Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
18905/19.3T8LSB.L1-4
Relator: ALBERTINA PEREIRA
Descritores: ACIDENTE DE TRABALHO
DESCARACTERIZAÇÃO
NEGLIGÊNCIA GROSSEIRA E EXCLUSIVA DO SINISTRADO
REQUISITOS
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 05/25/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: N
Texto Parcial: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA A SENTENÇA
Sumário: – Para efeitos de aplicação do preceituado no art.º 14.º, n.º 1, alínea b), da Lei n.º 98/2009, de 4 de setembro, é de concluir que não age com negligência grosseira e exclusiva o sinistrado que salta para a linha de caminho de ferro para ir apanhar o telemóvel que aí havia caído e vem a ser mortalmente colhido por um comboio que circulava no local quando o sinistrado se encontrava a tentar saltar para a plataforma, visto se desconhecer a periodicidade e o horário desse comboio, bem como se o mesmo circulava de acordo com a velocidade legalmente permitida para o local ou em excesso de velocidade.


(Sumário elaborado pela Relatora)

Decisão Texto Parcial:Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação de Lisboa


1.–Relatório


1.-1.–AAA, BBB e CCC, as duas últimas filhas do sinistrado e representadas por sua mãe, …, interpuseram a presente ação especial, emergente de acidente de trabalho contra DDD, pedindo a condenação desta nos seguintes pagamentos:

I– à Autora AAA:
a)-A pensão anual, atualizável, no montante de 3 309,28 €, com início em 17-09-2019, sendo o seu valor atualizado para 3 332,44 €, a partir de 01-01-2020;
b)-Metade do subsídio por morte, no montante de 2 876,02 €;
c)-1 638,84 € de despesas de funeral;

II– à Autora BBB:
a)-A pensão anual e temporária, atualizável, no montante de € 2 206,18, com início a 17-09-2019, sendo o seu valor atualizado para € 2 215,40, a partir de 01-01-2020;
b)-O subsídio por morte, no montante de 1 438,01 € (metade do valor da metade que cabe aos filhos);

IIIà Autora CCC, filha do Sinistrado:
a)-A pensão anual e temporária, atualizável, no montante de 2 206,18 €, com início a 17-09-2019, sendo o seu valor atualizado para 2 215,40 €, a partir de 01-012020;
b)-O subsídio por morte, no montante de 1 438,01 € (metade do valor da metade que cabe aos filhos).

IVJuros de mora, vencidos e vincendos, sobre aquelas prestações, à taxa anual legal, desde a data do respetivo vencimento e até integral pagamento.

Para tanto alegaram, em síntese, que no dia 16/09/2019, quando se deslocava do seu local de trabalho em direção à sua residência, o trabalhador, que exercia funções não especializadas a favor de “….”, no âmbito de um contrato de trabalho entre ambos celebrado, mediante a remuneração anual de €11.030,92, sofreu um acidente mortal, que consistiu em ter sido atropelado por um comboio. A referida sociedade tinha transferido a sua responsabilidade emergente de acidentes de trabalho para a aqui Ré (fls. 244-248 verso). 

Regularmente citada a Ré contestou, admitindo que ocorreu um acidente de trabalho e que para si estava transferida a responsabilidade infortunística relativamente ao Sinistrado, considerando, porém, que tal acidente se mostra descaracterizado uma vez que se verificou, única e exclusivamente, por negligencia grosseira do Sinistrado que saltou para a linha do comboio para a apanhar o telemóvel que aí caiu (fls. 262-268).

As Autoras apresentaram articulado de resposta à contestação, pondo em causa que tenha ocorrido negligência grosseira por parte do Sinistrado, uma vez que o mesmo só saltou para a linha com o objetivo de recuperar o telemóvel, antes que viesse a ser destruído com a passagem de um comboio, sendo certo que era um telemóvel de valor elevado e que lhe tinha sido oferecido pela sua companheira (fls. 306 verso -308).

Foi elaborado despacho saneador, tendo-se fixado a matéria de facto assente, identificado o objeto do litígio e elencado os temas da prova (fls. 310 – 312 verso).  

Procedeu-se à audiência final (fls. 366-367).

Foi proferida sentença (fls. 368 - 377), com o seguinte dispositivo:
“Face ao exposto julga-se a ação procedente e, consequentemente, condena-se a Ré  a pagar:

I– à Autora AAA:
a)- A pensão anual de € 3.309,28 (três mil trezentos nove euros e vinte e oito cêntimos) desde o dia 17 de setembro de 2019, acrescida das devidas atualizações, anuais, até a Beneficiária perfazer a idade de reforma e no montante de € 4.414,37 (quatro mil quatrocentos e catorze euros e trinta e sete cêntimos). a partir daquela idade ou da verificação de deficiência ou doença crónica que afete sensivelmente a sua capacidade para o trabalho
b)- o subsídio por morte, no montante de 2 876,02 (dois mil oitocentos e setenta e seis euros e dois cêntimos;
Quantias estas acrescidas de juros de mora à taxa e anual de 4% , desde o dia 17 de setembro de 2019 até integral pagamento 
c)- a quantia de € 1.638,84 (mil seiscentos e trinta e oito euros e oitenta e quatro cêntimos) de despesas de funeral, acrescida de juros de mora à taxa e anual de 4%, desde a citação da Ré até integral pagamento.

