Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
20628/17.9T8LSB.L1-8
Relator: ANTÓNIO VALENTE
Descritores: REGISTO COMERCIAL
NULIDADE
DIRECTOR-GERAL DOS REGISTOS E DO NOTARIADO
CONSERVADOR DO REGISTO COMERCIAL
LEGITIMIDADE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 04/04/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: - Na acção visando obter declaração de ser falso o documento apresentado na Conservatória do Registo Comercial e consequentemente obter a declaração de nulidade do registo, verifica-se a excepção de ilegitimidade passiva, quando tal acção é dirigida contra a própria Conservatória.
- Alegando a Autora que o documento apresentado na Conservatória consiste numa falsificação da deliberação da sua administração, o litígio ocorre entre administradores ou ex-administradores da Autora a que, naturalmente, é inteiramente alheia a Conservatória.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: PROCESSO Nº 20628/17.9T8LSB.L1

A [ …..- CABELEIREIROS, S.A], veio intentar a presente acção declarativa sob a forma de processo comum contra Director-Geral dos Registos e do Notariado/Conservatória Do Registo Comercial de Lisboa, formulando, a final, os seguintes pedidos:
a) Seja declarada a falsidade do documento correspondente à versão dos Estatutos constante do Documento 1 e que serviu de base ao registo correspondente à "Insc. 5 AP. 181/20161114 - ALTERAÇÃO PARCIAL COM REMODELAÇÃO TOTAL DO CONTRATO DE SOCIEDADE" lavrado pela Ré;
b) Seja declarada a nulidade e consequentemente cancelado o registo correspondente à "Insc. 5 AP. 181/20161114 - ALTERAÇÃO PARCIAL COM REMODELAÇÃO TOTAL DO CONTRATO DE SOCIEDADE" lavrado pela Ré;
c) Seja anotada ao registo correspondente à "Insc. 5 AP. 181/20161114 - ALTERAÇÃO PARCIAL COM REMODELAÇÃO TOTAL DO CONTRATO DE SOCIEDADE" lavrado pela Ré a propositura da presente acção, bem como a decisão que sobre a mesma recaia;
d) Seja a propositura da presente acção comunicada ao Ministério Público para os devidos efeitos.
Alega para tanto que a ré lavrou registo com base em documento falso. A ré contestou, alegando desde logo como excepções a falta de personalidade jurídica e capacidade judiciária e a sua ilegitimidade passiva. Também alega que existe ineptidão da petição inicial e erro na forma de processo (neste caso advogando que o meio próprio para atingir os fins a que se propõe seria o processo de rectificação do registo). Por fim, impugna a matéria factual aduzida pela autora.
A A respondeu conforme fls. 89.
Foi proferida decisão, em sede de saneador, que julgou a Ré parte ilegítima, absolvendo-a da instância.

Inconformada recorre a Autora, concluindo que:
1) Vem o presente recurso interposto da Sentença proferida pelo Tribunal a quo que julgou procedente a exceção de ilegitimidade passiva invocada pela Recorrida e, consequentemente, a absolveu da instância.
2) A Sentença recorrida fez má interpretação e aplicação do direito ao caso sub judice, uma vez que estamos perante uma ação de nulidade registal que incide sobre um ato de registo, e não para declaração de qualquer outro tipo de nulidade, designadamente substantiva, do negócio jurídico subjacente.
3) A nulidade do registo, por sua natureza, afeta os atos praticados no âmbito da função do Conservador, a qual tem por fundamento os poderes e a fé pública que lhe são conferidos, tendo paralelismo como caso prático com o caso da impugnação judicial de atos de registo, que é proposta contra o serviço de registo.
4) Para aferir da legitimidade passiva, torna-se igualmente necessário distinguir - onde o Tribunal a quo parece confundir - legitimidade processual de interesse substantivo, existindo aliás no nosso ordenamento jurídico diversos exemplos em que a efetiva legitimidade processual não exige o interesse em contradizer, ou até casos em que, da decisão proferida não advém qualquer prejuízo para o sujeito processual a quem a lei. apesar disso, não deixa de reconhecer legitimidade processual.
