enfermagem ou hospitalares, de fornecimento de medicamentos emergentes da prestação de serviços clínicos, de aparelhos de prótese e ortopedia ou de quaisquer outros serviços ou prestações efectuados ou pagos em benefício de vítimas de acidentes de trabalho ou doenças profissionais (de forma conforme com a previsão da al. d), do art. 126.° da LOFT (5)).
Logo, os terceiros, em relação ao acidente de trabalho, que se referem no art. 154.º do CPT, serão apenas as pessoas ou entidades a quem não cabe nenhuma obrigação no cumprimento das reparações a que houver lugar, mas que, de qualquer forma, concedem prestações, regra geral, em espécie, necessárias ao socorro, restabelecimento do estado de saúde e recuperação para a vida activa da vítima (Carlos Alegre, Processo Especial de Acidentes de Trabalho, Almedina,1986, pág. 236).
Ora, a seguradora, a entidade patronal ou o empreiteiro geral não são, como sucede habitualmente neste tipo de acções, terceiros como um hospital ou instituição congénere. (…)” (cfr. citado acórdão)
17. Pelo que a relação jurídica delineada pela Autora na petição inicial não é subsumível ao disposto no art. 126º, nº1, al.s c) e d) da L.O.S.J., porquanto nem a sua posição está em confronto com o sinistrado, não visando a fixação de pensão, indemnização pecuniária ou prestações em espécie, incluindo os respetivos incidentes de revisão, remissão ou atualização de pensões, nem é um hospital ou instituição congénere.
18. Embora a causa de pedir invocada esteja relacionada com acidentes de trabalho, não radica diretamente naquela, mas sim numa relação jurídica diversa, de carácter civil (sub-rogação e/ou enriquecimento sem causa), pelo que os Tribunais de Trabalho não são os competentes em razão da matéria, mais sim os Tribunais Cíveis, de competência residual.
19. A relação jurídica configurada nos autos tem natureza cível, e não laboral, porquanto se reporta ao direito de crédito emergente da relação de sub-rogação ou enriquecimento sem causa, distinta dos direitos emergentes do acidente de trabalho, para o sinistrado respetivo.
20. A relação material controvertida tal como delimitada pela Autora na petição inicial, não configura uma relação de natureza infortunístico-laboral, afeta ao foro laboral, mas uma relação jurídico-material eminentemente civil, afeta ao foro comum.
21. Decidindo como decidiu, a douta sentença recorrida violou o disposto nos art.s 211º da CRP, art. 64º do C.P.C., arts. 38º, 40º, 126º, nº1, al.s c) e d) da L.O.S.J.
Rematou as suas conclusões nos seguintes termos:
“(…) deve ser concedido provimento ao presente recurso e, em consequência, ser revogada a douta sentença recorrida, a qual deverá ser substituída por acórdão que considere verificada a competência, em razão da matéria, do tribunal recorrido, e determine o prosseguimento dos autos (…).”
O apelado contra-alegou, sintetizando a sua posição nas seguintes conclusões:
a) Improcedem, por total falta de fundamento, todas as conclusões da apelante;
b) A causa de pedir invocada pela apelante consubstanciou-se no alegado direito de regresso por pagamento de custos resultantes de um acidente de trabalho de um trabalhador ao serviço do recorrido não coberto por seguro;
c) Tal pressuposto/fundamento não está assente e não se verifica;
d) Como não se verificam, do mesmo modo, os pressupostos do também invocado enriquecimento sem causa;
e) A verificação da competência ou competência em razão da matéria do tribunal recorrido é uma questão processual de conhecimento oficioso do próprio tribunal recorrido (Artº97º do C.P.C.) podendo, como o foi, ser também arguida pelas partes;
f) A douta sentença recorrida, decidindo como decidiu, fez correta apreciação da factualidade invocada – designadamente pela apelante na sua P.I.  – e correta aplicação das normas legais aplicáveis, maxime, do disposto nos Artº126º da L.O.S.J.,96º, al.a), 98º, 99º e 278º, nº1,al.a), todos do C.P.C.
Admitido o recurso, remetidos os autos a este Tribunal, e nada obstando ao conhecimento do mérito do mesmo, foram colhidos os vistos.