II–à Autora BBB:
a)- uma pensão anual no montante de €2.206,18 (dois mil duzentos e seis euros e dezoito cêntimos) com as legais atualizações, até perfazerem os 18 anos; entre os 18 e os 22 anos, enquanto frequentarem o ensino secundário ou curso equiparado; e entre os 18 e os 25 anos, enquanto frequentarem curso de nível superior ou equiparado. b) o subsídio por morte, no montante de € 1.438,01 (mil quatrocentos e trinta e oito euros e um cêntimo).
Quantias estas acrescidas de juros de mora à taxa e anual de 4%, desde o dia 17 de setembro de 2019 até integral pagamento 

IIIà Autora CCC:
a)- uma pensão anual no montante de €2.206,18 (dois mil duzentos e seis euros e dezoito cêntimos) com as legais atualizações, até perfazerem os 18 anos; entre os 18 e os 22 anos, enquanto frequentarem o ensino secundário ou curso equiparado; e entre os 18 e os 25 anos, enquanto frequentarem curso de nível superior ou equiparado.
b)- o subsídio por morte, no montante de € 1.438,01 (mil quatrocentos e trinta e oito euros e um cêntimo).
Quantias estas acrescidas de juros de mora à taxa e anual de 4%, desde o dia 17 de setembro de 2019 até integral pagamento.”

1.2.Inconformada com esta decisão dela recorre a Ré seguradora (fls. 397-496 verso), finalizando as suas alegações com as seguintes conclusões:
(…)

1.3.As recorridas, patrocinadas pelo Ministério Público, contra-alegaram (fls. 379-383), com vista ao não provimento do recurso.

1.4.O recurso foi admitido no efeito e regime de subida adequados (fls. 383).

1.5.Foram colhidos os vistos e realizada a conferência (fls. 409-410).

Cumpre apreciar e decidir

2. Objeto do recurso
O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das respetivas alegações, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (artigos 635.º, n.º s 3, 639.º, n.º 1e 608.º, n.º 2, do Código de Processo Civil), que não tenham sido apreciadas com trânsito em julgado e das que se não encontrem prejudicadas pela solução dada a outras. Assim, as questões que se colocam à apreciação deste tribunal consistem em saber se não se verifica a existência de acidente de trabalho em virtude de o percurso utilizado pelo trabalhador ter sofrido um desvio, e se, ocorrendo acidente de trabalho, o mesmo se mostra descaracterizado por se verificar a negligência grosseira exclusiva do sinistrado.

3. Fundamentação de Facto

3.1.-Encontram-se provados os seguintes factos:
1.… sofreu um acidente, cerca das 17:30 horas, no dia 16/09/2019, em Lisboa (A)
2.Quando o mesmo trabalhava sob as ordens, direção e fiscalização da entidade Empregadora …., como categoria profissional de trabalhador não especializado. (B)
3.O acidente consistiu em o Sinistrado ter sido atropelado por um comboio, na estação de …, em Lisboa, ao tentar recuperar o seu telemóvel que tinha caído para a linha de caminho de ferro. C)
4.E ocorreu na deslocação do Sinistrado do local de trabalho para a sua residência, no percurso e no período de tempo habituais. (D)
5.O Sinistrado prestava o seu trabalho, de segunda a sexta-feira, entre as 08,00h e as 17,00h. (E)
6.O local de trabalho do Sinistrado era na Av. …, Lisboa (F)
7.E o mesmo residia na …. (G)
8.O Sinistrado deslocava-se a pé do local de trabalho para a estação de comboios de … e nesta estação apanhava o comboio com destino a …, saindo na estação da …, seguindo, depois, a pé para a sua residência. (H)
9.Habitualmente, o Sinistrado apanhava o comboio das 17,21h ou, se perdesse este, o das 17,34h, na estação de …. (I)
10.O Sinistrado faleceu no dia 16/09/2019, em consequência das lesões traumáticas resultantes daquele atropelamento. (J)
11.Na data do acidente, o Sinistrado vivia em união de facto com a 1ªAutora, AAA, há mais de dois anos. (K)
12.O Sinistrado era o pai da 2ª e da 3ª Autoras, BBB e CCC, respetivamente. (L)
13.A 2ªAutora nasceu a 01/02/2005. (M)
14.A 3ªAutora nasceu a 25/05/2006. (N)
15.À data do acidente, o Sinistrado auferia a retribuição global anual de € 11.030,92, constituída por € 600,00 x 14 de remuneração base, € 6,05 x 22 x 11 de subsídio de alimentação, € 0,43 de valor anual de horas noturnas, € 320,92 de valor anual de trabalho suplementar e € 845,47 de valor anual de prémio de desempenho. (O)
16.A entidade empregadora do Sinistrado tinha a responsabilidade emergente do acidente de trabalho totalmente transferida para a Ré DDD, SA, em função da retribuição referida em O). (P)
17.A estação ferroviária … era constituída por 4 linhas de caminho de ferro e 3 plataformas de embarque, encontrando-se estas situadas numa reta extensa e com muito boa visibilidade para ambos os sentidos. (Q)
18.As plataformas de embarque ficam situadas a mais de 1,5 metros acima da linha de caminho de ferro. (R)
19.A estação ferroviária … é atravessada por composições a circular a altas velocidades, nomeadamente respeitante ao Alfa, Intercidades e Regionais e que não têm aí paragem. (S)
20.A circulação desse tipo de comboios é intensa e constante na estação ferroviária em causa. (T)
21.É do conhecimento geral dos utilizadores dessa estação que aí passam comboios de alta velocidade e que não param. (U)
22.A passagem eminente dos comboios que não param e dos que param é sempre anunciada por avisos em alta voz através dos altifalantes da estação e de sinais sonoros dos próprios comboios. (V)
23.No dia e hora em causa, o infeliz Sinistrado … encontrava-se na plataforma de embarque central da estação … a aguardar a chegada do comboio com destino a Sintra, juntamente com outras pessoas. (W)
24.O Sinistrado encontrava-se à beira da plataforma a mexer no telemóvel. (X)
25.A dado momento, o Sinistrado deixou cair o telemóvel à linha de caminho de ferro. (Y)
26.De imediato, o Sinistrado saltou da plataforma de embarque para a linha de caminho de ferro para apanhar o telemóvel. (Z)
27.Nessa altura, as pessoas que se encontravam na plataforma de embarque disseram e chamaram a atenção do Sinistrado que aquele tipo de comportamento era perigoso. (AA)
28.Na altura em que o Sinistrado apanhou o telemóvel, surgiu o Comboio Regional n.º …, proveniente de … e com destino a …, que não parava naquela estação. (BB)
29.A passagem eminente de comboio foi anunciada por avisos em alta voz através dos altifalantes da estação e dos sinais sonoros do próprio comboio, (CC)
30.Sendo que, as pessoas que se encontravam na plataforma de embarque gritaram várias vezes para o Sinistrado se apressar a subir. (DD)
31.No momento em que tentava subir para a plataforma de embarque, o Sinistrado foi colhido pelo comboio. (EE)
32.O condutor do comboio não conseguiu evitar embater no Sinistrado, pois quando o avistou era tarde de mais para conseguir imobilizar a composição. (FF)
33.O telemóvel do Sinistrado, um …, custou € 1.029,99 (1.º
34.O telemóvel foi adquirido em … pela 1ªAutora, a qual havia ofertado ao Sinistrado (2.º)
35.O Sinistrado enviava uma mensagem através do telemóvel, via “messenger”, diariamente para a primeira Autora, ao regressar do trabalho para casa, quando se encontrava na estação de comboios de …, para lhe dizer qual o comboio que ia apanhar (3º)
36.No dia 16/09/2019 a 1ªAutora não chegou a receber essa mensagem (4º)
37.O Sinistrado tinha dificuldades auditivas de ambos os ouvidos (5.º e 6.º)
38.O Sinistrado usava uma prótese auditiva no ouvido esquerdo (7º)
39.Não houve trasladação do corpo do Sinistrado(10º)
40.As despesas do funeral foram pagas pela 1ªAutora, perfazendo o valor de € 1.638,83 (11º)
41.Se o telemóvel não fosse recuperado da linha para onde tinha caído, poderia ser  destruído por um comboio (12º)
42.De imediato, não existia outra forma de recuperar o telemóvel, que não fosse descendo à linha (13º)
43.A oferta referida em 3) ocorreu cerca de uma semana antes da data do acidente (14º).