5) Na esteira do que sustenta a doutrina e jurisprudências dominantes sobre o tema: "o facto jurídico inscrito padece do vício substantivo: o registo, por seu turno, é extrinsecamente nulo, porque lavrado com base num título falso ou com base num título insuficiente para a prova legal do facto registado (cfr. a parte final da alínea a) e a alínea b) do Cód. Reg. Pred.) e, portanto, padece de uma nulidade (extrínseca) consequencial.
Ora, parece-nos evidente que cada um destes vícios tem o seu respectivo regime.
Assim, em nossa opinião, não obstante um registo poder ser intrínseca ou extrinsecamente nulo, nos termos do art. 16º do Cód. Reg. Pred. e o nº 2 do art. 17º do Cód. Reg. Pred. conceder tutela a um terceiro -adquirente de boa fé e a título oneroso -perante qualquer registo nulo que haja suportado a feitura do seu e, portanto, também perante um assento extrinsecamente inválido, a verdade é que, se em causa estiver um vício registaI extrínseco, não há necessidade de compatibilizar ou harmonizar o art. 17º do Cód. Reg. Pred. com o art. 291º do Código Civil, porquanto aquele preceito legal se aplica à nulidade registaI, nunca à invalidade substantiva que lhe tenha dado causa.
6) Acresce que, contrariamente ao que consta da Sentença recorrida, existe em tais casos uma verdadeira relação controvertida, emergente da relação registal estabelecida entre o requerente e a conservatória competente.
7) Na presente açõo. a Recorrida tem verdadeiro interesse em contradizer a demanda, podendo intervir processualmente em defesa da eventual validade ou regularidade do ato de registo de realizou e do seu acerto ou desacerto.
8) O que, aliás, fez em sede de contestação, defendendo a alegada regularidade do registo que lavrou.
9) Por outro lado, e também contrariamente ao que consta da Sentença recorrida, a eventual procedência da ação sempre culminaria num efetivo prejuízo para a Recorrida, a qual seria condenada a promover, a suas expensas, o cancelamento do registo que lavrou indevidamente, comportamento esse que vai em sentido inverso daquele por si praticado e que constitui objeto de sindicância judicial.
 10) Mesmo que assim não fosse. sempre se dirá que a Recorrida tem efetivo interesse (material) em contradizer - mesmo que n'ão tivesse interesse em defender a validade ou legalidade do ato de registo por si praticado -, quanto mais não seja pelo facto de, da procedência da presente ação, resultar para a Recorrida a obrigação de cancelar o registo em apreço, a sua próprias expensas, o registo cujo cancelamento é peticionado.
11) Acresce que inexistem outros sujeitos contra quem a presente ação pudesse ser intentada: certamente nunca contra a própria Recorrente ou os seus legais representantes, não havendo, aliás. quaisquer titulares inscritos pelo ato sujeito a registo.
12) Pelo que deve revogar-se a Sentença proferida pelo Tribunal a quo ordenando-se a sua reforma no sentido da improcedência da exceção da ilegitimidade passiva, com o consequente prosseguimento dos autos.
Cumpre apreciar.
Não está aqui em causa qualquer factualidade provada mas tão só a questão da legitimidade passiva da Ré.
Na presente acção a Autora vem pedir que seja declarada a nulidade do registo de alteração dos Estatutos da mesma Autora, pois tal registo foi elaborado com base em documento falso. Em consequência dessa declaração de falsidade do documento e de nulidade do registo, deve este ser cancelado.
Assim, pretende a Autora que se declare a falsidade do documento em causa, nomeadamente a redacção do art. 17º dos Estatutos da Autora constante de fls. 14 do documento de fls. 14 dos presentes autos, e como tal a declaração de nulidade do registo efectuado com base em tal documento.
O art. 30º nº 1 do CPC afere o conceito de legitimidade pelo interesse directo em demandar ou em contradizer, conforme se trate do Autor ou do Réu.
E no nº 3 do mesmo preceito pode ler-se que “na falta de indicação da lei em contrário, são considerados titulares do interesse relevante para o efeito da legitimidade os sujeitos da relação controvertida, como é configurada pelo autor.”
Ou seja, independentemente do eventual mérito da causa, a legitimidade deverá aferir-se pela coincidência entre o Autor e o sujeito do direito que se pretende ver reconhecido e/ou satisfeito, bem como da coincidência entre o Réu e o sujeito da obrigação de reconhecer e/ou satisfazer tal direito. Isto nos termos em que o Autor configura a sua petição inicial.