2. Objeto do recurso
Conforme resulta das disposições conjugadas dos arts. 635º, n.º 4 e 639º, n.º 1 do CPC, é pelas conclusões que se delimita o objeto do recurso, seja quanto à pretensão dos recorrentes, seja quanto às questões de facto e de Direito que colocam[1]. Esta limitação dos poderes de cognição do Tribunal da Relação não se verifica em sede de qualificação jurídica dos factos ou relativamente a questões de conhecimento oficioso, desde que o processo contenha os elementos suficientes a tal conhecimento (cfr. art. 5º n.º 3 do CPC).
Não obstante, excetuadas as questões de conhecimento oficioso, não pode este Tribunal conhecer de questões que não tenham sido anteriormente apreciadas porquanto, por natureza, os recursos destinam-se apenas a reapreciar decisões proferidas[2].
Assim, a única questão a apreciar e decidir consiste em apreciar se no caso se verifica a exceção dilatória de incompetência absoluta.
3. Fundamentação
3.1. Os factos
Os factos a considerar são os que resultam do relatório que antecede.
3.2 Os factos e o direito
3.2.1. Do Tribunal competente para a apreciar a presente causa
A única questão a apreciar e decidir reside em determinar se se verifica a exceção de incompetência material, determinando se, como decidiu o Tribunal a quo, o tribunal competente para apreciar e julgar a presente causa é o juízo do trabalho, nos termos previstos no art. 126º, nº 1, al. c) da LOSJ ou mesmo em face da al. d) do mesmo preceito ou se, como sustenta a apelante, se deve concluir pela competência do juízo local cível, nos termos previstos no  arts. 64º do CPC e 38º e 40º da LOSJ.
Cumpre apreciar e decidir, tendo presente que, tal como sucede com a legitimidade processual (art. 30º, nº 3 do CPC), também a competência do Tribunal em razão da matéria e, inversamente, a exceção de incompetência, também devem ser apreciadas tendo em conta os sujeitos e o objeto da causa, tal como o autor os configura (ou seja, em função das partes identificadas na petição inicial, do pedido deduzido no mesmo articulado, e da causa de pedir ali invocada). Tal é o que resulta do disposto no art. 38º, nº 1 da LOSJ, o qual dispõe que “A competência fixa-se no momento em que a ação se propõe, sendo irrelevantes as modificações de facto que ocorram posteriormente, a não ser nos casos especialmente previstos na lei.”
No sentido exposto cfr. entre muitos outros, os acs. RC 28-06-2017 (António Carvalho Martins), p. 259/16.1T8PBL.C2, RP 27-01-2020 (Eugénia Cunha), p. 1182/18.0T8VNG.P1; RE 22-10-2020 (Florbela Lança), p. 949/20.4T8FAR.E1, STJ 08-06-2021 (Maria João Vaz Tomé), p. 20526/18.9T8LSB.L1.S1 e STJ 15-02-2023 (Ana Resende), p. 4239/20.4T8STB.E1.S1.
Nos presentes autos veio a autora pedir a condenação do réu a pagar-lhe determinada quantia em dinheiro, alegando que celebrou com este um contrato de seguro de acidentes de trabalho, que ocorreu um sinistro envolvendo um determinado trabalhador do réu, que qualifica como acidente de trabalho, e sustentando que pagou ao sinistrado determinadas quantias, que à data considerou que lhe eram devidas por força da ocorrência de tal acidente e da outorga do contrato de seguro.
Contudo, argumenta a autora, veio a aperceber-se que o contrato de seguro não cobria os acidentes de trabalho sofridos por aquele trabalhador, e que, portanto, pagou indevidamente, cabendo ao réu a responsabilidade de suportar tais despesas.
Fundamenta a pretensão de reembolso das mesmas por parte do réu no direito de sub–rogação legal previsto no art. 592º, nº 1 do CC e, subsidariamente, no instituto do enriquecimento sem causa, previsto e regulado nos arts. 473º e segs. do mesmo código.[3]
Conforme dispõem os arts. 64º do CPC e 40º da LOSJ, os tribunais judiciais têm competência, em razão da matéria, para apreciar as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional.
Por seu turno, estabelece o art. 130º, nº 1 da LOSJ que os juízos locais cíveis, locais criminais e de competência genérica possuem competência na respetiva área territorial quando as causas não sejam atribuídas a outros juízos ou a tribunal de competência territorial alargada.