3.2.Factos não provados
5.º, em parte; 6.º, em parte, 8.º, 9.º, 12.º, em parte e 15.º

4.Fundamentação de Direito

4.1.-Da não verificação de acidente de trabalho em virtude do sinistrado se ter desviado do percurso habitual para apanhar o telemóvel que havia caído na linha férrea.

Relativamente à presente questão, desde já se assinala não assistir razão à Ré, ora Recorrente.

Com efeito, analisando os autos, verifica-se que a mesma não invocou como fundamento para a sua desresponsabilização a não verificação de acidente de percurso em virtude do sinistrado se ter desviado do seu percurso habitual para apanhar o telemóvel que tinha caído na linha férrea. Pelo contrário, em sede de tentativa de conciliação, presidida pelo Ministério Público, que teve lugar no dia 05-01-2021, a Ré seguradora expressamente aceitou que o acidente que vitimou o sinistrado ocorreu “na deslocação do trabalho para casa, no trajeto normalmente utilizado e no período habitualmente gasto”, tendo apenas declinado a sua responsabilidade por considerar que o acidente se deveu “a negligência grosseira do sinistrado(artigos 109.º a 111.º do Código de Processo do Trabalho).

E tanto assim foi, que na sua contestação a Ré voltou a invocar a existência da negligência grosseira do sinistrado para considerar excluída a sua responsabilidade no tocante às consequências do acidente em causa (artigos 6.º a 41.º). Ou seja, na fase contenciosa do presente processo especial emergente de acidente de trabalho, a matéria da exclusão da responsabilidade, com base no disposto no art.º 9.º, n.º 3 (a contrario), da Lei n.º 98/2009, de 4 de setembro, jamais foi suscitada pela Ré, não tendo também sido abordada na sentença recorrida. Configura, assim, tal matéria uma questão nova, cuja apreciação está vedada a este tribunal de recurso conhecer.

Na verdade, consoante emerge do art.º 627.º do Código de Processo Civil, e constitui jurisprudência pacífica, os recursos não se destinam a conhecer questões novas, não apreciadas pelo tribunal recorrido, mas, sim, a apurar da adequação e legalidade das decisões sob recurso, ressalvadas as questões de conhecimento oficioso (Vd., entre muitos outros, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 10-10-2007, proc. n.º 3634/07-3.ª Secção, de 12-042008, proc. n.º 2507/08-3.ª Secção, de 23-09-2009, n.º 5953/03.4TDLSB.S1-3.ª Secção e de 08-02-2016, proc. n.º 207/15.6YRCBR.S1 - 3ª Secção, 06-07-2017, proc. n.º 1637/14.6T8VFX.L1.S1-Revista – 4.ª Secção, de 10-02-2021, proc. n.º 103/16.0T8TMR.C1.S2, Revista – 4.ª Secção, sumariados em www.stj.pt.).

Em consonância com esse entendimento, referem Lebre de Freitas e Armindo Ribeiro Mendes[i] queOs recursos ordinários são, entre nós, recursos de reponderação e não de reexame, visto que o tribunal superior não é chamado a apreciar de novo a ação e a julgá-la como se fosse pela primeira vez, indo antes controlar a correção da decisão proferida pelo tribunal recorrido, face aos elementos averiguados por este último. É, por isso, constante a jurisprudência no sentido de que aos tribunais de recurso não cabe conhecer de questões novas (o chamado ius novorum), mas apenas reapreciar a decisão do tribunal a quo com vista a confirmá-la ou revogá-la. (…)”.

Salientando, por seu lado, Abrantes Geraldes, que “As questões novas não podem ser apreciadas no recurso, quer em homenagem ao princípio da preclusão, quer por desvirtuarem a finalidade dos recursos, pois estes destinam-se a reapreciar questões, e não a decidir questões novas, por tal apreciação equivaler a suprimir um ou mais órgãos de jurisdição”.[ii] [iii] (Nossos sublinhados).