Isto sem embargo dos casos em que é a lei a prever uma dissociação entre sujeito da acção e sujeito ou titular do direito ou da obrigação, como é o caso da sub-rogação do credor ao devedor prevista no art. 606º nº 1 do Código Civil, na qual o interesse do Autor será indirecto.
No caso dos autos, a Autora pede:
a) Declaração de falsidade do documento que serviu de base ao registo;
b) declaração de nulidade do registo;
c) seja cancelado tal registo.
O facto que serviu de base ao registo, nos termos da petição, foi a apresentação na conservatória de uma folha que integraria a deliberação aprovada pelo concelho de administração da Autora. Todavia, ao contrário das outras folhas que integram tal deliberação, a folha em causa teria sido introduzida posteriormente, não correspondendo o seu teor a nada que tivesse sido deliberado.
Como se vê, a relação material controvertida configurada pela Autora integra necessariamente, na parte passiva, quem falsificou o documento e o apresentou na conservatória. A conservatória, em si, é inteiramente alheia à elaboração e ao uso do documento falso, até porque tal falsidade não era patente ou óbvia ou tal não é alegado como fundamento do pedido.
Por outro lado, não estamos perante um recurso contencioso de uma impugnação de decisão do conservador.
A invocada nulidade do registo resulta assim da prova da falsidade de uma folha do documento apresentado na conservatória e com base no qual foi efectuado o registo.
Ora, a conservatória não tem qualquer interesse em contestar a invocada falsidade, já que não tem nada a ver com a elaboração do documento, que lhe foi apresentado e com base no qual elaborou o registo.
Quem tem interesse em efectuar tal contestação é aquele que o apresentou na conservatória para registo.
Nem vemos como e a que título iria uma conservatória sustentar a autenticidade ou veracidade de uma documento relativo a deliberações da administração da Autora e do evidente litígio entre administradores da mesma.
O registo é nulo quando for falso ou por ter sido lavrado com base em título falso. Acresce que a rectificação do registo nulo só pode ser invocada depois de declarada por decisão judicial transitada em julgado, art. 22º nº 3 do CRC.
A falsidade em questão, como se observa no acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 21/11/2017, disponível no endereço da dgsi, “é a regulada pelas normas do direito substantivo, v. art. 372º do Código Civil”.
É que a falsidade invocada não diz respeito – nem a Autora o invoca – aos actos praticados pelo conservador no âmbito do registo.
A falsidade consiste, segundo a Autora, em ter sido introduzida uma folha, posteriormente à deliberação da accionista única da Autora que alterou os estatutos da sociedade, folha essa contendo uma alteração ao 17º dos Estatutos, que não era a que havia sido objecto de tal deliberação. E foi essa versão da deliberação que foi presente à Conservatória, actuando como requerente do registo a Dra. Sofia de Oliveira Moiteiro que igualmente certificou a cópia dessa deliberação da accionista única da Autora.
O art. 17º dos Estatutos, a norma que foi abrangida pela alegada falsidade, passou, na versão ora impugnada a exigir um mínimo de 3 administradores, quando tal artigo, na versão apresentada pela Autora como efectivamente resultante da deliberação, exigia apenas um máximo de 4 administradores sem estabelecer um mínimo., ou seja, podendo a administração como parece ser o caso, ser composta por apenas 2 administradores.
Como dissemos, não pode a conservatória do registo comercial intervir, num litígio interno da Autora, nem é sujeito da obrigação que neste caso se centra na elaboração e apresentação de um documento falso, isto na configuração feita pela própria Autora na petição.
Conclui-se assim que:
– Na acção visando obter declaração de ser falso o documento apresentado na Conservatória do Registo Comercial e consequentemente obter a declaração de nulidade do registo, verifica-se a excepção de ilegitimidade passiva, quando tal acção é dirigida contra a própria Conservatória.
– Alegando a Autora que o documento apresentado na Conservatória consiste numa falsificação da deliberação da sua administração, o litígio ocorre entre administradores ou ex-administradores da Autora a que, naturalmente, é inteiramente alheia a Conservatória.
Termos em que se julga a apelação improcedente, confirmando-se a decisão recorrida.
Custas pela recorrente.
LISBOA, 4/4/2019

António Valente
Teresa Prazeres Pais
Isoleta Almeida Costa