De outra banda, acrescenta o art. nº 117º nº 1 da LOSJ que compete aos juízos centrais cíveis:
a) A preparação e julgamento das ações declarativas cíveis de processo comum de valor superior a (euro) 50 000,00;
b) Exercer, no âmbito das ações executivas de natureza cível de valor superior a (euro) 50 000,00, as competências previstas no Código do Processo Civil, em circunscrições não abrangidas pela competência de juízo ou tribunal;
c) Preparar e julgar os procedimentos cautelares a que correspondam ações da sua competência;
d) Exercer as demais competências conferidas por lei.
Finalmente o nº 2 do mesmo preceito dispõe que nas comarcas onde não haja juízo de comércio, o disposto no número anterior é extensivo às ações que caibam a esses juízos.
Sucede que, conforme resulta do disposto no art. 126º nº 1 da LOSJ os juízos do trabalho também têm competências em matéria cível, nomeadamente quanto:
- questões emergentes de acidentes de trabalho e doenças profissionais – al c);
- questões de enfermagem ou hospitalares, de fornecimento de medicamentos emergentes da prestação de serviços clínicos, de aparelhos de prótese e ortopedia ou de quaisquer outros serviços ou prestações efetuados ou pagos em benefício de vítimas de acidentes de trabalho ou doenças profissionais – al. d).
A interpretação dos preceitos invocados e a apreciação da questão de saber se as ações em que as seguradoras pretendem exercer o direito de regresso[4] ou sub-rogação legal sobre empregadores invocando a outorga de contratos de seguro de acidente de trabalho e a ocorrência de sinistros como tal qualificados são da competência dos juízos cíveis (central ou local, consoante o valor da causa) ou do juízo do trabalho vêm sendo amplamente debatida na doutrina e na jurisprudência, descortinando-se duas teses.
Assim, para uma primeira corrente, a apreciação e julgamento de tais questões é da competência dos juízos cíveis – Neste sentido se pronunciaram os seguintes arestos[5]:
- RC 28-09-2000 (Fernandes da silva), p. 1474/00;
- STJ 18-11-2004 (Salvador da Costa), p. 04B3847;
- STJ 22-06-2006 (Salvador da Costa), p. 06B2020;
- RE 13-07-2006 (Bernardo Domingos), p. 1218/06-3;
- RL 29-05-2007 (Orlando Nascimento), p., 4343/2007-7;
- RC 17-06-2008 (Gregório Jesus), p. 74/08.6YRCBR.C1;
- RL 03-07-2008 (Eduardo Tenazinha), p. 1261/08-2;
- STJ 14-05-2009 (Sousa Peixoto), p. 09S0232;
- RL 20-04-2010 (Pedro Brighton), p. 1030/08.0TJLSB.L1-1;
- RC 13-09-2011 (Virgílio Mateus), p. 3415/10.2.TBVIS .C1;
- RP 06-05-2013 (Ferreira da Costa), p. 1417/11.0TTBRG.P1;
- RP 18-11-2013 (Manuel Domingos Fernandes), p. 933/13.4TBVFR.P1;
- RC 23-06-2015 (Fernando Monteiro), p. 4/14.3TBMIR-A.C1;
- RG 24-09-2015 (Mª Dolores Sousa), p. 1663/14.5T8VCT.G1;
- RG 05-01-2017 (Fernanda Ventura), p. 3653/15.4T8GMR.G1;
- STJ 14-12-2017 (Olindo Geraldes), p. 3653/16.4T8GMR.G1.S1;
- RG 10-01-2019 (António Penha), p. 100/18.0T8MLG-A.G1[6];
- RL 21-09-2019 (Laurinda Gemas), p. 605/17.0T8MFR.L1-2;
- RG 29-11-2019 (Mª João Matos), p. 3112/19.3T8BRG.G1;
- RP 08-10-2019 (Vieira e Cunha), p. 383/18.6T8VGS-A.P1;
- RG 08-10-2020 (Mª Leonor Barroso), p. 3167/19.0T8BCL.G1;
- STJ 13-10-2020 (Fernando Samões), p. 483/19.5T8LRS.L1.S1;
- RC 22-06-2021 (Moreira do Carmo), p. 10/21.4T8PCV.C1;
- RG 23-06-2021 (Mª dos Anjos Nogueira), p. 123/20.0T8VPC-A.G1;
- RE 16-12-2021 (Cristina dá Mesquita), p. 1196/20.0T8BJA.E1;
- RP 23-02-2023 (Filipe Caroço), p. 557/22.5T8ETR.P1 ;
Já no sentido inverso, considerando que a competência, em razão da matéria, para apreciar e julgar tais causas é dos juízos do trabalho se pronunciaram os seguintes arestos:
- RL 12-12-1985 (Leite Ferreira), p. 0019790;
- RP 27-03-1993 (João Gonçalves), p. 9320327
- RC 26-06-2007 (Silva Freitas), p. 2410/06.0TBVIS.C1;
- RL 12-03-2009 (Ferreira Marques), p. 573/09.2YRLSB-4;
- RP 04-06-2012 (Machado da Silva), p. 155/04.5TTSTS-A.L1;
- STJ 30-04-2019 (Ana Paula Boularot), p. 100/18.0T8MLG-A.G1.S1;
- RP 27-06-2019, Rita Romeira, p. 281/08.11TTVLG-A.P1;
- STJ 05-04-2022 (Ricardo Costa), p. 1759/20.4T8CBR.S1;
… bem como as seguintes decisões, proferidas, no âmbito de conflitos de competência:
- RP 03-07-2003 (Sousa Peixoto), p. 0313016;
- RL 22-09-2022 (Mª do Rosário Gonçalves), p. 15624/20.1T8LSB.L1[7];
- RL 16-11-2022 (Mª do Rosário Gonçalves), p. 13962/19.5T8SNT.L1[8].