Desta feita, estando em causa questão nova, que não é do conhecimento oficioso, apenas nos resta concluir pela sua improcedência.

4.2.Da descaracterização do acidente de trabalho por negligência grosseira exclusiva do sinistrado
Sustenta a Ré, que a atitude do sinistrado se traduz num comportamento temerário em alto e relevante grau, ostensivamente indesculpável, reprovado por um elementar sentido de prudência e bom senso, sem qualquer relação com qualquer ato ou omissão habitual no dia-a-dia de um utente que utiliza uma plataforma de embarque ferroviário ou de regresso a casa, e que foi a única causa do acidente – encontrando-se, por isso, descaracterizado o acidente, nos termos do art.º 14.º, n.º 1, alínea b), da Lei 98/2009, de 4 de Setembro.

Analisemos,
Começa por se dizer que o trabalhador e os seus familiares têm direito à reparação dos danos emergentes dos acidentes de trabalho, sendo responsável por essa reparação e demais encargos decorrentes de acidente, a entidade que tiver trabalhadores ao seu serviço, ou a entidade legalmente autorizada a realizar seguro (seguradora), para quem tiver sido transferida a referida responsabilidade. É o que resulta dos artigos 2.º, 7.º e 79.º, da Lei 98/2009, de 4 de setembro (doravante indicada por LAT).

No presente caso, como vimos a propósito da questão anterior, as partes aceitaram a existência de acidente de trabalho ocorrido no trajeto utilizado normalmente e pelo período de tempo habitualmente gasto pelo trabalhador no regresso a casa (art.º 9.º, n.ºs 1, alínea a), e 2, alínea b), da LAT).[iv]

O problema surge em virtude de a Ré seguradora pretender declinar a sua responsabilidade infortunística por, em seu dizer, o acidente se mostrar descaracterizado, devido a negligência grosseira do sinistrado.

A matéria em questão encontra-se prevista no art.º 14.º da LAT, onde se enunciam as situações que dão origem à não reparação do acidente. Para o que ora releva, aí consta o seguinte:
1-O empregador não tem de reparar os danos decorrentes do acidente que:
(…)
b)-Provier exclusivamente de negligência grosseira do sinistrado;
(…)
3-Entende-se por negligência grosseira o comportamento temerário em alto e relevante grau, que não se consubstancie em ato ou omissão resultante da habitualidade ao perigo do trabalho executado, da confiança na experiência profissional ou dos usos da profissão”.

A noção de negligência grosseira que consta do referido normativo (embora se possa considerar que já resultava do previsto no art.º 2.º, ponto 2.º, da Lei n.º 1942, de 27-07-1936, e do constante na Base VI, da Lei n.º 2127, de 3 de agosto, ao se referir “a falta grave e indesculpável da vítima”, bem como do art.º 13.º do Decreto 360/71, de 21 de agosto, onde se prescrevia que não se considera “falta grave e indesculpável da vítima do acidente o ato ou omissão resultante da habitualidade ao perigo do trabalho executado, da confiança na experiência profissional ou dos usos e costumes da profissão”), foi assim expressamente referida pelo art.º 7.º, da Lei n.º 100/97, de 13 de setembro, anterior LAT, onde se fez constar que 1-Não dá direito a reparação o acidente (…) b) Que provier exclusivamente de negligência grosseira do sinistrado; (…)”, em conjugação com o disposto no art.º 8.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 143/99, 30 de abril, onde em termos semelhantes ao que atualmente consta refere que “1- Entende-se por negligência grosseira  o comportamento temerário em alto e relevante grau, que não se consubstancie em ato ou omissão resultante da habitualidade ao perigo do trabalho executado, da confiança na experiência profissional ou dos usos e costumes da profissão”. 

Consoante se pode retirar das palavras da Lei, a negligência grosseira traduz-se num comportamento particularmente grave e censurável, de todo injustificado, não decorrente da habitualidade ao perigo do trabalho executado, da confiança na experiência profissional ou dos usos e costumes da profissão.

Compreende-se a exigência do legislador no que toca à previsão desse tipo de negligência para efeitos de descaracterização do acidente. Pois, se é certo, a responsabilidade por acidentes de trabalho nem sempre assentou nos mesmos pressupostos, o sistema de reparação dos acidentes de trabalho é (na atualidade) comumente entendido como um sistema especial de responsabilidade civil objectiva do empregador, de claro pendor social, razão pela qual não pode ser qualquer tipo de negligência que deve servir para excluir a responsabilidade pela reparação do acidente. O trabalho é obra dos homens e estes estão sujeitos a enganar-se a cometer falhas e erros, como qualquer ser humano.

Como refere Júlio Gomes[v], “(…) desde a sua génese que que os sistemas de reparação dos acidentes de trabalho assentam na normal coexistência entre risco (ou responsabilidade objetiva do empregador) e a culpa do sinistrado: boa parte dos acidentes de trabalho decorre de distrações, inadvertências, imperícia, mas também de desatenção e mesmo desrespeito pelas regras de segurança. Só em casos excecionais é que a responsabilidade do empregador deve ser excluída nessas situações – em suma, a descaracterização do acidente deve restringir-se a situações muito graves do ponto de vista do juízo de censura do sinistrado – sob pena de a pessoa que trabalha e que, como pessoa comete erros, com maior ou menor frequência, ficar desprovida de proteção por um erro momentâneo”. (Itálicos nossos).

Sendo essa a razão que está na base da consagração da negligência grosseira, em termos de enquadramento, importa ainda assinalar o modo como a mesma tem sido entendida por vários autores e pela jurisprudência.