Vejamos então.
Na ótica da autora e ora apelante, o réu deve ser condenado a entregar-lhe as quantias peticionadas, porquanto ocorreu um acidente de trabalho sofrido por um trabalhador subordinado do réu, e porque, não sendo o seguro de acidentes de trabalho que outorgou com o réu, pagou ao sinistrado determinadas quantias, a tí8tulo de prestações pecuniárias a que o mesmo tinha direito, mas que tal pagamento era indevido, porquanto o contrato de seguro não cobria tal sinistro, e só fez trais pagamentos porque o réu, indevidamente, participou o sinistro.
A autora alicerça o seu entendimento nas figuras do direito de sub-rogação legal (art. 592º do CC)[9] e, subsidiariamente, no instituto do enriquecimento sem causa (arts. 473º e segs. do CC)[10].
 Salientou o Sr. Procurador-Geral Adjunto que subscreveu o parecer manifestado no já citado proc. 1362/19.5T8SNT.L1[11]:
“No processo para a efetivação de direitos resultantes de acidente de trabalho, regulado nos arts.º 99.º a 150.º do Código de Processo do Trabalho (CPT) prevê-se,  no n.º 1 do art.º 127.º desse Código que “Quando estiver em discussão a determinação da entidade responsável, o juiz pode, até ao encerramento da audiência, mandar intervir na ação qualquer entidade que julgue ser eventual responsável, para o que é citada, sendo-lhe entregue cópia dos articulados já oferecidos.”
E na própria fase conciliatória do processo, o Ministério Público deverá convocar para a tentativa de conciliação todas as eventuais entidades responsáveis, por força do disposto no art.º 108.º, n.º 2, do CPT.
É, por isso, claro que a lei pretende que todos os eventuais responsáveis intervenham no processo especial para a efetivação de direitos resultantes de acidente de trabalho, regulado nos arts.º 99.º a 150.º do CPT.
Conforme tivemos oportunidade de referir noutro momento[12], “(…) alguns autores oportunamente assinalaram que, considerando o regime de responsabilidade solidária previsto no art.º 18.º da LAT em vigor, todos os responsáveis solidários podem e devem agora passar a intervir na ação. A este propósito escreveu Luís Azevedo Mendes que “Se a solidariedade passiva é agora reconhecida em relação a todas as prestações exigíveis (…), então no processo de acidente de trabalho devem ser demandados todos os co-obrigados, por todos os correspondentes credores.”[13]   E, por seu lado, Manuela Fialho aduziu que “em presença de um acidente culposo poderão ser chamados à ação, na qualidade de réus, o empregador, o subempreiteiro, a empresa utilizadora de trabalho temporário e as seguradoras respetivas”[14].
E sobre a questão da competência do tribunal, referiu, ainda,  Luís Azevedo Mendes que “(…) o art.º 18.º da LAT de 2009 ajuda o intérprete e aplicador  da lei a considerar que todos os casos de responsabilidade objectiva e subjectiva nela previstos são agora inequivocamente da competência material dos tribunais do trabalho, compreendendo os pedidos de reparação de danos e a apreciação das questões da responsabilidade individual ou solidária do empregador e das entidades dele representantes que tenham uma actuação na produção do acidente de trabalho”[15].
Daqui se deverá concluir que a questão atinente à eventual responsabilidade subjetiva da entidade empregadora na ocorrência do acidente por se dever à violação de normas de segurança no trabalho, deveria ter sido suscitada e apreciada no processo emergente de acidente de trabalho, se este tivesse decorrido.
Ora, não resulta destes autos que esse processo tenha existido, não sendo feita qualquer referência ao mesmo na PI pela seguradora autora.
Importa recordar que o processo para a efetivação dos direitos resultantes de acidente de trabalho pode, em função da verificação de certos pressupostos, ter obrigatoriamente lugar. Com efeito, a lei impõe um dever de participação do acidente ao tribunal do trabalho a determinadas entidades.
Assim, e especialmente, a seguradora deve fazer essa participação, e dessa forma dar início ao processo de acidente de trabalho, se atribuir incapacidade permanente quando findar o tratamento do sinistrado (n.º 1 do art.º 90.º da LAT) e, ainda, quando o período de incapacidade temporária do sinistrado se prolongue por mais de 12 meses (n.º 3 do art.º 90.º da LAT).
Ora, de acordo com o que é alegado pela seguradora na PI, não parece que nenhuma dessas circunstâncias se tenha verificado neste caso, dado que aí se alega que pagou ao sinistrado indemnizações por incapacidades temporárias e não se alega que ao mesmo tenha sido atribuída incapacidade permanente, bem como não se invoca no pedido de condenação da ré formulado pela seguradora qualquer quantia relativa a pensão devida por incapacidade permanente.
Pelo que, não tendo havido lugar ao processo de acidente de trabalho, a questão da responsabilidade da entidade empregadora, aqui ré nestes autos, não foi feita nesse processo pela simples razão de que o mesmo não existiu. Se esse processo tivesse corrido os seus termos, a apreciação da responsabilidade da entidade empregadora na ocorrência do acidente que a seguradora autora suscita nestes autos, deveria, em princípio, ter sido feita nesse processo, como acima se referiu.
E a ter sido assim, naturalmente que não seria posta em causa a competência material do tribunal (juízo) do trabalho para essa apreciação. Ora, porque não houve processo por acidente de trabalho, a questão da responsabilidade do empregador pela ocorrência do acidente teve de ser submetida ao tribunal pela seguradora através de um outro processo. E é quanto a este que se põe, agora, em causa competência do tribunal do trabalho para apreciar uma matéria para a qual seria, inequivocamente, competente se a mesma tivesse sido objeto do processo emergente de acidente de trabalho.
Ora, deve desde já assinalar-se que a competência material não se afere em função do tipo de processo em que o litígio deve ser tratado.
Tem-se afirmado, em defesa da tese de que a competência material para a apreciação do direito de regresso invocado pela seguradora dever caber ao tribunal cível que, neste caso, a causa de pedir é complexa. Veja-se, por exemplo, o que se escreve no acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 21-11-2019 (p. 3112/19.3T8BRG.G1): “É que sendo a respectiva causa de pedir complexa, dela necessariamente fará parte a ocorrência de um acidente de trabalho (para além da existência de um contrato de seguro de acidentes de trabalho, da satisfação da indemnização devida ao sinistrado beneficiário do dito contrato de seguro, e da imputação da responsabilidade pela ocorrência do mesmo ao demandado de regresso).”
E na mesma linha de raciocínio, afirma-se no acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 22-06-2021 (p. 10/21.4T8PCV.C1):
“Não se divisando, assim, nenhuma incongruência na conclusão de que sendo o Tribunal de Trabalho o competente para aferir da existência de um acidente de trabalho, com a consequente responsabilidade da seguradora, por via da transferência da mesma por via da celebração de contrato de seguro com a entidade patronal, já não o ser, para averiguar, o direito de regresso legal, previsto no art. 79º, nº 3, da LAT, invocado como causa de pedir pela seguradora, fundado no acidente de trabalho ocorrido, pagamento efectuado ao trabalhador e alegada responsabilidade da entidade patronal na ocorrência daquele sinistro.”
Ora, o invocado direito de regresso só será de acolher se se verificar o seu fundamento substantivo que foi alegado pela seguradora autora (no art.º 28.º da PI), isto é, que o acidente ocorreu por não ter sido garantida a observância das regras de segurança no trabalho e, por isso, ter infringido culposamente o disposto no artigo 18º da Lei 98/2009 de 04 de Setembro.