Assim,
Veiga Rodrigues, em comentário à Lei n.º 1942[vi], refere-se, a propósito, ao conceito de culpa indesculpávelato ou omissão voluntários, injustificado pelo exercício da profissão ou das ordens recebidas que constitua um perigo grave conhecido pela vítima, distinguindo voluntariedade do ato ou omissão e a intencionalidade do mesmo”.

Cruz de Carvalho, por seu turno, em anotação à Base VI, n.º 1 alínea b),  da Lei n.º 2127, (“1-Não dá direito a reparação o acidente:  (…); b) Que provier exclusivamente de falta grave e indesculpável da vítima), refere que “é preciso que haja um comportamento temerário, reprovado pelo mais elementar sentido de prudência, uma imprudência e temeridade inútil, indesculpável, mas voluntária, embora não intencional[vii].

Carlos Alegre, a propósito do art.º 7.º da Lei 100/97,[viii] enuncia que “Ao qualificar negligência grosseira, o legislador está a afastar implicitamente a simples imprudência, inconsideração, irreflexão, impulso leviano que não considera os prós e os contras. (…). O legislador do art.º 7.º teve também o cuidado de distinguir a negligência quanto à intensidade da vontade ou gravidade, no pressuposto de que a doutrina costuma estabelecer três graus: lata, leve e levíssima. A negligência lata ou grave confina com o dolo e parece ser, sem dúvida, a esta espécie de negligência que se refere o legislador ao mencionar a negligência grosseira; é grosseira porque é grave e por ser aquela que in concreto não seria praticada por um suposto homo diligentissimus ou bónus pater famílias”.

Melo Franco,[ix]  sustenta, a propósito, que “Não basta a culpa leve, uma simples imprudência, uma distração ou comportamento semelhantes para descaracterizar o acidente. É necessário um comportamento temerário ou reprovado por um elementar sentido de prudência e, como bem mostra o emprego do advérbio “exclusivamente”, que para ele não haja concorrência de culpa da entidade patronal (...) Por outras palavras, (…) quando tal atitude era perigosa e conhecida como tal, não sendo necessária, nem útil, nem fora ordenada ou expressamente autorizada”. (Todos itálicos nossos)

Como é sabido, a negligência consiste na omissão da diligência a que o agente estava obrigado ou, seja, traduz-se na inobservância do dever objetivo de cuidado que era exigível àquele.

Em função da intensidade e do grau de culpa, costuma classificar-se a negligência (culpa) em levíssima, leve e grave. A primeira (culpa levíssima) ocorre quando o agente tiver omitido os deveres de cuidado que uma pessoa excecionalmente diligente teria observado. A segunda (culpa leve) acontece quando o agente tiver deixado de observar os deveres de cuidado que uma pessoa normalmente diligente teria observado. A terceira (culpa grave, temerária ou qualificada) existirá quando o agente deixar de usar a diligência que só uma pessoa especialmente descuidada e incauta não teria observado. [x]

A negligência grosseira corresponde à culpa grave ou lata, que os romanos apelidavam de nimia ou magna negligentia e que, segundo eles, consistia em non intelligere quod omnes intelligunt[xi].

Vejamos agora o entendimento que tem sido seguido pelos nossos tribunais sobre esta temática, cujos arestos se passam a indicar, sumariamente.
- Como se referiu no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 09-06-2010, [xii] 
I-A negligência ou mera culpa consiste na violação de um dever objetivo de cuidado, sendo usual distinguir entre aquelas situações em que o agente prevê como possível a produção do resultado lesivo mas crê, por leviandade ou incúria, na sua não verificação (negligência consciente) e aquelas em que o agente, podendo e devendo prever aquele resultado e cabendo-lhe evitá-lo, nem sequer concebe a possibilidade da sua verificação (negligência inconsciente).
II-A negligência também pode assumir diferentes graus, em função da ilicitude e da culpa: será levíssima quando o agente tiver omitido os deveres de cuidado que uma pessoa excecionalmente diligente teria observado; será leve quando o parâmetro atendível for o comportamento de uma pessoa normalmente diligente e será grave quando a omissão corresponder àquela em que só uma pessoa especialmente descuidada e incauta teria também incorrido.[xiii]

III-Correspondendo a “negligência grosseira” à “culpa grave”, a sua verificação pressupõe que a conduta do agente – porque gratuita e de todo infundada – se configure como altamente reprovável, à luz do mais elementar senso comum.

IV-A “negligência grosseira” deve ser apreciada em concreto – conferindo as condições do próprio sinistrado – e não com referência a um padrão abstrato de conduta.

V-A exclusão da responsabilidade decorrente da descaracterização do acidente, prevista no art. 7.º, n.º 1 da LAT, a par de um comportamento do agente altamente reprovável, exige que o acidente tenha resultado, em exclusivo, desse comportamento.