E essa alegada responsabilidade da ré e o consequente direito de regresso da seguradora autora, cuja previsão legal se encontra no art.º 79.º, n.º 3, com remissão para o art.º 18.º, ambos da LAT, não poderá deixar de ser considerada como uma questão emergente de acidente de trabalho, para os efeitos da al. c) do n.º 1 do art.º 126.º da LOSJ (Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto).
A questão nuclear a discutir nesta ação, e que integra a causa de pedir, será a de saber se o acidente ocorreu ou não devido à violação pela entidade empregadora do sinistrado, ré neste processo, das regras de segurança e saúde no trabalho, conforme se prevê no n.º 1 do art.º 18.º da LAT, e as consequências em termos de responsabilidade previstas no mesmo artigo e no n.º 3 do art.º 79.º, se se der como verificada essa violação.
O direito que a seguradora se arroga, e que suporta o pedido de condenação deduzido contra a rés, depende da decisão a proferir quanto à imputação da responsabilidade pela ocorrência do acidente à empregadora aqui ré. E os créditos de que a seguradora quer ser ressarcida mais não são do que o reembolso de quantias que a mesma despendeu com a reparação do acidente e que têm todos origem em prestações reparatórias previstas na Lei de Acidentes de Trabalho.
Assim, são peticionados os valores de prestações em dinheiro (indemnizações por incapacidade temporárias) previstas nas alíneas d) e e) do n. 3 do art.º 48.º da LAT e de prestações em espécie relativas a encargos com tratamentos, conforme se estabelece na LAT, especialmente no seu art.º 25.º.
Como a autora alega no art.º 30.º da PI, nos termos dos art.º 18º n.º 1 e 79º n.º 3 da Lei 98/2009, tem “(…) Direito de Regresso a exercer sobre a Ré, de todas as quantias despendidas por conta da regularização do acidente de trabalho dos autos (…)”.
O que significa que quer a causa de pedir quer o pedido emergem de um acidente de trabalho.
O fundamento jurídico que subjaz ao direito de regresso que a seguradora autora pretende exercer radica na ocorrência de um acidente e na alegação de que o mesmo se ficou a dever à violação de normas de segurança pela entidade empregadora do sinistrado, sendo  esta a matéria sobre a qual incidirá a produção de prova e sobre a qual o tribunal se deverá pronunciar a  final. Ora, de acordo com as razões que presidem à afetação da atividade judiciária a tribunais com competência especializada, será, naturalmente, a justiça do trabalho aquela que estará vocacionada para apreciar a ação.
Acompanha-se, assim, a decisão proferida no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 30-04-2019 (p. 100/18.0T8MLG-A.G1.S1), com o seguinte sumário:
“I A competência do Tribunal, como pressuposto processual que é, determina-se pelos termos em que o autor estruturou o pedido e a causa de pedir.
II Dispõe o artigo 126º da Lei 62/2013, de 26 de Agostos (LOFT), no que respeita à competência cível dos tribunais de trabalho: «1 - Compete aos juízos do trabalho conhecer, em matéria cível: (…) c) Das questões emergentes de acidentes de trabalho e doenças profissionais;».
III O exercício do direito de regresso por parte de uma seguradora – a Autora aqui Recorrida - contra uma entidade patronal – a Ré aqui Recorrrente -, por haver satisfeito uma indemnização a um trabalhador desta, vitima de um acidente de trabalho, no âmbito das obrigações existentes entre ambas em sede de contrato de seguro de acidentes de trabalho, na medida em que lhe imputa o incumprimento das normas de segurança no trabalho, com a violação de normas imperativas destinadas à protecção e segurança dos trabalhadores, não visa discutir uma situação autonomizada – o direito de crédito da Recorrida accionado em sede de regresso -, mas antes a factualidade consubstanciadora que conduziu a esse direito, isto é, o acidente de trabalho.
IV Nos termos do artigo 40º, da LOFT, os Tribunais judiciais têm uma competência residual, apenas intervindo quando as causas não estejam atribuídas a outra ordem jurisdicional e a situação dos autos está expressamente afecta à jurisdição laboral, ex vi do artigo 126º, nº1, alínea c) do mesmo diploma, tendo em atenção o pedido e a causa de pedir.
V Seria uma incongruência concluir-se que o Tribunal de Trabalho era o competente para se aferir da responsabilidade da entidade seguradora nesta sede, por via da transferência das responsabilidades através da celebração obrigatória do contrato de seguro havido com a entidade patronal em sede de acidentes de trabalho, e, já não o seria, para averiguar, afinal das contas, se teria ou não ocorrido uma efectiva responsabilidade funcional desta na ocorrência do sinistro, por forma a desonerar aquela das obrigações assumidas, porquanto o que está em causa, a jusante e a montante, é o acidente de trabalho e as circunstâncias em que o mesmo se verificou.”
Também assim decidiu a Exma.ª Senhora Vice-Presidente do Tribunal da Relação de Lisboa, por despacho proferido em 22-09-2022, no processo n.º 15624/20.1T8LSB.L1, em caso em tudo idêntico ao destes autos
Questão distinta desta é a do meio processual adequado.
No acórdão do STJ citado parece dar-se como pressuposto que a ação decorreria através do processo especial previsto no art.º 154.º do CPT.
Ora, afigura-se que este processo especial apenas é de aplicar quando se pretendam fazer valer direitos de terceiros conexos com o acidente de trabalho. São, por isso, as “questões de enfermagem ou hospitalares, de fornecimento de medicamentos emergentes da prestação de serviços clínicos, de aparelhos de prótese e ortopedia ou de quaisquer outros serviços ou prestações efetuados ou pagos em benefício de vítimas de acidentes de trabalho ou doenças profissionais), conforme se prevê na al. d) do n.º 1 do art.º 126.º da LOSJ.
Pelo que, não cabendo a situação dos autos num processo especial, será aplicável o processo comum, conforme disciplina o n.º 3 do art.º 48.º do CPT.
Diga-se, em todo o caso, que no próprio art.º 154.º, n.º 1, acima referido que se prevê que esse processo especial seguirá a tramitação do processo comum.
Todavia, e como acima se disse, tal não é relevante para a decisão sobre a competência material do tribunal, dado que esta não se define em função do tipo de processo.”
Subscrevemos inteiramente a posição e as conclusões manifestadas no trecho transcrito, que consideramos totalmente transponíveis para a situação dos presentes autos, embora no caso vertente a responsabilidade do empregador não tenha sido invocada com fundamento em atuação culposa deste que dá causa ao acidente (art. 18º da LAT), mas sim em consequência da invocada inexistência de seguro válido e eficaz que cobrisse o sinistro dos autos.
De qualquer modo salienta-se que no caso vertente, como no caso apreciado no parecer acima transcrito, a apelante não esclareceu se correu ou não termos um processo emergente de acidente de trabalho relativamente ao sinistro em apreço.
Seja como for, não obstante se reconheça que a doutrina e jurisprudência vêm sustentando que o direito de regresso ou sub-rogação legal invocado pela seguradora tem autonomia e segue um regime diverso daquele que rege o direito do sinistrado, a verdade é que no caso vertente, a procedência da presente ação depende da alegação e prova:
- Da ocorrência de um acidente de trabalho;
- Da determinação das prestações pecuniárias a que o sinistrado tinha direito em consequência de tal acidente;
- Do pagamento de tais prestações, ou parte delas, pela autora e apelante, na sua qualidade de seguradora;
- Da inaplicabilidade do contrato de seguro celebrado entre as partes no que tange ao acidente de trabalho sofrido pelo trabalhador do réu;
- Da conclusão de que a entidade responsável pelo ressarcimento do mesmo acidente é o réu.
Todas estas questões têm, necessariamente, que ser apreciadas à luz da LAT.
Ora, a especialização dos Tribunais em razão da matéria justifica-se, precisamente, em razão das especificidades do Direito aplicado nesses Tribunais.
À luz destas considerações, consideramos que na presente causa se discutem questões emergentes de acidente de trabalho, pelo que temos por inteiramente aplicável o disposto no art. 126º, nº 1, al. c) da LOSJ.
Daí que para a tramitação da presente causa seja competente o juízo do trabalho.
Tendo a presente ação sido intentada no juízo local cível, forçoso será concluir que o mesmo carece de competência material para a presente causa.
A incompetência material constitui uma forma de incompetência absoluta, que é uma exceção dilatória, de conhecimento oficioso, que dá lugar à absolvição do réu da instância, embora assista a este a faculdade de requerer a remessa do processo para o Tribunal materialmente competente[16] – arts. 96º, al. a); 97º, nº 1, 2ª parte; e nº 2;98º, 99º,  576º, nºs 1, 2, e 3, al. a), 578º, todos do CPC.
Nenhuma censura merece, por isso, a decisão recorrida.
Termos em que se verifica a total improcedência da presente apelação.