VI-Como a descaracterização do acidente constitui um facto impeditivo do direito reclamado pelo autor, compete ao réu a prova da materialidade integradora dessa descaracterização, na dupla vertente mencionada em V. (…)”. [xiv]
-Relativamente ao nexo de causalidade, “este reporta-se em exclusivo à situação de negligência grosseira, não sendo admissíveis outras causas ou culpas”. (Neste sentido, podem ver-se, entre outros, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 22-06-2005, CJ/STJ, 2005, 2.º Volume, pág. 269, de 17-09-2009, proc. n.º 451/05, de  28-03-2007, proc. n.º 06S3956 e de 14-04-2010, proc. n.º 35/7.TBSRQ.L1.S1, disponíveis em www.dgsi.pt.)
-A esse propósito consignou-se no referido Acórdão de 17-09-2009, designadamente o seguinte: “ Para excluir o direito à reparação de acidente de trabalho, nos termos da alínea b) do n.º 1 do artigo 7.º da Lei n.º 100/97, de 13 de Setembro (LAT), é indispensável que o evento seja imputado, em termos de causalidade adequada, exclusivamente, a comportamento temerário em alto e relevante grau do sinistrado (n.º 2 do artigo 8.º do Decreto-Lei n.º 143/99, de 30 de Abril), o que implica, por um lado, a prova de que o acidente se deveu a conduta inútil, indesculpável, sem fundamento, e de elevado grau de imprudência, da vítima, e, por outro lado, a prova de que nenhum outro facto concorreu para a sua produção.
- São pressupostos jus-normativos da descaracterização com fundamento na negligência grosseira: “o comportamento temerário em alto e relevante grau por parte do sinistrado e o exclusivo nexo causal entre o comportamento do trabalhador e a ocorrência do acidente. (Vd. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 29-01-2014, Recurso n.º 1008/06.8TTVFX.L2.S1 - 4.ª Secção)[xv].
- No Acórdão do mesmo Alto Tribunal, de 10-10-2007, proc. n.º 07S2446, [xvi]depois de se ter enunciado o que se entende por negligencia grosseira e exclusiva do sinistrado - “o prosseguimento de comportamentos traduzidos na omissão de cuidados e diligência necessários a obstar à produção de um resultado indesejado e que seriam de exigir a um homem dotado de conhecimentos médios, em face das circunstâncias concretas que se lhe deparavam, sendo ainda mister que aquela falta de cuidados se revele como acentuada e indesculpável face ao circunstancialismo rodeador da atuação (aqui se incluindo as circunstâncias que a antecederam e, até, motivaram), por tal forma que, num juízo de prognose póstuma, um homem dotado de boa diligência, colocado na posição do sinistrado, não teria prosseguido idêntico comportamento”, - e de se referir que o comportamento do sinistrado deve ser – causa adequada e exclusiva do dano, afastando a inconsideração, irreflexão ou impulso leviano que não considera os prós e os contras”, concluiu-se não poder descaracterizar-se o acidente de trabalho, se não existem elementos firmes dos quais se possa extrair que a falta de cuidado e diligência do sinistrado deve qualificar-se como grosseira”.
- Impõe-se a demonstração da negligência grosseira para que se opere a descaracterização do acidente. Na ausência desse pressuposto, não é possível denegar o direito à reparação (Vd. Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 21-04-1999, proc. n.º 3/99, de 16-12-1999, proc. n.º 196/99 e de 4-12-2002, proc. n.º 2426/02).
- No Acórdão de 19-10-2005, proc. n.º 05S1918, in www.dgsi.pt, do mesmo Tribunal, faz-se menção à negligencia grosseira como “(…) negligência particularmente grave, atento, designadamente, o elevado grau de inobservância do dever objetivo de cuidado e de previsibilidade da verificação do dano ou do perigo, configurando uma omissão fortemente indesculpável das precauções ou cautelas mais elementares; 2.Para que se verifique a apontada exclusão da responsabilidade emergente de acidente de trabalho é necessária a prova de que ocorreu um ato ou omissão temerários em alto e relevante grau por parte do sinistrado, injustificados pela habitualidade ao perigo do trabalho executado, pela confiança na experiência profissional ou pelos usos e costumes da profissão, e, além disso, que o acidente tenha resultado exclusivamente desse comportamento; (…)”
- Por outro lado, no Acórdão de 01-03-2007, proc. 06S4613, in www.dgsi.pt, entendeu-se não ser de concluir pela verificação da negligência grosseira do sinistrado se não é de excluir que o acidente se tenha ficado a dever a outros fatores (para além dos imputados ao sinistrado), que se não encontram também esclarecidos nos autos, visto que se desconhecem as causas próximas da ocorrência (No mesmo sentido os Acórdãos de 08-06- 2006, proc. n.º 1538/06 e de 29-02-2012 Recurso n.º 165/07.0TTBGC.P1.S1 - 4.ª Secção, sumários, www.stj.pt).
- Importa ainda referir, que a apreciação da negligência grosseira é feita em concreto, casuisticamente, em face das circunstâncias do caso e das condições do agente. “A negligência grosseira, que corresponde a uma negligência particularmente grave, qualificada, atento, designadamente, o elevado grau de inobservância do dever objetivo de cuidado e de previsibilidade da verificação do dano ou do perigo, deve ser apreciada não em função de um padrão geral, abstrato, de conduta, mas em concreto, em face das condições da própria vítima – segundo os seus conhecimentos e capacidades pessoais. (Vd. Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 09-01-2008, proc. n.º 07S3419 e de 11.02.2015, proc. n.º 1301/10.5T4AVR.C1.S1, www.dgsi.pt).  [xvii]
 
Para além disso, o ónus da prova dos factos integradores da descaracterização do acidente, por se tratarem de factos impeditivos dos factos constitutivos alegados pelo sinistrado (art.º 342.º, do Código Civil), recai sobre a entidade responsável (a entidade patronal ou seguradora). Prova essa que competia quer à empregadora, quer à seguradora, como entidades responsáveis pela reparação do acidente, por serem factos conducentes â sua descaracterização, e, por isso, impeditivos do direito invocado pelos beneficiários legais do falecido sinistrado (artigo 342.º, n.º 2, do Código Civil). O ónus da prova dos factos que permitem concluir pela descaracterização de um acidente de trabalho cabe a quem a invoca, por se tratar de um facto impeditivo dos direitos do trabalhador.[xviii] (Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 25-06-1999, proc. n.º 003026 e do Tribunal da Relação de Évora de 21-12-2017, proc. n.º 572/15.5T8LRA.E1, www.dgsi.pt).
Feito o enquadramento, atentemos agora no presente caso.

A matéria de facto provada relevante é a seguinte:

No dia 16-09-2019, o sinistrado … encontrava-se na plataforma de embarque central da estação … a aguardar a chegada do comboio com destino a Sintra, juntamente com outras pessoas. O sinistrado encontrava-se à beira da plataforma a mexer no telemóvel, sendo que a dado momento deixou cair o telemóvel à linha de caminho de ferro, tendo o mesmo de imediato saltado da plataforma de embarque para a linha de caminho de ferro para apanhar o telemóvel. As pessoas que se encontravam na plataforma de embarque disseram e chamaram a atenção do sinistrado que aquele tipo de comportamento era perigoso. Na altura que o sinistrado apanhou o telemóvel, surgiu o Comboio …, proveniente de …, com destino a …, que não parava naquela estação, sendo que no momento em que tentava subir para a plataforma de embarque, o sinistrado foi colhido pelo comboio, o que lhe veio a originar a morte. Mais se apurou que a passagem eminente de comboio foi anunciada por avisos em alta voz através dos altifalantes da estação e dos sinais sonoros do próprio comboio. As pessoas que se encontravam na plataforma de embarque gritaram várias vezes para o sinistrado se apressar a subir, não tendo o condutor do comboio conseguido evitar embater no sinistrado, pois quando o avistou era tarde de mais para conseguir imobilizar a composição. O telemóvel do sinistrado, um …, custou € 1.029,99, foi  adquirido em … pela 1.ªAutora, companheira do sinistrado, que o havia oferecido a este.
Com base no descrito quadro factual, o que pode desde já adiantar-se é que a conduta do sinistrado, ao saltar para a linha do caminho de ferro para apanhar o telemóvel, visto aí o ter deixado cair, é reveladora de grande falta de diligência, cuidado e prudência da sua parte.
Com efeito, é do conhecimento geral que as estações de caminho de ferro e as suas plataformas por serem locais onde passam com regularidade comboios, alguns deles a alta velocidade e que não param, são zonas perigosas, a implicar especial atenção e prudência da parte dos utentes.
Por ser assim, nas estações de caminho de ferro onde existem passadeiras de peões, as mesmas encontram-se assinaladas e devidamente sinalizadas, de modo a que os peões saibam que (apenas) por aí lhes é permitido transpor a linha férrea e as circunstâncias em que o podem fazer em segurança.
Nas próprias plataformas, é também comum a existência de uma faixa amarela ao longo da mesma, bem como indicações no sentido de não ser permitida a ultrapassagem dessa faixa amarela (antes da chegada dos comboios). Tudo isto, naturalmente, porque a circulação ferroviária é uma atividade perigosa, que implica riscos, impondo-se, por isso, para todos que as utilizam especial atenção, prudência e cuidado.
No caso em apreço, a negligência do sinistrado é ainda mais evidente quando é certo o mesmo usava a referida estação com regularidade para se deslocar de comboio para casa após o trabalho e vice-versa, sendo por isso conhecedor das características do local.
Sucede, contudo, como acima se deu conta, que para se aferir da existência da negligência grosseira e exclusiva do sinistrado, é imperioso que se atente no circunstancialismo concreto que rodeou o acidente.
E nesse conspecto não pode deixar de se assinalar, consoante resulta da factualidade provada, que o sinistrado saltou para a linha a fim de “salvar” e recuperar o telemóvel que aí havia caído.
Tratava-se, nem mais nem menos, do telemóvel que lhe havia sido ofertado, há poucos dias, pela sua companheira, e que havia custado cerca de €. 1029.99.

Assim, para o sinistrado, o dito telemóvel, para além de ter valor económico (face ao seu custo e à modesta condição social do sinistrado, que auferia apenas de ordenado base mensal €600,00), tinha também para o mesmo óbvio valor estimativo, visto ter sido oferecido pela sua companheira. Se não conseguisse recuperar o telemóvel, o mesmo poderia ficar definitivamente destruído.

Importa ainda ponderar que o telemóvel constitui atualmente um objeto de uso indispensável para a generalidade das pessoas. A esse respeito, numa referência meramente indicativa, anota-se o seguinte:
É sobretudo por via do telemóvel que as pessoas estabelecem e mantêm contactos telefónicos, deixam mensagens e trocam as mais diversas informações. Aí se armazenam também vários dados, sendo no telemóvel que se guardam os contactos de familiares e amigos, fotos, mensagens, notas e demais aspetos relevantes da vida de cada um. É através do telemóvel que, normalmente, se acede às redes sociais, e-mails e a diversos conteúdos, incluindo notícias, anúncios e publicidade. Sendo, igualmente, através do telemóvel que se pode jogar, ver filmes, ouvir música, etc., etc.

O telemóvel “entranhou-se” de tal modo na vida dos cidadãos em geral, que o mesmo, para muitos, é como que “uma extensão da própria pessoa”. [xix].

Situação essa, a que como utilizador, certamente, o sinistrado não seria alheio.

Foi, pois, para evitar ficar sem o telemóvel que o sinistrado se lançou à linha de caminho de ferro, a fim de o apanhar. O que fez de imediato, em gesto quase instantâneo, [xx]assim que o telemóvel ali caiu.

É certo que as pessoas que se encontravam no local chamaram a atenção para a perigosidade desse comportamento, e que a passagem do comboio foi anunciada através dos altifalantes da estação e sinais sonoros do comboio. Acontece, porém, que tendo o sinistrado dificuldades auditivas em ambos os ouvidos, se desconhece se o mesmo os ouviu.

Todavia, na altura em que saltou para a linha férrea, não se demonstra que o comboio estivesse próximo, fosse avistável pelo sinistrado ou estivesse prevista a sua passagem, sendo razoável pressupor que o mesmo sinistrado terá calculado que conseguiria recolher o telemóvel e sair a tempo da linha, visto que apenas foi colhido pela composição quando já se encontrava a tentar subir para a plataforma.

Importa ainda salientar que o comboio que atingiu o sinistrado era um comboio regional e não um de alta velocidade (como, é por exemplo, Alfa Pendular).