3.2.2. Das custas
Nos termos do disposto no art. 527º, nº 1 do CPC, “A decisão que julgue a ação ou algum dos seus incidentes ou recursos condena em custas a parte que a elas houver dado causa ou, não havendo vencimento da ação, quem do processo tirou proveito.”
A interpretação desta disposição legal, no contexto dos recursos, deve atender ao elemento sistemático da interpretação.
Com efeito, o conceito de custas comporta um sentido amplo e um sentido restrito.
No sentido amplo, as custas tal conceito inclui a taxa de justiça, os encargos e as custas de parte (cf. arts. 529º, nº1, do CPC e 3º, nº1, do RCP).
Já em sentido restrito, as custas são sinónimo de taxa de justiça, sendo esta devida pelo impulso do processo, seja em que instância for (arts. 529º, nº 2 e 642º, do CPC e 1º, nº 1, e 6º, nºs 2, 5 e 6 do RCP).
O pagamento da taxa de justiça não se correlaciona com o decaimento da parte, mas sim com o impulso do processo (vd. arts. 529º, nº 2, e 530º, nº 1, do CPC). Por isso é devido quer na 1ª instância, quer na Relação, quer no STJ.
Assim sendo, a condenação em custas a que se reportam os arts. 527º, 607º, nº 6, e 663º, nº 2, do CPC, só respeita aos encargos, quando devidos (arts. 532º do CPC e 16º, 20º e 24º, nº 2, do RCP), e às custas de parte (arts. 533º do CPC e 25º e 26º do RCP).
Tecidas estas considerações, resta aplicar o preceito supracitado.
No caso vertente, face à total improcedência da presente apelação, as custas deverão ser suportadas pelos apelantes.

4. Decisão
Pelo exposto, acordam os juízes nesta 7ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa em julgar a presente apelação totalmente improcedente, assim confirmando o despacho saneador apelado.
Custas pelos apelantes.

Lisboa, 16 de maio de 2022
Diogo Ravara
Ana Rodrigues da Silva
Micaela Sousa
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[1] Neste sentido cfr. Abrantes Geraldes, “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, 5ª Ed., Almedina, 2018, pp. 114-117
[2] Vd. Abrantes Geraldes, ob. cit., p. 119
[3] Cfr. arts. 34º e 41º a 43º da petição inicial.
[4] O art. 79º, nº 3 da LAT refere-se a direito de regresso, embora se afigure que se aqui se trata, efetivamente, de sub-rogação legal. Neste sentido cfr, entre muitos outros, os acs. STJ 18-09-2014 (António da Silva Gonçalves), p. 7022/12.7T2SNT.S1, STJ 7-02-2017 (Fonseca Ramos), p. 3115/13.1TBLLE.E1.S1; RC 31-10-2016 (Jorge Arcanjo), p. 1208/05.8TBTMR-C1, RC 12-03-2019 (Moreira do Carmo), p. 1977/15.7T8VIS.C2 e AZEVEDO MENDES, “Apontamentos em torno do art. 18º da LAT de 2009: Entre a clarificação e a inovação na efectividade da reparação dos acidentes de trabalho” in Prontuário de Direito do Trabalho, 88-89 janeiro-abril / maio-agosto de 2011, pp. 124-146, em especial pp. 137-142.
[5] Que indicamos por ordem estritamente cronológica.
[6] Inédito.
[7] Inédita.
[8] Inédita.
[9] Vd. art. 34º da p.i..
[10] Vd. arts. 34º e 41º a 43º da p.i..
[11] Dr. Viriato Reis.
[12] “Especificidades do processo por acidente de trabalho”, texto que serviu de base à comunicação apresentada no XI Colóquio do Supremo Tribunal de Justiça sobre Direito do Trabalho, que decorreu no dia 16-10-2019. Consultável em:
https://www.stj.pt/wp-content/uploads/2020/01/cdt2019_viriatoreisespecificidadesprocessoacidentetrabalho.pdf
[13] “Apontamentos em torno do artigo 18.º da LAT de 2009: entre a clarificação e a inovação na efectividade da reparação dos acidentes de trabalho” in Prontuário de Direito do Trabalho, CEJ/ Coimbra Editora, n.ºs 88/89, p. 143.
[14] “Legitimidade processual laboral – apontamento”, in Prontuário de Direito do Trabalho, CEJ/Almedina, n.º 2016-II, p. 211.
[15] Obra e local cit.
[16] Trata-se de uma manifestação de renovação da instância.