Para além disso, se é certo que o maquinista não conseguiu evitar o embate, pois quando avistou o sinistrado já era tarde de demais para imobilizar a composição, nada se apurou que nos permita afirmar que esse comboio circulava de acordo com a velocidade legalmente permitida para o local, sendo que os princípios de prudência e diligência se impunham àquele como a qualquer condutor – tanto mais que se aproximava de uma estação, onde é normal se encontrarem várias pessoas e circularem outras composições. Acresce que tão pouco se apurou a periodicidade e o horário desse comboio. Isto é, não se dispõe de dados, que nos permitam concluir no sentido de que o acidente não ocorreu (também) por culpa do maquinista do comboio – por, eventualmente, o mesmo circular em excesso de velocidade no local.

Assim, apesar da “ousadia”, ligeireza e imprudência do sinistrado, atendendo ao contexto em que os factos ocorreram, e à luz dos ensinamentos que supra se deixaram expostos, afigura-se-nos não se poder afirmar que estamos em presença de um ato exclusivo, gratuito, sem qualquer justificação, temerário em alto e relevante grau, completamente incompreensível à luz das regras da vida e da experiência comum. Não se demonstrando, assim, in casu, que o acidente se tenha ficado a dever a negligência grosseira e exclusiva do sinistrado.

Termos em que improcede, sem mais, a presente questão.

5.Decisão

Em face do exposto, nega-se provimento ao recurso e confirma-se a sentença recorrida.
Custas pela Ré.



Lisboa, 2022-05-25



Albertina Pereira
Leopoldo Soares
Alves Duarte


[i]“Código de Processo Civil Anotado”, Volume 3.º, Coimbra Editora, pág. 5.
[ii]“Recursos no Novo Código de Processo Civil”, 2014, 2.ª Edição, Almedina, página 93.
[iii]Com igual entendimento, o Alberto dos Reis, “Código de Processo Civil Anotado”, Coimbra Editora, Vol. V, pág. 141, Lopes do Rego, “Comentários ao Código de Processo Civil”, Almedina, Volume I, 2.ª, Edição, pág. 566, e Amâncio Ferreira, “Manual dos Recursos em Processo Civil”, Almedina, 9.ª Edição, pág. 153 a 158.
[iv]Sobre acidentes in itinere, pode ver-se Júlio Gomes, “Acidente de Trabalho, O acidente in itinere e a sua descaracterização” Coimbra Editora, pág. 267 e também, entre outros, Ivan Vizcaíno Ramos, “ El impacto de la conciliacion, personal, laboral y familiar sobre régimen del accidnte de trabajo in itinere”, Atelier, pág. 72 a 75, onde se cita o relevante Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13-07-2017, proc. 175/14.1TIBRG.L1 (Ferreira Pinto).
[v]Júlio Gomes, “Ob. Cit. pág. 267.
[vi]“Acidentes de Trabalho”, Anotação à Lei 1942, Coimbra Editora, pág. 30.
[vii]“Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais”, Livraria Petrony, 2.ª Edição, pág. 51.
[viii]“Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais”, Almedina 2.ª Edição, pág. 61
[ix]“Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais”, BMJ Suplemento, Ano 1979, pág. 72
[x]A intensidade da culpa é graduada em função do quantum de inobservância do dever objetivo de cuidado, da previsão ou previsibilidade e em função da segurança ou simples probabilidade de evitar o facto (ilícito) se o agente tivesse agido como devia e lhe era possível – Vd. Germano Marques da Silva, “Direito Penal Português”, Editorial Verbo, pág. 182.  
[xi]Vd. Inocêncio Galvão Telles, “Direito das Obrigações”, Coimbra Editora, 2.ª Edição, pág. 304.E também, Manuel Domingos de Andrade, “Teoria Geral das Obrigações”, 2.ª Edição, Almedina, pág. 341 e 342.
[xii]Cfr. proc.º n.º 579/09.YFLSB.L1, disponível em www.dgsi.pt
[xiii]Referindo-se aos vários tipos de negligência, podem ver-se os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 22-10-2008, proc. n.º 935/08.4 e de 24-02-2010, proc. n.º 747/04, sumariados em www.stj.pt.
[xiv]No mesmo sentido, entre outros, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 22-10-2008, proc. n.º 935/08.4, sumariado em www.stj.pt.
[xv]Sumariado em www.stj.pt
[xvi]Disponível em www.dgsi.pt
[xvii]Neste sentido, pode também ver-se o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 09-01-2008, proc. n.º 07S3419, in www.dgsi.pt. E Carlos Alegre, Ob. Cit. pág. 187, bem como Cruz de Carvalho, Ob. Cit. pág. 53.
[xviii]Com idêntica posição, os Acórdãos do nosso mais Alto Tribunal de 21-03-2013 Recurso n.º 191/05.4TTPDL.P1.S1, 4.ª Secção, e de 03-07-2019, proc. n.º 749/13.8TTGMR.G2.S1 (Revista) – 4.ª Secção, sumariados em www.stj.pt.
[xix]Para alguns está-se perante uma verdadeira adição, sobretudo nas camadas mais jovens da população, falando-se mesmo da existência de nomofobia (medo de ficar sem telemóvel). Vd. “Escravos do telemóvel”, Jornal Expresso, https://expresso.pt/sociedade/2017-10-28-Escravos-do-telemovel.
[xx]No acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 06-03-2006, proc. n.º 0544514,  entendeu-se que  “(…) II- Não age com negligência grosseira (de forma temerária em alto e relevante grau) a sinistrada que, conduzindo o seu veículo na auto-estrada e tendo deixado cair uma garrafa de água de 0,33l, se debruçou para a apanhar, entrou em despiste e invadiu a faixa separadora central, depois de ter derrubado as barras de protecão, pois o ato de se debruçar para apanhar a garrafa não traduz uma conduta grave (próxima do dolo), representando antes um ato irrefletido, automático, a identificar com a negligência simples ou leve”.


Decisão Texto Integral: